Tag: Distopia

  • Crítica | Matrix Revolutions

    Crítica | Matrix Revolutions

    Crítica Matrix Revolutions

    Matrix Revolutions é o terceiro filme da saga idealizada pelas irmãs Wachowski, e carrega muitas expectativas, em especial, ter que fechar as pontas soltas de Matrix Reloaded, dar sequência aos conceitos filosóficos primordiais de Matrix e pincelar questões ligadas a aceitação de gênero. Todas essas resoluções teriam de ocorrer em pouco mais de duas horas. Se perder em meio a essas demandas é fácil.

    Filmado em conjunto com Reloaded, o longa se inicia em um cenário de limbo, com o Neo (Keanu Reeves) aguardando seu destino enquanto seus amigos tentam resgatá-lo, num conceito bem mais filosófico que as brigas envolvendo Trinity nos dois primeiros. Este trecho é obviamente um paralelo com o purgatório, lugar onde as almas se preparam para o julgamento de danação ou paraíso segundo a fé cristã católica. Este momento serve para lidar com a obsolescência dos programas, e para ratificar o sentimentalismo e “humanidade” desses seres.

    Se a Matrix é programada para domar os homens e precisa se alimentar das emoções deles em um esquema de vida falso, mas que necessita ser congruente para quem nela vive, pode-se dizer que é preciso sensibilidade para equilibrar tudo. Se as máquinas têm anseios e sentimentos, seria natural que os programas do simulacro também fossem igualmente sentimentais, que tivessem desejos e inseguranças. O conceito de um casal de programas, querer que sua filha (Sati) viva apesar da programação de destino fatal relegado a eles faz sentido, e conversa bem com o segmento O Segundo Renascer, do compilado de animações Animatrix, lançado em 2003. Se conceitos relacionados ao potencial de Merovingio e Persephone são abandonadas nesta parte, essa questão é um ponto positivo, e conversa bem com a condição do Agente Smith (Hugo Weaving), já que após sua derrota ele se reinventa, e age como um vírus predatório. Esses programas buscam viver a todo custo, assim como Roy Batty em Blade Runner, buscam se adaptar e seguir vivos, mesmo que essa condição comprometa o funcionamento básico da matrix.

    O subtexto mais rico certamente tem a ver com a transição de gênero. A jornada de Neo não é só um paralelo com Cristo, há a percepção que sua identidade no mundo real também não é “verdadeira” quanto deveria ser. Para muitos, o fato dele ter poderes fora da Matrix é incongruente ou é a demonstração cabal de que Zion era outra camada de simulação, hoje faz  mais sentido comparar isso com a descoberta da identidade, no caso de Neo sua relação com os poderes, enquanto para as diretoras têm toda a conotação de gênero. A Matrix não permite que Neo tenha poderes não por ele estar acima do código-fonte, mas por conta das habilidades que ele sequer tem consciência. Para acessar essa condição, Neo precisou se entender, descobrir quem ele era, assim como ocorreu com as cineastas anos depois.

    Da parte da ação houve um salto de qualidade. Os confrontos melhoraram muito entre Reloaded e Revolutions, inclusive no que toca o agente Smith. Foram utilizados mais dublês e efeitos práticos, além de mais cenas noturnas que disfarçam melhor as fragilidades dos efeitos em computação gráfica. Outro bom ponto são as batalhas em Zion, que lembram animes de mechas e robôs gigantes, tais como Gundam. Aqui também se dribla a máxima de batalha em várias frentes carente de emoção, diferente de outros filmes, é fácil ter empatia pelos humanos nessas lutas.

    Essa terceira parte também faz justiça a Niobe (Jada Pinkett Smith). Sua jornada é bem pontuada e mesmo com pouco tempo de tela se percebe a difícil decisão que ela teve que tomar. Trinity também é valorizada, sua relação com Neo é mostrada como um grande pilar na franquia, e Carrie-Anne Moss está de novo muito bem.

    Matrix Revolutions não é um fechamento ideal, mas a decisão de Neo em estabelecer a paz entre os dois povos guerreiros é sábia, mostra que seus poderes enquanto paralelo de Cristo não são só de onipotência, mas também de conhecimento e sabedoria, finalizando bem seu papel de sacrifício. Ao menos nesse ponto o roteiro seguiu tão inspirado quanto o filme original, e certamente essas continuações seriam melhor construídas caso houvesse um espaço de intervalo maior entre elas.

  • Crítica | Matrix Reloaded

    Crítica | Matrix Reloaded

    Crítica Matrix Reloaded

    Matrix foi um sucesso estrondoso e mudou os paradigmas do cinema de ação. Natural que continuações surgissem, e em 2003 Matrix Reloaded foi anunciado em conjunto com sua continuação, Matrix Revolutions, ambos gravados simultaneamente. Segundo as irmãs Wachowski, a história sempre foi pensada para ser uma trilogia, embora o primeiro filme tenha um fechamento satisfatório.

    O início desse remete ao primeiro, com uma cena de ação com Trinity (Carrie-Anne Moss) em um momento de perigo iminente, com uma possibilidade de fracasso ligeiramente provável. Essa sequência é breve, e serve para mostrar que as lutas com arame seguem bem feitas e, em contrapartida, também prevê o uso de computação gráfica mais extensivo nessa parte da saga, quase sempre com problemas.

    No primeiro filme, a cidade dos humanos, Zion, é apenas citada. Já aqui é um cenário grande, belo à sua maneira, mesmo que seja paupérrimo, com famílias amontoadas em pequenas baías que se assemelham ao cenário favelizado dos morros cariocas e em diversos outros lugares suburbanos nas metrópoles do mundo. A liberdade de escolha tem um preço.

    Muito se reclama a respeito dos roteiros das sequências, mas a realidade é que os paralelos com as mitologias e religiões segue sendo um ponto bem explorado. Entre eles está na adulação que boa parte dos habitantes de Zion fazem a Neo, tratado realmente como uma figura divina, inclusive com sacrifícios e oferendas. A reação que Keanu Reeves tem a esses momentos de agradecimento surpreende pelo desempenho do intérprete, conhecido por não ter dotes dramáticos tão valorosos, a exemplo de Drácula de Bram Stoker, mas o destaque maior está obviamente na referência ao culto a personalidade, denunciado por Cristo, mas tão presentes nas religiões.

    Outro fator é a figura de Morpheus como o profeta que prepara a vinda do Messias. Laurence Fishburne ratifica e evolui sua variação de João Batista. Tal qual era o primo carnal de Cristo que anunciava a vinda do Escolhido à Terra, ele segue auxiliando o Salvador. Batista vivia no deserto se alimentando de gafanhotos e mel, enquanto Morpheus no primeiro Matrix se alimenta sem luxos, de forma precária e ainda arrasta os seus seguidores da Nabucodonosor a fazer o mesmo. Aqui outro sacrifício também é mostrado, já que ele abriu mão da relação com Niobe (Jada Pinkett Smith), cortando os vínculos carnais.

    Há muitos bons conceitos, como a expansão dos programas, representados de forma complexa, com anseios humanos, como também os novos personagens introduzidos que ajudam a expandir a mitologia da série de filmes, ainda que muitos deles não tenha nenhum aprofundamento. Outro destaque fica para as cenas de ação, em especial a de perseguição na auto-estrada, certamente o ápice emocional do filme. O segmento põe à prova toda a extensa preparação do elenco que durou oito meses, e isso é visto nos momentos de luta, como nos choques de carros e perseguições que resgatam os clássicos Bullit e Operação França, em um circuito de cinco quilômetros, feito exclusivamente para a produção.

    Há muitas fragilidades no filme, em especial o primeiro embate de Neo com a nova versão do Senhor Smith. Um produto que foi tão bem cuidado não merecia uma computação gráfica tão artificial quanto esta, e isto resume os problemas de Matrix Reloaded, um produto mal-acabado tecnicamente, imaturo enquanto história solo e pouca dramaticidade. Tudo parece mecânico e presunçoso, e essa é uma história de homens, não de máquinas.

     

  • Crítica | Animatrix

    Crítica | Animatrix

    Crítica Animatrix

    Após o sucesso de Matrix muito se produziu a respeito desse universo. O longa cooperativo Animatrix certamente foi a mais acertada dessas empreitadas e gerou uma certa unanimidade entre os aficionados pela obra das irmãs Wachowski. A produção reúne nove histórias curtas conduzidas por mestres da animação japonesa, segmento que inspirou demais o roteiro e abordagem visual vista do filme de 1999.

    O Voo Final de Osíris, começa com uma batalha de espadas simulada entre um casal que tripulam a nave Osíris. O segmento eleva o conceito da Mulher de Vermelho para algo além. Se no filme das Wachowski o personagem Mouse fantasiava com sua criação, aqui há um paralelo com o sexo já na introdução, com os personagens usando suas lâminas para simular um combate, mas também para tirar a roupa um do outro, mostrando que a liberação da libido é um elemento fundamental nessa saga.

    A ação  não demora a ocorrer, com um ataque de Sentinelas a Zion e a animação em 3D funciona à perfeição, ao contrário de Matrix Reloaded, méritos claros a Andrew R. Jones que trouxe a equipe responsável pelo filme  Final Fantasy, e conseguiu mostrar suas qualidades — anos depois ele ganharia o Oscar de efeitos visuais por Avatar e Mogli: O Menino Lobo.

    As acrobacias, violência e a ideia da rivalidade entre homem e máquina ganham muito sentido aqui, e esse é sem dúvida o modo ideal de explorar o universo de Matrix. As histórias curtas e com personagens que não estão nos filmes dá a dimensão de como esse mundo é único.

    Outro bom segmento é O Segundo Renascer. Seu início é psicodélico, abusando de cores gritantes para mostrar o começo dos conflitos dos autômatos com a humanidade. Retirado dos arquivos de Zion, se nota que a revolta dos mecânicos se deu por conta da escravidão. Questões como segregação são levantadas e mostradas de maneira simples e sem rodeios.

    O curta, dirigido por Mahiro Maeda, conhecido por Blue Submarine Nº. 6 tem bons elementos de ficção científica, fazendo alusões a conceitos de Isaac Asimov, ainda que referencie a revolta das máquinas, algo que o autor de Fundação não gostava de abordar, mas aqui além de ser palatável ao grande público, ainda evita arquétipos bobos ou maniqueístas.

    Há elementos de temática samurai no segmento Era Uma Vez um Garoto, de Shinichiro Watanabe, e O Robô Sensível, de Peter Chung. Cada um deles se dedica a desmistificar o universo de Matrix, tornando-o menos pueril, mostrando que na briga entre humanidade e máquinas, não há apenas um lado certo, e sim uma complexa e intensa relação problemática.

