Tag: cinema britânico

  • Crítica | Ex-Machina: Instinto Artificial

    Crítica | Ex-Machina: Instinto Artificial

    Ex Machina - Poster

    “Life perpetuates itself through diversity and this includes the ability to sacrifice itself when necessary. Cells repeat the process of degeneration and regeneration until one day they die, obliterating an entire set of memory and information. Only genes remain. Why continually repeat this cycle? Simply to survive by avoiding the weaknesses of an unchanging system.” (Puppet Master)

    O diálogo acima referenciado ocorre quando Puppet Master, ao encontro de Major Kusanagi, nos faz refletir sobre o conceito de vida e, principalmente, o que é estar vivo. Essa é uma das grandes questões levantadas em Ghost in the Shell (1996) – filme a que pertence o diálogo acima referenciado -, Blade Runner (1982) e em diversos outros trabalhos cinematográficos e literários de ficção científica ao longo da história. Mais uma vez, é hora de revisitar tão importante e histórico questionamento, mas dessa vez essa questão nos é posta em Ex Machina (2015), filme dirigido por Alex Garland (roteirista de filmes como Dredd e Extermínio).

    O cenário para a história se passa em um futuro próximo. O jovem programador Caleb Smith (Domhnall Gleeson) é selecionado para participar de uma visita de uma semana à casa do CEO da empresa que trabalha, Nathan Bateman (Oscar Isaac), uma das maiores empresas de tecnologia do mundo. Vivendo em uma casa isolada nas montanhas, Nathan convida Caleb a participar de um experimento diferente: Caleb teria que aplicar um teste de Turing em uma androide desenvolvida por Nathan, Ava (Alicia Vikander) com intuito de determinar se a inteligência artificial de Ava pode ser comparada (ou se é melhor) à de um humano.

    Nathan é um gênio alcoólatra e recluso. Caleb é um jovem inteligente e ingênuo. Ava é uma androide. Basicamente esses três personagens sustentam sozinhos todo o filme em um ambiente claustrofóbico, onde o silêncio dos personagens reverbera em seus pensamentos. Quem mais sofre com isso é Caleb, pois quanto mais se aproxima de Ava, mais ele começa a duvidar sobre si mesmo e o mundo à sua volta. Afinal, o que é estar vivo?

    A atuação de Alicia Vikander é visceral à medida que confere profundidade em sua personagem androide.Vikander é sutil e cria uma linha tênue para Nathan, Caleb e todos os espectadores ao refletir sobre a condição de Ava. Ao mesmo tempo que ela claramente não é humana, sua representação do medo, sonhos e esperanças são precisos e praticamente naturais. Nathan e Caleb são brilhantes e carismáticos, com personalidades profundas e interessantes, mas ainda assim não tão profundos quanto Ava, que nos faz ficar inquietos e ansiosos com suas nuances de personalidade.

    Ex Machina não pode ser considerado um thriller de ficção científica mainstream. Muito pelo contrário, é um filme reflexivo e provocante do começo ao final. A mistura de liveaction e CGI, a trilha sonora inquietante e a fotografia impecável fazem com que seja um filme importante na ficção científica contemporânea.

    Sua conclusão acompanha perfeitamente o compasso de toda a obra. Toda a informação que acumulamos em uma vida é apenas uma gota em um oceano de informação, de modo que, talvez, uma criatura que consiga coletar mais informação e guardar por mais tempo possa ser considerada mais do que humana? Ainda nos inquietamos com esses questionamentos e continuaremos a nos inquietar se dependermos de ficções científicas tão excelentes como Ex Machina.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.

  • Crítica | God Help The Girl

    Crítica | God Help The Girl

    God-Help-the-Girl

    Baseado num álbum produzido, escrito e composto por Stuart Murdoch (Belle e Sebastian) em junho de 2009, God Help the Girl é um daqueles musicais que trazem um escopo sonoro próprio, detalhe que ajuda significativamente em criar uma identidade para a produção. O filme não tem o esmero na coreografia que os clássicos de Hollywood têm, nem é adaptação de peça da Broadway, mas encontra seu caminho engatinhando entre elementos que compõem essas dois aspectos. O Carisma e o visual de Emily Browing nas performances dão o clima IndiePop da produção.

