Categoria: Resenhas

  • Resenha | Pancadaria: Por Dentro do Épico Conflito Marvel vs. DC – Reed Tucker

    Resenha | Pancadaria: Por Dentro do Épico Conflito Marvel vs. DC – Reed Tucker

    Pancadaria: Por Dentro do Épico Conflito Marvel vs. DC é um livro de estudo de caso sobre a rivalidade entre as duas maiores editoras mainstream dos Estados Unidos, escrito pelo jornalista Reed Tucker. A publicação é parte da cena de bons livros que se voltam para o universo dos quadrinhos no Brasil e no mundo.

    Ainda na introdução o escritor tira algumas conclusões sobre o choque entre editoras e as diferenças entre elas, destacando a capacidade da Marvel Comics se renovar enquanto a DC Comics se assemelha a uma reunião de idosos incapazes de retratar algo fora de suas zonas de conforto.

    Os capítulos iniciais destacam o pioneirismo da DC quando ainda era chamada National Comics, primeiro com reunião de heróis em grupos, como também em iniciativas editoriais que popularizavam os personagens de maneira unida e organizada. Um bom retrato da chamada Era de Ouro e pelos fatores que ajudaram a formar o que se entendia por quadrinhos de heróis. O tradutor, Guilherme Kroll faz um ótimo trabalho, o livro é repleto de notas de rodapé envolvendo contexto das publicações lá fora e no Brasil, como, por exemplo, as traduções nacionais envolvendo mudanças de nomes — Lois Lane para Mirian Lane, Átomo para Eléktron, etc.

    Fato é que Marvel e DC eram bem diferentes desde sua concepção, ainda que a temática das aventuras nas revistas coincidisse. A Marvel, inicialmente, variava entre a mera replicação do que fazia sucesso nos quadrinhos populares da concorrente, com destaque de uma fala de Stan Lee:

    “éramos uma empresa de macacos de imitação”

    Enquanto sua concorrente era predatória, comprando todas as pequenas concorrentes — boatos no livro dão conta que até se cogitou a compra dos direitos do Príncipe Namor e Tocha Humana original, obviamente não confirmado pelas partes.

    A maior riqueza do livro são os detalhes da indústria, como a função de Stan Lee de estagiário, responsável por entregas, servir café e demais serviços auxiliares enquanto sonhava em se tornar romancista, já que encarava os quadrinhos como uma arte menor. Além disso, o livro se debruça bastante sobre a Marvel, desde a importância e decadência de Jack Kirby, como também da ascensão de Stan Lee.

    Reed tem uma escrita prosaica que prende o leitor, além disso, há muita fluidez e inteligência em transições de temas e assuntos. É tudo muito orgânico e o escritor não tem receio em expor a supressão dos artistas por parte da DC e as constantes brigas de Lee na Marvel para serem dados os legítimos créditos aos artistas e escritores no início da segunda metade do século XX.

    Acompanhar os rumos que cada um dos personagens da indústria traçam neste livro faz o leitor buscar as histórias retratadas ali, seja dos personagens do Quarto Mundo quanto o primeiro crossover entre as editoras: Superman x Homem Aranha. O autor detalha tudo muito bem os crossovers dos anos 90, as tentativas de adaptação para televisão e cinema, e as principais disputas. O mesmo ocorre nas referências à era das  graphic novels, e em como a DC foi pioneira no formato de venda de “livros”, enquanto a Marvel não pensou tanto nisso, fato que foi importante para a falência da editora, que chegou a vender os direitos de seus personagens.

    A leitura de Tucker é convidativa, especialmente pela riqueza de detalhes dos bastidores da indústria de quadrinhos, tudo é bem explorado, tanto para o leitor não habituado a esse universo, quanto aos mais experientes. Pancadaria é uma leitura rica sobre esse subgênero e muito complementar a outros estudos sobre o tema.

  • Resenha | As Aventuras de Robin Hood – Alexandre Dumas

    Resenha | As Aventuras de Robin Hood – Alexandre Dumas

    “– Sherwood e Robin Hood!, gritavam os alegres homens da floresta, perseguindo os inimigos com grandes risadas.”, pág. 295, editora Zahar.

    Inspiração. O que poucos sabem é que o arquétipo do bom bandido já era comum na tradição camponesa britânica, lá pelo século XI D.C.. Muito menos que Robin Hood não foi inventado pela mente de Alexandre Dumas de forma totalmente autêntica. Inspirado em inúmeras lendas da Inglaterra, e pela perseguição implacável dos conquistadores normandos aos saxões no país, lá pelos anos de 1070 a 1200, Hood é um dos nativos ingleses rebeldes que, caçados por não se submeterem ao reino abusivo de Henrique II, sumiam do mapa nas florestas, sobrevivendo como podiam da caça, do companheirismo e da própria astúcia. Ou seja, homem do povo que, largado a própria sorte ou azar, se vira como pode, algo bem comum para brasileiros e outros humilhados pelo poder. Mas a pergunta segue a mesma: afinal, Hood é mocinho ou bandido?

    Se as coisas fossem fáceis assim, Robin Hood teria uma fama maior do que já tem – quase sempre lembrado, no imaginário popular, como um “homem de bem” que tira dos sovinas, para dar aos pobres. Em um cenário de insegurança política (um novo reino europeu a conquistar e desbravar as terras da Inglaterra), Hood é ofertado bebê a uma nova família de humildes e solidários guardas florestais, mesmo tendo sangue nobre e que, talvez por uma “revolta do subconsciente”, viria a desconfiar e até enoja-la ao longo de toda a sua vida. No romance histórico de Dumas, nos é velado um único motivo que conduz o guardião do condado de Nottingham, e da sua floresta de Sherwood, ao combate das inúmeras injustiças que encontra pelo caminho, sozinho ou com seus amigos, João Pequeno e seu primo William, já que a trama repleta de aventura, romance e suspense sempre acaba estabelecendo o seu bondoso e destemido coração como a principal razão da sua flecha mirar no bumbum ou no peito dos piores fora-da-lei.

    Questão de honra ao rapaz, nos tempos da honra, que mesmo tão namoradeiro, dispensava até a mais linda das princesas, no mais lindo dos castelos, para impedir o triunfo de um inimigo ao seu povo, ou o sequestro dos companheiros que jamais viriam a traí-lo. Dentre reis e barões corruptos, prestes a conquistar até o último terreno e o último vintém dos mais pobres, a publicação de capa dura da editora Zahar destaca a obra dividida em duas partes, extremamente bem traduzidas pelo mago das palavras Jorge Bastos: no primeiro, temos o volume de formação clássica do jovem “herói”, uma vez que no segundo há toda aquela carga mundialmente reconhecida (e aclamada, em um oceano multimidiático de adaptações e referências) das aventuras de Robin Hood e o seu bando de guardiões populares de Nottingham. A cada capítulo impondo-se como a última resistência saxã à perigosa dominação normanda (as leis condenavam à castração todos os rebeldes que não conseguiam se refugiar.).

    Nota-se o quanto Dumas vê Hood quase como uma força da natureza, resposta ainda que inconsequente do Homem ao sofrimento cada vez mais institucionalizado e amplo. Uma boa vingança, talvez; um contra-ataque merecido. De forma quase teatral, esboçando seu jogo literário tal qual uma peça redigida em deliciosa prosa, Dumas foi o genial autor negro e francês de Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo, tendo então na sua trindade de clássicos uma parada obrigatória para todo(a) leitor(a), disposto(a) a mergulhar nas mais inesquecíveis das histórias. Após ganhar os traços coloridos e frenéticos da ótima animação da Disney de 1973, e ser inspiração para os heróis Arqueiro Verde, da DC, e o Gavião Arqueiro, da Marvel, a criação de Dumas virou ícone, símbolo de uma rebeldia cultuada, graças a romantização de sua ousadia que sofreu no livro, em outras mídias e no próprio folclore inglês. De tempos em tempos, sempre surge um novo Robin Hood contra os impérios. O legado de Dumas, então, vive.

  • Resenha | Crônicas de Madureira: Das Fazendas de Açúcar ao Berço do Samba – Carlos Alberto Meda

    Resenha | Crônicas de Madureira: Das Fazendas de Açúcar ao Berço do Samba – Carlos Alberto Meda

    A identidade suburbana carioca é tema de inúmeras manifestações culturais. Cantos, músicas, letras de samba enredo já falaram demais a respeito da Zona Norte carioca e, entre elas, o bairro possivelmente mais conhecido além do mapa da Guanabara é Madureira, berço do samba, lar do maior mercado popular da América Latina e de tantos outros eventos míticos. Crônicas de Madureira: das fazendas de açúcar ao berço da samba mira contar um pouco dessa história, pelos olhos de alguém realmente apaixonado pelo lugar, o escritor Carlos Alberto Meda.

    O material é bem pessoal e a escrita que Meda mantém um formato jornalístico e também o formato literário de crônica com lamentos muito justos ao fato do bairro não receber do poder público a atenção que deveria receber, uma vez que é parte fundamental do que faz o Rio ser o que é, mesmo que não esteja nos principais cartões postais da Cidade Maravilhosa. Segundo o estudo do autor, o nome do bairro seria uma homenagem a um vaqueiro de conduta mal falada. Lourenço de Madureira era comprador de terras, arrendatário, e sua índole ruim o precedia, ao ponto de tornar confuso o motivo que fez com que fosse dele a inspiração para o nome do bairro.

