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  • Resenha | Y: O Último Homem – Volume 5

    Resenha | Y: O Último Homem – Volume 5

    Não há tempo a perder: o final é aqui. Yorick, seu macaco Ampe e a agente 355 precisam sair do Japão, e viajar até a China, antes que a Dra. Mann, mestre em clonagem e sequestrada, seja assassinada por inimigos ainda desconhecidos. No penúltimo arco da série, Pátria-Mãe, uma organização quer manter erradicada a existência dos homens ao acabar com os planos de clonagem da doutora, antes que hajam milhares de Yoricks povoando a Terra, e se reproduzindo à solta num mundo de mulheres. Agora, Y – O Último Homem, do selo adulto Vertigo da DC Comics, chega no auge da ação, descortinando todo o suspense tão bem arquitetado até então, em combates tanto físicos quanto dramáticos. Nenhum personagem, mesmo em situações limites, faz-se herói ou vilões, senão perdedores e vencedores de suas próprias causas, um tanto desesperadas. E não é assim mesmo no mundo real?

    Em Não Há Causa Sem Porquê, a narrativa segue, como sempre, fragmentada no presente e passado, a fim de nos embasar sobre as raízes, e ímpetos das figuras que aprendemos a gostar, acompanhando-as em sua odisseia coletiva em tempos sem lei, e de absoluta desvalorização da vida humana. Mas é nesse último arco em que fica estipulado, mesmo, o quanto a série de Brian K. Vaughan e da ilustradora Pia Guerra, publicada com êxito estético em 10 partes pela Panini, no Brasil, conseguiu naturalizar o desenvolvimento de suas subtramas tramas, mas é incapaz aqui, em seus momentos derradeiros, de dar um desfecho grandioso ou sequer equivalente ao bom gosto, e a força principal do enredo que veio antes. Deixamos até de sentir o peso de Yorick em ser o último do seu gênero, e ter sua cabeça posta a prêmio.

    Assim, o final de Y – O Último Homem não poderia ser mais agridoce, para muitos. Ao dividir a opinião dos leitores, a história se esquiva tanto em sanar as nossas expectativas, quanto em explicações racionais sobre a grande problemática da história: a extinção enigmática dos homens. De propósito, Vaughan idealiza duas opções plausíveis, e nos torna aptos a acreditar em dois possíveis motivos para o extermínio dos animais masculinos, bípedes ou quadrúpedes, na face da Terra. Nunca de fato sabemos a grande causa (se houver apenas uma), mas isso não importa: o alvo da novela gráfica sempre foi outro, e apenas nos seus finalmentes temos a certeza disso. A jornada portanto não busca por respostas, e sim o retrato do que a humanidade ganha e perde em tempos caóticos. Que Y fez história de 2002 a 2008, chega a ser indiscutível. Uma publicação vital para qualquer leitor casual de HQ’s – quanto mais aos colecionadores.

  • Resenha | Y: O Último Homem – Volume 4

    Resenha | Y: O Último Homem – Volume 4

    Para Yorick, O Último Homem, a pergunta acaba sendo sempre a mesma: o que sobra em ti, quando tudo é adversidade? Ele, o último, a vagar por ai, num mundo que não é mais dos homens, cármico ao que sobrou do gênero. Uma Terra de mulheres, que nunca parecem se acertar igual no tempo dos machos, na máxima ironia dessas utopias. A raça humana é errada nascendo ruim ou não, e Yorick, andando junto da Dra. Mann e sua amiga, a agente do governo 355, e viajam por entre seus cacos rumo a respostas. Entre suas leis que já não existem mais. Seu sistema, em chamas, e suas memórias, mais vivas do que eles mesmos. Brian K .Vaughan e Pia Guerra criaram uma saga épica das HQ’s que exclama questões filosóficas muito além da ação e das reviravoltas, sempre pontuais em todos os volumes. O que verte quando estamos totalmente livres? Para muitos, a barbárie, e para outros, a solidão.

    E engana-se quem acha que não há barbárie nos pequenos abusos entre as pessoas. Aqui, a jornalista Paloma West ouve os boatos de que um fóssil, ou melhor, um homem desembarcou na Austrália, e não mede esforços para chegar até ele, e garantir o furo jornalístico do ano! A ambição (e inteligência) de Paloma é desmedida, e nem com a ajuda de suas amigas Yorick tem a mínima chance de manter o anonimato. Assim, mesmo mais longo na duração do que poderia ser (eis um dilema na maioria dos volumes da série), o arco Bonecas de Papel discursa habilmente o papel construtivo e quiçá destruidor da mídia nas nossas vidas, e o preço que o ser humano paga por ser um animal social – para o bem, e para o mal. Em meio ao caos e a perseguição, e sem ousar confiar em ninguém, Yorick não desiste de viajar para o Japão, a fim de encontrar o seu macaco raptado, Ampe, antes que seja tarde demais para recuperar o símio que, muito provável, é a chave imunológica à sua sobrevivência.

    Mas é no Japão que a coisa pega, e sem ver a quem. Muitos mistérios já começam a ser revelados ao indicar os possíveis desfechos da trama – a narrativa de Vaughan reconhece os momentos perfeitos para desvendar os enigmas construídos pouco a pouco, e o leitor certamente agradece pelo nível da escrita. No arco Dragões de Quimono, as máscaras caem e traidores se expõem, subjugando os desavisados num terrível hotel de Tóquio, repleto de assassinos e mafiosos. O suspense aqui é pesado, rendendo momentos decisivos de pura tensão, redenção e até mesmo horror, para talvez Ampe voltar aos braços do dono – nada mais será normal após esta viagem. E o caminho para o fim já está traçado. Curioso notar como a evolução de Y – O Último Homem se dá, em todas as vertentes da revista, concebendo uma realidade e seus habitantes em constante transformação. A Terra sem homens é tridimensional, sai das páginas e se torna crível nas nossas mentes e corações, enquanto a natureza externa faz, o que ela deve fazer: ficar alheia ao Homem. É nós, por nós mesmos.

  • Resenha | Y: O Último Homem – Volume 3

    Resenha | Y: O Último Homem – Volume 3

    “[…] Deus não nos escolheu.”

    E a religião depois do apocalipse? Ainda vale acreditar em salvação se você ficou pra trás? Aparentemente, o popular lema do Chapolim Colorado, célebre criação de Roberto Gómez Bolaños, vive uma crise de fé no dia seguinte ao arrebatamento individual – e em Y – O Último Homem, isso não poderia ser diferente. Sob a premissa do único representante masculino vivendo em meio a bilhões de mulheres, crenças antigas (católicas, muçulmanas) parecem estar ultrapassadas agora, com um simbolismo contestado pela revolta e a confusão das pessoas. Em tempos assim, o sagrado perde o peso e cede brilho ao ceticismo, ao carma, uma vez que o inferno está na Terra e não há mais nada para nos salvar de nós mesmos. Neste terceiro volume da saga, Deus está morto dentro ou fora da igreja. Sobrou a sobrevivência e, se bobear, a barbárie.

    É curioso como a publicação da Panini trata o fatalismo, no geral, como combustível para valorizar a vida, e as relações humanas. Agora que todos finalmente chegaram ao laboratório da Dr. Mann, para tentar encontrar a cura a extinção dos homens (não como raça, e sim o gênero), nada é mais precioso que as amizades e os laços das pessoas. Yorick, o último, já fala com Mann e a agente 355, designada pelo governo dos EUA para protegê-lo, como se os três fossem irmãos. Graças ao talento e ao timing criativo de Brian K. Vaughan, essa evolução das personagens é muito bem-sucedida na série, sempre apostando no drama e na ação para pautar a naturalidade das histórias, e manter o ritmo narrativo hipnotizante em O Anel da Verdade. Aqui, ficamos sabendo que pode ter sido um reles anel de mágico que Yorick usava pendurado no pescoço que pode ter evitado a sua morte, por alguma razão desconhecida, até que o seu macaco de estimação, Ampe, parece ser a chave real da preciosa imunidade dele.