    Animatrix expande o universo e gera boas discussões. Um bom exercício imaginativo e especulativo, e poderia ser repetido mais vezes, de maneira estendida como há muitos anos se promete.

  • Crítica | Matrix Ressurrections

    Crítica | Matrix Ressurrections

    Crítica Matrix Ressurrections

    Matrix Ressurrections é o quarto filme da saga iniciada em Matrix, lançada 18 anos após o terceiro volume da saga, Matrix Revolutions. Todo seu material de divulgação dava conta da possibilidade de um reboot, com elementos que ressuscitariam os conceitos da trilogia original.

    É bem difícil falar a respeito da obra dirigida por Lana Wachowski — Lilly não quis retornar por motivos pessoais — sem falar a respeito dos rumos narrativos da história. Contudo, há uma ideia que beira o genial na história e que faz um bom comentário metalinguístico, especialmente no que envolve o personagem de Keanu Reeves. Associar os eventos da trilogia a outro tipo de simulação é bastante válido, e gera momentos verdadeiramente hilários.

    Fora isso, os novos personagens são em sua maioria muito divertidos e icônicos, e até melhor aproveitados do que na versão de 1999, onde a maioria da trupe comandada pelo Morpheus de Laurence Fishburne são apenas estilosos, e não tem muita importância ou tempo de desenvolvimento.

    Outra questão bastante positiva é a fotografia, assinada por Daniele Massaccesi, que já vinha trabalhando como operador de câmera em filmes com as Wachowsky e com o diretor Ridley Scott, além do veterano John Toll de Coração Valente, Além da Linha Vermelha e também A Viagem, O Destino de Júpiter e Sense8, produções das diretoras que criaram Matrix. A mudança nas cores da simulação, saindo o verde dos códigos para o azul semelhante a pílula também serve bem como um comentário a respeito da mudança de abordagem desta parte da saga.

    Jessica Henwick, Yahya Abdul-Mateen II e Jonathan Groff estão muito bens em seus papéis, até Pryanka Chopra Jones, introduzida em segundo momento, é bem utilizada. Carrie-Anne Moss e Jada Pinkett Smith também acrescentam bastante em seu retorno, o ponto negativo na atuação recai sobre Neil Patrick Harris, que varia entre o personagem discreto e o canastrão sem nuances, e nem a desculpa de programação salva esse desempenho.

    Após Neo fazer um acordo com as máquinas para que deixasse a humanidade de Zion em paz no final do último filme da trilogia acompanhamos o desenrolar desse ato. Esse armistício tem um bom desenvolvimento, e ver como o quadro evoluiu é uma boa surpresa, tanto visualmente quanto em conceito, dado que boa parte da política mostrada aqui foi plantada nos filmes anteriores. O problema mesmo é a função de Neo na simulação.

    O personagem de Reeves era o escolhido, como Jesus Cristo que se entregou em sacrifício para derrotar um vírus. No entanto, nesta versão o personagem estar na posição em que inicia o filme, com tanto acesso a questões que lembram o funcionamento de um simulacro, não faz nenhum sentido. Se é preciso que se mantenha um inimigo por perto, não faz sentido dar-lhe recursos que podem ser encarados como armas.

    Importante lembrar que na gênese do projeto Matrix, as irmãs Wachowski queriam que os humanos fossem como computadores. Em conversa com os estúdios se decidiu que seriam baterias. A opção deste novo filme de aludir a isso, mesmo que de forma não literal é ótima, pois além de remeter a ideia original, ainda traz novas camadas para a discussão. Visto que a mente humana tem maior capacidade criativa que uma máquina, faz todo sentido utilizar no simulacro a força e esforço criativo a favor da simulação, ao invés de apenas consumir a energia oriunda dela.

    O filme reforça o subtexto sobre assumir a real identidade de maneira ainda mais certeira, com todo o roteiro sendo menos sutil que na trilogia original. Isso poderia ser encarado como algo ruim, mas já que boa parte do público julgou mal alguns dos conceitos de Matrix Reloaded e Revolutions, é bom que esteja aqui para não haver dúvidas.

    A solução final de Matrix Ressurrections é apressada, e parece ser uma sina em tudo que envolve a série pós-1999, mas as atuações, atmosfera cyberpunk e as cenas de ação lembram os momentos áureos do cinema das Wachowsky, e trazem um bom fôlego ao filme.

  • Resenha | Hulk: Futuro Imperfeito

    Resenha | Hulk: Futuro Imperfeito

    A cultura pop está repleta de histórias ambientadas em futuros pós-apocalípticos, seja na literatura, no cinema ou nos quadrinhos em geral. Em que pese as características basilares do gênero, algumas obras se destacaram ao longo dos anos, por diferentes fatores.

    Nos anos noventa, o prolífico artista George Pérez procurou Peter David para trabalharem juntos em algum projeto. Sendo David o maior escritor da história d’O Incrível Hulk, nada mais natural do que a parceria entre esses dois talentosos profissionais resultar em uma aventura do Golias Esmeralda.

    Assim nasceu Futuro Imperfeito, minissérie publicada originalmente em duas partes pela Marvel Comics nos últimos meses de 1992. Na HQ, David e Pérez concebem a cidade de Dystopia, um lugar superpovoado, cercado por desertos e erigido a partir de ruínas do que outrora foi uma metrópole civilizada.

    Nesse lugar em que vozes se confundem e pessoas vestidas em trapos fazem de tudo para sobreviver, rebeldes se camuflam no meio da multidão, enquanto organizam a resistência ao sombrio e monstruoso Maestro, tirânico líder da região. Nesse lugar em que o futuro parece se encontrar com um passado remoto, a esperança surge no verde da pele do Hulk, que é trazido de seu tempo até esse futuro absurdo para descobrir questões inconvenientes de sua vida e então se provar em batalha, pelo bem do que restou da humanidade.

    Elogiar a qualidade de escrita de David é chover no molhado. Tecer elogios à narrativa visual de Pérez seria igualmente redundante. Fenomenal, a dupla construiu de forma conjunta uma história tão simples quanto memorável para um dos personagens mais complicados de se compreender no Universo Marvel.

    Por ser o escritor da série mensal do Hulk à época, David possuía amplo domínio do background do personagem. Desse modo, o herói surge em Futuro Imperfeito da mesma forma com que vinha sendo representado em sua série solo daquele tempo: a consciência de Banner no corpo do Hulk, o que fazia do herói tão genial quanto poderoso, ao mesmo tempo.

    Assim, o maior inimigo possível para o Hulk debuta no Universo Marvel. O Maestro é tudo o que o Hulk pode vir a ser, e tal sombra paira a todo instante na HQ, que não perde tempo nem apresenta nenhuma barriga na execução de seu dinâmico enredo.

    Diálogos poderosos se intercalam entre cenas de ação ágeis e impactantes, que reafirmam a escala de poder na qual se inserem os protagonistas desse embate de iguais, tão desiguais quanto o tempo poderia tornar. Recheada de referências, a HQ entrega uma aventura distópica de primeira grandeza e se configura como uma das histórias mais emblemáticas do Gigante Verde.

    Complementando o encadernado publicado pela Panini Comics, a história O Último Titã é escrita também por David, mas ilustrada por outro parceiro seu dos tempos da série mensal: Dale Keown. Ambientada em um futuro ainda mais longevo, no qual somente o Hulk sobreviveu na Terra, vemos o dilema existencial entre Banner e Hulk novamente trabalhado, de forma diferente da vista em Futuro Imperfeito, já que agora as duas personas lutam por espaço e possuem desejos completamente diferentes para encararem o fim dos tempos.

    Com tradução de Jotapê Martins, Fernando Lopes e Marcelo Soares, o encadernado Hulk: Futuro Imperfeito aquece aquele coração marvete com sucesso e preenche a lacuna existente no mercado com a ausência inexplicável dessa HQ durante tantos anos, após uma republicação lá do comecinho dos anos 2000.

  • Resenha | O Eternauta II

    Resenha | O Eternauta II

    Publicado entre 1976 e 1978, a continuação de O Eternauta,  torna a história do Viajante da Eternidade ainda mais política, utilizando claramente a repressão da Ditadura Militar da Argentina como pano de fundo. O quadrinho trazido para o Brasil pela editora Martins Fontes reprisa a parceria do escritor Héctor G. Oesterheld com o desenhista Francisco Solano Lopez. Alias, a história sobre a composição da revista é, por si só, ainda mais aventuresca que o visto nas páginas dessa publicação.

    Para entender essa nova aventura de Juan Salvo, até por conta do quadrinista Hector, alter ego de Oesterheld, ser um personagem recorrente aqui, precisamos de uma breve contextualização. Eternauta II foi publicado na revista Skorpio nos anos de chumbo da ditadura argentina, e a editora não falava abertamente sobre a condição dos artistas. Acredita-se que o roteirista, em determinado ponto da publicação, entregou os manuscritos para o desenhista em encontros clandestinos, já que ele era perseguido pelas autoridades militares que tomaram o poder na Argentina.

    No país existe um termo específico para quem não tem paradeiro nessa época: chupado (pronuncia Chuparro), o caso de Hector. Para entender a gravidade da situação, além de ser perseguido, suas quatro filhas foram assassinadas. Além disso, Gabriel Solano López, filho do desenhista, foi detido em 77,  e liberado por conta dos contatos do pai. Sua família na Espanha. Pontuar tais elementos explica muito sobre o cenário pós apocalíptico em que os personagens são inseridos logo no início dessa nova empreitada.

    A narrativa começa em 1959, o contador da história tem consciência que publicou uma aventura em outras oportunidades (quebrando a quarta parede citando nominalmente as reedições inclusive). Esse argumento metalinguístico é encarado como paranoia e como conspiração dentro da trama, e pode ser lido também no cenário real. O que se percebe são os anos 2000 como terra arrasada.

    A edição da Martins Fontes tem um bom prefácio de Fernando Ariel Garcia, que contextualiza as escolhas políticas do texto. A versão de O Eternauta 1969 com desenhos de Alberto Breccia já havia mais contornos políticos, culpando os países desenvolvidos pela miséria ocorrida na América Latina e nos demais países periféricos, mas aqui a condição se agrava.  De vários modos, a nova história é mais angustiante que o volume anterior, pra além do salto temporal.

    O cenário de pós apocalipse e a convivência com animais irracionais domésticos como parte do aspecto social dá a dimensão do quão selvagem era esse novo momento,  um reflexo dos pensamentos de Oesterheld, um perseguido pelo regime autoritário e castrador. A história corre em cenários estranhos. Além disso, os próprios personagens mudaram, há Mãos que conseguem driblar a glândula de medo, Juan parece mais poderoso, quase que como um super-herói.