    O autor mistura bem informações, dados informativos e um estilo de escrita lírico. Poetiza acontecimentos corriqueiros, burocráticos e estritamente comuns, e aborda o bairro desde os tempos imperiais, quando ocorreu a instalação do Laboratório Imperial Pirotécnico, a extensão da linha acessória de trem de Dom Pedro II, a atual Estação Central do Brasil, a fábrica de munição de Cascadura, até chegar aos tempos do século XX onde Madureira seria destaque comercial na cidade, reunindo compras de todo o território fluminense.

    O livro é curto, com pouco mais de 100 páginas e detalha historias de pessoas que deram nome as ruas do bairro, fala do adventos das linhas de ônibus, destaca brevemente a inauguração do Mercadão de Madureira e as iniciativas de pequenas autoridades locais em montar coretos para o Carnaval, que faziam concentrar o povo na festa da folia e fomentaram a fundação de agremiações como Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela e Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano, além de colégios e agremiações esportivas como o Madureira Esporte Clube, nesse ponto em específico, detalhando bem os clubes que se fundiram algumas vezes para formar o simpático Tricolor Suburbano.

    Meda associa bem a retirada de mão de obra escrava das fazendas com o processo de favelização do bairro, pois uma vez que as fazendas deixaram de ser produtivas, e sem estrutura para assalariar a mão de obra,  os alforriados e demais pessoas de renda baixa não tiveram para onde ir, com alguns ex-escravos preferindo trabalhar em troca de moradia e comida junto aos antigos patrões na época das fazendas, enquanto outros migravam para moradias perigosas, tomando posse de terras improdutivas e também subindo os morros, que não eram lugares seguros graças as chuvas e deslizamentos de barrancos.

    Entre o simples descrever de fatos notáveis ano a ano, e breves citações aos eventos únicos do bairro como a dança de origem africana acompanhada de tambores e batuques, o Jongo da Serrinha, Meda traz luz a uma época de glamour em Madureira. Não que atualmente o bairro seja tão diferente, afinal é um dos mais lembrados do cenário carioca, mas claramente não é igual a época analisada aqui. O autor tem um genuíno amor por seu terra e lugar, e registra bem os causos, lendas e mitos que fizeram Madureira ser um lugar de luta e inspiração para todos que passam, visitam ou moram no bairro.

  • Resenha | O Deus das Avencas – Daniel Galera

    Resenha | O Deus das Avencas – Daniel Galera

    Após uma sequência dedicada a narrativas longas, Daniel Galera reúne três novelas em O Deus das Avencas, lançamento da Companhia das Letras. Se sua obra anterior, Meia-Noite e Vinte, radiografava a geração de 1990, nesse novo livro as narrativas se estruturam a partir do tempo presente e se deslocam a um futuro árido.

    O trabalho do último livro, resultou em um cansaço inédito em sua carreira. Na cabine de leitura do livro, promovida pela editora, o escritor mencionou um período de latência em que duvidava da própria narrativa. O natural distanciamento temporal lhe trouxe novas experiências e ideias esboçadas, culminando nas três narrativas presentes.

    Situada em um passado recente, inesquecível pelos brasileiros, a novela O Deus das Avencas, que intitula o livro, é bem executada nas angústias internas e externas. A trama contrapõe um casal cujo filho demora a nascer, em um trabalho de parto ansioso que adentra um final de semana. O mesmo final de semana do dia da eleição de 2020 culminando nos rumos atuais do país. A contraposição entre felicidade interna sobre a composição da família e um caos prestes a ser instaurado na política é preciso.

    Como seus personagens, Galera amadureceu e, nessa narrativa, versa sobre a experiência paternal levada ao extremo, analisada sob o legado parental, indagando-se qual o futuro será das próximas gerações? Não há nenhum conceito implícito nas entrelinhas. Mas sim, a tensão de um rebento que, como um mentalista metafórico, reconhecendo um futuro tenebroso, quase se recusando a nascer.

    Já na segunda novela, Tóquio, o escritor explora uma vertente nova em sua narrativa. Ao apresentar um futuro desolado, dialoga com a tradição da ficção científica mas não perde o foco sobre o Brasil e o tempo presente. O elemento mais incômodo da trama é o fator realista como se vislumbrássemos um futuro que está logo ali. Ao contrário de muitas narrativas especulativas que inserem a inteligência artificial como uma tecnologia perfeita, a narrativa aborda um futuro em que a transferência de mentes é disfuncional, mas um dos poucos contatos existentes entre famílias e o passado conhecido. Some a isso um mundo arruinado, em grande parte destruída pela estupidez humana, e o cenário está completo.

    Fechando a trinca, Bugônia prossegue em mais um passo rumo a um futuro longínquo em que a devastação mundial traz o retorno do primitivismo e reacende a importância da natureza como harmonia. Com valores reestruturados em uma sociedade tribal, porém, o medo do desconhecido ainda se mantém. De certa forma, demonstrando como, independente dos ciclos, os humanos se mantém em vício.

    As três narrativas, embora sem compartilhar o mesmo universo, seguem uma estrutura temporal evidente. Como se previsse possíveis destruições a partir das tensões atuais, tanto na falência dos ecossistemas como nas rupturas políticas.

    Além do espaço temporal, outra unidade evidente é a narrativa de Galera, madura e precisa, mantendo um bom ritmo narrativo e se aprofundando em personagens envolventes e ricas ambientações. A todo momento, o senso de realidade em suas linhas esmaga o leitor. Como um pessimista, o autor nos convida a contemplar três narrativas sobre o fim, seja o esgarçamento moral de nossa nação, a liquidez das relações sociais ou o mundo como o conhecemos. No inevitável apagar das luzes, ainda resta a ficção. Ou quase.


  • Resenha | Tarzan: O Filho das Selvas – Edgar Rice Burroughs

    Resenha | Tarzan: O Filho das Selvas – Edgar Rice Burroughs

    Há certos personagens que extrapolam seus direitos autorais, estúdios e editoras, e existem no imaginário da humanidade como se fossem criações imortais. Zorro, Merlin, Sherlock Holmes, e é claro, Tarzan. No caso dele, sua fama no desorganizado século XXI se dá pela animação da Disney. E muitos acreditam que foi criado para o filme, e só para o filme – embalado pela magnífica trilha-sonora de Phil Collins. Ainda de posse de sua criação em 1912, o escritor americano Edgar Burroughs se inspirou em grandes autores do passado para a criação de um mito que viria a ser o primeiro personagem multimídia da cultura pop, sendo licenciado para séries e filmes em Hollywood, sorvetes, roupas e jogos. Assim, o “rei das selvas” virou uma marca ultra popular e amada, muito antes de Darth Vader, Arlequina e Homem-Aranha (de onde veio a inspiração de Stan Lee para criar um herói que se pendura por aí? Pois é…).

    Mas Tarzan não era herói, e sim fruto do seu meio – um tema que a obra original tanto se propõe a discutir, o tempo todo. O homem faz o seu meio, o contrário ou ambos? Nota-se que Edgar, o autor empresário, escreve uma das maiores aventuras do século XX, sem tirar de órbita a importância atemporal e universal de suas temáticas: família, natureza humana, meio-ambiente, fé, destino. Se Tarzan foi suavizado na sua versão infantil pela Disney, aqui temos com esmero em uma edição comentada e ilustrada pela editora Zahar (com 40 ilustrações de Hal Foster) o verdadeiro arquétipo de um anti-herói que usa da sua racionalidade, e respeito à vida que aprendeu na floresta para não ser um selvagem igual muitos “civilizados” europeus. Criado pela gorila Kala desde a morte de seus pais ingleses, refugiados em uma cabana numa floresta esquecida por Deus, e profundamente habitada por símios e felinos, o menino é moldado na animosidade e proteção do seu bando, conhecendo o fogo pelo raio, a água pela chuva e a comida pela caça.

    Mas e a natureza humana do garoto criado por animais? O que fazer com ela, apenas ignorá-la? Quando o “patinho feio” percebe ser um cisne numa lagoa de patos, o primitivo onde cresceu torna-se estranho e o chamado da sua espécie parece encontrar Tarzan na mais alta das árvores que escala mais rápido que o próprio vento. Edgar Burroughs não poupa esforços em sua narrativa, deliciosamente tecida em terceira pessoa, a fim de revirar a essência dessa figura caricata e, ao mesmo tempo, abissal em suas circunstâncias sempre encantadoras. Tal um animal que desconhece portões, Tarzan (também chamado no livro de “lorde Greystoke”, por ter sangue de lorde) mata se for preciso, persegue e vinga a morte de seus queridos com lanças e cipós, seguindo à risca as normas da sua cadeia alimentar – afinal, o que há além dela para se seguir? Ao encontrar por acidente a cabana de seus falecidos pais, nos confins da selva, vê pela primeira vez ilustrações de prédios, gente como ele, e entende: é um alienígena.

    Ou melhor: um humano entre macacos. Forte suspeita que viria a se confirmar no seu transformador contato com a civilização eurocêntrica, para o bem e para o mal, no mais banal dos dias em uma praia (aprendendo aos poucos francês com um amigo cheio dos requintes, mas reconhecendo a ganância e a crueldade do Homem, o mais perigoso dos animais). E claro, tendo ele o seu primeiro grande (e quase trágico) amor romântico: Jane Porter.