    Sem limitar-se a provocações blasfêmicas, ou a explicações baratas que poderiam desmistificar os mistérios principais de Y – O Último Homem, esse acordo extermina qualquer noção de conforto na trama, e atira Yorick e suas grandes amigas numa perseguição para recuperar Ampe, pois outros já haviam descoberto o valor do macaquinho bem antes deles. Apesar do leve excesso de páginas que apresenta, O Anel da Verdade é o ponto de virada necessária na saga, bem antes de Menina com Menina, em que nossos “heróis” (várias aspas, por favor) se veem como forasteiros num navio rumo ao Japão, rumo ao salvador primata – por mais que ele não seja visto com essa aura imaculada, seja porque as religiões ficaram inúteis, ou porque é difícil enxergar o sagrado num animal que atira cocô em qualquer um, exceto no dono, Yorick. Questões como traição, memórias afetivas e, finalmente, lesbianismo são ilustradas com exuberância nos traços realistas de Pia Guerra, o que resulta em belos painéis coloridos e ótimas cenas – as lembranças de Yorick com sua eterna ex-namorada, Beth. Viva, talvez? Mas aonde?

    De frágil, o amor de verdade não tem nada. E essa, por incrível que pareça, é a mensagem mais forte da série.

  • Resenha | Y: O Último Homem – Volume 2

    Resenha | Y: O Último Homem – Volume 2

    “Você e eu, parceiro: à deriva num oceano de estrogênio.”

    Toda barba será castigada – ou, no mínimo, perseguida. No segundo volume da saga Y: O Último Homem, nota-se a necessidade de expandir a história e, com isso, enfraquecer sua narrativa central. Se antes o foco era em Yorick e seu macaco, os últimos mamíferos machos da face da Terra, e suas duas amigas vagando pelos Estados Unidos, até um refúgio para “a última fábrica ativa de espermatozoides do planeta”, agora há uma tentativa fraca de construir-se uma mitologia para a situação. Com a mulherada mandando no pedaço, e criando facções em diferentes estados do país, ninguém é de confiança em um cenário de puro suspense e retaliação, tenha você seios, ou não.

    A grande série de Brian K. Vaughan e Pia Guerra, devida e extremamente prestigiada entre críticos e leitores, continua a ser uma crítica surreal aos extremos que regem o ser humano, e como eles podem atrapalhar o progresso da nossa coletividade. Em O Último Homem, temos uma sociedade dividida negando qualquer harmonia utópica, para se rebelar em gangues e fortalecer seus poderes de sobrevivência paralelos, enquanto esperam os últimos homens (do espaço) caírem na Terra, e quem sabe, repovoarem a espécie – o que tira um peso enorme dos ombros de Yorick. De repente, o último macho humanoide pode não ser tão especial assim. Ou não, pois quando agentes militares israelenses descobrem que astronautas masculinos vão pousar em solo americano, tentarão de tudo para capturar os barbudos e garantirem a procriação em Israel.

    Longe de supervalorizar a figura masculina, Y – O Último Homem debate na ficção como os sonhos de Superman são impossíveis, e a paz mundial já foi condenada pela própria natureza caótica das pessoas. Há muito os menos hipócritas já sabem disso, e em A Senha, conhecemos mais a fundo o passado de Yorick, num mergulho existencial do mais normal dos rapazes, ou melhor: a última esperança viva das próximas gerações. Com suas amigas em sérios apuros na mão de assassinas brutais, uma ex-agente militar brinca com a mente de Yorick enquanto o faz ter alucinações perigosíssimas. Mas por quê? Há algo de podre no reino das amazonas, e a vida não parece mais valer muita coisa no Arizona, ou em qualquer lugar. Talvez porque a Mulher já tenha aceitado que, ao morrer, os golfinhos serão oficialmente os animais mais inteligentes da Terra.

    Mas saberão apreciar uma canção, um livro, construir pirâmides? Saberão eles ser racistas, homofóbicos, se matar porque um gosta de mar, e o outro gosta de viver em piscinas? Ou será que a natureza exterminou os homens para dar uma chance a mulher de melhorar as coisas com suas peculiaridades femininas? Os Volumes 3 e 4 ostentam essas e outras questões pela ótica da ação e da aventura, e mesmo ao assumirem-se como extensões um tanto dispensáveis do grande arco de histórias da série, as ilustrações seguem fortes o bastante para nos surpreender, em diversos momentos de pura adrenalina. Há um drama verdadeiro e bem difundido na revista, em uma realidade quase que pós-apocalíptica em que todos foram deixados a própria sorte, e o azar impera – ainda mais se você tiver um pênis e for tão imaturo quanto um homem pode ser.

    Compre: Y – O Último Homem – Volume 2.

  • Resenha | Y: O Último Homem – Volume 1 (2)

    Resenha | Y: O Último Homem – Volume 1 (2)

    “Estou com medo. Da gente.” – O Senhor das Moscas

    Prestígio nunca faltou a Y: O Último Homem, a famosa série adulta do selo Vertigo, da DC, que discorre com muita tensão e correria a odisseia do único sobrevivente da extinção do homem. Homem mesmo, referindo-se aqui ao sexo masculino erradicado da face da Terra – e por motivos nunca revelados, o que explica o uso do Y no título (lê-se “Why” em inglês, ou seja, “Por quê?”). Só que as razões misteriosas são esquecidas diante do caos que as sociedades se encontram, já que agora as mulheres precisam tomar as rédeas desde os governos, a produção agrícola. Em Y – O Último Homem, um dia banal para a humanidade torna-se o início de uma nova era para qualquer ex-mãe, ex-mulher ou ex-filha, donas de um planeta sem saber se a espécie vai continuar sem uma gota de espermatozoide por ai. Ou melhor, quase nenhuma, já que o americano Yorick Brown, de eunuco, não tem nada.

    Junto do seu macaco adotivo, sobra para Yorick sair de Nova York nos Estados Unidos, e ir encontrar sua mãe deputada na capital do país, em Washington, o que não vai ser nada fácil. Logo, o cara (mestre em fugas) descobre que pode ser morto ou vendido a bordéis, e que por ser macho, tem que se esconder de qualquer um que não se chame Jennifer Brown – ou Hero Brown, sua irmã desaparecida. Em Washington, Jennifer ajuda seu filho deixando-o sob a guarda da agente secreta 335, ambos rumo a um esconderijo para quem, agora, pesa muito mais do que ouro. Aos poucos, a ambientação da história assegurada pelo seu bom roteiro, nos deixa a par dos conflitos que crescem não apenas entre mulheres democratas e republicanas na política, mas entre aquelas que prezam pela ordem, e as que pretendem manter a opressão machista e violenta do passado. Assim, nem com a experiente 335 do lado, Yorick está seguro, já que uma conspiração sombria vai sorrateira ao seu encalço, cada vez mais próximo.

    Ao criticar um tipo de feminismo fanático, o roteirista Brian K. Vaughan acentua o quão prejudicial a desunião pode ser a resistência de uma espécie, e o quão perigoso são os extremos alienantes. Enquanto Yorick e sua protetora tentam se livrar dos problemas que explodem em sua caminhada, sua irmã Hero vira uma “Filha das Amazonas”, uma comunidade de ódio que pretende varrer qualquer traço deixado de masculinidade – e sobretudo exterminar aquele que, segundo boatos, anda escondido por ai. No volume 1, Y: O Último Homem expõe o novo contexto perturbador de desconfiança e zero harmonia que, em teoria, de repente uniria os diferentes grupos de mulheres. No entanto, a realidade decepciona até a mais utópica das esperanças, e no segunda arco da série, a perseguição ao “último dos moicanos” atinge seu ápice com novos e ótimos personagens. Incrível como a humanidade, sem leis, sempre volta a barbárie da caverna, ou ao egoísmo dos líderes extremistas – manipulando multidões a bel prazer.

    Sob a junção de um realismo levemente distópico (assegurado também pelo traço de Pia Guerra), e um suspense a prova de bala que impossibilita nosso desinteresse, fica óbvio pelo menos o motivo do sucesso e da polêmica da saga distribuída no Brasil pela Panini, desde os seus primeiros volumes. Por isso, não é de hoje que Hollywood está de olho nesse material, tão rico de possibilidades na adaptação. Fato é que a releitura numa outra mídia, mesmo que válida para atrair leitores, vai precisar se esforçar (e muito) para superar o ritmo, a dramaticidade, o espanto e a exuberância de muitos momentos ilustrados para nos fazer fã da jornada de Yorick, 335 e seu macaco Amp. Ainda mais agora em 2020, com The Last of Us arrebatando corações. Talvez não seja de todo mal deixar o clássico gibi, no gibi. A emoção já está toda aqui, perfeita como só.

    Compre: Y, O Último Homem – Volume 1.