    Em entrevista ao livro Bienvenido: Um passeio pelos quadrinhos argentinos de Paulo Ramos, a viúva Elsa Oesterheld descreve a sensação de ter que viver com a dor das perdas das filhas e marido como uma mutilação física. Por mais que o roteirista não soubesse exatamente qual seria seu destino enquanto rascunhava a trama, o texto acabou sendo bastante profético e ecoando o mundo real, e isso por si só torna a apreciação deste gibi em um evento triste e bastante poético.

    O cenário de terra arrasada lembra filmes como Planeta dos Macacos e sua continuação malfadada De Volta ao Planeta dos Macacos, especialmente por mostrar um mundo arrasado, e com alguns seres humanos ainda com algumas regalias além do simples dia a dia destruído de um mundo que acabou ou está em vias de acabar. Fato é que a história soa confusa em muitos pontos, parece realmente ter sido escrita sob pressão, e pudera, exigir tranquilidade e sobriedade de um contador de histórias em situação tão limite é demais, e por mais que O Eternauta II não seja um dos trabalhos mais brilhantes de Oesterheld, há muitos momentos memoráveis e reflexivos. O final triste e pragmático para Salvo e Hector mostram o quanto as personas do escritor se confundem, as perdas irreparáveis e inevitáveis na família Salvo tem fortes paralelos com a tragédia dos Oesterheld.

     

  • Resenha | Duna – Frank Herbert

    Resenha | Duna – Frank Herbert

    “Deus criou Arrakis para treinar os fiéis.” – ditado fremen, o povo da areia.

    Eis o destino cármico para a humanidade, ou pelo menos, para os destemidos que fazem de tudo pelo poder. Arrakis é o planeta Duna, lugarejo impróprio a vida humana e que carrega consigo um fatalismo inevitável – não só por suas terríveis condições naturais, mas pelos vermes de areia gigantescos que lá residem. Um inferno planetário, árido e hostil, com tempestades cujos ventos retiram até a carne dos ossos de alguém, e que esconde sob as infinitas dunas desta Terra desértica, a valiosa ménange. Uma especiaria que dá poderes a quem a consome, e se vicia, e que só é encontrada na desolação e nos perigos de Arrakis. Dispensável dizer que muitos poderosos a ambicionam, numa guerra cada vez mais oficializada pelo controle da droga, custe o que custar, a menos que as lendas e profecias dos fremen sejam reais, e um salvador, o tão esperado Kwisatz Haderach, venha de fato unir os povos dentro e fora de Duna e trazer consciência (e limites) a ganância dos homens.

    No gênero de fantasia, o clichê nunca some ao apontar O Senhor dos Anéis como seu expoente máximo, tal qual Duna, clássico de Frank Herbert, como a magnum opus literária da ficção-científica. É porque, às vezes, todo clichê é inevitável quando este é real. Há um pedaço vital de Duna em todo e qualquer produto extremamente popular do gênero pós-1965, incluindo Star Wars, Harry Potter, Jogos Vorazes, Game of Thrones, ou ainda na maravilhosa série Arquivo-X dos anos 90. O que Frank Herbert conseguiu em Duna, antes de mais nada, foi revitalizar a essência questionadora, e utópica das obras basilares de Aldous Huxley e Philip K. Dick, os titãs da ficção- científica do início do século XX (autores obrigatórios), e inserir doses explícitas de política na idealização de um planeta com um sistema e religião próprias, mitos e temores particulares, e tecnologias que visam a sobrevivência da espécie, mas que pode resultar no extermínio de um ecossistema inteiro. Duna consegue ser utópico e distópico ao mesmo tempo, estruturando tudo num contexto engenhosamente político, sob um realismo fantástico profundo, e impecável.

    O livro poderia também se chamar Onde os Fracos Não Têm Vez, uma vez que o duque Leto Atreides, ótimo pai e marido, homem de bom coração, aceitou se mudar para Arrakis a fim de administrar toda a extração do ménange, se achando astuto o suficiente para evitar traidores – nada maquiavélico ele, no uso original do termo. Quando a família Atreides sai de seu planeta Caladan e vão todos enfrentar, diretamente, a realidade que esconde os temidos vermes gigantes, um misterioso povo guerreiro cuja água é o mais inestimável bem, inexistente sob um sol vermelho escaldante, e muitos outros segredos além do horizonte, tudo começa a mudar, como se o destino exclamasse: “Vocês não deveriam estar aqui”. Não demora muito para o plano de poder dos Atreides dar errado, e assim, Lady Jessica e o filho de Leto, o jovem Paul Atreides, têm suas vidas mudadas por um jogo de interesses interplanetários enraizado em Arrakis, num amplo esquema de corrupção política que não poupa ninguém – Duna é o Brasil e ninguém percebeu isso?

    Presos numa armadilha que Leto sem saber os colocou, esposa e filho lutam por suas vidas, entregues a sorte e ao azar, enquanto o asqueroso barão Vladimir Harkonnen (a grande inspiração para Darth Vader, entre muitas outras que George Lucas usou em Star Wars) trama diabolicamente esquemas e intrigas para controlar Arrakis e o seu “petróleo”, a substância que aumenta a força psíquica, e mediúnica, do ser-humano. Mas os altos escalões sempre subestimam a força popular, e na sua jornada contra a morte, Jéssica e Paul descobrem que há futuro e salvação entre os “rebeldes” fremen, uma espécie de cangaceiros do deserto e que não se curvam as forças militares do barão Harkonnen! Diante de tantas subtramas assim, e uma miscelânea de personagens que ao final não queremos nos afastar, a narrativa em terceira pessoa de Frank Herbert é quase sempre sublime, deixando algumas passagens ser tão célebres quanto poderiam ser, de fato – vide sua habilidade em organizar tramas paralelas (e fazer isso parecer que é simples).

    Herbert fez de Duna o romance da sua vida, a viagem inesquecível, seu pomo de ouro, pelo menos neste primeiro volume. Mestre com seus diálogos e suas frases de efeito, sendo a mais famosa “Não terei medo, o medo mata a mente.”, dita por Paul, o escritor construiu em pouco mais de 600 páginas um monumento dificílimo de adaptar para o cinema ou TV, devido a força e aos detalhes de suas palavras; a magnitude definitiva de sua grande alegoria política, quase que impossível de ser superada em filme ou série, apenas copiada. Por ser a obra de ficção-científica mais vendida (e uma das mais inspiradoras) da história, desde 1965, e publicada com grande apreço e carinho no Brasil pela Editora Aleph, Duna justifica sua popularidade universal a cada um dos seus capítulos, os quais possuem trechos iniciais retirados de uma espécie de bíblia do sábio e nômade povo de Arrakis. Este, sempre à espera de um salvador, de um guia, ou de uma força extra, como preferir. E quem não está?


  • Crítica | Filhos da Esperança

    Crítica | Filhos da Esperança

    Um futuro perturbador marcado pela infertilidade da espécie é a ficção que melhor representa o presente.

    Repressão que parte do estado, violência entre a própria população, uso exagerado de drogas, imigrantes presos em jaulas. São assuntos difíceis de tratar e muitas vezes negligenciados, porém, não é preciso muito se atentar a essas situações, ainda que de forma velada em nosso cotidiano. Filhos da Esperança parte dessa ideia.

    No futuro, em 2027, a humanidade está próxima do colapso porque nessa distopia as mulheres não conseguem mais gerar filhos. O controle de imigração também é severo e opressivo. Esse é o cenário em que Theo (Clive Owen), um herói moldado pela ocasião,se encontra.Ele vive inerte a realidade das ruas como empregado do governo e após ser sequestrado por um grupo ativista, reencontra laços com o passado em Julian (Julianne Moore), sua ex-esposa. Theo precisa conduzir a primeira gestante em anos para os cuidados de uma organização interessada no bem-estar e futuro da humanidade. Kee precisa ser cuidada, já que é uma imigrante ilegal e as autoridades se aproveitariam de alguma forma da sua gestação.

    A indiferença do protagonista com o mundo é um ponto determinante para o desenrolar da trama. O título brasileiro do filme entrega a esperança como força motriz da trama, e de fato o é. Não é ocasional que pessoas se aglutinam em torno de veículos midiáticos, nem que o barco do projeto humanista, colocado como destino final para Theo é nomeado “O Amanhã”. Em meio ao caos absoluto, a esperança é o que resta e sua ausência também seria ausência de vida. Sem razão para seguir em frente e uma catástrofe iminente, o fim já está decretado.

    A construção narrativa de Filhos da Esperança se dá pelo estado de desequilíbrio instituído. Há conflitos gerais, mas sobre tudo humanitária. A câmera acompanha Theo, mas constantemente se desloca para revelar a distopia instaurada. São muitas as cenas que lembram os campos de concentração nazistas no constante desejo do diretor de enquadrar o caos e até mesmo a morte.É um trabalho em que Cuarón repete este recurso, já usado antes em E Sua Mãe Também (2001), é um artífice para contrastar a história de seus personagens com o plano de fundo daquele universo. Uma esfera maior.

    Há mais uma razão para a liberdade exercida pela câmera nos enquadramentos do filme.Essas tomadas perfeitamente orquestradas por Jim Klay, Geoffrey Kirkland (Direção de Arte) e Emmanuel Lubezki (Fotografia), levam o espectador à vertigem imposta aos personagens.Isso é essencial para que o público desperte a ideia de que a camada principal é fruto da conjunção angustiante e sufocante em que se segue o entrecho.

    É interessante pensar que treze anos após seu lançamento, Filhos da Esperança esteja em tamanha sintonia com a realidade. A crise humanitária de 2006, poucos anos após o 11 de setembro persiste ainda hoje e ainda centrada na figura do presidente norte-americano. Naquela época a política de imigração se encontrava em estado austero pelas guerras impostas pelos Estados Unidos aos países do centro da Ásia. No atual contexto, é o México onde nasceu Alfonso Cuarón e outros países latino-americanos que estão em debate e no gritos reacionários dos gringos.

    As experiências quais somos submetidos todos os dias no século XXI se fazem claustrofóbicas porque também atravessamos tempos de inquietude e violência. Em confronto com Filhos da Esperança, há que se atentar a luta necessária para manter a sanidade, para prosseguir com a vida mesmo rodeado pelo caos. As circunstâncias dão razões para desconfiança generalizada, nas pessoas, nas instituições e enquanto indivíduo, é muito fácil internalizar esse conflito onipresente e extravasá-lo de maneira bastante perigosa. Em seu filme, Cuarón encontra no próximo, na confiança e cooperação humana a ponte para a esperança. A mensagem do diretor acerta em cheio nosso presente quando aponta nossa falta de humanidade e incapacidade de lidar com a vida.Isso só será reparado quando for entendido que nenhum ser humano é ilegal e que se o respeito para com as pessoas e suas histórias deve reavisto.Essa geração está mesmo comprometida e a esperança nasce todos os dias com uma nova aurora.