    Tarzan é um raro romance que deve ser lido quando criança, para depois relê-lo com outra perspectiva, já adulto. Isso porque o tempo completa e enriquece as suas nuances, tornando-o um livro acessível a todas as idades (seja na doçura de uma fábula, ou na visão original e realista que Edgar magistralmente escreveu). Mesmo ao abusar um pouco das coincidências na história e de alguns vícios da época de 1912 (há leves toques de racismo e machismo, espalhados por algumas caracterizações na trama), nunca queremos terminar essa aventura. Um tesouro.

  • Resenha | Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País – Alexandre Meira

    Resenha | Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País – Alexandre Meira

    “O seu país, o nosso país, é racista, misógino, homofóbico e, principalmente, covarde”. A excelente frase faz parte do Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País (Editora Penalux), do escritor Alexandre Meira, um livro com cinco potentes crônicas que destrincham as origens do cotidiano político medíocre que impera no status quo nacional. Ambicioso, Alexandre estima em suas crônicas monólogos com informações preciosas para outros brasileiros que também se sentem reféns da necropolítica federal. Além da natureza urgente do assunto em si, grande parte do sucesso do livro está na forma como o autor maneja bem a produção das próprias crônicas.

    Crônicas, por onde começar? A crônica é um gênero híbrido por excelência, engloba tanto informações de caráter não-ficcional, jornalístico, quanto momentos de beleza literária, herança da Literatura e dos primeiros cronistas nacionais que também eram escritores de mão cheia, como Lima Barreto, Machado de Assis, João do Rio, só para citar alguns. No meio desse tempero encontramos ironias, provocações, variedade de referências (Alexandre vai do Futebol a Nelson Rodrigues, de Pizarro ao tribunal da Lava Jato, por exemplo), informações históricas (sobretudo dos anos de 1990 ao tempo atual), fatos jornalísticos, tudo muito bem costurado por eloquentes e claras frases.

    Sobre as cinco crônicas, são elas: O golpe na amendoeira; O gol da Alemanha e a revanche dos vira-latas; Pizarro, cavalos, ovos e o fim da Lava Jato; Por que eu matei Marielle?; Chão de Amêndoas. Quero destacar alguns pontos de três delas. Em “O golpe na amendoeira”, o cronista toca em primeiro plano o processo de impeachment sofrido pela presidenta Dilma por conta das “pedaladas fiscais”. Mas em segundo plano, o que chama atenção é a disputa acirrada entre dois amigos que discutem se ela cometeu ou não os crimes econômicos. “Disputa” e “Discussão” porque, como o cronista bem observa neste e em outros pontos do livro, estamos em uma época que o diálogo está morto por uma corrente política que chegou ao poder pregando a polarização dos discursos. Isso não é diálogo, é discurso com a intenção de calar correntes opostas, e Alexandre explica como esses golpes duros contra o diálogo matam também a própria ideia de democracia, que pressupõe, por excelência, o espaço para todas as pessoas dialogarem pelo bem público.

    “Por que eu matei Marielle?” é outra crônica com um assunto mais evidente, a saber, a morte da vereadora Marielle Franco em março de 2018 (até hoje ainda sem mandantes conhecidos), mas com dois assuntos secundários importantes para discussão: a banalização da violência (seja ela contra as mulheres, minorias, ou por conta de sexualidades), e como há um sistema perverso no país que trabalha incansavelmente para exterminar representantes de camadas menos privilegiadas (Marielle era negra, homossexual e de pobre origem) do país. É um sistema que tem ojeriza à mudança do status quo, que luta para manter tudo como está, com elevadores de serviço e piadas homofóbicas e racistas em cada esquina. Como bem escreve o cronista: “Nunca houve nada mais perigoso para quem tem medo de uma verdadeira mudança do que algo que abra a fórceps sua estreita visão de mundo ante um futuro viável e livre de seus preconceitos. (…) Ela [Marielle] representava justamente essa verdadeira mudança.” Quem mandou matar Marielle?

    Última crônica do livro “Chão de Amêndoas” acompanha as mudanças políticas, econômicas e sociais desde a primeira eleição democrática brasileira, em 1989, pelos olhos do autor, intercalando com a própria infância e crescimento dele. Alexandre colhe fatos históricos ao seu lado, desde a TV de tubo onde acompanhou os primeiros horários políticos em 1989, às transformações no próprio bairro e no novo cotidiano do país. Uma crônica potente que abarca história nacional, o ponto de vista humano, as transformações políticas e sociais, o nascimento de um poder paralelo na Zona Oeste carioca (milícias), exemplos de fundamentalismo religioso, entre outros pontos. Um verdadeiro exemplo de narrativa, informação e texto em sincronia.

    Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País consegue atingir o que almeja: um manual atualizado para quem se propõe deixar o obscurantismo de lado e dialogar com os principais acontecimentos que nos trouxeram até o pessimista momento político atual. Este livro não possui apenas crônicas, mas monólogos que buscam fortalecer diálogos nesse espaço (em tese) democrático da política nacional. Leitura muito recomendada.

    Compre: Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País.

    Texto de autoria de José Fontenele

     

     

  • Resenha | O Som do Rugido da Onça – Micheliny Verunschk

    Resenha | O Som do Rugido da Onça – Micheliny Verunschk

    Na última década, a historiografia brasileira tem sido revista, derrubando a visão estreita com enfoque nos vencedores. Aos poucos, a percepção de Brasil antes do Brasil, terreno fértil, culturalmente e fisicamente massacrado pela colonização, tem sido reconhecido como as verdadeiras raízes de nossa nação.

    O Som do Rugido da Onça da historiadora e poeta Micheliny Verunschk é uma dessas narrativas que reconfigura, simultaneamente, a literatura e a história brasileira. Desloca os colonizadores para a margem e, principalmente, destaca dois índios como figuras centrais desse romance histórico, nativos sequestrados – ou salvos, como diriam os colonizadores – e levados a Europa. Em paralelo a essa ação, temos um enfoque contemporâneo  no qual uma personagem visita uma exposição artística em um museu e observa as ilustrações desses índios feitas como registros históricos da época. A conexão produz uma pergunta explícita: como lidamos com o peso histórico dos antepassados?

    Se retrocedermos o marco zero brasileiro além da descoberta, observaremos uma vasta quantidade de povos com uma ampla riqueza cultural. Ainda hoje, talvez por economia ou padronização, os povos nativos foram resumidos a uma figura, a do índio, que embora possuam elementos em comum como um belo respeito mítico a natureza, têm estruturas, sistemas sociais e religiosos distintos. Se hoje são quase marginalizados sem amparos governamentais, são povos fundamentais em nossa identidade.

    Verunshk demonstra essa riqueza brasileira através de uma das personagens centrais, Inê-ê, a nativa miranha colonizada pela expedição austríaca e posteriormente chamada de Isabella. É seu martírio de dor e incompreensão que observamos esse período de nossa história. Um contraponto diante das sempre elogiosas análises feitas a expedição do botânico Karl Friedrich Philipp von Martius e o biólogo Johann Baptist Ritter von Spix. Sem dúvida, suas pesquisas descobriram uma ampla gama de espécies registradas em nosso país, mas se por um lado observavam a natureza com beleza e harmonia, ainda consideravam os nativos indígenas como uma raça inferior em comparação a branca (em textos posteriores, Martius rejeita esse preconceito).

    Ao situar um espaço histórico em contraposição com o presente, é perceptível como as fraturas desse país colonizado a preço de sangue ainda seguem estilhaçando nossa identidade. Mantendo o eterno paradoxo de um país que a cada dois passos rumo a um progresso, retrocede um. O quanto somos conectados com nosso passado ancestral comum? Qual valor real damos aos povos nativos ou sua valia se situa apenas historicamente? Perguntas amargas que o romance suscita nas entrelinhas.

    Iñe-e, a personagem central da narrativa, é a representação dos povos massacrados. Da perda de nossa identidade primordial e da imposição vivida pelo domínio. Seus laços com a terra-mãe são apresentados com profundidade, como se os nativos compreendessem o ciclo natural como um todo. A realidade cede a um elemento mágico em que a própria personagem sente a natureza como parte integrante de si. Não a toa, é representada pela onça, um animal importante em sua infância, e que um dia foi abundante nas matas brasileiras. É por sua dor que o leitor observa a violência do exilado, a captura, o subjugo e a sensação desumana de superioridade dos povos brancos da época. Sendo uma narrativa histórica, reconhecemos que qualquer desfecho é trágico.

     O Som do Rugido da Onça faz parte de uma nova vertente da literatura contemporânea que deseja, de uma vez por todas, apresentar a multiplicidade narrativa de nossa história. Embora o Brasil insista em se manter parcialmente colonial, nossa história ancestral necessita de liberdade. Onça a onça.

  • Resenha | Duna – Frank Herbert

    Resenha | Duna – Frank Herbert

    “Deus criou Arrakis para treinar os fiéis.” – ditado fremen, o povo da areia.