  • Resenha | Clube Vampiro: Unidade de Crimes Vampíricos – Volume 2

    Resenha | Clube Vampiro: Unidade de Crimes Vampíricos – Volume 2

    A plasmagória piorou a maldição de ser um vampiro. Como se já não bastasse viver para sempre, agora nem é mais preciso sair atacando todo mundo: a droga ilícita triplica o volume de plasma sanguíneo no corpo dos dentuços, e a sensação é de pura satisfação, como beber um copo de suco gelado num dia seco de calor. O submundo de Miami agradece isso, já que o tráfico de plasmagória não para de crescer numa cidade repleta de parentes (seminus e tropicais) de Drácula, mas agora que a droga é exclusiva dos mafiosos Del Toro, ela mesma será sua ruína ao acarretar inúmeros crimes à família, e uma perseguição policial implacável. Bem-vindo ao calvário dos Del Toro, como se o martírio dessa gente provasse que ainda há justiça nesse mundo.

    Nesse Clube Vampiro – Vol. 2, a cabeça da (cobra) família ainda é Risa, vampira sem limites mas agora submetida sob a jurisdição de Miami. Isso porque, ao invés da droga reforçar o poder financeiro e político dos Del Toro na cidade, os crimes por causa da substância só aumentam em boates, quartos de hotel e banheiros de botequim. Só que impune Risa jamais ficaria, não com o tenente Fortine e seu detetive MacAvoy na área, ambos investigando a fundo a ligação da mafiosa e sua valiosa toxina com os homicídios e outros absurdos que explodem, a cada noite que passa. Cercada por todos os lados, Risa começa a se desesperar, e acuada, a cobra percebe que seus dias de triunfo e luxúria podem estar contados. Mas é claro, nada é tão simples, e nessa história de gato e rato, uma paixão inesperada pode ser o pivô para tudo se complicar, ainda mais.

    O que começa tal um conto ilustrado de suspense e perícia criminal comandada por Fortine, no melhor estilo C.S.I. encontrando True Blood (os vampiros de Crepúsculo não durariam um minuto perto de Risa), torna-se de uma forma natural, graças ao bom roteiro da estória, numa trama de amores proibidos regada por sangue e promessas impossíveis. Sua semente é logo no primeiro encontro do jovem MacAvoy com a diabólica chefona, quase uma súcubos hipersexualizada em diversos momentos. Ambos se atraem na cadência de uma danação mútua, ela a pimenta e a catarse de MacAvoy na banalidade do dia a dia, e ele sendo o porto seguro e a normalidade de Risa em meio a uma existência de atrocidades em nome do poder herdado do seu pai, como vimos antes no Morra Agora, Viva para Sempre desta saga. Aqui, a história peca em não se aprofundar em certos temas que passam tímidos pela narrativa, que segue interessante até a sua conclusão, violenta e imprevisível como todo o resto.

    Esta segunda parte de Clube Vampiro, série adulta da Vertigo e publicada no Brasil pela Panini, conta com ilustrações delirantes de David Hahn ao emoldurar as sombras e o frenesi de uma realidade atípica, tanto realista quanto ficcional como são os melhores quadrinhos. Com leves toques de horror surrealista e personagens cativantes, não existem heróis nem vilões lidando com suas ordens e seus crimes, seus carmas e seus mistérios, apenas homens e mulheres lutando por poder – e vingança, muita vingança, muito além de quaisquer clichês. Um abusando do outro no limite da decência, às vezes no limiar da humanidade, com MacAvoy sendo um anjo entre monstros, e que, é uma questão de tempo, também será infectado por essa Miami de vampiros e paranoia. A saga de Howard Chaykin,  David Tischman e Hahn clama por uma adaptação live-action, e enquanto essa não chega, sua trama nas páginas dos quadrinhos segue uma ótima pedida.

  • Resenha | A Saga do Monstro do Pântano – Livro Sexto

    Resenha | A Saga do Monstro do Pântano – Livro Sexto

    “A inspiração existe, mas ela precisa te encontrar trabalhando.” – Pablo Picasso

    O Monstro do Pântano não existe mais. Não na Terra: após ter sido exterminado a ferro e fogo, e em praça pública, ao quase destruir Gotham City em toda a sua cólera para resgatar a sua amada Abigail da prisão, a consciência do Verdão saiu de seu corpo queimado e vagou pelo espaço, uma energia livre feito ondas radiofônicas entre as estrelas, além de quaisquer limites para explorar outros mundos. Neste sexto volume das aventuras do Monstro do Pântano, o escritor Alan Moore (Watchmen) rompe a atmosfera e leva o guardião oficial da fauna e flora terrestres para fora de sua jurisdição, em ambientes cujos domínios já possuem outros guardiões que ele, tão acostumado a seu discreto e solitário pântano, nunca sonhou a conhecer fora da zona de conforto que tampouco lhe restou. Bem-vindo ao final desta saga, em oito histórias de pura fantasia espacial repletas de ação, drama e desenhos delirantes.

    Quando Moore decidiu trabalhar com um personagem esquecido desse, ainda em 1983, o desejo era tão simples quanto majestoso: remodelar essa criatura ao status de um semideus com falhas, coração e um pesado senso de humanidade. Em 64 histórias, o autor de V de Vingança e A Liga Extraordinária provou (dentro de um grande arco narrativo) ser capaz de aprofundar as raízes de um ícone das histórias em quadrinhos da DC que ninguém se importava na época, dando-lhe poderes, conceitos políticos, dilemas morais e uma carga dramática ainda sem precedentes a maioria dos outros ícones das HQ’s. Em O Mistério no Espaço, por exemplo, ao se deparar com um novo planeta para habitar, o assim chamado ‘Monstro’ devido a sua aparência metade homem, metade vegetal, encara uma xenofobia violenta dos nativos e a intolerância de outros heróis que enxergam nele uma ameaça assumida, apenas por sua imagem horripilante. Nunca o pântano lhe pareceu tão distante, e nunca a diplomacia se mostrou tão valiosa – mesmo ele sendo capaz de, ao controlar tudo o que é orgânico, rachar o planeta a dois.

    Já na belíssima Toda Carne é Erva, ilustrada com painéis coloridos de tirar o fôlego pelos traços de Rick Veitch e Alfredo Alcala, a mente do Monstro do Pântano se conecta desta vez no ecossistema do planeta J586, promovendo um caos entre os milhões de habitantes do planeta que, curiosamente, são feitos de vida vegetal. Mas é claro que o Lanterna Verde que cuida deste humilde mundo, o poderoso Medphyl, vai medir forças com a entidade que veio para causar o horror e que se impõe ao seu anel, feito um titã com os pés no solo e a cabeça na estratosfera. Aqui, a história traz à tona o poder da nossa vontade, da consciência e da coragem, coisas que não tem nada a ver com nosso tamanho ou qualquer outro empecilho pelo caminho. Abusando de uma narração em primeira pessoa, esse breve conto mostra-se ainda que simbólico mais simples que o normal, e assim seguem-se os próximos contos que marcaram a despedida de Alan Moore para com o personagem.

    Tanto em Exilados quanto em Amor Alienígena, esse Volume 6 já dá sinais claros de falta de inspiração, de cansaço criativo, algo nunca atestado nos Volumes anteriores. Ao brincar de Star Trek, levando essa figura superpoderosa onde nenhuma outra jamais pisou, Moore traçou suas últimas bem-sucedidas ambições para o Verdão de uma forma solene, ainda que sem conseguir esconder a sua exaustão imaginativa. Ao mesmo tempo, o mago inglês escrevia Watchmen, a HQ de super-heróis mais importante da história, e na introdução que abre este último volume publicado pela editora Panini, o desenhista Stephen Bissette admite que o autor estava sobrecarregado de trabalho, e por isso, o fascínio dos seus primeiros contos de terror, ficção científica e fantasia já estava se apagando. Mesmo assim, faz-se um desfecho satisfatório ao Monstro do Pântano assinado por Alan Moore, e que ainda encontra no romance e na filosofia temas que tornam o seu final quase tão memorável quanto ela conseguiu ser, em seus maiores momentos.

  • Resenha | Clube Vampiro: Morra Agora, Viva Para Sempre – Volume 1

    Resenha | Clube Vampiro: Morra Agora, Viva Para Sempre – Volume 1

    E se juntassem toda a trama básica de O Poderoso Chefão, com os elementos de luxúria, violência e sarcasmo sem limites da série True Blood (um tanto esquecida, hoje em dia)? Os Corleone sairiam de fato mordendo pescoços, na Sicília e em Nova York? O resultado mais simples seria essa minissérie adulta do fantástico selo Vertigo, da DC, em que vampiros não são mais uma lenda, e sim uma realidade já consumada no submundo conturbado e pervertido de Miami. Se antes o crime organizado local era comandado pela família de vampiros Del Toro, por quase um século de atuação, quando seu centenário patriarca é atirado de um prédio para que todos pudessem ver seu corpo explodir, em praça pública, o culpado agora precisa ser encontrado, e um jogo de poder entre seus filhos toma corpo para ver quem é digno de ser o novo chefão a liderá-los.