    Texto de autoria de Gabriel Caetano.

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  • Resenha | Fahrenheit 451 – Ray Bradbury

    Resenha | Fahrenheit 451 – Ray Bradbury

    “[…] E quando finalmente montaram a estrutura para queimar os livros, usando os bombeiros, reclamei algumas vezes e desisti, pois não havia mais ninguém reclamando junto comigo. Agora é tarde demais.

    Distopias são atraentes em níveis grandiloquentes ao extremo para quaisquer escritores que idealizam a chance, que sentem com fervor o néctar de uma premonição fantasiosa, sedutoramente louca e porque não astuta, como neste caso, de um futuro aquém ou além do esperado por previsões realistas e, sejamos francos, nada convidativas a grandes aventuras. O acaso é a grande regra das histórias de um amanhã distópico, sempre a observar nos seres humanos as consequências objetivas desta imprevisibilidade irresistível para o escriba a interagir conosco; sejam essas consequências expressas no nosso físico, no social, na ciência, na política, na religião, ou talvez da forma mais cruel possível: na nossa cultura.

    O escritor norte-americano Ray Bradbury vai longe no seu retrato de um mundo totalitário, conjurando uma forma de estado e seus agentes de controle social que abominam os livros (por razões não tão óbvias assim, ainda que com total perfídia a qualquer tipo de liberdade que o cidadão possa ter), perseguindo leitores que possuam exemplares em sua casa e queimando, literalmente, até mesmo as traças que possam habitar os manuscritos. Bradbury sabe como intimidar o leitor página a página, detalhando com rigor o funcionamento desse estado, sua lógica e ferramentas de repreensão, e a sobrevivência de quem ainda sabe que, aonde se queimam livros, no final queimarão os seus leitores (o uso de palavras-chave na sua prosa é encantador, contextualizando através da Palavra um mundo onde a violência é o meio, e o fim.).

    Dentre as cinzas culturais que sujam e envergonham a sociedade alienante, e alienada, de Fahrenheit 451, destacam-se alguns poucos homens e mulheres, figuras um tanto isoladas, muitos destes frios e pessimistas, mas inconformados com sua situação de cegueira coletiva imperial. Ao não concordarem com o sistema determinista que manda arder a história do mundo sob o calor de 451º na escala fahrenheit (com medo que o povo questione seus arredores, temeroso quanto o poder da escola, das disciplinas, da pesquisa), cedo ou tarde estes cidadãos controlados criarão forças para tentar derrubá-lo, mesmo que sua tentativa sirva apenas como aviso: Ainda não estamos totalmente cegos para não perceber as cinzas ao redor. O livro de Bradbury, sua grande obra prima, escala reflexões de extrema pertinência ao papel da cultura na sociedade, como um todo, e como ela pode ser a maior arma que uma pessoa pode contar na vida.

    Na formosa edição brasileira publicada pela Globo Livros, por meio do selo Biblioteca Azul, com tradução de Cid Knipel, a leitura se torna dinâmica ao ponto de sentirmos, ou ainda calcularmos, o desenvolver sutil de uma guerra contra a intelectualidade alvejada que reside nas mãos do povo, como também o de uma rebeldia necessária num caos civilizatório desses no qual bombeiros não apagam, mas causam o fogaréu a exterminar nossos cérebros. Há então aquele que trai a corporação para não trair a sua raça, propriamente dita. Humano, afinal. Mesmo em uma época onde livros migram para as telas dos celulares e computadores, não fadados somente ao papel, museus se tornam o alvo preferido dos incendiários. O que arde vai além do físico, seria o nosso passado mesmo, impossibilitando o conhecimento geral sobre as nossas fundações, e assim, por consequência, o que vem depois. É isso o que eles desejam, e Bradbury deu o seu alerta da forma mais sagaz, divertida e solene possível, ainda em 1953: é isso o que eles mais desejam.

    Compre: Fahrenheit 451 – Ray Bradbury.

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  • Resenha | Nathan Never: Os Olhos de um Estranho

    Resenha | Nathan Never: Os Olhos de um Estranho

    De todos os títulos relançados da Sergio Bonelli Editore pela Mythos, Nathan Never foi o que mais me despertou interesse. Incrivelmente, foi o que eu mais negligenciei por algum estranho motivo que eu não sei explicar até o momento que eu escrevo essa resenha. Entretanto, posso afirmar que foi disparado o melhor fumetti que eu li. Digo isso porque apesar de leitor ávido de quadrinhos, nunca fui familiarizado com os quadrinhos italianos da Bonelli. Só que esse novo mundo que me foi apresentado é por demais interessante, e dentre eles, Never foi o que mais me agradou.

    Criado por Michele Medda, Antonio Serra e Bepi Vigna, as histórias de Never são ambientadas em um futuro mais ou menos distópico em que o combate ao crime é feito por agências policiais e corporações privadas de detetives, como a Agência Alfa onde Nathan trabalha. Na trama de Os Olhos de um Estranho, o Agente Alfa investiga o assassinato de Hannah Owens, uma mulher solitária e introvertida que levava uma vida aparentemente comum. Com a ajuda de Sigmund Baginov, Never descobre que outras mulheres com perfil semelhante ao de Hannah também foram mortas da mesma forma que ela. A partir daí, Nathan descobre que o caso pode ser mais complicado do que imaginava.

    Originalmente publicada em Nathan Never nº 9 (fevereiro de 1992), a HQ conta com roteiros de Michele Medda e desenhos de Stefano Casini. É bom observar como o ambiente onde a história é passada guarda enormes semelhanças com Blade Runner: O Caçador de Andróides. Até mesmo o protagonista tem um certo quê de Rick Deckard, o protagonista do filme de Ridley Scott que foi interpretado por Harrison Ford. O ritmo do roteiro é vertiginoso desde o início, ainda que possua uma forte pegada noi Os diálogos são espertos, principalmente na interação do Agente Alfa com alguns ótimos coadjuvantes como Sigmund Baginov e Legs Weaver (declaradamente inspirada em Sigourney Weaver). Os desenhos de Stefano Casini em certos momentos parecem storyboards detalhados de algum filme, com planos que caberiam perfeitamente em uma tela de cinema. Em vários momentos me peguei viajando nos quadrinhos e imaginando tudo em movimento como se fosse um filme.

    Sintetizando em poucas palavras, Nathan Never foi o fumetti mais interessante que li dessa leva que a Mythos relançou e digo sinceramente que me tornei um fã de suas histórias.

    Compre: Nathan Never: Os Olhos de um Estranho.

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  • Crítica | Fahrenheit 451

    Crítica | Fahrenheit 451

    A adaptação do livro de Ray Bradbury pelo mestre François Truffaut é, no mínimo, estranha. Excêntrica como deveria ser, dada a natureza da história, mas estranha. Truffaut, que junto de Jean-Luc Godard são eternamente os sinônimos da nouvelle vague francesa, é um grande esteta da imagem; e de fato é, sendo suas obras muito mais longínquas que a reles existência do homem. O diretor produziu inúmeras obras-primas reverenciadas na história da sétima arte, entre as quais os inesquecíveis Atirem no Pianista, Os Incompreendidos e Jules e Jim se destacam fácil na trajetória do artista que revolucionou o Cinema, indo de crítico a cineasta; de analista, a operário. O exercício sempre o seduziu, como bem nos é exposto em livros sobre Truffaut, sempre tentando ir além da cartilha e do senso comum produzidos nas veredas hollywoodianas desde os tempos de Frank CapraKing Vidor e Charles Chaplin.

    E quem não gosta de uma distopia, tipo Mad Max e O Livro de Eli (esse último sendo um sucesso inexplicável no Brasil desde seu lançamento, em 2010)? Brincando com o pessimismo como se o mesmo fosse inevitável de se alcançar, essa não-utopia vê no horizonte algo não tão brilhante para nós, enquanto humanidade e coletivo que somos. Sendo assim, poucas coisas tão bem simbolizam a decadência da sociedade como a queima de livros contra a informação, e a verdade, algo extremamente característico dos tempos ditatoriais na Europa e na América Latina nos séculos passados. É claro que muitas publicações merecem ser queimadas (ou melhor, não publicadas dada sua qualidade questionável), contudo se a verdade liberta, eis a verdadeira vontade do poder: atear fogo na raiz do problema, a 451 graus na escala fahrenheit de temperatura, tão usada nos EUA como o célsius é usado no Brasil.

    E qual profissão é mais emblemática ao fogo para dar início a essa caça aos livros, fadados às cinzas ao invés de condenados às traças? Bombeiros, é claro, que devotos ao fogo e não mais as mangueiras que o combatem, atiram suas chamas às bibliotecas da mesma forma que João Dória atira água nos grafites de São Paulo. Truffaut observa o ridículo e o absurdo de situações como essas do começo, ao fim, e através das mensagens oriundas do ótimo livro de Bradbury transmite com seus atores e mise-en-scène um simples recado, ainda na década de 60, quando a TV já era uma realidade: a verdade deve ser combatida, omitida, perseguida e desencorajada. A toda hora, chamados são ouvidos no quartel dos vermelhos, e a toda hora, pessoas num parque público são revistadas por aqueles que as querem alienadas, presas a um controle onde tudo está bem, e qualquer pensamento mais ousado é contra a normalidade e merece ter a vergonha de ser subversivo, e sumariamente repreendido.

    Chegando ao cúmulo de queimarem uma casa que, como numa infestação de ratos estava infestada de livros clássicos, e preciosos em demasia, é bem esperado aos espectadores mais experientes que surjam certos conflitos nessa trama de total repreensão ideológica institucionalizada bem contextuais a trama, como o agente público cada vez mais enlouquecido que ajuda a propagar, e que se relaciona com uma moça que enxerga o quão inacreditável tudo isso é, ou o bombeiro tão viciado em intimidar o povo, a ponto de fazer o mesmo com seus colegas, ou seja: conexões simples entre personagens e piamente desenvolvidas, aqui. Abraçando assim pela primeira vez na carreira o Cinema do entretenimento, quase que puro e simples, apesar das óbvias analogias alarmantes que uma distopia pode agregar, Truffaut decepciona quem conhece o que ele foi capaz de fazer, e faz com que Fahrenheit 451 não seja nada marcante, por mais divertido que certamente seja.