    Eis o destino cármico para a humanidade, ou pelo menos, para os destemidos que fazem de tudo pelo poder. Arrakis é o planeta Duna, lugarejo impróprio a vida humana e que carrega consigo um fatalismo inevitável – não só por suas terríveis condições naturais, mas pelos vermes de areia gigantescos que lá residem. Um inferno planetário, árido e hostil, com tempestades cujos ventos retiram até a carne dos ossos de alguém, e que esconde sob as infinitas dunas desta Terra desértica, a valiosa ménange. Uma especiaria que dá poderes a quem a consome, e se vicia, e que só é encontrada na desolação e nos perigos de Arrakis. Dispensável dizer que muitos poderosos a ambicionam, numa guerra cada vez mais oficializada pelo controle da droga, custe o que custar, a menos que as lendas e profecias dos fremen sejam reais, e um salvador, o tão esperado Kwisatz Haderach, venha de fato unir os povos dentro e fora de Duna e trazer consciência (e limites) a ganância dos homens.

    No gênero de fantasia, o clichê nunca some ao apontar O Senhor dos Anéis como seu expoente máximo, tal qual Duna, clássico de Frank Herbert, como a magnum opus literária da ficção-científica. É porque, às vezes, todo clichê é inevitável quando este é real. Há um pedaço vital de Duna em todo e qualquer produto extremamente popular do gênero pós-1965, incluindo Star Wars, Harry Potter, Jogos Vorazes, Game of Thrones, ou ainda na maravilhosa série Arquivo-X dos anos 90. O que Frank Herbert conseguiu em Duna, antes de mais nada, foi revitalizar a essência questionadora, e utópica das obras basilares de Aldous Huxley e Philip K. Dick, os titãs da ficção- científica do início do século XX (autores obrigatórios), e inserir doses explícitas de política na idealização de um planeta com um sistema e religião próprias, mitos e temores particulares, e tecnologias que visam a sobrevivência da espécie, mas que pode resultar no extermínio de um ecossistema inteiro. Duna consegue ser utópico e distópico ao mesmo tempo, estruturando tudo num contexto engenhosamente político, sob um realismo fantástico profundo, e impecável.

    O livro poderia também se chamar Onde os Fracos Não Têm Vez, uma vez que o duque Leto Atreides, ótimo pai e marido, homem de bom coração, aceitou se mudar para Arrakis a fim de administrar toda a extração do ménange, se achando astuto o suficiente para evitar traidores – nada maquiavélico ele, no uso original do termo. Quando a família Atreides sai de seu planeta Caladan e vão todos enfrentar, diretamente, a realidade que esconde os temidos vermes gigantes, um misterioso povo guerreiro cuja água é o mais inestimável bem, inexistente sob um sol vermelho escaldante, e muitos outros segredos além do horizonte, tudo começa a mudar, como se o destino exclamasse: “Vocês não deveriam estar aqui”. Não demora muito para o plano de poder dos Atreides dar errado, e assim, Lady Jessica e o filho de Leto, o jovem Paul Atreides, têm suas vidas mudadas por um jogo de interesses interplanetários enraizado em Arrakis, num amplo esquema de corrupção política que não poupa ninguém – Duna é o Brasil e ninguém percebeu isso?

    Presos numa armadilha que Leto sem saber os colocou, esposa e filho lutam por suas vidas, entregues a sorte e ao azar, enquanto o asqueroso barão Vladimir Harkonnen (a grande inspiração para Darth Vader, entre muitas outras que George Lucas usou em Star Wars) trama diabolicamente esquemas e intrigas para controlar Arrakis e o seu “petróleo”, a substância que aumenta a força psíquica, e mediúnica, do ser-humano. Mas os altos escalões sempre subestimam a força popular, e na sua jornada contra a morte, Jéssica e Paul descobrem que há futuro e salvação entre os “rebeldes” fremen, uma espécie de cangaceiros do deserto e que não se curvam as forças militares do barão Harkonnen! Diante de tantas subtramas assim, e uma miscelânea de personagens que ao final não queremos nos afastar, a narrativa em terceira pessoa de Frank Herbert é quase sempre sublime, deixando algumas passagens ser tão célebres quanto poderiam ser, de fato – vide sua habilidade em organizar tramas paralelas (e fazer isso parecer que é simples).

    Herbert fez de Duna o romance da sua vida, a viagem inesquecível, seu pomo de ouro, pelo menos neste primeiro volume. Mestre com seus diálogos e suas frases de efeito, sendo a mais famosa “Não terei medo, o medo mata a mente.”, dita por Paul, o escritor construiu em pouco mais de 600 páginas um monumento dificílimo de adaptar para o cinema ou TV, devido a força e aos detalhes de suas palavras; a magnitude definitiva de sua grande alegoria política, quase que impossível de ser superada em filme ou série, apenas copiada. Por ser a obra de ficção-científica mais vendida (e uma das mais inspiradoras) da história, desde 1965, e publicada com grande apreço e carinho no Brasil pela Editora Aleph, Duna justifica sua popularidade universal a cada um dos seus capítulos, os quais possuem trechos iniciais retirados de uma espécie de bíblia do sábio e nômade povo de Arrakis. Este, sempre à espera de um salvador, de um guia, ou de uma força extra, como preferir. E quem não está?


  • Resenha | Dexter no Escuro – Jeff Lindsay

    Resenha | Dexter no Escuro – Jeff Lindsay

    Dexter foi uma série bem marcante na TV. O protagonista é um serial killer de serial killers. Algo, no mínimo, curioso. Pena que, após a sensacional quarta temporada, a qualidade decaiu gradualmente, se tornando cada vez mais difícil de acompanhar. O personagem da TV foi uma adaptação da série de livros de Jeff Lindsay, publicado no Brasil pela Editora Planeta, e você pode conferir a resenha do primeiro livro aqui.

    O segundo volume, Querido e Devotado Dexter (Dearly Devoted Dexter, no original) traz casos bizarros de mutilações. O criminoso em questão amputa tudo que é possível de suas vítimas, deixando-as vivas como se fossem obras de arte grotescas. Os embates entre Dexter e a polícia se acirram, com momentos bem impactantes que desembocam neste terceiro volume, Dexter no Escuro (Dexter in the Dark, no original).

    Ainda que a história não seja uma continuação direta do livro anterior, podendo ser lida separadamente, alguns acontecimentos do outro volume retornam aqui. Desta vez, Dexter tem uma grande preocupação: seu casamento com Rita. Nosso herói (?) fará algo comum entre os humanos comuns, e isso o deixa um tanto confuso. Ao mesmo tempo que tenta pechinchar o preço do buffet, Dexter se depara com assassinatos estranhos. A polícia vai investigar, mas Dexter começa a perceber coisas. Ele sente como se houvesse algo sobrenatural e passa a ter sonhos esquisitos envolvendo um deus antigo. Os assassinatos parecem ter relação com uma espécie de seita religiosa, e quanto mais Dexter investiga, pior fica a sua sanidade.

    O ponto crucial da trama é quando o Passageiro Sombrio abandona Dexter. Para quem assistiu à série ou leu os livros anteriores vai se lembrar que Dexter possui uma espécie de consciência interior, um instinto ou sexto sentido que lhe auxilia nas investigações e, principalmente, identifica assassinos. Ele chama essa consciência de Passageiro Sombrio. E aqui ele abandona Dexter. Este livro traz reflexões profundas de Dexter sobre ele mesmo, às vezes beirando o esotérico/religioso, o que causou muitas críticas de leitores da série. Mas isso nem de longe significa que Dexter se tornou um homem de fé, tampouco que a história descambou para o sobrenatural. O autor consegue brincar de forma interessante com esses elementos, fazendo com que fiquemos em dúvida se existe realmente um elemento sobrenatural ou se o que estamos lendo são devaneios de Dexter.

    No final das contas, gostei de reencontrar Dexter após dez longos anos, e certamente não demorarei tanto para revê-lo no próximo livro. Relembrando que as histórias da TV ficaram totalmente diferentes a partir da segunda temporada, ou seja, se quiser algo inédito do assassino de assassinos, busque os livros.

  • Resenha | Meu Pai, o Guru do Presidente: A Face Ainda Oculta de Olavo de Carvalho

    Resenha | Meu Pai, o Guru do Presidente: A Face Ainda Oculta de Olavo de Carvalho

    Meu Pai, o Guru do Presidente: A Face Ainda Oculta de Olavo de Carvalho é um livro curto em forma de entrevista realizado por Henry Bugalho junto a Heloísa Carvalho, a filha mais velha do astrólogo e autointitulado filósofo Olavo de Carvalho.

    O estudo de Bugalho começou em uma conversa informal com Heloisa, e aos poucos ganhou tamanho no intuito de descobrir quem era o principal influenciador ideológico do atual presidente brasileiro e como ele chegou na posição que se encontra. Há relatos difíceis sobre o tempo em que Olavo lecionava na escola Júpiter de astrologia. A entrevistada descreve as condições difíceis que a família vivia, desde as condições insalubres do local onde moravam à fome, além da tentativa de suicídio de sua mãe e as constantes traições do pai.

    Olavo se envolveu com vários credos, além da astrologia, foi da Tariga, se converteu ao islamismo (inclusive levou Heloísa e os outros filhos a isso, fato que o facilitou em ter mais de uma parceira sexual, agora “legalizadas”), e depois, já distante da primeira filha, se converteu ao catolicismo. Segundo Heloísa, ele ainda assim seguia egoísta, sendo distante emocionalmente dos filhos, covarde e distante de outros parentes, como sua mãe que morreu sem conseguir vê-lo, mesmo após muitos apelos dela já idosa. O rompimento com Olavo é bem detalhada, a filha era atacada em níveis pessoais, nas redes sociais, tudo de maneira bem cruel e covarde.