    Uma família de crimes, cujos delitos principais vão muito além de tirar sangue de suas vítimas – seus objetivos são bem mais complexos que os de conde Drácula, pode ter certeza disso. E neste primeiro volume de Clube Vampiro, dos escritores Howard Chaykin e David Tischman, o realismo fantástico pretendido pelos seus autores é destilado em uma trama policial introdutória a boa mitologia da história, e aqui dividida entre dois enredos principais: a caça pelo assassino do finado Eduardo, figura lendária em Miami (um vampiro alfa, na hierarquia da raça), e o embate ético entre os seus três filhos: a inescrupulosa mulher de negócios Risa, o explosivo Eddie, uma referência imediata ao truculento Sonny da saga Chefão, e num contraponto direto a imoralidade absoluta dos irmãos, temos o sacerdote Leto (o Michael Corleone da vez), um estranho fora do ninho que busca a salvação de todos em nome da reputação dos Del Toro, e de uma vaga no paraíso para os seus entes queridos.

    Queridíssimos, aliás. Uma gente capaz de tudo, incluindo sua mãe Arabella, que vivem para seus negócios com drogas ilícitas, perversão entre eles e muita prostituição, em nome dos privilégios que precisam continuar tendo após Eduardo ter partido, e deixado como líder o seu filho Leto – cuja honra e serenidade ímpares conquistou a sabedoria do pai. Diante disso, Risa e Eddy mostram-se os inimigos ideais para o jovem padre, um otimista inveterado com síndrome de Superman no meio de uma orgia de pura competição e ganância. Em Clube Vampiro, nota-se aquele clássico conflito shakespeariano em que o sangue nas veias de uma família é envenenado pelo instinto animal de cada um, e é claro que as chances de tudo dar errado já estão postas na mesa desde o início, tendo apenas um elemento na história que se mostra humano o suficiente para merecer nossa atenção, enquanto que os outros gozam de sua imortalidade e dos hormônios sempre à flor da pele que ela oferece (afinal, se temos todo o tempo e juventude do mundo, porque não aproveitar com prazeres sem fim?).

    Com personagens realmente cativantes, devido à personalidade forte de cada um bem apresentadas neste primeiro volume, a minissérie inicialmente carece de um roteiro mais inteligente e empolgante tanto nas suas reviravoltas, quanto em seu final, bastante previsível em torno de um drama e de uma ação maniqueísta demais e fraco, em certos momentos – a conversa no taxi entre Leto e seus novos capangas que começa a liderar – é especialmente apática, e óbvia para quem já leu outras histórias mais sofisticadas sobre grupos criminosos, e a constante paranoia e tensão interna que paira no seu dia a dia. Mesmo assim, o primeiro Clube Vampiro vale por sua premissa bem legal, algumas figuras caricatas mas bem divertidas, e os traços quase eróticos de David Hahn, dando vida a alguns painéis chocantes. Não apenas ousadia, mas há aqui a falta de um esforço maior na construção do enredo que inicia a história dos sanguinários e poderosos Del Toro, ainda que seja irresistível querer saber o que o futuro os aguarda.

    Compre: Clube Vampiro: Morra Agora, Viva Para Sempre – Volume 1.

  • Resenha | A Saga do Monstro do Pântano – Livro Quinto

    Resenha | A Saga do Monstro do Pântano – Livro Quinto

    O mundo quase acabou, e a ressaca de ter sobrevivido ao apocalipse é forte nesse quinto volume d’O Monstro do Pântano, numa nova etapa da obra assinada por Alan Moore em sua magistral e profunda abordagem de fantasia e ficção científica para a lenda do personagem, nos anos 80 – pré-Watchmen. Após ter ajudado a salvar nossa realidade da sua literal destruição mística, o Monstrão agora tenta se acostumar com a volta para casa, escondido da civilização entre os jacarés e as árvores de seu solitário pântano, na Louisiana, sul dos Estados Unidos. Ele só não esperava que sua amada Abigail, enquanto o Verdão trabalhava onde céu e paraíso se chocam, estivesse presa por ter sido filmada escondida, beijando o monstro. Toda cidade a enoja, e presa, a sentença de Abigail por crimes contra a natureza é impiedosa, mas até parece que seu namorado vai deixar a (in)justiça dos homens recair sobre ela, tão fácil.

    Com todo o poder que tem, afinal o Monstro do Pântano é o arauto ambulante de toda a força natural da mãe Terra, quando a entidade descobre que Abigail foi detida como louca no hospício Asilo Arkham, em Gotham City, sua cólera é imensa, indo reverter a situação. Na breve história Consequências Naturais, vemos um ex-ser humano, transformado pelo destino em um Deus, dominar com suas raízes uma corte e uma metrópole inteira para que lhe devolvam a mulher que ama, desarmada sob a égide do estado americano. Diante da calúnia que Abigail foi trancafiada no Arkham pelo seu ato desumano e esquizofrênico de ter relações sexuais com uma criatura abominável, e asquerosa (o que, tecnicamente, é verdade, devido ao visual dele), vemos a ira irrefreável da natureza irromper dos bueiros, se edificar mais alto que qualquer arranha-céu, e dominar a paisagem urbana que aprisiona a “noiva do Frankenstein”. O monstro está na área pra reclamar o que é seu, sem lembrar que a área pertence ao Batman.

    Na divertida O Jardim das Delícias Terrenas, eis o famoso e tão esperado embate entre os dois personagens mais sombrios da DC (uma vez que o mago Constantine foi tirar umas férias depois do quase-apocalipse que rolou, já que assunto de marido e mulher não o interessa), numa Gotham que mais parece a floresta Amazônica e que dá inveja até a Hera Venenosa. Se vale tudo mesmo para resgatar Abigail, a Besta das Matas agora enfrenta o Cavaleiro das Trevas em casa, enquanto não move esforços para provar porque devemos temer quando a natureza se enfurece, e decide exibir sua soberania nesse mundo, convencida de sua óbvia vitória sobre os sistemas dos homens… mas sem saber que Lex Luthor, o gênio careca já acostumado em encarar o imbatível, foi recrutado em Gotham para bolar um plano e vencer essa ameaça onipotente. Alan Moore reitera, mais uma vez, sua exímia habilidade em balancear elementos clássicos da DC em suas histórias de mistério e ação, caprichando no suspense e nos fazendo duvidar se, de fato, o Monstro do Pântano é tão infalível, assim.

    Prestes a deixar a saga do Verdão para trás, após participar de uma colaboração de quase uma década que marcou época, nas HQ’s, revitalizando um personagem esquecido e dando-lhe novos encantos, e possibilidades, podemos notar entre as edições 51 e 56 que Alan Moore já deixou de lado os grandes arcos do Livro Três, e Livro Quatro, voltando-se a partir deste Livro Cinco a histórias menores, bem menos ambiciosas ou elaboradas, mas ainda assim surpreendentes devido a sua dinâmica, ótimos personagens e boas sacadas no roteiro. Um exemplo disso é a bela Meu Paraíso Azul, na qual nosso monstro (que de terrível, guarda só a aparência) viaja para dentro de sua consciência e imagina uma dimensão baseada em seu amor incomensurável por sua Abigail, dando a ela cabelos de margarida, e uma aura angelical. Falar de amor numa história do Monstro do Pântano nunca é cafona com Alan Moore, que ainda contava com desenhistas da magnitude de um Rick Veitch e John Totleben para ilustrar painéis de beleza avassaladora, nunca antes vistos com tanta paixão, e exuberância numa HQ, todas publicadas, com a devida pompa, pela editora Panini, no Brasil.

    Compre: A Saga do Monstro do Pântano – Livro Quinto.