    Divertido pode ser mesmo o principal atributo do filme em questão, cheio de situações e conclusões bacanas, e que do começo ao fim rende momentos que mais parecem oriundos demais (devido a ambientação colorida e plastificada que a história se encontra) aos deliciosos filmes de Jacques Tati, de Tempo de Diversão. Apostando nesse universo criado em estúdio, tal como em Uma Noite Americana, Truffaut não tem vergonha de empregar cores vivas e saturadas num mundo ditatorial onde a ignorância precisa ser uma benção, de qualquer forma. Assim, os próprios fundamentos de uma distopia são regularmente reformulados, pois temos um futuro decadente visto graças a uma encenação proposta de uma forma linda, e bela. Ironia, claro, tornando o filme um exercício de adaptação dos mais desafiadores, mas sempre aquém do enorme talento que o diretor já expressou antes, e muito melhor. Seja como for, Fahrenheit 451 traz um final tão gostoso que quase seduz a percepção.

    https://www.youtube.com/watch?v=M1HZIy9rq1A

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  • Resenha | Estrela da Manhã (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Resenha | Estrela da Manhã (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Em Estrela da Manhã, último livro da Trilogia Red Rising, Darrow já não é mais um infiltrado nas linhas inimigas. Tanto aliados, como inimigos, têm que lidar com a revelação de sua verdadeira identidade e com o fato de que ambos foram enganados por meses. Depois da morte de Ares, o futuro da rebelião parece incerto e como nosso herói está na mãos do Chacal, o destino parece impreciso também. Porém o que mais deixa o vermelho apreensivo é a forma como a guerra mudou sua personalidade e o tornou diferente do jovem que sofria a morte da esposa.

    O Chacal busca desconstruir Darrow, revertendo a manipulação genética e cirúrgica que o transformou em um Ouro, mas também submetendo-o a uma rotina de humilhações para que perca a aura de um dos homens mais admirados daquela sociedade. Mesmo quando vê uma esperança, o herói não consegue se livrar da sensação de que não é aquele que a rebelião precisa. Pierce Brown nos faz sentir o isolamento e a sensação de inadequação do personagem, assim, ansiamos pela batalha que levará ao fim a saga com as mesmas dúvidas do protagonista, e logo nas primeiras páginas deste último livro, não conseguimos imaginar um desfecho possível que não a falha de sua jornada.

    É claro que temos batalhas grandiosas ao decorrer do livro, com alianças constantemente quebradas e renovadas, com muitas reviravoltas e surpresas, porém os grandes momentos do livro são as reflexões de Darrow, em seus monólogos melancólicos e sua incerteza diante de uma missão tão complexa.

    Mesmo ao descrever os aliados, o autor não tem escrúpulos em mostrar suas ações e motivações pouco louváveis, afinal, nem todos que lutam pelo “Levante Vermelho” abraçam as idéias de justiça social e igualdade perante os homens. Pode haver naves e batalhas espaciais, armas com tecnologias inexistentes, mas o que se destaca na narrativa  é a verossimilhança de um exercito de homens a sós defendendo cada um a própria agenda pessoal. Nem mesmo personagens como Mustang, sempre retratada como inteligente e justa, escapam desse escrutínio e por isso, ao virar de cada página, sempre esperamos uma nova traição.

    Embora algumas resoluções pareçam quase mágicas e o grande numero de reviravoltas e planos secretos dentro de planos secretos seja um tanto cansativo, agrada-me que o autor se demore tanto na trama política quanto nas batalhas. É  dessa maneira equilibrada que Red Rising se apresenta muito superior as outras distopias juvenis que foram lançadas aos montes no mercado brasileiro nos últimos anos.

    Compre: Estrela da Manhã (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Mariana Guarilha é devota de George R. R. Martin, assiste a séries e filmes de maneira ininterrupta e vive entre o subconsciente e o real. 

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  • Resenha | O Circo Mecânico Tresaulti – Genevieve Valentine

    Resenha | O Circo Mecânico Tresaulti – Genevieve Valentine


    Circo fantástico de engrenagens incongruentes

    Respeitáveis leitores, O Circo Mecânico Tresaulti, de Genevieve Valentine (Darkside Books), é um livro de fantasia ambientado durante um período de guerra. Não se trata de uma distopia (aos fanáticos por conspirações), mas de uma história em que componentes mágicos de caráter lúdico coexistem despercebidos ao conflito.  De forma geral, a narrativa não alcança pleno entretenimento por conta de incongruências que saltam aos olhos de uma boa leitura.

    Valentine utiliza dois narradores: um em terceira pessoa, ou narrador-observador, e outro em primeira pessoa, ou narrador-personagem, o segurança e faz-tudo do circo, George. Aqui começam os primeiros deslizes. Utilizar dois narradores é sempre um desafio por conta da alternância de vozes; ou seja, fica fácil do leitor confundi-los se eles não possuem características distintas ao contar a história. E eles não têm.

    Trocando em miúdos, o livro começa dando a entender que George está escrevendo um diário sobre o Circo Tresaulti e os espetáculos, mas logo nos deparamos com cenas detalhadas em que ele não está presente. Ou seja, não fica explícita a troca de narradores porque os dois soam idênticos. Assim, por vezes algumas passagens dão a entender que George está falando dele na terceira pessoa, ou que tem algum poder de adivinhação não explícito na trama.

    Enfim, vá lá que George além de ser segurança também faça bicos de médium, poderia ser uma incongruência para não despertar muito incômodo ao leitor menos preocupado. Dirão que o leitor quer trama, entretenimento. Para este leitor, em síntese, o livro acompanha as apresentações do circo, mas não em caráter temporal, ou seja, os capítulos são intercalados entre presente e passado. Por vezes estamos lendo sobre o que acontece no presente, e de repente George fura a continuação da história para tratar sobre eventos antigos, sobre os velhos artistas que passaram pelo circo ou sobre figurino, música de apresentação, roupa etc.

    Pessoalmente, acredito que faltou um pouco mais de parcimônia em utilizar o flashback para aprofundar os personagens, pois o enredo do presente não caminhava a qualquer intensidade ou desenvolvimento da trama (principalmente na metade do livro). O passado pesa ao circo mais que o presente, contudo não é suficiente para manter a leitura em expectativa constante.

    Quanto aos personagens, por serem muitos, é natural que apenas uma parte merecesse atenção dos narradores (outros tiveram o passado reduzido a quatro ou cinco linhas). Mas vá lá, dirá algum leitor, que realmente não nos interesse o passado de personagens secundários como por vezes nós, pessoalmente, deixamos de conhecer quem habita o nosso cotidiano, a pergunta é: os mais citados carregam o livro? Aqui cabe outra dúvida porque a personagem principal, Boss, a matrona que capitaneia o circo, é cercada de mistério.

    Boss foi uma cantora de ópera antes da guerra começar. Mas não era uma principal, apenas secundária. O maior papel dela foi a assistente da rainha na ópera Rainha Tresaulta. É narrado que na noite de um espetáculo a cantora principal encantou os presentes a tal ponto de silenciá-los. No momento seguinte uma bomba estoura no teatro e mata todos, exceto Boss. Ela se ergue no meio dos escombros e, carregando pedaços de instrumentos dos músicos mortos, cria para si um assistente mecânico, um homem (ciborgue?) composto de vários instrumentos que futuramente encarna o arauto e orquestra-de-um-homem-só do Circo Tresaulti. Não é dito o que ela emprega para criar o servo, apenas que a “habilidade” desperta e, por conseguinte, Boss adquire o poder de implantar engrenagens nos corpos das pessoas.

    Com esse poder, Boss incrementa os artistas do próprio circo: aos acrobatas e malabaristas implanta ossos ocos e articulações de metais para os deixarem mais leves e fortes; implanta engrenagens para força e braços mecânicos em outros; engrenagens diversas dependendo dos casos que aparecem; e cria um par de asas mecânicas que implanta em um artista especial.

    Uma vez recebidas essas próteses, os artistas não podem se distanciar de Boss, porque sugere-se que ela cria um vínculo com as engrenagens implantadas, as quais podem parar se não ficarem perto da dona. Boss também pode consertar os artistas e as engrenagens, chegando a ponto de ressuscitá-los (você não leu errado). Isto é o Circo Tresaulti: artistas-meio-ciborgues-meio-imortais.

    O antagonista da história é o “homem do governo”. Basicamente ele quer recrutar Boss para que ela utilize a sua habilidade nas tropas em guerra para criar soldados-ciborgues-meio-imortais. Enquanto isso não acontece, o circo sobrevive levando certa esperança nas cidades em guerra. Isto ainda é uma resenha sem spoiler.

    A despeito da trama do circo-meio-ciborgue-meio-imortal espalhando esperança no mundo contaminado com bombas e guerra, a autora dá pouca ênfase ao cenário e muito aos personagens. Mas, apesar de alguns bem construídos, como dito acima, por vezes os artistas do circo se mostram vagos, com ações simbolistas, alguns diálogos muito parecidos em que não distinguimos uma personalidade por trás do personagem. Mesmo George, o narrador-personagem, por vezes fica mais preocupado em criar insinuações que contar o desenvolvimento da história.

    Na literatura, é uma tendência contemporânea deixar sugestões na narrativa como forma de simular a experiência de vida de quem lê, mas em excesso, como George utiliza sugestões para endossar o comportamento rude ou violento de outros personagens, é apelar demais para a complacência do público, e, ao mesmo tempo, se eximir de contar fundamentos da história. Novamente houve falta de parcimônia da autora.

    As ilustrações presentes no livro são muito bem feitas e transmitem uma atmosfera meio decadente com enlaces de esperança aos integrantes do circo. A edição da Dark Side é muito boa e encontramos um ou outro erro de revisão que não tem o poder de prejudicar muito a leitura. Ao fim, a impressão é que O Circo Mecânico Tresaulti é um espetáculo pela metade onde as engrenagens presentes nos personagens faltaram à história.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: O Circo Mecânico Tresaulti.

  • Crítica | Ano 2003: Operação Terra

    Crítica | Ano 2003: Operação Terra

    Continuação de Westworld – Onde Ninguém tem Alma, mas sem o retorno de Michael Crichton, que dá lugar a Richard T. Effron, conhecido por seus trabalhos em Curva da Morte e Um Outro Amanhecer, além de futuro diretor da série V – A Batalha Final. O ponto de partida de Ano 2003: Operação Terra são as sobras do parque Delos, o mesmo onde ocorreu o massacre de visitantes. A tentativa de reconstrução da empresa é vista a partir dos olhos jornalísticos do repórter pouco popular Chuck Browning (Peter Fonda) e Tracy Ballard (Blythe Danner), que é uma entrevistadora bastante famosa. O intuito de convidar a dupla era a de afastar rumores sobre a insegurança do local.