    A imagem de bom velhinho católico e conservador não se sustenta, afinal, as movimentações do Guru pelas seitas pelas quais passou são facilmente verificadas independente das informações trazidas pela própria filha e autora do livro. O trabalho de Bugalho em expor os males do bolsonarismo ganha aqui seu maior e mais importante esforço, detalhando as aproximações entre Jair, Eduardo e os demais membros da família Bolsonaro. O que o livro não responde – ao contrário, coloca ainda mais dúvidas – é como se deu a popularização da figura, ainda que o escritor more nos EUA há anos e toda sorte de artifício baixo e calunioso seja comprovado cotidianamente.

  • Resenha | Natureza Morta – José Fontenele

    Resenha | Natureza Morta – José Fontenele

    Em Natureza Morta, o escritor piauiense José Fontenele faz a escolha mais cruel, que apenas os melhores autores possuem a audácia necessária para tanto: desbravar, a fundo, os problemas de um casal. O exercício de jogar luz às mazelas de um relacionamento é absolutamente perturbador, uma vez que não somos apenas espectadores da ação, mas graças ao duplo enredo em primeira pessoa, proposto e milimetricamente desenvolvido aqui, todos nós fazemos parte da essência de Damião e Laura. Aqueles que antes resolviam seus problemas com sexo, um banho bem tomado e uma boa conversa, mas a quem o destino não foi amigo e preparou várias armadilhas – e não apenas de cunho emocional –, corroendo tudo, em prol do desamor. E o seu processo não poderia ser mais lento e traumatizante. Bem-vindo ao início do fim.

    Mas nada chega realmente ao fim, não é mesmo?  A natureza humana, de fato, parece simples e só parece. Uns querem ser pai, e outras precisam ser mães; Damião queria ser, e Laura, precisava nascer: como mãe, como artista, num ano novo pessoal que nunca chegava. Por que, sendo diferentes, teimamos em ser iguais? Masoquismo e conformismo duelam entre si a medida que os anos passam, os 35 anos chegam, o jovem adulto começa a ter certeza que não é eterno, e de repente, o nosso trabalho se transforma na fuga da nossa vida particular. Damião e Laura não se mereciam, ou melhor, poderiam ter coisa melhor. Suas mentes e corações são, para o leitor, um literal livro aberto sob o calor do meio-dia, e marido não é vilão da mulher, nem vice-versa. Na primeira parte de Natureza Morta, temos o ponto de vista dele, e em seguida, mergulhamos no estado psicológico de Laura até que, nos derradeiros instantes do romance, a pujança passivo-agressiva das letras de Fontenele nos move, junto do casal, à colheita das glórias e carmas germinados.

    Toda a sensibilidade de Fontenele, em seu primeiro romance publicado pela Editora Moinhos, impressiona sobretudo pela robustez e constância da narração, e a bem-sucedida manipulação do autor para com as nossas expectativas mais mesquinhas e nobres sobre as partes do casal, seus amigos, suas sortes e azares. O realismo substancial das situações jamais perdoa os desavisados, não havendo exceção em quaisquer parágrafos de suas hiper suficientes 160 páginas. Uma ode direta e reta à imprevisibilidade dos sentimentos, masculinos e femininos, tão bem esculpidos pela versatilidade e a empatia tridimensional literária de Fontenele, nos arranjos de sua organização contemplativa quanto ao inferno dos outros e que todos podemos acessar. O lamento, ou a aceitação, é uma só: nenhuma relação é matemática, não tem jeito. Suas engrenagens compartilhadas são um rio; um rio já existente muito antes do primeiro beijo, cujos contornos e marolas nunca sabemos, ao certo, aonde irão impactar.

  • Resenha | O Fim e o Começo – Bruno Sanches

    Resenha | O Fim e o Começo – Bruno Sanches

    A estreia de um novo autor sempre é carregada de expectativa. Uma obra inicial é um convite aos leitores rumo a um novo universo literário. Traz o carinho do autor como se desse luz a um primeiro filho e se apresenta como um cartão de visitas a procura de leitores e leituras atentas.

    O lançamento de O Fim e o Começo marca duas estreias em paralelo. Ao mesmo tempo, inicia formalmente a carreira do bauruense Bruno Sanches no universo narrativo (anteriormente participou apenas de antologias), como também é uma obra lançada no primeiro ano da recém-fundada Mireveja, de João Correia Filho. Uma expectativa em dobro.

    Nos treze contos que compõe o livro, observamos um narrador atento ao mundo contemporâneo, ciente de certa condição combativa do mundo, mesmo nos menores sinais. Como um analista da sociedade atual, Bruno destaca a selva de pedra em personagens reconhecíveis por qualquer leitor: vigaristas, mentirosos, amantes, preconceituosos, e outros conflitos infelizes de nossa sociedade. Todos compostos em um estilo narrativo que mistura um relato atual, como crônica, e intenso como conto.

    Se a estrutura do conto é evidentemente diferente do romance pelo espaço temporal, a delimitação entre conto e crônica não é tão nítida. Antonio Prata, um dos grandes cronistas contemporâneos, demonstra em seus livros a falta de definição precisa entre os relatos citados.  A narrativa de Sanches trabalha no mesmo escopo. A brevidade narrativa e a reprodução dos fatos cotidianos se alinham a crônica, a observação filosófica dos fatos vem da veia do conto, com uma narrativa que fisga o leitor nas primeira linhas. Narrativas com punch, como define Julio Cortazar em sua teoria sobre contos.

    A unidade narrativa entre eles advém de um autor atento, levemente irônico, que faz o leitor refletir se a fidelidade das situações narradas são frutos de sua criatividade ou um reflexo de suas observações pela selva de pedra. Qualquer resposta para essa pergunta é corromper uma das graças da literatura.

    Quando não observa o cotidiano, o autor também dá vazão a sua paixão pela música, não apenas nas presentes citações a títulos e trechos de canção como em dois contos especiais: O lado escuro da lua, uma viagem tão transcendental como os ácidos que a banda Pink Floyd tomava para realizar seus discos psicodélicos, apresentando uma fictícia (será?) entrevista com Alan Parsons, técnico de som da banda, para uma análise sobre teorias da conspiração e arrebatamento musical. Além dele, um dos contos mais sensíveis do livro, Silent Lucidity, mantém a tônica musical em um drama que é impossível terminar a leitura sem os olhos embargados.

    As narrativas em cada conto se alinham também com a estética da obra como livro físico: uma capa em cores fortes, viva, destacada com ilustrações de larvas e borboletas, tanto em sua capa, quanto em páginas internas. Fins e começos narrativos, registrando ciclos. Os meios ficam a cargo do leitor. Nessa jornada, o livro de estreia de Sanches tem muito a dizer, sem perder qualidade em nenhuma das narrativas.

    Compre: O Fim e o começo – Bruno Sanches

  • Resenha | De Que Lado Você Está? – Guilherme Boulos

    Resenha | De Que Lado Você Está? – Guilherme Boulos

    A extrema direita comanda o Brasil em 2020 e assim o isola, nas trevas da ignorância e da radicalização sobre tudo e todos. E a esquerda, com isso? Mais perdida e bombardeada que cego em tiroteio, segue colhendo os cacos da demonização atribuída a ela – não apenas por seus erros do tempo do PT, mas para manter no poder vigente o fascismo que assolou o ex-país colorido e amoroso do Carnaval. De certa forma, De Que Lado Você Está? expõe e analisa a conjuntura política, econômica e social de 2014 pra cá, ostentando uma ingenuidade com gosto de esperança quanto a uma mudança sociopolítica, reconhecendo porém que o Brasil possui problemas estruturais e crônicos que só boas intenções jamais irão resolver. Mas Guilherme Boulos é um humanista, e ler suas palavras e reflexões urbanas sobre São Paulo e o Brasil pode ser um bálsamo para tempos de negação do Governo Federal até mesmo acerca de uma pandemia global no século XXI.

    Longe de portar um elitismo em suas análises, o realismo de Boulos serve para transmitir soluções e críticas aos erros e vícios da nossa mídia, da nossa política e nossos valores nacionais. Não é novidade para ninguém que a corrupção é sobrenome do Brasil, e que desde o “impeachment” de Dilma Rousseff, racistas e homofóbicos e neonazistas saíram do armário empoderados por um discurso de ódio e confronto. Em menos de 5 anos, a política do “todo mundo ganha” de Lula morreu, empurrada pelas crises econômicas externas e a lógica do “tem que matar uns 30 mil pra dar jeito nesse Brasil, tá okay?!?!”. Boulos investiga a engrenagem e a mentalidade destas eras políticas, e nos leva a refletir, por um viés solidário, os seus apelos temporários e as suas consequências a médio e longo prazo para com o cidadão e sua vida em comunidade. O Brasil nunca deixou de ser uma continental Casa Grande, cuja “elite”, ao ver o filho negro da empregada fazendo pós-doutorado na USP, resolveu parar com essa palhaçada.