  • Resenha | A Saga do Monstro do Pântano – Livro Quatro

    Resenha | A Saga do Monstro do Pântano – Livro Quatro

    Tem um mal inominável na nossa porta, e nada pode detê-lo. O único que poderia se prestar a salvação, perdeu a chance, e condenados, esperamos junto de anjos e demônios pelo iminente juízo final. O curioso é que, dificilmente nas histórias escritas por Alan Moore em O Monstro do Pântano, o horror gótico americano das coisas vem à tona em nível social, como se o leitor sempre fosse transportado para uma realidade paralela, uma extensão do pântano do “grande monstro” da Louisiana, nos Estados Unidos, aonde tudo pode acontecer – e nada ganha os noticiários. Sem limites para seus contos sombrios e filosóficos, Moore redefiniu o heroico personagem nos anos 1980 com uma profundidade moral e questões muito além do normal, o que nos faz questionar se outras figuras dos quadrinhos, como Hellboy e Motoqueiro Fantasma, em suas mãos, ganhariam contornos tão inesquecíveis, quanto. Felizmente tivemos o Coringa sendo laureado pelo talento do gênio, em A Piada Mortal, e neste quarto volume publicado no Brasil pela editora Panini, acompanhamos a continuação da saga que marcou época na cultura pop.

    Agora, um mal supremo ronda essa entidade altruísta, com sua assombrosa aparência verde musgo e olhos vermelhos, guardiã do meio-ambiente e dos que nele vivem, fadada a caminhar entre a tragédia e o amor recíproco de sua amada Abigail. Uma energia maligna, aquela, que faz o inferno e o paraíso temerem a sua ascensão. Nisso, o mago John Constantine recruta o Monstro do Pântano para este investigar o que está se aproximando, pois nem ele consegue decifrar tal enigma. A vibração da Terra se altera, as realidades paralelas a nossa compartilham desse desconforto, alguém precisa nos proteger, e a resposta para banir a escuridão suprema pode estar nos confins mais abissais, onde só a consciência do verdão pode acessar. Pela primeira vez desde sua criação, na edição nº37 da saga, Constantine parece realmente inseguro e com medo do desconhecido – sendo que, para o detetive do oculto, dialogar com entidades perigosas dos submundos espirituais é uma viagem de verão ao sul da Itália. O tempo de férias realmente acabou, e Moore é especialista em criar tensão com imagens e situações apavorantes, para todos os públicos.

    A quarta coletânea da Panini já começa na história nº43, E o Vento Trouxe, na qual um traficante de drogas hippie acha um fruto oriundo da “pele” do Monstro, deixado para trás em uma caminhada pela sua floresta, no sul dos Estados Unidos. Após levá-lo à sua casa, o homem distribui desse alimento misterioso a algumas pessoas, causando-lhes alucinações e transformando suas vidas num eterno pesadelo. Menos surreal e mais criminal na proposta de terror, na ótima Bichos Papões, vemos um assassino em série matando várias pessoas nos pântanos da Louisiana, até encontrar uma justiça sobrenatural em seu caminho. Mas é em Dança com Fantasmas que a inspiração no horror gótico vem realmente marcante, num conto sobre quatro adolescentes desavisados que entram numa mansão mal-assombrada, onde atrás de cada porta repousam criaturas sedentas a testar a fé dos mais religiosos. Com desenhistas da mais alta excelência ilustrando seus delírios, perversões e insanidades, Alan Moore em 1986 teve de se infiltrar no grande arco das Crise nas Infinitas Terras, da DC Comics, costurando o personagem ao espectro maior das histórias do Batman, e cia.

    Na convergência de realidades fantásticas, em um macro enredo que envolveu todos os personagens da DC, nos anos 80, a editora fez todo o seu multiverso desorganizado, cheio de Terras 1, 3 e 7, pertencer a apenas uma dimensão. Para isso, dentro da saga do Monstro do Pântano, Moore criou um evento destruidor que forçava a união dos altos escalões da luz, da sombra e dos seres humanos (lê-se: os super-heróis místicos da DC, como o Senhor Destino e Vingador Fantasma) em prol da sobrevivência de Tudo – absolutamente Tudo. Para isso, o próprio Monstro e seu parceiro de aventuras, o sádico Constantine, vêm juntos ao Brasil em O Parlamento das Árvores especular com entidades que enxergam o futuro a grande batalha apocalíptica que lhes aguarda – nota-se que, em região Tropical, pela primeira vez, é dado ao grandalhão cores vivas que, vivendo e germinando no sul dos Estados Unidos, nunca brotaram em sua pele de folhas e raízes escuras. A resposta não é dada facilmente pelos ancestrais, e muito antes do conflito da Vida com a Morte absoluta, o mal à espreita os abate de forma imprevisível, e coerente o bastante para fechar, com a precisão e o esforço criativo de um mestre, todo um arco de histórias poderosas. Eu queria ver esse tratamento dado ao Hellboy, Alan Moore. Eu realmente queria isso.

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  • Resenha | A Saga do Monstro do Pântano – Livro Três

    Resenha | A Saga do Monstro do Pântano – Livro Três

    Dizem que os fins justificam os meios, e muita gente bota fé nisso – principalmente, hoje em dia. Seja como for, se Alan Moore não tivesse criado em 1985 uma ameaça forte o bastante para aniquilar o Monstro do Pântano, o poderoso e tempestuoso elemental capaz de tudo para proteger sua amada, e o pântano na Louisiana que ele faz de morada, nunca seriamos apresentados ao mago John Constantine, logo na edição nº 37 da clássica saga escrita por Moore, e desenhada nos traços icônicos de uma verdadeira gangue de ilustradores a serviço do maior roteirista de HQ’s da história. É curioso observar a forte expressividade de alguns quadros em função do impacto da narrativa, numa impecável fusão artística tão almejada entre a força do texto, e o brilho do visual. Temos, portanto, a trajetória e o destino esculpido de um herói sem rostinho bonito, cujo uniforme é asqueroso, e assim como o verde que resguarda, e incorpora em suas aventuras, faz de si o mais resistente de todos os seres vivos.

    E é justamente a queda dessa resistência por um vilão radioativo que a natureza, em toda a sua soberba, não consegue vencer, que assistimos assombrados em uma gama de imagens e painéis impressionantes em Notícias do Fuça Radioativa, história essa dividida em duas partes que abre o volume 3 da saga publicada com capricho pela editora Panini, no Brasil. Nesta clara alusão aos maus-tratos do ser humano ao meio-ambiente, a temível entidade de musgo e olhos vermelhos padece para, em seguida, virar um insignificante broto na mata, na esperança de germinar, de voltar a ser o que era: um biossistema ambulante em toda a sua glória. Um renascimento este que chama a atenção de Constantine, sempre antenado em tudo de bizarro que rola no mundo, como se este fosse seu quintal e nada escapasse de seus olhos de águia. Uma figura que surge para despertar a consciência do Monstro do Pântano sobre ele mesmo, seus poderes e a sua importância para eventos futuros que irão testar Terra e humanidade diante de perigos apocalípticos.

    Constantine faz sua primeira aparição como um anúncio de tempestade, um arauto dos males, sendo ele um dos melhores personagens da carreira de Alan Moore. Com seu cigarro e casaco inconfundível, logo ele e o Monstro do Pântano lutariam juntos na publicação da DC Liga da Justiça Sombria, sempre envoltos com demônios, magia e outras dimensões ao invés dos desafios mais mundanos que Batman e Superman geralmente enfrentam. A presença de Constantine serve para apresentar ao nosso anti-herói verdão ameaças que deixam Coringa e Lex Luthor no chinelo: em Águas Paradas, uma raça de vampiros subaquáticos (você leu certo) planeja dominar o plano terrestre a fim de nunca faltar alimento para sua força materna, a repousar no fundo de um lago enquanto espera por carne humana – de preferência, bem jovem. Ou ainda em A Maldição, na qual uma dona de casa carrega em si uma enorme força sobrenatural que vive a controlar, mas que após o seu marido Roy se tornar uma ameaça a ela, Phoebe decide inverter o jogo de poder em uma quente, e sangrenta noite de lua cheia.

    Contudo, talvez seja a história de conclusão deste terceiro volume a mais simbólica e memorável da coletânea, na qual espíritos e cadáveres de escravos decidem voltar à Terra, mais precisamente no sul dos Estados Unidos, e infernizar um grupo de atores de uma novela sobre os tempos da escravidão americana. Em Mudança Sulista e Estranhos Frutos, esses zumbis finalmente ganham a liberdade pela qual morreram lutando, e sua vingança coletiva será terrível, mesmo após tantas e tantas décadas sepultados. Em uma intensa e sublime alegoria do mais puro horror gótico, Alan Moore discute o papel da violência no passado de certas regiões marcadas pelo sofrimento, e como essa tensão sempre pode retornar no menor descuido das pessoas e autoridades diante do racismo, e de outras práticas monstruosas. O mal vive à espreita, e “O que foi enterrado não desapareceu.”. A mensagem é clara, e vire-e-mexe nos lembramos disso quando se faz necessário.