    O nome original do longa é Futureworld, e é nesse cenário que abraça o futuro que moram os novos dramas apresentados. O ambiente de velho oeste é deixado de lado, para apresentar um parque multi-temático comum, com brinquedos comuns e que envolvem autômatos. Mesmo o simulador de boxe acompanha uma dupla de androides, presos em uma caixa, obedecendo os controles de luvas que funcionam como joysticks.

    A investigação dos jornalistas os faz perceber via discurso que até os cientistas programadores são também mecânicos, já que segundo os relatórios, o caos em Westworld ocorreu graças a uma falha humana. Essa falta de pessoalização soa como uma tremenda teoria da conspiração, e obviamente os dois passam a averiguar com mais atenção e afinco a situação proposta. O grande problema é que a transição da suspeita para a comprovação de que está sendo posto em prática um plano sórdido é demasiado rápida, sem um aprofundamento maior do que deveria ser o principal ponto de discussão.

    A trama rocambolesca poderia ter soado melhor, uma vez que a premissa de substituição das figuras políticas importantes por androides da corporação não é ruim, mas o modo como é executado beira a infantilidade. A participação especial de Yul Brinner é gratuita, não faz diferença alguma para a trama em si. A dupla formada por Fonda e Danner não tem química ou carisma, não causando no público nenhuma comoção pelos perigos que sofrem. Os momentos finais são pontuados por uma provocação típica das séries do ginásio, com Browning provocando seu antagonista, o que resulta em uma lástima, já que Futureworld poderia ser interessante independente até de seu original.

  • Review | 3% – 1ª Temporada

    Review | 3% – 1ª Temporada

    Uma questão proeminente na produção brasileira é a questão de se assumir a estética da pobreza, quando, já sabendo das dificuldades de competir esteticamente com filmes de outros cantos do mundo, você assume suas dificuldades técnicas e parte deste saldo para tirar da frente este tipo de comparação. A série 3% tem justamente esta dificuldade estética, quando não consegue assumir para que lado ir. Há um problema claro de visagismo, onde “O lado de cá” não parece um local plenamente deteriorado, mas sim um local sujinho. Já “no lado de lá”, o ambiente superior segue uma estética também um tanto primária. Basicamente, se parece um um hospital.

    Com alguns problemas de ritmo e de foco, alguns MacGuffin que não prestam-se ao papel de desvirtuar nossa atenção para o grande mistério que está por vir, mas sim de fazer parecer que nada lá tem muita importância. Que tudo são pequenas pistas falsas, deixando o solo onde a história é plantada um tanto arenoso e instável.

    As atuações carecem de uma melhor coordenação de elenco, mas a responsabilidade disso é um tanto dos diálogos, que são normalmente repetitivos, dando a impressão que a série está lidando com um conceito mais abstrato do que realmente está. Então, as pessoas repetindo para si mesmas e para os outros o quanto aquilo tudo é relevante, os flashbacks sobre como a vida inteira empurrou aquelas pessoas para aquele momento único na vida e demais recursos, soam desnecessários, embora possam ser isoladamente interessantes.

    Os temas da série

    Sem surpresa alguma, uma série que tem como premissa um mundo onde apenas 3% das pessoas são escolhidas para terem uma boa vida, a partir de premissas aleatórias vindas de algum grupo de poder, fala basicamente sobre a potencial perversidade do conceito de meritocracia. “O mérito só depende de você”, é o que diz Ezequiel, interpretado pelo excelente João Miguel, que aqui demora a se encontrar no papel. A questão é que em um mundo desigual, onde pessoas recebem oportunidades diferentes desde o berço, a busca por uma chancela baseada em mérito se perde.

    Perde-se também quando os princípios morais que regem a sociedade são tão maquiavélicos. Em O Príncipe, de Maquiavel, o mérito está tá na estratégia que se escolhe guerrear suas guerras, e sendo o resultado tal qual o planejado, você escolheu uma boa estratégia. Isso claro, não entra em acordo com princípios éticos no momento em que se é pragmático quanto ao que realmente importa são os resultados. Ora, se o que importa é entrar no Maralto, os meios serão justificados pelos fins. Não a toa é possível ver a perda da ligação social que as pessoas têm entre si, e ao menos na série, esta impostura parte principalmente daquele que consideram que têm mais a perder do que os demais. Se você considera que tem muito a perder, teria a tendência de revisionar mais profundamente seus critérios éticos. Se você já não tem nada a perder, talvez acabe se submetendo à outras ordens sociais, ou revoltando-se. Em algum momento a série flerta com o conceito então da luta de classes, onde uma solução para um conflito entre classes sociais, onde há poderes assimétricos, seria uma revolta da classe dominada sobre a classe dominante.

    O problema é que dentre todas essas questões, a série parece fazer um resumo sobre os problemas que uma estrutura maniqueísta é capaz de proporcionar, inclusive sobre a má fé dos grupos revolucionários, que não raramente podem se dar carta branca para fazer o que quiserem, mas em nenhum momento diz exatamente a que veio. Em algum momento, lá para o final, quando algumas questões sobre aspectos da sociedade do Maralto são explicadas e surgem certos conflitos morais a coisa ganha um pouco mais de estofo, mas que é uma recompensa pouco satisfatória em vista dos 8 ou 9 capítulos que precisaram ser galgados para encontrar este final.

    3% precisa de simpatia, mas vale a pena. Não desista da série, tem coisa lá pra refletir.

    Sendo assim, é preciso certa simpatia para vencer a dificuldade que a própria série tem em se estabelecer como ficção científica. Esta simpatia, aparentemente vem sido mais frequente fora do Brasil do que dentro, pois a série conseguiu encontrar um público formador de opinião e que adquiriu muita simpatia por tudo aquilo que a série buscou representar.

    Excelência é uma questão de pura prática, e a falta de tradição do Brasil em ficção científica obviamente irá se refletir em dificuldades, principalmente por que o orçamento da série não é tão suntuoso como as demais que aparecem na própria NetFlix. Foi uma série feita com recursos escassos e dificuldades técnicas. Black Mirror, por exemplo, teve uma orçamento ao menos 10 vezes maior. O orçamento maior se reflete em mais condições de revisas seu texto, recursos para montar cenas mais imaginativas, mostrar mais do que expor e ainda pagar melhor todos profissionais envolvidos. O que se espera agora é que, com o sucesso da série, possamos vivenciar uma melhora na qualidade e maiores condições de expor as ideias que em princípio ficaram perdidas na série em sua primeira temporada e assim abrir as portas para formarmos a tradição da ficção científica em nossas terras.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Review | Neon Genesis Evangelion

    Review | Neon Genesis Evangelion

    neon-genesis-evangelion

    Você é um(a) garoto(a) de 14 anos que mora com seu professor. Seu pai não fala com você desde que sua mãe faleceu. Anos após este afastamento, seu pai o convoca para ir à cidade onde ele lidera uma unidade militar. Por algum motivo, você vai. Ao chegar ao local, você avista uma criatura gigante que elimina todas as tropas que tentam feri-la. Em meio ao ataque, você encontra a pessoa que iria te receber, entra em seu carro e quase morre até chegar ao local onde está seu pai. Então, você finalmente encontra seu pai que, sem ao menos dar boas-vindas ou dizer “estava com saudades”, já lhe diz o motivo pelo qual o convocou: pilotar uma espécie de robô gigante para eliminar aquele monstro que há pouco quase o matou. E você deve pilotar imediatamente, sem nenhum treinamento. Você aceitaria a missão?

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    Shinji Ikari aceitou. Mas por que?

    Neon Genesis Evangelion trouxe uma história complexa e personagens mais complexos ainda. A situação narrada no primeiro parágrafo é, na verdade, o início do primeiro episódio da série. Para quem lê, pode achar que Shinji é mais um personagem juvenil corajoso que irá aceitar tudo que lhe é pedido e ser um grande herói. Mas não é bem assim que a coisa funciona em Evangelion. Shinji é um garoto fraco, inseguro e com sérios problemas de relacionamento. Sua natureza reprimida faz o possível para afastar as pessoas ao seu redor e tentar se isolar na própria solidão. Mas por que ele aceitou a missão dada pelo pai que não se importou com ele durante anos?

    A trama se desenvolve a partir do ano de 2015, sendo que 15 anos antes um grande meteoro atingiu o pólo sul, causando seu instantâneo derretimento. Este evento ficou conhecido como o Segundo Impacto. O nível dos oceanos subiu, mudanças climáticas ocorreram e metade da população mundial foi dizimada. Provavelmente, você está no meio desses mortos.

    Shinji passa a fazer parte da NERV, uma organização militar situada na cidade de Tokyo-3, Japão, comandada por seu pai Gendo. Aquele monstro que atacou a cidade é o primeiro (?) a aparecer desde o Segundo Impacto. Por que eles atacam justamente a cidade onde está instalada a NERV? E no dia que Shinji chegou? Coincidência?

    eva01

    Os monstros são chamados de “Anjos” (uma das inúmeras referências religiosas da série), e a partir de então começam a aparecer de tempos em tempos, sempre em Tokyo-3. Como pudemos ver logo no início, armas comuns não atingem os Anjos. Somente uma coisa pode derrotar as criaturas: os robôs criados pela NERV, as Unidades EVA.

    Em meio às batalhas tensas, desenvolvem-se diversas tramas pessoais de cada personagem. Muita coisa é escondida, e faz com que o espectador descubra junto com os personagens. E acredite, serão inúmeros choques.

    O objetivo central da NERV é derrotar os Anjos para evitar o possível Terceiro Impacto. Ao longo da série vamos descobrir que há muitas coisas em torno desse objetivo, não se resumindo a matar monstros e ponto final.

    A produção do anime foi muito turbulenta e drasticamente afetada pela falta de orçamento e pelo quadro depressivo do diretor Hideaki Anno. Ao mesmo tempo que as batalhas são frenéticas e muito bem animadas, há inúmeras cenas com um quadro parado durante vários segundos, às vezes minutos, onde apenas se desenrolam os diálogos dos personagens. Esta é uma marca de Evangelion, alguns amam, outros odeiam, mas o fato é que os diálogos são muito bons e acabam suprindo a falta de movimento na tela. Aliás, essa jogada criativa do estúdio Gainax deu um charme à série, aliada à trilha sonora fantástica.

    eva02

    O quadro depressivo do diretor Hideaki Anno teve muitos reflexos no roteiro. Os últimos episódios tiveram que ser produzidos com um orçamento irrisório. Isso fez com que a reta final da série possuísse muitas cenas paradas, diálogos longos e, principalmente, um clima pesadíssimo. As famosas “viagens mentais” de Evangelion, principalmente da personagem Rei Ayanami, foram gradativamente ganhando mais espaço. A trama vai revelando coisas bombásticas, personagens são destruídos física e mentalmente e, ao final, será impossível o espectador sair incólume. Mas não se assuste, Evangelion também possui momentos leves e até cômicos, excelentes por sinal.