    Custasse o que for. Em poucas páginas, Boulos esclarece a estratégia e a tática da esquerda brasileira, para garantir o bem estar das classes médias e baixas, e o fim da radicalização partidária para enfrentarmos, juntos, os poderosos e seus serviçais no Governo, e na mídia, por trás deste projeto de desmonte e emburrecimento do Brasil. Com foco prioritário em São Paulo em seus 42 artigos publicados de 2014, a 2015, já prevendo o fenômeno “mitológico” de Jair Bolsonaro, João Dória, Ricardo Salles e outras gárgulas do submundo, Boulos revira desde o lado obscuro do transporte público paulistano (a cartelização e os negócios ilícitos por trás das concessões de milhares de ônibus e micro-ônibus, em São Paulo), até o pensamento coxinha do sul e sudeste, e o custo do neoliberalismo no (inexistente) progresso da nação. De Que Lado Você Está? destrincha as feridas abertas do país, e sobretudo simboliza a esperança de uma figura política de esquerda para com um futuro menos contraditório, e mais humanitário, nesta década de 2020 a frente.

  • Resenha | Amos Gitai – Serge Toubiana

    Resenha | Amos Gitai – Serge Toubiana

    Conferir o livro da Cosac Naify é embarcar numa viagem no tempo. No tempo do cinema, em especial, tão moldado pelas imagens e a relação entre elas. Amos Gitai é a principal homenagem brasileira já publicada ao mestre israelense, introduzindo para muitos os filmes e a visão de mundo de Gitai. Por carregarem a habilidade de transitar, sem esforço nenhum, entre o documentário e a ficção, o livro, uma iniciativa da Faculdade de Comunicação da FAAP, se apropria da exposição Percursos, exibida em Paris em 2003, para transmitir em um estupendo trabalho de curadoria, fotografias de seus filmes com altíssimo poder de impacto visual em nós. Imagens que possuem som, textura, amor e ódio, atenção e desespero próprio em um glorioso mural impresso e colorido, a potencializar a visão ultrarrealista de Gitai sobre o ser humano, suas condições e seu meio ambiente.

    Em Diário de Campanha ou Éden, Gitai foi um daqueles cineastas desconhecidos de festivais inacessíveis ao grande público que conseguiam (e faziam parecer simples) expor a alma humana, decodificá-la, numa tela de Cinema. Quantos se deram ao luxo de sequer almejar tal feito? Para enquadrar o conjunto de realizações, primeiramente com total apelo visual, Amos Gitai é um projeto para figurar na estante de qualquer cinéfilo e pesquisador das belas-artes. De posse de tantos quadros retirados dos filmes de Gitai (que realizou quarenta filmes em vinte anos), poderia ser redundante no livro uma entrevista para descortinar, ainda mais, a alma do artista, com seus predicados e motivações pessoais, suas críticas aos sistemas políticos que tanto afetam a vida das pessoas no mundo. Entretanto, a conversa de Serge Toubiana em Nova York com o mestre, ainda no “pré-11 de setembro” ano de 2000, não poderia ser mais sedutora.

    Assim, mergulhamos de vez nas entranhas da genial filmografia do israelense, através de suas próprias palavras. Dividida em inúmeras partes, nas quais Gitai discursa sobre Israel, o papel da ficção, o cinema e o cinema de Israel, suas memórias e suas angústias, o modo como as entrevistas são editadas tanto nos esclarecem, quanto nos instigam a saber mais sobre o homem, o artista e o seu tempo. A impressão é que Amos Gitai se consagra uma das grandes obras sobre cineastas já publicadas no Brasil, junto com a de Nelson Pereira dos Santos, de Darlene Sadlier, À Espera do Tempo sobre Akira Kurosawa, Fellini por Fellini e Conversas com Scorsese. Contando ainda com análises profundas sobre seus principais filmes, em ordem cronológica, a paixão pelo trabalho de Gitai ganha um testamento completo, e à altura de seus triunfos principais. Sem dúvida, um dos grandes tratados sobre Cinema já produzidos, nacionalmente.

  • Resenha | Pássaros Amarelos – Kevin Powers

    Resenha | Pássaros Amarelos – Kevin Powers

    “Não havia balas com meu nome. […] Não havia bombas feitas para nós.”

    Tido pela revista Rolling Stone como o primeiro grande romance situado na guerra do Iraque, eis um livro que não sentimentaliza os efeitos do conflito na mentalidade humana, ao optar por não suavizar o drama no qual os soldados (na sua maioria jovens homens) passam, fora do seu país de origem, entregues a barbárie que ajudam a alimentar. A desumanização é um processo real que Bartle e Murphy enfrentam. Dois amigos, integrantes de um pelotão de combate em Al Tafar, entre os mortos que eles foram enviados para produzir. Não em nome do seu país ou do seu povo, como Kevin Powers nos faz refletir desde o início, e sim em nome do imperialismo norte-americano. Implacável, como se faz, através dos corpos e psicológicos frágeis dos recrutas largados a própria sorte, no inferno, com um rifle, binóculo e capacete cada um.

    Há heróis e vilões em uma guerra declarada, e essa é uma mentira que os filmes do gênero tanto recontam as massas, nas temporadas do Oscar. A glamourização desse evento (ou pior, a espetacularização dele nos jogos de videogame ou no cinema mesmo) é de um cinismo que impressiona qualquer um que reconhece, minimamente, o terror do momento que parece ser eterno. Ao narrar em primeira pessoa, revelando os mínimos detalhes emocionais e práticos do dia-a-dia em zona sitiada, Bartle descreve em Pássaros Amarelos uma espécie de ciclo de martírio sem fim, e que não convida ao bom combate um homem diante da sua obrigação, mas a exaustão. Quando os morteiros caem por todos os lados, pelo décimo dia seguido, ninguém aguenta mais – talvez nem aqueles que atacam os americanos, “defendendo” sua terra natal. Todos têm alguma coisa a perder.

    Em meio a ação do tiroteio, das explosões, Bartle sobrevive por si, para proteger seu amigo, para proteger suas memórias, e por último, numa lista de cinquenta prioridades, para receber medalhas no retorno talvez impossível aos Estados Unidos. O jovem soldado vê seus parceiros de guerra mudando, o perigo entrando no DNA de cada, já que o comportamento do pelotão se altera, à medida que o tempo avança – rumo aonde? Kevin Powers torna esta publicação da editora Bertrand uma obra precisa, e imersiva, ao decodificar a tensão da guerra do Iraque, e sua brutal imprevisibilidade, sob um apreço quase que paternal para com os personagens, e seus destinos. O fato (que ainda não terminou) ganha contornos marcantes em Pássaros Amarelos, um belo romance que vai além de mero documento histórico, para alcançar assim o status de tratado não-apologético sobre os limites e a natureza do ser humano, quando forçado a participar de uma situação limite, e transgressora.

    Compre: Pássaros Amarelos – Kevin Powers

  • Resenha | Minha Especialidade é Matar – Henry Bugalho

    Resenha | Minha Especialidade é Matar – Henry Bugalho

    Minha Especialidade é Matar compila textos do filósofo e escritor Henry Bugalho, mais conhecido por conta de seus vídeos no Youtube veiculados em seu canal homônimo. O livro compila publicações desde 2017 que miram a figura do presidente Jair Messias Bolsonaro, bem como sobre seu histórico enquanto deputado federal.

    Lançado em junho de 2020, a obra reúne textos feitos tanto para o jornal Folha de São Paulo, como para a revista Carta Capital. As narrativas miram aprofundar as reflexões a respeito do bolsonarismo, embora não foque suas origens e sim suas ramificações, escrutinando as falas misóginas, racistas e homofobias do político, em especial, a frase pesada que também nomeia o livro.

    Boa parte da esquerda não gosta da figura do autor. E a análise desses textos não mirará uma desconstrução sobre suas crenças necessariamente. Fato é que, tanto em seus vídeos quanto nesses textos, há um estilo bem popular e direto na fala, tanto em matéria de linguagem quanto em conteúdo. A forma como ele se expressa é fácil de compreender, mesmo para o leitor ou espectador que não tenha muita base teórica marxista ou progressista. Para uma introdução a um pensamento anti-reacionário, o livro serve bem ao propósito, especialmente por se tratar de um discurso não-academicista. A profissão de Bugalho, também romancista e contista, coloca-o em uma confortável posição, capaz de articular seus conhecimentos e posições com clareza, ainda que converse com um nicho de leitores.

    A maior riqueza deste Minha Especialidade é Matar certamente é a desconstrução de figura mítica de Bolsonaro, principalmente ao posicioná-lo como uma antítese a todo e qualquer valor do cristianismo tolerante ou não. A hipocrisia e a falsa aversão do sujeito e seus apoiadores é muito bem desenvolvida, desconstruída ao ponto de ser fácil interpretá-lo como a face de um possível Anti Cristo, pois os mandamentos cristãos de amar ao próximo como a si mesmo não são seguidos de maneira alguma.

    Em outro livro do autor, em parceria com Heloísa de Carvalho, o autor fala de Olavo de Carvalho. Em Meu Pai, o Guru se aprofunda nas origens do pensamento e tática ideológica do atual presidente. Uma narrativa que serve como leitura completar a essa, ainda mais que ambos estão disponíveis em plataformas de leitura digital. Em ambas é perceptível a reflexão sobre o método super agressivo em fala e postura que o político e dito filósofo utilizam como forma de comunicação.