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  • Resenha | A Saga do Monstro do Pântano – Livro Dois

    Resenha | A Saga do Monstro do Pântano – Livro Dois

    O terror e o romance geralmente são dois gêneros tratados como opostos, na maioria das estórias que temos acesso e nos marcam, no decorrer dos tempos. Difícil lembrarmos de bons exemplos que, ao abordarem o lado sombrio e a face romântica da vida e das relações, equilibram de forma marcante o Terror, junto ao mais lenitivo dos amores e paixões; uma alegoria clara e direta a Dante, e seus famosos círculos do inferno. Neste segundo volume da clássica saga do Monstro do Pântano, Romeu desce até o reino da besta-fera para recuperar a sua amada flor Julieta das garras dos condenados, no centro do vale da escuridão (e não de fogo como muitos pregam, por ai), logo antes de apresentar o mundo selvagem dos pântanos da Terra para pequeninos e inocentes alienígenas que desembarcam em seu reino, sem saber dos perigos daqui.

    E quem melhor que Alan Moore para compor quadros e tramas de soberba magnitude criativa, enquanto que, ao longo de duzentas páginas de pura genialidade narrativa que tanto marcaram a nona-arte nos anos 1980, nos perguntamos de queixo-caído: como eu pude viver e pensar ser feliz sem nunca ter lido isso? Moore sempre escolheu seus desenhistas a dedo, talentos que pudessem traduzir em uma dinâmica visual perfeita todas as suas loucas e extasiantes ideias – e na sua melhor saga, para muitos, a necessidade segue imperial. Em dados momentos, O Monstro do Pântano nos brinda com painéis que tornam certas sensações inesquecíveis, tal como o sexo absurdo entre uma criatura asquerosa, de musgo e raízes, e a mulher que ama o homem por trás do monstro, sua alma, suas palavras, a sua bravura e sua perdição amorosa, tão recíproca entre eles. As cenas de extrema psicodelia que ilustram o tesão cabuloso entre planta e corpo de carne nos confundem, nos assombram, e nos fazem salivar em uma típica hipnose das mais luxuriosas, e acima de tudo, românticas que se tem notícia.

    O autor de V de Vingança e Watchmen cria demônios que entregam rosas e orgasmos porque gostam do gesto, e não para se redimirem ou negarem o que são. Ao combater um vilão que conseguiu escapar das trevas abissais, e agora possui a carne banal de um homem qualquer, o deus dos pântanos e do verde profundo da Terra presencia a morte de sua Abigail, aquela por quem sua alma ainda brilha, mesmo sob uma nova forma absolutamente horripilante. Indo contra o ódio de uma entidade que só pode ser combatida pelo amor, e não pela dor (uma vez que ela é a encarnação mais soberba das dores, e das angústias que um ser-humano é capaz de carregar), o Monstro do Pântano conta em seu destemido resgate com vários personagens famosos da DC, como o Etrigan, grande amigo do mago John Constantine, para caminharem aonde nenhuma luz chega, nenhum “socorro” é ouvido, e a salvação jamais poderá ser alcançada – exceto pelo desespero do mais louco dos Don Juans, já que o eterno repouso de sua rainha no colo de demônios é algo inconcebível.

    No triunfo editorial da Panini em lançar, em seis partes, a icônica saga de Alan Moore e companhia no Brasil, numa belíssima compilação gráfica e até com um prefácio impecável de ninguém menos que Neil Gaiman (Sandman, Coraline), num esforço de apresentar essas pérolas do passado a uma nova geração de leitores, as estórias (originalmente publicadas em gibis mensais sob o selo Vertigo, nos Estados Unidos) são distribuídas em seis breves e eletrizantes capítulos, com contos de puro horror gótico, sonhos perturbadores, e até um grupinho de extraterrestres que não conhecem a maldade que existe, e ao fazerem contato com nosso querido monstro esmeralda, descobrem que há coisas muito além do que parecem ser. Ao longo das tramas, verdadeiras aulas de tensão e espanto no mundo das HQ’s, Moore revela-se um autor muito mais íntimo de suas personagens, sua realidade, suas forças e fraquezas, à medida que enraíza o leitor, quadro a quadro, em experiências tão ímpares quanto imprevisíveis.

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  • Review | Patrulha do Destino – 1ª Temporada

    Review | Patrulha do Destino – 1ª Temporada

    A primeira temporada de Patrulha do Destino prometia traduzir em tela todo o nonsense dos quadrinhos da equipe, sobretudo da fase de Grant Morrison à frente dos roteiros. A série capitaneada por Jeremy Carver e produzida Greg Berlanti, Geoff Johns e outros, tem 15 episódios nesse primeiro ano, e mostra um grupo de desajustados com poderes.

    O episódio piloto estabelece a mitologia, introduz o personagem de Timothy Dalton, chamado apenas de “O Chefe” e todos os seres estranhos que o cercam. Após essa gênese, o que se vê é uma batalha cósmica, que abusa de efeitos especiais, muito bem trabalhados. O turbilhão que se contrapõe aos quatros meta humanos – Crazy Jane (Diane Guerrero), Mulher Elástica (April Bowlby), Homem-Robô (dublado por Brendan Fraser e manipulado por Riley Shanahan) e  Homem-Negativo (Matthew Zuk) – é seguido de reações diversas, variando entre a histeria pela surpresa do possível fim da vida e tentativas vazias de controlar o ímpeto, afinal, o que se vê é algo grande demais para ser ignorado.

    Boa parte do acerto do seriado é que seus personagens mesmo sendo sobre-humanos, são imperfeitos, são repletos de complexos e se autossabotam o tempo inteiro. Cada um deles têm algum momento em que se torna o herói de sua própria jornada, com tempo e desenvolvimento que certamente fazem inveja a Chris Terrio, David S. Goyer e demais roteiristas da DC nos cinemas. Mesmo quando tem partes narradas, há um bom motivo para acontecer, normalmente movido pela metalinguagem de ser feita por Alan Tudyk, que interpreta o Sr. Ninguém.

    Uma das dúvidas em relação a composição do grupo era a presença do Cyborg (Joivan Wade) que jamais fez parte do grupo, e que não esteve no seriado dos Titans. Sua origem é a mais graficamente pesada da série, não há medo ou receio de parecer adulta e é muito mais bem resolvida que outras adaptações envolvendo o personagem.

    A primeira temporada tem como temática principal as obsessões. Victor tenta não ser manipulado, seja por vilões ou pelos laboratórios Star, Jane busca desesperadamente um equilíbrio, Cliff tem que lidar com a substituição parental que sua filha fez da figura paterna e Rita tenta se reinventar mesmo tendo perdido o aspecto físico que a tornava especial décadas atrás. Eles são na verdade um grupo de freaks, que precisam conviver, como forma de terapia.

    Não há um episódio que o espectador não se assuste com algum um aspecto dramático ou visual, sempre há surpresas tresloucadas, tão irreais que soam charmosas. O estranhamento que a série causa se assemelha ao visto em Legion, ainda que a abordagem se dê por um viés diferente, com camadas mais profundas.

    O elenco tem um desempenho primoroso, Tudyk e Dalton desempenham magistralmente as figuras arquétipo do vilão e mentor, enquanto Fraser, Guerrero e Bowlby estão afiadíssimos. O fato do trio não ter pudor em se apresentar como figuras jocosas só acrescenta à trama. A intérprete da Mulher Elástica surpreende, pois foge da simples figura de mulher linda que foi coadjuvante em Two And a Half Men para se tornar frustrada, complexa, e ainda assim, apaixonante. Sua Rita Farr é incrível, mesmo sendo digna de pena, seu drama é de fácil compreensão, bem como sua vocação para ser uma espécie de mentora do grupo de desajustados, na ausência de Dalton.

    Mesmo as coisas implausíveis fazem sentido. Todas as razões mesquinhas são lógicas, e mostram que os heróis podem ter ações canalhas e anti-éticas, para além da construção do anti-herói clássico, ou dos comentários ácidos de materiais que visam parodiar mais incisivamente o conceito dos quadrinhos da Marvel e DC, como Garth Ennis fez em The Boys. O resultado final de Patrulha do Destino em seu primeiro ano é algo seminal, não subestima os seus espectadores e mostra uma história onde praticamente todos os personagens odeiam a si mesmo e ainda assim tem de conviver com essa situação.