    Produzido via crowdfunding no Kickstarter e lançado em 2014, o filme inicia com uma conversa entre duas pessoas sobre música. Você não sabe exatamente do que se trata, até que o escuro desaparece e percebemos que é um rádio tocando, daí sim esse musical abre com uma bela música interpretada pela belíssima Eve (Emily Browing) que parece estar fugindo de algum lugar à surdina. Ela encontra James (Olly Alexander), um músico amador que dá abrigo para a garota que passa mal durante um show em Glasgow. Mais tarde esses dois se juntam a Cassie (Hannah Murray), para quem James dá aulas de música e formam uma banda, ou algo que você pode relacionar com uma banda.

    As primeiras músicas dizem mais sobre o progresso da história do que os diálogos expositores entre os personagens. Podemos sentir que até certo ponto cada uma delas é maior que a outra, como se estivéssemos ouvindo uma única corda e acrescentando as outras progressivamente. Elas falam unicamente de Eve, que a todo o momento é o centro da história. Existe uma fragilidade na personagem que vemos em maior ênfase em uma das cenas, porém a escalação de Browing para o papel deixa essa característica muito mais acentuada nos olhares, gestos e na maneira que algumas vezes ela é sempre filmada acentuando a sua altura, que é visivelmente menor em relação a qualquer outro ator no filme. Ela em si é tão fantástica que não parece existir. Convida-se a vida de James e Cassie como um catalizador de um desejo comum entre eles; fazer música. E é nessa tomada que vemos como as faixas e a forma como as cenas musicais são dirigidas passam a crescer, tudo ali é surreal mesmo com o pé no chão. Os instrumentos á mais aparecem do nada e os cortes ficam mais livres para dar espaço para coreografias simples e divertidas entre eles.

    A história proposta pela produção é muito simples, brinca com alguns clichês românticos entre as cenas, além de envolvê-la em algo juvenil pela ausência de figuras de autoridade ou paternas para guiar os protagonistas. Eles mesmos fazem seu caminho e tomam decisões. Como um dos personagens mesmo diz o filme parece “ser algo bem pretensioso, mas um bom pretensioso”. Existe uma discussão ao final sobre o que é fazer algo simplesmente por diversão e o que acontece quando uma das pessoas acaba levando tudo a sério demais. Em parte ela sustenta o filme todo levando em consideração que o próprio Murdoch provavelmente não irá dirigir mais nada depois disso, fazendo God Help The Girl parecer um sonho especial:  doce, agradável, e que deixa sua trilha ecoar nos ouvidos.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | Rainha e País

    Crítica | Rainha e País

    Rainhas e Pais - poster - Paris Filmes

    A indústria cinematográfica britânica possuí características bem peculiares que a fazem distintas de outros países quando há coproduções, por exemplo. O lado cômico mais leve e mais crítico; as ponderações e retratações de épocas que remetem ao patriotismo e amor à realeza e à nação, no entanto, sempre deixando em evidência o comportamento das pessoas e suas funcionalidades perante o ambiente destacado no tempo, historicamente ou não.

    Em Rainha e País, filme de John Boorman (Excalibur e Esperança e Glória), vemos a história do jovem Bill Rohan, que cresceu em uma pequena ilha, afastada das grandes cidades mas sem, consequentemente, ficar livre das interferências que o mundo em plena eferverscência de guerra poderia causar. Com sede em entrar para o exército e alimentar a linhagem bélica de sua família, ao completar 18 anos, Bill é convocado para o exército para a guerra das coreias, no qual E.U.A e Reino Unido apoiaram o país do sul enquanto o lado norte da divisão recebia o suporte de países socialistas/comunistas – isso ainda era bem aplicável na época – como União Soviética e China.

    O filme faz algumas mesclas e não deixa transparecer exatamente sua proposta. Se é um romance que tem como pano de fundo a guerra, no qual o soldado se apaixona, vai para a guerra e assim mostra os melindres clichês que a história continuará acerca; se é uma sátira às guerras e ao patriotismo exagerado e como esses ambientes podem desviar e alterar as mentalidades e os comportamentos de quem está vivenciando tudo isto ou se, no final das contas, é só mais um drama sobre amizades, confiança e identificação. Essa contínua troca de gêneros durante as quase duas horas poderiam confundir o telespectador, mas creio que o filme não sofre este impacto e fica até um pouco fácil de ser absorvido na mudança do segundo para o terceiro ato.