    As batalhas do anime são um show à parte. Há todo aquele clima de estratégia militar e muita tensão, geralmente uma luta contra o tempo e a extrema necessidade de pensar rápido para resolver situações urgentes. O mais interessante é ver reações muito humanas dos pilotos dos EVA, que são apenas adolescentes. E nos momentos de batalha podemos ver a dualidade dos personagens com um contraste maior. Misato, por exemplo, que é uma estrategista nata e traz soluções mirabolantes para derrotar os Anjos, é uma alcoólatra descontraída e com muitas inseguranças. A própria Asuka, piloto do EVA-02, tenta se mostrar forte o tempo todo, mas possui um passado que deixou feridas incuráveis em sua alma. O próprio Shinji tem seus motivos para aceitar pilotar o EVA-01, e Gendo tem um (forte) motivo para escalar o filho para isso. Praticamente tudo acontece por um motivo, e isso é impressionante.

    Muitos criticam o final da série, em que os dois últimos episódios são praticamente feitos de “viagens mentais” dos personagens. Tudo é muito abstrato e filosófico, sem ação frenética. Esta é mais uma consequência da falta de orçamento somada à situação mental de Hideaki Anno. Diálogos, monólogos, colagem de cenas, tudo isso produz um clima muito denso na reta final, tanto pelo volume de informações quanto pelos assuntos abordados.

    Esses dois episódios finais pularam um trecho da história e encerraram-se sem explicar algumas coisas. Parece tudo jogado, mas não é. Algumas cenas são mostradas durante esses dois episódios, mas não fica claro como chegou àquilo. Tais explicações viriam depois com o filme The End of Evangelion, que é essencial para um entendimento mais completo, embora seja possível tirar uma conclusão da série.

    Esteja preparado antes de assistir a Evangelion. É uma série densa, complexa e que vai mexer com assuntos pesados. É aquele tipo de série que não termina depois do último episódio. Você ficará pensando nela por muito tempo, e se reassisti-la vai captar ainda mais coisas. Eu a vi quando tinha a idade do Shinji, e ao longo dos anos fui revendo mais algumas vezes, e posso dizer que é uma experiência fantástica. Diversas nuances passam batidas por um garoto de 14 anos, mas deixarão inquieta uma pessoa de 25 ou 30 anos. Assista, reflita, corra atrás de outras informações, opiniões, interpretações. Perguntas surgirão, mas respostas também. Um anime para ser degustado com calma, e cada vez terá um sabor diferente. Obrigatório.

    evaend

  • Resenha | Filho Dourado (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Resenha | Filho Dourado (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Filho Dourado - Pierce Brown - capa

    Lançado pela Globo Livros em agosto do ano passado, no selo Globo Alt, O Filho Dourado, de Pierce Brown, é a segunda parte da trilogia Red Rising, lançado pela editora após o primeiro volume, Fúria Vermelha, em 2014.

    Se no primeiro romance, Darrow estava se preparando para uma batalha futura, aprendendo sobre estratégia na Academia em Agea e enfrentando o medo de ser descoberto, em O Filho Dourado a personagem já está totalmente aculturada entre os Ouros, com um alto cargo de Pretor na família Augustus e colecionando sucessos na Escola de Guerra, enquanto ostenta a cicatriz de um Inigualável Maculado.

    Tudo é muito grandioso, as simulações de batalha espacial, os ambientes em que ele habita e sua rixa com a família de Cassius au Belona. Darrow não está mais se preparando para ser um guerreiro; ele é um guerreiro. Porém, há mais que sangue e vísceras em seu caminho. Ares e Dancer, os líderes da revolta que almeja destruir todo o modo de vida dessa sociedade dividida em cores, se calaram desde que Darrow saiu da academia, sem saber mais que diretrizes seguir após ter sobrevivido até então. Como se não bastasse a solidão de sua vida cheia de segredos, uma nova facção dos Filhos de Ares está realizando atentados terroristas e o faz questionar sua missão.

    Seus mais caros amigos estão em cantos longínquos do sistema, e seus inimigos perto demais. Virgínia (Mustang) não entende por que alguém que questionou a ordem social dentro da academia se aliou justamente a seu pai, o Governador de Marte, Nero au Augustus. O governador Nero é um símbolo de tudo o que Darrow questionou em seus tempos de academia. Agora que ganhou a sua marca de Inigualável Maculado, tornar-se Pretor de Augustus não parece o correto a fazer, mas para minar a sociedade por dentro Darrow necessita conquistar um lugar de destaque.

    Assim como no livro anterior, a narrativa tem grandes cenas de ação e momentos mais reflexivos, e é nestes momentos que o autor alcança sua excelência. Cada um dos personagens com mais destaque tem um discurso de impacto sobre a sociedade, todos coerentes com suas trajetórias e capazes de gerar reflexão no leitor sobre a realidade. Após participar de um desfile da vitória, Darrow nos presenteia com a seguinte reflexão: Tradição é a coroa do tirano. Olho todos os Ouros com seus distintivos e sinetes e estandartes, tudo isso sendo usado para legitimar um reinado corrupto e para alienar o povo. Para fazê-los sentir que assistem a um cortejo além da compreensão deles.

    O autor nos apresenta mais divisões e sub-divisões das castas representadas por cores, fazendo com que a sociedade retratada naquele universo se torne cada vez mais complexa. No livro anterior ficamos familiarizados com a estratégia de dominação utilizada para subjugar os vermelhos: competição interna e a promessa de que o seu sacrifício os fazia pioneiros na transformação de um planeta. Em O Filho Dourado conhecemos mais a fundo algumas castas e a estratégica de dominação utilizada com elas, entre as mais expressivas os azuis e os Obsidianos.

    Os Azuis são criados no que o protagonista chama de uma “seita que louva a racionalidade”. São cientistas com áreas de estudo tão específicas que se perdem em cálculos de probabilidades e estatísticas, e não parecem capazes de enxergar a sociedade e a maneira como são subjugados aos Ouros. Sem dúvida, uma crítica à formação que prioriza as Ciências Exatas em detrimento de qualquer reflexão social.

    Os Obsidianos são os soldados altamente especializados. Para controlar sua enorme força subjugada, os Ouros os isolaram nos pólos oferecendo-lhes uma vida de privações e uma religião que os proibia de pegar em armas contra eles, considerados deidades. Em contraste com os cientistas Azuis, que foram alienados com a estrita crença nas ciências e com uma vida confortável, os Obsidianos foram alienados em misticismo e miséria.

    Pierce Brown nos confunde um pouco ao descrever suas cenas de ação, porém as reflexões que o livro propõe são acertadas, e seus personagens são tão carismáticos que qualquer demérito do autor fica eclipsado pelo sucesso de nos envolver irremediavelmente na história que entrega.

    Mariana Guarilha é devota de George R. R. Martin, assiste a séries e filmes de maneira ininterrupta e vive entre o subconsciente e o real.

    Compre: Filho Dourado (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Pierce Brown

  • Resenha | O Despertar: Parte Dois

    Resenha | O Despertar: Parte Dois

    O Despertar - Parte 2 - VertigoAlém de uma mera estratégia editorial ao lançar uma publicação dividida em duas partes, a série da Vertigo criada por Scott Snyder e Bryan Murphy se desenvolve em dois momentos narrativos distintos, justificativa para que a revista, lançada originalmente em dez partes nos Estados Unidos, tenha sido publicada em dois compilados pela Panini Comics.

    Na sequência de O Despertar : Parte Um, a trama sofre um salto temporal de 200 anos, apresentando um futuro distópico em que as calotas polares foram destruídas pela ação das entidades do mar. Este novo cenário foi apresentado brevemente durante a primeira parte da história, focada, em grande parte, em um crescendo atmosférico de tensão e claustrofobia nas profundezas do mar.

    Neste novo cenário, as entidades se tornaram parte do cotidiano mundial. São objeto de caça devido ao seu próprio sangue, que provoca poderes alucinatórios nos humanos, bem como fragmentaram a sociedade em uma nova estrutura, incluindo aqueles que são favoráveis ao despertar destes seres, sendo postos à margem pela política. A nova personagem central, Leeward, é apresentada como um pária nesta nova sociedade e, à semelhança da dra. Lee Archer, captura um chamado das profundezas e decide investigá-lo.

    A abordagem nesta parte se difere da inicial: a trama desenvolvida em ambiente fechado cede espaço para uma aventura distópica que intenta apresentar uma nova sociedade. Duzentos anos após o surgimento dos sereios, tem-se a impressão que não houve nenhuma evolução científica aparente, ainda que tal afirmação seja questionável. Mesmo com o despertar destas personagens do mar, seria natural que, antes da queda total da humanidade, houvesse uma tentativa de descobrir quem elas são. A trama, ao menos, não demonstra essa possibilidade.

    O roteiro de Snyder desenvolve uma boa base desta sociedade distópica, ainda que não trace uma ponte de ligação aceitável com a história anterior. A teoria que surge para sustentar as entidades se demonstra simplista, sem nenhuma revelação além do óbvio elo perdido com os humanos. O bom suspense da primeira parte se contrapõe a cenas de ação comum neste segundo ato, em um cenário que não parece urgente como ocorreu com a descoberta dos sereios.

    Conforme caminha para o desfecho, a trama se enfraquece também ao apresentar novos personagens, demasiadamente comuns e apoiados em estereótipos. Tons que simplificam os bons contornos narrativos iniciais, entregando um final que nada tem de revelador, mas parecendo despreparado em relação à tônica da história, como se o roteiro se prolongasse em demasia em certas partes anteriores e, ao se deparar com poucas páginas para finalizar, escolhesse a saída mais fácil para um fim que fosse confortável aos leitores mas, ainda assim, permanecesse incompleto de explicações.

    Ainda que a ficção científica tenha fundamentado um bom argumento inicial, a trama se dilui diante de uma sequência de alternativas narrativas fáceis, repetindo histórias anteriores sem uma boa sustentação. A leitura flui até o término da edição, porém, não o suficiente para se destacar como uma boa história por completo.

    O Despertar - Parte 2 - 01

  • Resenha | Fúria Vermelha (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Resenha | Fúria Vermelha (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Furia Vermelha - capa - Globo Livros

    Tenho um caso sério de amor com as distopias clássicas e, na esperança de encontrar um material que faça jus a elas, tenho me aventurado em muitas das distopias adolescentes que tem feito sucesso. Fúria Vermelha tem muito em comum com elas, porém é muito mais complexa ao se aprofundar sem medo nas reflexões sociais que propõe.