    Compre: Minha Especialidade é Matar.

  • Resenha | Spartacus – Howard Fast

    Resenha | Spartacus – Howard Fast

    Spartacus, romance escrito por Howard Fast e adaptado para o audiovisual em Spartacus de Stanley Kubrick, e posteriormente, na série da Starz Spartacus: Blood and Sand. Lançado em 1951, o livro conta a história da revolta de escravos liderada pelo personagem-título no ano 71 aC.

    Nota-se na escrita de Fast uma linguagem formal, em atenção à época imperial romana. Se discute bastante o papel dos escravos na república romana e a facilidade que se tem de construir estradas em poucos dias através dessa força de trabalho não-assalariada, além de escrutinar se foi Roma que gerou Spartacus.

    Toda a história por trás do filme de Kubrick geraria um estudo por si só, dada a questão conturbada que fez com que o diretor evitasse a todo custo filmes de estúdio. As histórias paralelas do livro, envolvendo os personagens secundárias, foram muito sublimadas no filme, e nesse ponto, a série da Starz acerta por dar mais camadas aos personagens que circundam o protagonista, e é importante que isso ocorra, pois Fast pensou nele como o líder de uma revolução, e uma revolução não se faz sozinho.

    A realidade é que nenhum personagem que passa pelo encontro com o líder da rebelião passa incólume, em uma comparação de impacto com outro personagem clássico que também ostenta espada, no caso Conan, O Bárbaro, ainda que eles tenham motivações e personalidades muito diferentes entre eles.

    Há bastante lirismo e poesia nas descrições que Fast faz a respeito dos sacrifícios do escravo revoltado. O que ele fala a respeito de não poder vomitar para não desperdiçar nada que está no estômago dá bem a dimensão de como era difícil lidar com as condições enfrentadas.

    As questões relativas a homossexualidade são tratadas de maneira pejorativa, talvez por conta do preconceito da própria época em que o livro foi escrito, já que questões envolvendo sexualidade na Roma Antiga eram vistos de forma completamente diferente daquelas encaradas nos anos 1950. Esse aspecto foi bastante explorado na série da Starz, e também é citado no livro. Os treinadores de gladiadores acreditam que tem que satisfazer sexualmente seus lutadores para que a masculinidade deles não atrofiasse, e foi nesse ínterim que Spartacus teve sua primeira noite de prazer. No entanto, o que Fast escreve foi traduzido de maneira exagerada nas duas mais famosas versões de seu personagem. Não há uma valorização conservadora da virgindade, como visto no cinema, muito menos a libertinagem mostrada no seriado. Há significado e pragmatismo. Os escravos sabiam que eram seres coisificados e que todos os seus pares também eram objetos, e por isso, não deveriam guardar sentimentos mais profundos.

    Outro ponto interessante se dá na forma como os nobres encaram os eventos orquestrados por Spartacus, ao achar que a revolta não é um evento isolado, mas uma guerra contínua. Há um claro subtexto de luta de classes, talvez por conta de sua militância política, já que participava de movimentos sindicais e antifascistas, e por isso, foi perseguido pelo macarthismo, assim como o roteirista que adaptou a obra para os cinemas em 1960, Dalton Trumbo.

    Spartacus se assusta com a volúpia que os romanos têm em matar. Para ele, o valor que os imperiais dão à vida dos outros é praticamente nulo, e essa é a diferença civilizatória entre os tiranos e os explorados. Fast detalha bem os povos que formavam os grupos de escravos.

    Há uma beleza poética no final, em Varínia se entregando ao sexo pós-morte do seu amado, e ao suicídio de um dos poderosos, que faz isso prevendo que sua classe morrerá. Spartacus é um livro claramente político, ainda que seja repleto de aventura, o autor não se omite em discutir o autoritarismo e nazifascismo utilizando os romanos como exemplo de opressão. O fim da vida do herói serve também de prenúncio à queda romana, já que demonstra a inteligência dos escravos, além de sua capacidade de pensamento e mobilização, ao contrário da torpe premissa de que os romanos eram os únicos seres pensantes da época. A mensagem que Fast passa é que mesmo que a batalha seja perdida, é preciso travá-la.

    Compre: Spartacus – Howard Fast.

  • Resenha | Snow Crash (Nevasca) – Neal Stephenson

    Resenha | Snow Crash (Nevasca) – Neal Stephenson

    A visão da informática nos anos 80 e 90 não poderia ser melhor representada, popularmente, do que foi em Matrix bem na virada do milênio. Não só através de cenas de ação inesquecíveis, mas no próprio uso dramático do seu principal tema tecnológico: o mundo online é uma extensão da nossa realidade. Logo no começo da revolução digital, autores de ficção científica e fantasia piravam nas possibilidades infinitas de um novo cenário, onipotente e fadado as ambições e loucuras do homem. Mas, se no épico das irmãs Wachowski ou em inúmeros animes japoneses futuristas, tudo pendeu mais ao surreal e ao barulho para garantir a adrenalina da plateia, e a ela apresentar pela ótica da ficção uma rede mundial de computadores, foi no campo literário que o cyberspace foi e continua a ser bem mais sofisticado, ou seja: melhor especulado nas suas inúmeras questões extrafísicas, polêmicas e regulatórias, debatidas em sociedade desde os primórdios da invenção coletiva da internet.

    Em 1992, Neal Stephenson veio com o seu Snow Crash, publicado inicialmente como Nevasca no Brasil pela editora Aleph, um dos cem melhores romances dos anos 90 segundo a revista Times. Exageros à parte, eis um livro-chave para os amantes mais modernos de aventura, e que as vezes podem se indagar: e se o Indiana Jones caísse numa dimensão cibernética, cheia de tecnologias delirantes e muita paranoia? Bom, foi mais ou menos isso que Neal imaginou ao acompanhar a história de Hiro Protagonist. Para todo mundo, ele é só um ex-entregador de pizza, já que na verdade (e para poucos) ele é o último hacker freelancer dos Estados Unidos. Co-criador do Metaverso, uma enorme realidade aumentada aonde se pode andar pelas ruas, e entrar nas lojas que os melhores programadores da Terra criaram no início do Metaverso, Hiro ajudou a criar o bar Black Sun. É lá onde os avatares mais renomados do Metaverso adoram passar um tempo ostentando suas vaidades, e é também onde uma poderosíssima droga (um vírus) chamado “Nevasca” aparece, pela primeira vez.

    Aparentemente inofensiva, a droga (“Snow Crash”, em inglês, um termo para quando o computador trava, e a imagem do monitor fica embaralhada igual uma Nevasca) é comercializada no Metaverso cada vez mais, feito o Covid-19 a se propagar na China. Infectando todo mundo nessa realidade virtual, Hiro começa a entender que ela pode ir muito além de um reles vírus online. Tendo implicações no mundo real, e servindo de ameaça iminente a Hiro, que sabe demais justamente por ser um hacker, a droga precisará ser combatida nas camadas mais ocultas do da deep web, ou poderá ser tarde demais inclusive no mundo real. O livro emblema com total dinamismo a falta de privacidade do cidadão quando inserido na internet, e o peso da liberdade quando esta é ameaçada. Assim, o autor reflete sobre a paranoia do homem diante do desconhecido, e principalmente quando o desconhecido é autônomo e faz parte daquilo que o próprio homem criou. É o velho drama do “Criamos um monstro e ele fugiu do controle, e agora?”, muito bem tratado aqui.

    Mesmo sendo mais longo do que precisava ser, e previsível quanto aos arcos de personagens coadjuvantes, Snow Crash ou Nevasca é um amplo conto futurista e cheio de influências dos anos 80 lançado bem no ano da morte de Isaac Asimov, o genial escritor russo de ficção-científica que revolucionou a maneira a qual o ser-humano enxerga a inteligência artificial – para sempre. O que impressiona, de fato, é a maestria de Stephenson junto a uma narrativa que flui feito um rio, a serpentear. O cara nos conduz por um jogo de palavras realmente cativante e que, com certeza, seduziu a revista Times no seu ranking da década de 90. Um tanto cansativo no final, mas irresistível no começo, Snow Crash é feito sob medida para quem não tem paciência para toda a filosofia de um O Tempo Desconjuntado, e prefere uma cientologia e uma filosofia bem embaladas na adrenalina, e no suspense que existe aqui. Achou que só Matrix era assim? Achou errado.

    Compre: Snow Crash – Neal Stephenson.

  • Resenha | Doctor Who: Shada – Gareth Roberts

    Resenha | Doctor Who: Shada – Gareth Roberts

    Um dos maiores atrativos iniciais ao me deparar com a capa de Doctor Who: Shada, publicado pela Suma de Letras e novelizado por Gareth Roberts, foram duas palavras, em letras não tão garrafais: Douglas Adams. O livro se apresenta como uma aventura perdida da série em que o autor d’O Guia do Mochileiro das Galáxias trabalhava como editor de roteiros em 1979, ano que a história foi escrita. E é exatamente isso que você deve esperar dele, um episódio da série clássica de Doctor Who.

    Para os não familiarizados com o universo de uma série de TV que começou em 1963 e dura até hoje, ela narra as aventuras do Doutor, um alienígena com uma nave em formato de cabine telefônica capaz de viajar no tempo e espaço. Uma das características mais importantes da espécie do personagem, os Senhores do Tempo, é a capacidade de se “regenerar”, uma maneira de enganar a morte e voltar com um outro corpo, permitindo não só a troca de atores para o papel, mas também leves mudanças justificadas no comportamento do personagem.