    A identificação e o carisma com o personagem esquisito e inescrupuloso (Percy) acontece bem e toda as cenas e o lado cômico giram em torno dele e do soldado Redmood (Pat Shortt). Mesmo que estereotipando o humor cínico e desajeitado, como um Mr. Bean, isso não aparenta um exagero ou excesso de carisma pelo personagem. A história tem um enredo bem simples, mesmo com um leve criticismo às visões do nacionalismo/patriotismo e também à rigidez do alto comando. Fizeram bem ao não dosar demais o romance e as cenas sentimentais, uma via não muito utilizada na obra.

    A adesão à amizade, às traições e à convivência com ambientações hostis são um norte sucinto e trabalhado de maneira honesta, com esses escapes mais cômicos e descontraídos que permeiam a história e os personagens. A relação entre eles são a base e com isso o filme caminha bem. Há deslizes, exageros e um pouco de desleixo em quesitos mais técnicos, como a fotografia e uso de trilha sonora. Às vezes os personagens ficaram abobados em demasia, mas nada que não saia da caracterização do cinema inglês. É interessante como o filme parece entregar algo e surpreende quando não faz. Poderia ser duramente criticado, mas soube usar outros braços e referências a outros gêneros e estilos de condução do enredo. Porém, ainda assim não conseguiu ousar o bastante para sair da categoria de lugar-comum e da padronização linguística.

    Texto de autoria de  Adolfo Molina Neto.

  • Crítica | Frank

    Crítica | Frank

    Frank - Poster

    O romance O Homem Que Encarava Cabras, de Jon Ronson, demonstrava o gosto do autor pelo bizarro como vertente narrativa de suas histórias. Mais do que apreço a um estilo de escrita, Ronson viveu momentos peculiares ao ser integrante de uma banda que tinha como líder um homem com uma cabeça de papel machê. Com base nos escritos do próprio autor sobre este período, ao lado do roteirista Peter Straughan (O Espião Que Sabia Demais), o diretor Lenny Abrahamson lança este estranho filme de humor negro sobre a criatividade na arte.

    A história de Frank (Michael Fassbender) se baseia no alterego de Chris Sievey, um comediante britânico de meados de 70, criador deste personagem que aparecia em programas televisivos com a cabeça de papel machê e pelo qual conquistou aura cult ao realizar uma turnê com um show cômico que se dividia entre stand-up e performances musicais. Como diversos produtos artísticos baseados em fatos reais, o filme modificou a estrutura da personagem, transformando-a em um símbolo do bizarro, desassociando-a da biografia de Sievey, como se ganhasse vida própria.

    O narrador da história é Jon Burroughs (Domhnall Gleeson), um músico-compositor à procura de seu estilo próprio. Caminhando pela ruas da cidade, observa a população com esperança de encontrar a fagulha para compor um grande hit de sucesso. Em seu ponto de vista, a inspiração vinha de atos mundanos, e ele, diariamente, trabalha neste exercício de observação. A oportunidade de participar de uma banda surge literalmente à sua frente ao presenciar a tentativa de suicídio do tecladista da banda The Soronprfbs, oferecendo-se para o posto vago enquanto o tecladista oficial está em observação e repouso em um hospital.

    O líder da banda, Frank, é um homem com um passado desconhecido que se esconde dentro de uma grande cabeça feita de papel machê. Com documentos que lhe dão autorização legal para usá-la, a personagem se sente desconfortável com rostos humanos e escolhe uma aparência fixa – uma máscara que não retira nem mesmo ao tomar banho – para ser observado pelo mundo. O jovem tecladista sofre um breve estranhamento diante deste homem diferente, mas reconhece que por baixo da cabeça falsa, existe um artista verdadeiro e muito inspirado.

    Frank representa o artista extremamente excêntrico que acredita na música como fruição vinda de qualquer local. Sua banda é intencionalmente alternativa, produzindo um som próximo do noise rock com distorções exageradas, e um teremim que dá maior intensidade caótica à melodia. Nos vocais, as letras beiram o non sense, com frases poéticas misturadas a descrições e palavras não usuais da língua. É sua liderança que guia a banda e promove verdadeiros rituais de composição musical.

    Enquanto a banda permanece em local isolado para gravar um novo disco, o músico produz um diário eletrônico sobre o dia a dia com os colegas, e publica diversas gravações dos ensaios e dos malucos rituais de liberação inspiracional. Consequentemente, a banda e Frank se tornam populares na rede e são convidados a participar de um festival nos Estados Unidos.