     

  • Crítica | Constantine: Cidade dos Demônios

    Crítica | Constantine: Cidade dos Demônios

    Constantine: A Cidade dos Demônios é uma produção multiplataforma, lançado inicialmente como uma série animada de cinco episódios (de 6 minutos), e posteriormente, transformada em um longa-metragem que reunia os episódios e material inédito. Dirigida por Doug Murphy e escrito J.M. DeMatteis, a produção tem um chamariz interessante ao trazer Matt Ryan de volta ao papel que protagonizou na única temporada do personagem, além de fazer participações em Arrow, Flash e Legends of Tomorrow.

    O personagem criado por Alan Moore é desenvolvido em historias que passam por possessão demoníaca e contato com o lado espiritual. Há uma associação das origens dele como agente espiritual, com sua passagem como punk, em sua fase mais jovem, em Newcastle, que se torna bastante engraçada ao associar rock’n roll com questões “satânicas”.

    A forma como Murphy e DeMatteis constroem a história maior a ser contada é condizente com o material original, sem a mesma ironia e o peso dos textos de um Jamie Delano ou Garth Ennis, mas ainda assim condizente com os quadrinhos. Se na série em live-action Matt Ryan deu azar e não conseguiu trabalhar o lado sacana, violento e despreocupado que o papel exigia, aqui isso se cumpre melhor.

    Por mais episódica que seja a obra, Constantine: A Cidade dos Demônios traduz a dualidade entre o personagem da Vertigo e sua reformulação para integrar o universo regular da DC Comics, além de destacar o quão triste e miserável é seu cotidiano e quão solitária é a natureza de seus trabalhos. DeMatteis finalmente acerta o tom no roteiro e consegue fazer uma história simples, com todos os elementos da revista Hellblazer, ainda que mais suavizado.

    https://www.youtube.com/watch?v=tc0XLhm0PDY

  • Resenha | Fábulas – Livro Três

    Resenha | Fábulas – Livro Três

    Em conversas com amigos, dos mais diversos gostos e pontos de vista, unânime mesmo é uma coisa só: toda história tem seu ponto baixo. Seja numa cena chata de um filme, seja numa passagem interminável de uma bela obra literária ou teatral; toda narrativa tem seu ponto fraco, vide que nada é perfeito. Ao iniciar a saga Fábulas, seus autores certamente reconheceram o ouro que tinham nas mãos, e deram o melhor debute possível a história de Branca de Neve, Lobo Mal, Chapeuzinho, e centenas de outras criaturas lendárias que, para fugirem da destruição no seu mundo encantando, tiveram de se refugiar no nosso mundo.

    Ao que parece, a própria condição de reclusão das fábulas nessa dimensão parece ter sortido efeito ao próprio encantamento da história, sendo aqui banalizada nestes fracos arcos, de uma saga que começou tão bem, e que parece ter tido seu grande fôlego inicial diminuído neste compilado, em questão. Em uma premiada saga com mais de 40 volumes já publicados no Brasil pela Editora Panini, no selo adulto Vertigo, da DC Comics, ao que parece o ponto mais descartável da longa história faz-se em Os Ventos da Mudança, e consequentemente, com Terras Natais, sob a impressão cada vez mais clara que a narrativa sofre, aqui, uma bela de uma ressaca junto aos inúmeros acontecimentos dos arcos anteriores, e ótimos volumes de Fábulas.

    Após uma enorme batalha entre seres mitológicos ter custado a paz de todos os refugiados, na mítica cidade das fábulas, tudo mudou. Tramas políticas tomam forma e armadilhas são feitas, como se a história agora fosse um episódio perdido de House of Cards com animais falantes, e rainhas de gelo. Cada vez mais, os ícones da mitologia mundial se adaptam a lógica do mundo humano, uma lógica fria, capitalista e cínica, repleta de traições e artimanhas para sobreviverem nas chamadas “selvas de pedra”. Assim, velhos amigos retornam, novos inimigos retiram suas máscaras para infernizar (mais ainda) a vida do xerife da Cidade, enquanto um jovem guerreiro aterroriza as terras natais galgando sua fama de invencível. E o que parecia ser uma saga, agora, ganha contornos de uma coleção de contos pobremente conectados.

    Se em Os Ventos da Mudança perde-se um tempo valioso com longos flashbacks que nada somam a mitologia geral, apenas para a saga ter um ar de aventura descompromissada – uma exigência da editora, provavelmente –, o desinteresse pelo enredo e suas digressões começa a tomar forma muito antes do final. Um volume preguiçoso, em que os poucos acontecimentos que realmente importam carregam certo impacto, tal o nascimento dos seis filhos de Branca de Neve, para logo tornarem-se esquecíveis no começo de Terras Natais, em que a história parece relembrar um pouco do seu rumo, e seu fôlego, e aposta novamente no prazer da construção e na exploração de um mundo próprio, e adorável, repleto de possibilidades espetaculares.

    Ao final, descobrimos que as fábulas originais já estão divididas, todas com interesses mesquinhos e nada altruístas, e o príncipe que era encantado já virou sapo, faz tempo. Fábulas conta também com seus traços inconfundíveis, tão vibrantes que não perderiam sua força nem mesmo em uma versão preto e branco, mas que não apresentam mais aquele minimalismo gráfico que tanto colaboraram para a boa experiência de se mergulhar nas cores, e no movimento dos volumes anteriores. Uma publicação, enfim, que não deixa de ser sobre a desilusão com o mundo adulto e moderno, distópico por natureza, ou ainda, acerca de uma falta de empatia generalizada com o próximo. Algo que ninguém parece ter a cura. Nem no reino mágico, muito menos num mundo cuja única magia, o amor, sempre foi tão subestimada.

    Compre: Fábulas – Volume 3.

  • Resenha | A Saga do Monstro do Pântano – Livro Um

    Resenha | A Saga do Monstro do Pântano – Livro Um

    “Você está em contato. Em contato com o verde. E eu, em contato com você.”

    Muitos defendem, com certa razoabilidade, A Saga do Monstro do Pântano como uma das melhores obras do genial Alan Moore. Aos que apontam seus motivos, além de certo desejo de não serem a maioria óbvia e raivosa que logo cita Watchmen e V de Vingança como as principais magnum opus do misterioso autor britânico, um dos grandes responsáveis por elevar o status quo das histórias em quadrinhos, entre as décadas de 70 e 80, há de certo uma adoração justificável pela qualidade impressionante das histórias de terror gótico que tanto combinam com o estilo macabro e forte das ideias e tramas que Moore arquiteta como ninguém. Afinal, estamos falando do criador do mago John Constantine, e da melhor história do Coringa já feita (vamos ser sinceros): A Piada Mortal, em uma de suas mais célebres colaborações na carreira, junto do desenhista Brian Bolland.

    Se há um adjetivo que cai como uma luva a Alan Moore, desde os seus primórdios como contador de histórias de suspense, horror e aventura com e sem super-heróis, é ser impecável. Tanto na execução de seus arranjos narrativos, quanto na potência marcante que emprega a quase todos eles, em sua longa trajetória pela nona-arte. Não há melhor louro a um escritor que prestigiá-lo lendo-o, e sabendo disso, a editora Panini do Brasil lança em 2014 todas as edições roteirizadas por Moore do temível e humano Monstro do Pântano, em seis edições de inestimável apreço no mercado brasileiro de HQ’s. Exemplarmente traduzido por Edu Tanaka, o leitor torna-se íntimo das sensações de um Deus bizarro, representante da mãe-terra em uma forma asquerosa, cujo pântano onde reina, em um primeiro momento, é a casa assimétrica que lhe sobra para se esconder, proteger e amar a mulher que nunca esqueceu o homem antes do monstro, e que nutre por ele um amor puro, e recíproco.

    No início, era apenas Alec Holland, vítima de um acidente que torrou seu corpo feito folha atingida por raio, mas não o mais feroz: sua consciência imortal. Sua alma agora É o mundo verde, e tudo o que o alimenta e o faz ser tão resistente, quanto assombrosamente real, e poderoso. Alec não é mais homem, apenas, mas um super-homem. Um demônio de musgo de dois metros de altura que anda, fala e vibra, enquanto encarna o biossistema inteiro da Terra dos pés a cabeça, estendendo suas sensações aos rincões mais profundos do planeta quando preciso – ou quando assim o deseja. Neste primeiro volume, acompanhamos a autodescoberta de sua nova identidade, ao mesmo tempo que homens tentam matá-lo, queimar seu lar pantanoso, sua fé na humanidade. Para ligar a trama geral com a mitologia da editora DC Comics, vários ícones da Liga da Justiça e seus vilões entram em cena em várias histórias, seja para ter um apelo maior ao público, seja para engrandecer o personagem central sem, contudo, inferiorizá-lo.