    Pierce Brown, em seu livro de estréia, constrói um cenário crível, detalhando uma sociedade organizada em castas e que coloca a conquista espacial como objetivo maior. O livro que inaugura a trilogia Red Rising, começa nos apresentando os Vermelhos, casta responsável pelo duro trabalho de tornar Marte habitável. Eles são a base da pirâmide social vivendo provações em que as crianças amadurecem cedo.

    Darrow, o protagonista, tem apenas 16 anos, mas já é um homem casado e ocupa posição de destaque na sociedade por ser um “mergulhador do inferno”, elite entre os mineradores, já que sua posição exige destreza e coragem. Seu recorte da sociedade é dividido em tribos, sendo a sua chamada Lykos. A ambição maior da tribo de Lykos é conquistar a láurea, prêmio delegado à tribo que mais extrair minério, e que concede comida extra e alguns parcos luxos a seus ganhadores. Há muito Lykos não a conquista, perdendo sempre para os Gama.

    Ao contrário de Darrow, que só vê se foca no objetivo imediato de ganhar a láurea para melhorar a vida de sua família, Eo, sua esposa, questiona toda a organização social em que estão inseridos. Ela quer que seus filhos ainda não nascidos sejam capazes de escolher o tipo de vida que almejam, e tenham ambições maiores do que se tornar um “mergulhador do inferno” ou conquistar a láurea.

    Além dos vermelhos, que são responsáveis pela mineração, limpeza das cidades e outras atividades consideradas indignas, o livro nos apresenta algumas outras castas:

    • Os ouros: elite da raça humana, e soberana que governa e comanda a expansão do império espacial.
    • Os pratas: responsável pela polícia e cargos menores no exército (chamados carinhosamente pelo protagonista de latões).
    • Os bronzes: burocratas.
    • Obsidianos: raça criada especialmente para a guerra, soldados com físico impressionante, porém meros peões.
    • Azuis: responsáveis pela tecnologia, descritos como criados em uma seita que ensina a lógica que torna-os mais computadores que homens.
    • Verdes: médicos.
    • Violetas: artistas e entalhadores (manipuladores genéticos e cirurgiões plásticos), o que também é considerado uma forma de arte.
    • Rosas: humanos treinados e perfeitamente adaptados para a prostituição.
    • Marrons: responsáveis pelos serviços domésticos em geral.

    Dentro de cada casta há diversas graduações, e suas próprias tensões sociais.  Você pode ascender dentro de sua própria casta, porém não há mobilidade social fora delas. Essa característica acaba fazendo com que as pessoas estejam mais interessadas em lutar contra seu vizinho do que questionar seus governadores.

    Em seu livro de estreia, Pierce Brown, formado em Economia e Ciências Políticas, não poupa esforços pra incluir em sua narrativa reflexões sociais profundas. Sua obra é um tanto descritiva, nos entregando de graça informações que poderiam ser mais bem apresentadas se ele apenas nos mostrasse através do desenvolvimento da trama. Apesar de isso causar incômodo, sua escrita é leve e de fácil absorção. Incomoda o modo como o autor faz uso da narração em primeira pessoa, visto que o narrador é o protagonista, mas conta sua história de forma tão distanciada e com tantas informações sobre o que não está em seu entorno imediato que me questiono: por que não fazer uso da terceira pessoa?

    Normalmente não me atenho muito a esses detalhes, mas outro demérito foi a diagramação escolhida para o livro. A fonte pequena e de contornos tênues foi um desafio para meu astigmatismo e várias vezes me fez deixar o livro muito antes do que gostaria.

    Mariana Guarilha é devota de George R. R. Martin, assiste a séries e filmes de maneira ininterrupta e vive entre o subconsciente e o real. 

    Compre: Fúria Vermelha (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Pierce Brown

  • Crítica | Ex-Machina: Instinto Artificial

    Crítica | Ex-Machina: Instinto Artificial

    Ex Machina - Poster

    “Life perpetuates itself through diversity and this includes the ability to sacrifice itself when necessary. Cells repeat the process of degeneration and regeneration until one day they die, obliterating an entire set of memory and information. Only genes remain. Why continually repeat this cycle? Simply to survive by avoiding the weaknesses of an unchanging system.” (Puppet Master)

    O diálogo acima referenciado ocorre quando Puppet Master, ao encontro de Major Kusanagi, nos faz refletir sobre o conceito de vida e, principalmente, o que é estar vivo. Essa é uma das grandes questões levantadas em Ghost in the Shell (1996) – filme a que pertence o diálogo acima referenciado -, Blade Runner (1982) e em diversos outros trabalhos cinematográficos e literários de ficção científica ao longo da história. Mais uma vez, é hora de revisitar tão importante e histórico questionamento, mas dessa vez essa questão nos é posta em Ex Machina (2015), filme dirigido por Alex Garland (roteirista de filmes como Dredd e Extermínio).

    O cenário para a história se passa em um futuro próximo. O jovem programador Caleb Smith (Domhnall Gleeson) é selecionado para participar de uma visita de uma semana à casa do CEO da empresa que trabalha, Nathan Bateman (Oscar Isaac), uma das maiores empresas de tecnologia do mundo. Vivendo em uma casa isolada nas montanhas, Nathan convida Caleb a participar de um experimento diferente: Caleb teria que aplicar um teste de Turing em uma androide desenvolvida por Nathan, Ava (Alicia Vikander) com intuito de determinar se a inteligência artificial de Ava pode ser comparada (ou se é melhor) à de um humano.

    Nathan é um gênio alcoólatra e recluso. Caleb é um jovem inteligente e ingênuo. Ava é uma androide. Basicamente esses três personagens sustentam sozinhos todo o filme em um ambiente claustrofóbico, onde o silêncio dos personagens reverbera em seus pensamentos. Quem mais sofre com isso é Caleb, pois quanto mais se aproxima de Ava, mais ele começa a duvidar sobre si mesmo e o mundo à sua volta. Afinal, o que é estar vivo?

    A atuação de Alicia Vikander é visceral à medida que confere profundidade em sua personagem androide.Vikander é sutil e cria uma linha tênue para Nathan, Caleb e todos os espectadores ao refletir sobre a condição de Ava. Ao mesmo tempo que ela claramente não é humana, sua representação do medo, sonhos e esperanças são precisos e praticamente naturais. Nathan e Caleb são brilhantes e carismáticos, com personalidades profundas e interessantes, mas ainda assim não tão profundos quanto Ava, que nos faz ficar inquietos e ansiosos com suas nuances de personalidade.

    Ex Machina não pode ser considerado um thriller de ficção científica mainstream. Muito pelo contrário, é um filme reflexivo e provocante do começo ao final. A mistura de liveaction e CGI, a trilha sonora inquietante e a fotografia impecável fazem com que seja um filme importante na ficção científica contemporânea.

    Sua conclusão acompanha perfeitamente o compasso de toda a obra. Toda a informação que acumulamos em uma vida é apenas uma gota em um oceano de informação, de modo que, talvez, uma criatura que consiga coletar mais informação e guardar por mais tempo possa ser considerada mais do que humana? Ainda nos inquietamos com esses questionamentos e continuaremos a nos inquietar se dependermos de ficções científicas tão excelentes como Ex Machina.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.

  • Crítica | O Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas

    Crítica | O Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas

    Exterminador III 1

    O Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas procura repetir os projetos anteriores ao iniciar-se com uma narração de um novo John Connor, vivido pelo feio ator Nick Stahl, andando pelas estradas em uma moto, ao modo de Edward Furlong. Sua desolação é notada tanto pela ausência de sua mãe quanto pela desconfiança em todo o cenário, que aparenta tranquilidade. Para o ex-futuro salvador do mundo, as histórias que o fizeram crescer ainda servem como premonição, e não são mais pesadelo indiscriminados.

    O nomadismo de John serve também como referência ao posto da cadeira de diretor da franquia, executada por Jonathan Mostow, bem como a péssima construção vilanesca da personagem de Kristanna Loken, T-X, que mostra-se primeiro com sensualidade extrema e, depois, desdenha de figuras estereotípicas femininas, tanto do arquétipo da moda, quanto da mulher preocupada com a outra. A análise abarca essa terrível problemática, que pode ser encarada como misógina, mas que é aplacada pelo fato de ser este um vilão. Além disso, um foco importante é dado na figura de Kate Brewster (Claire Danes), uma misteriosa mulher que teria uma parte importante na trama de O Exterminador do Futuro 3.

    As duas figuras heroicas do filmes são expostas de modo confuso. John Connor é um sujeito maltrapilho, que não inspira confiança e que se medica com medicamentos veterinários; já o Exterminador age de modo diferente, se aproximando nu de um clube das mulheres.

    É engraçado o modo como o roteiro trata John: um homem adulto, assustado, enjaulado diante da paranoia herdada de sua mãe, que destruiu por completo sua autoestima e o deixou à mercê da bondade de uma mulher pseudo desconhecida. Qualquer boa intenção em retratar o stress pós-trauma vai por água abaixo diante das cenas repetidas que sequer se aproximam do impacto dos primeiros filmes, bem como a construção  fraca tanto das cenas de ação quanto da figura do vilão.

    Mesmo o action hero parece cansado. Arnold Schwarzenegger aparenta fadiga física e psicológica, enfadado com o gênero de filmes que o tornaria famoso o suficiente para candidatar-se ao cargo de governador da Califórnia. O primeiro momento de leve inspiração de sua personagem se dá aproximadamente aos 40 minutos de filme, quando ele revela que o Dia do Julgamento Final só foi adiado, e não evitado.

    O caixão que o Exterminador usa para conter seu protegido é simbólico ao extremo, por homenagear o fim temporário que teria a franquia, relegada ao esquecimento graças ao fracasso do filme. A partir de 2003, a saga se bifurcaria, sendo levada para um seriado ruim, um spin off e uma continuação tosca, ambos de cabeças pensantes completamente diferentes. Uma esquizofrenia gigante por parte dos produtores, mais confusa que a formação poli mimética do vilão da fita.

    O final dos dois exterminadores é completamente anticlimático, com a corrupção do ethos do herói que antes se redimiu. A brincadeira envolve a necessidade de T-800 em variar de lado, não se esquecendo de suas origens enquanto ativista pró-máquinas, um conceito válido e interessante, mal executado ao extremo.

    Apesar de todos os tropeços ocorridos durante os  quase 105 minutos de filme, o final, fundamentado nos fracos personagens, serve de alento, já que é a prova cabal de que não importa o quanto tente se mudar o destino; o mesmo segue inexorável. A inevitabilidade da destruição humana viria através de sua própria arrogância, mesmo que o argumento usado seja fundamentado no complexo de  Frankenstein. Ainda assim, entrega-se muito pouco do que foi prometido para esta continuação, resultando em um filme pífio, que não provoca entusiasmo em qualquer fã da franquia.