    Se Frank apresenta o que há de mais estranho em uma personalidade, Burroughs deseja levar a banda a um novo patamar pop com canções acessíveis que lhe trariam um sucesso maior. Uma mudança estrutural suficiente para gerar atrito entre a equipe que considera o som experimental o ápice da musicalidade. Os problemas internos são frutos de objetivos diferentes de cada um, e Frank aceita as mudanças por conta da simpatia que tem pelo novo tecladista. De maneira passiva, o líder de cabeça de papel machê vai cedendo aos desejos musicais do garoto e vendo a banda implodir lentamente.

    O bizarro é tratado com naturalidade pelas personagens, mas causa estranhamento no público. Mesmo baseando-se parcialmente em uma história real, é a diferença extrema entre a costumeira realidade que nos faz refletir sobre a mensagem da obra. Um diálogo que usa o estranho como meio de demonstrar a impossibilidade de definir o que é o artístico, já que não há códigos de conduta ou vestimenta que automaticamente produzam bons artistas. A figura de Frank é carregada de um mistério que o público deseja descobrir para compreender suas motivações.

    O estranho se revela com maior fragilidade do que se pressupõe inicialmente. Aumenta a ambiguidade da personalidade forte enquanto usa a máscara, mas delicada quando humana. Uma história que transita em extremos para se revelar mais sutil do que parece e, pelo exagero cênico, ser capaz de se diferenciar de tantas outras obras recentes que se articulam sob a arte e a composição artística.

  • Crítica | Uma Vida Simples

    Crítica | Uma Vida Simples

    still life

    Em um tour pelos enterros esvaziados, nota-se o emprego curioso do senhor John May. Um inventariante de pessoas que morreram sozinhas, à procura dos parentes próximos daqueles que tiveram um fim solitário. A impressão de que a tônica é agridoce se conclui em menos de dez minutos de cena. A rotina pessoal do personagem de Eddie Marsan é tão insossa e meticulosa quanto o modus operandi de seu trabalho. Tudo em sua vida é milimetricamente calculado e ele tem métodos normativos até para o estresse diário.

    Apesar de May cuidar de pessoas e da solidão todos os dias, ele permanece austero, distante, como se inserido em uma redoma que visa impedi-lo de sentir qualquer emoção pela comiseração alheia. Enquanto apela aos que podem auxiliá-lo, John é convincente, sanguíneo e se envolve na história à qual está encarregado. Ainda assim, se lacra em roupas que o impedem de se contaminar com a vida alheia. Seu esmero é algo único e o modo de operar o faz muito singular. Tudo vai bem, até que seus superiores mudam e May é considerado demasiado lento e, apesar de ser meticuloso, é mandado embora.

    A nova rotina do protagonista é em um serviço comum, em um estabelecimento comercial. Porém, sua mente ainda o obriga a agir lentamente até na hora de se vestir. Com um serviço generalizado e padrão, acha que suas funções serão poucas, ao contrário do faz tudo que usualmente se exerce nestes lugares. A oportunidade de mergulhar na rotina de um sujeito ordinário passa por John, mas ele permanece distanciado, agarrando a primeira oportunidade de voltar ao trabalho anterior, mesmo que sem receber por isso.

    A introspecção esconde uma empatia imensa, além de um interesse genuíno em exercer seu trabalho. Talvez seja pela crença em um destino ou qualquer designação prévia, ou só porque May não sabe fazer outra coisa. Movido pela saída forçada, a atitude de manter-se distante é quebrada. A nostalgia o faz presenciar sensações ainda mais catastróficas dos que as vividas. Mesmo não demonstrando, seu drama pessoal é real e notam-se pequenas mudanças que expressam desagrado, ainda que tais impulsos não sejam óbvios.

    A história de vida de John muda quando se envolve com a filha de seu último cliente. Ao pesquisar o drama do pai da moça, finalmente sente algo e, sem o costume de tais sensações, transita de um polo a outro do sentimento humano: sente vontade de dar fim a própria vida para, logo depois, abrir mão das vestes pretas, típicas dos momentos fúnebres, e finalmente ter sentimentos por alguém ainda em vida.

    Sua existência é interrompida por um fatídico acontecimento e, em seu enterro, não há a presença de nenhuma alma viva, a despeito de todo esforço em trazer conforto a família dos que se foram. Quem presencia o seu funeral são seus iguais, aqueles a quem dedicou os seus 44 anos de vida e que saíram de seu descanso eterno a fim de homenagear quem tanto se importou com suas causas. Apesar de um final sem uma redenção concluída – por falta de tempo ou talvez omissão, isso é discutível – a carga emocional do filme de Uberto Pasolini é altíssima, e a abordagem é tocante em todos os sentidos.