    Nessa história, acompanhamos a quarta encarnação do Doutor, interpretado na TV por Tom Baker e reconhecido pelo icônico cachecol colorido e gigantesco, tentando impedir que Skagra, um alienígena extremamente inteligente e apático tome posse de um livro que o permita encontrar Shada, um planeta utilizado como prisão para os Senhores do Tempo.

    O tom variado da série consegue ser muito bem encaixado na novelização, com mudanças entre o humor, drama e suspense muito bem encaixados e distribuídos. É uma história leve de se acompanhar e divertida, já que as viradas de roteiro, bem como os momentos de apresentação de peças-chaves do mesmo são feitas a nos deixar empolgado de continuar a leitura. Uma das estruturas que ajudam nisso é da utilização dos capítulos como cenas, provável resquício da organização do roteiro, que faz com que haja agilidade na troca dos núcleos e faz com que seja possível manter um bom equilíbrio entre informações presentes em cada um deles de como a trama se desenrola.

    Para além da organização dos capítulos em cenas, uma divisão de partes no livro também lembra como eram organizados os episódios antigos da série: um conjunto de quatro episódios para a formação de um arco da história. A diferença é que no lugar de quatro, temos o que seriam seis episódios aqui. A edição do livro ajuda no processo de devorá-lo, com fonte e papel bem escolhidos, permitindo manter a leitura no ritmo agitado e frenético típico da série.

    Apesar de apresentar conceitos simples dentro de tudo o que aparece nas décadas de Doctor Who, eu creio que Shada esteja mais próximo dos iniciados que daqueles que nunca tiveram contato com esse universo. Por não ter sido inicialmente pensado como um material introdutório, diversos conceitos que fãs da série já tenham firmados podem ficar perdidos para o leitor de primeira viagem, fazendo com que a leitura não emplaque e você se sinta perdido em diversos momentos. E, como um arco de episódios feito para uma série que, apesar de tratar de ficção científica, tinha um foco no público infantil, e iria ao ar no final da década de 1970, não se deve esperar um roteiro tão bem trabalhado e carregado de humor que às vezes beira o macabro como seria o posterior trabalho de Adams. Portanto, se você teve contato com outros trabalhos do autor e quer experimentar o que ele escreveu em outro universo, é bom saber onde pisa.

    Texto de autoria de Caio Amorim.

    Compre: Doctor Who – Shada.

  • Resenha | 20 Centavos: A Luta Contra o Aumento

    Resenha | 20 Centavos: A Luta Contra o Aumento

    20 Centavos: A Luta Contra o Aumento tem uma introdução feita por Marcelo Pomar, com uma explicação do  Movimento Passe Livre (MPL). O livro da Editora Veneta acaba por ser um relato contado pelos próprios manifestantes, que inclui entre seus autores também Elena Juddensnaider, Luciana Lima e Pablo Ortellado.

    O trabalho gráfico é simples, mas bastante bonito. O formato em diário facilita a leitura, por serem trechos de textos curtos. O livro é quase todo narrado pelo líder do MPL, explicando o começo de toda revolta, abordando entre outros assuntos a transformação gradual das manifestações, de questões de mobilidade urbana para pautas mais genéricas que alardeavam o combate a corrupção não só em São Paulo mas no país inteiro.

    Pomar fala como alguém que está inserido no movimento, de maneira direta e incisiva, e o formato escolhido para o livro é curioso, com capítulos curtos onde as linhas comuns tem uma narrativa e aquelas em negrito mostram falas reais, com citações à grande imprensa e a falas de autoridades. Esses trechos são importantes entre outros motivos para mostrar o quanto a imprensa tratava mal aqueles que protestavam, assim como as forças políticas que tentavam dialogar, como o prefeito Fernando Haddad. Durante os atos, uma das sedes do Partido dos Trabalhadores foi depredada, e ainda que houvesse da parte de integrantes do MPL um claro incômodo com o ataque a um partido de origem popular – usando até o termo fascista para caracterizar o ato – há também a demonstração de incômodo com boa parte das polícias petistas à frente da prefeitura paulistana.

    O livro gira em torno da questão da mobilidade urbana em 2013 e todas as ações que decorreram dessas manifestação, sempre de forma inteligente e embasada, os diferentes panoramas e forças políticas envolvidas naquele ano, em especial, se debruça de maneira crítica e incisiva ao falar da violência policial, e claro, da cobertura midiática. A publicação categoriza sem receios os agentes da comunicação. Chama Boris Casoy de tradicional defensor dos militares, e Arnaldo Jabor de jornalista reacionário.  No que toca a relação do MPL com os diferentes governos, o mergulho é profundo e acertadíssimo, e esse é o maior dos méritos de 20 Centavos, por  não só citar entes políticos que fizeram e fazem parte do cenário político da capital paulista, como também consegue ser um bom registro histórico de uma pauta que foi sequestrada por forças completamente antagonistas ao que o MPL sempre pregou.

  • Resenha | Manifestações de Junho de 2013 no Brasil e Praças dos Indignados no Mundo – Maria da Glória Gohn

    Resenha | Manifestações de Junho de 2013 no Brasil e Praças dos Indignados no Mundo – Maria da Glória Gohn

    Manifestações de Junho de 2013 no Brasil e Praças dos Indignados no Mundo é o pequeno livro da Editora Vozes, escrito por Maria da Glória Gohn, doutora em Ciência Política, que dá voz ao movimento em doze capitais brasileiras, com insurgências populares que começaram graças ao aumento súbito do preço da passagem do transporte público na maioria das praças brasileiras.

    Gohn chama os manifestantes de “indignados”, mostrando essas pessoas abraçando questões mais populares, ainda que também exista um foco em questões ligadas a classe média. As fases bem distintas das manifestações também têm uma boa explanação e exemplificação. Entre os atos pacíficos e a ação dos Black Blocks, o livro elenca as três conquistas que o historiador Perry Anderson afirmava: o despertar político dos jovens, a compreensão do empoderamento social no recuo ao aumento das tarifas (rapidamente revertido e piorado logo depois) e o levantamento da questão da distribuição escandalosamente distorcida das despesas públicas no Brasil.

    Essas conclusões envelheceram mal na maioria dos casos. A política está na boca do povo, mas se fundamenta em situações problemáticas, como mentiras em épocas de eleição ou decorrentes delas. Claro que esses eventos não poderiam ser previstos na realização deste livro, mas também é impossível não associar uma coisa a outra. Dito isto, é difícil lê-lo e não achar que a leitura daquele momento foi ingênua, ainda que julgar hoje já sabendo o uso que movimentos direitistas desonestos fizeram da revolta popular seja um esforço fútil e desonesto.

    O livro tem duas partes, sendo a primeira Manifestação dos Indignados no Brasil: antes, durante e depois de junho de 2013, e a segunda de outros manifestos pelo mundo, em praças da Europa e Ásia e EUA. Da parte inicial, há uma breve explanação das tentativas do governo federal em dialogar com as demandas das manifestações, mas não há tanto detalhamento sobre os problemas dos governos estaduais, que em sua maioria, tratava as pautas com desdém.

    O perfil do Movimento Passe Livre ou MPL é bem detalhado. O grupo já agia em protestos na época da gestão de Gilberto Kassab na prefeitura de São Paulo e sua jornada é ainda melhor explorada no livro 20 Centavos: A Luta Contra o Aumento. Por outro lado, por mais que gaste um tempo considerável falando das óbvias fragilidades dos movimentos e como as manifestações, a visão sobre eles é bastante positiva, e nisso, o estudo serve de bom contraponto à tese simplista de que as manifestações de 2013 deram origem a queda de Dilma Rousseff e mais tarde, na eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

    O trecho destinado aos manifestos mundiais e suas praças se debruça sobre a Primavera Árabe, voltado as manifestações na Praça Tahrir no Egito, que tinham em comum o fato de serem marcadas via redes sociais. A autora não é simplista, destaca que a queda do ex-presidente do Egito Hosni Mubarak foi fruto dos protestos dos jovens, mas ainda de maneira coadjuvante, com muita ação da Irmandade Muçulmana. Na Europa, se fala da Praça Syntagma em Atenas, de Puerta Del Son em Madri, além de Willy Brandt Platz (Frankfurt) e Praça Taksim (Istambul). A escritora visitou esses lugares e detalhou as reclamações sobre o arrocho econômico em alguns desses pontos – sobretudo na Grécia.

    Por fim, sobre o Occupy Wall Street fala-se brevemente a respeito dos apoios de famosos, como o diretor de cinema Michael Moore, além de citar que uma das pautas era a taxação de grandes fortunas e outros impostos sobre os mais abastados, mas nisso a autora é bastante breve e superficial. Manifestações de Junho de 2013 no Brasil e Praças dos Indignados no Mundo é uma boa introdução para quem não sabe praticamente nada sobre os protestos de 2013, já que não apresenta quase nada novo, exceção aos bons resumos dos movimentos internacionais, mas que no fim, não passam disso, resumos bem escritos.

    Compre: Manifestações de Junho de 2013 no Brasil – Maria da Glória Gohn.