    Aos poucos, com uma abordagem fantástica e filosófica servindo de base para o despertar de Alec Holland, em contos de vinte páginas cada, compostos por centenas de imagens delirantes ilustradas por mestres da linguagem visual, somos levados a reconhecer do que Holland é capaz, agora sendo o medonho “monstro” que se tornou. Aqui, um guardião do natural, dando cabo as vezes de ameaças que não encaram seus poderes como dons, mas maldições agonizantes, agindo em defesa da autodestruição e do mal mais puro que nem o coração mais perverso, pode imaginar. Tudo o que é exatamente oposto a essa entidade do verde e da vida que Alan Moore, entre 1983 e 1987, tratou de revolucionar seu conceito e seus valores nas páginas da DC, feito um verdadeiro rei Midas dos quadrinhos. Eis uma grande e arrebatadora metáfora sobre um mundo que nos devora, em todos os sentidos, e cabe a nós decidir o que fazer disso, sem botar na conta do acaso o peso dos nossos atos, ou aquilo que escolhemos nos tornar. Não há nada mais precioso que a nossa consciência, exceto, talvez, uma história de Alan Moore, e é aqui onde tudo começou.

  • Resenha | O Universo de Sandman: Lúcifer – Volume 01

    Resenha | O Universo de Sandman: Lúcifer – Volume 01

    Dentro da nova e ousada empreitada da DC Comics de reavivar os personagens da linha de Sandman, criada por Neil Gaiman entre o fim dos anos 1980 e início dos anos 1990, um velho conhecido surge em um título próprio. Trata-se do Capiroto em pessoa, o mau e velho Lúcifer Estrela da Manhã, que estreia um título mensal escrito por Dan Watters, autor conhecido por trabalhar em séries de mistério como O Sombra. As primeiras edições da série mensal foram lançadas por aqui pela Editora Panini em um encadernado reunindo seus seis números iniciais, sob o título O Universo de Sandman: Lúcifer – A infernal comédia. Essa edição de capa cartonada é a última da série que ainda carrega a marca DC/Vertigo na capa, pois as outras revistas do mesmo universo lançadas logo depois vieram com o novo selo DC Black Label.

    Com o relativo sucesso da série televisiva de Lúcifer, essa edição pode ser uma boa porta de entrada para leitores iniciantes, embora o capeta aqui seja um tanto quanto diferente do interpretado por Tom Ellis na televisão. Lúcifer aqui é um velho fraco e sem memórias, preso em um vilarejo no meio de lugar nenhum, com delírios de grandeza. Uma boa sacada, pois nos faz imaginar o que teria acontecido com o anjo caído para que ficasse em tão deplorável situação. Paralelamente, temos a história do detetive John Decker, que tem lidar com a perda da esposa enferma e acaba caindo no meio de uma conspiração de demônios em um asilo.

    A história tem um ritmo frenético, vários personagens nos são apresentados em pouquíssimo tempo, mas aos poucos ela vai se ajustando e começamos a entender o que está se passando. Lúcifer, com seu corpo praticamente se decompondo a cada momento, vai desenterrando (literalmente) os esqueletos de seu passado. Uma ou outra dica já tinha sido nos dada na história inicial de O Sonhar – que se repete nessa edição, assim como nas outras duas revista da linha – e confirmamos a principal aqui: Lúcifer tem um filho abandonado, chamado Calibã. A história desse filho, de sua mãe e de como ele foi concebido é uma das melhores partes do livro.

    A arte de Max Fiumara e Sebastian Fiumara torna a revista ainda mais imersiva no contexto infernal da história, chegando a realmente assustar em momentos mais introspectivos do personagem John Decker ou no horror bestial dos demônios quando necessário, e a paleta de cores utilizada dá o exato tom que o roteirista quer nos passar. A história é realmente surpreendente, e deixa um gancho no final para que o leitor não se aguente mais em esperar a próxima edição (spoiler: o retorno de Lúcifer acaba provocando a ira dos Céus!).

    A infernal comédia é um ótimo título de terror pra quem quer começar a ler os quadrinhos adultos da DC, além de apresentar personagens novos juntos com velhos conhecidos, e ainda faz parte de algo maior, uma história contada por várias mãos em séries diferentes da editora.

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  • Resenha | Sandman: Prelúdios & Noturnos

    Resenha | Sandman: Prelúdios & Noturnos

    “- Constantine, esse lugar não é seguro pra você. Há coisas livres nessa casa que não deveriam estar à solta na Terra. Você não pode permanecer aqui…”

    Se há um perigo real para John Constantine, o macabro detetive do sobrenatural criado por Alan Moore na série Monstro do Pântano e aperfeiçoado em Hellblazer, há perigo até para o leitor. Aliás, o verdadeiro perigo de se ler Sandman é não querer parar mais, tamanha sedução que Neil Gaiman nos apresenta num mundo muito diferente, e lendário, em paralelo com o nosso, mas dominado por sonhos, erotismo, surrealismo e danação em que nada é o que parece – como eu disse, uma realidade muito diferente da nossa, certo? Um dos maiores quadrinhos de todos os tempos, junto de Maus e Watchmen, em que poucas vezes o selo Vertigo da DC Comics foi tão bem representado em sua temática adulta de entretenimento como nessa joia da nona-arte. Um tratado filosófico universal de terror e suspense extremamente inspirador para muito do que veio depois da década de 80, e que segue, com tranquilidade, como um dos grandes trabalhos já lançados pela editora Panini, no Brasil.

    Nesta edição que reúne os oito primeiros volumes de Sandman, já é possível notar (lê-se: sentir a flor da pele) o porquê de tamanha notoriedade. Afinal, é notória a sensação de se estar olhando para o abismo, enquanto o mesmo nos contempla junto a nossa aventura com Morfeu, o Senhor dos sonhos (e pesadelos). Uma entidade pálida de roupas negras e que contém nos seus olhos toda a sabedoria profunda de alguém que parece ter sempre estado entre nós, e que nunca morrerá – até porque ele não é um Deus, que precisa ser acreditado para existir. Conjurado por meia-dúzia de feiticeiros que queriam aprisionar a morte, ele vem a Terra e consegue se libertar após 20 anos de cárcere. Agora, Morfeu precisa recuperar o que seus algozes humanos o tomaram: seu saco de areia para fazer a todos dormirem (o nome Sandman não é à toa…), seu elmo sagrado, e o rubi que guarda parte de seu poder etéreo. Ele só não contava ser desafiado para conseguir de volta o que é seu. Logo ele, alguém tão acima de humanos, anjos e demônios de toda espécie.

    Morfeu então parte numa jornada não só de resgate do que lhe pertence, mas de autoconhecimento, num conto que não fica sendo apenas sobre ele, mas cuja mitologia delirante também se impõe de maneira impressionante. Morfeu, ou o Homem de Areia que cuida do sono da humanidade e sabe dos nossos segredos melhor que nós mesmos, passa longe de ser um anti-herói, pois não toma lados. Faz o que deve ser feito, tal como a natureza que, às vezes, devasta para reconstruir seus domínios. Com a criação máxima de Neil Gaiman nós vamos ao inferno, entre legiões de demônios, e passeamos com a morte num domingo ensolarado, em Londres, sem que ninguém perceba nada. Em Prelúdios & Noturnos, o convite é dado ao leitor que desconhece Sandman mas sabe que deve ser iniciado e se apaixonar por suas odisseias, seja na luz, seja na escuridão que fazem parte de todos nós. Gaiman não nega isso, mas se aproveita, dando cabo de uma narrativa introdutória repleta de grandes momentos, enquanto flerta com as possibilidades que o surreal oferece ao realismo das coisas, das pessoas, e das nossas condições. Tão frágeis, e tão fantásticas se refletidas por um novo e inusitado ponto de vista.

    Assim, eis um começo memorável para se mergulhar de cabeça no abissal irresistível que Gaiman criou, junto aos traços fantásticos de Malcolm Jones, Mike Dringenbger e Sam Kieth, numa iconografia que eleva e sofistica, ainda mais, a sensação expressiva e aguda de se brincar com o fogo, de se revirar um segredo, de sermos detetives em um enorme quarto escuro. Os desenhos aqui não poderiam ser mais eloquentes ao propósito inicial de encantar, e por vezes aterrorizar o leitor, levando todos os olhos a grudarem nas páginas como se disso dependesse as nossas vidas guiadas por Morfeu – aquele que conversa com um adolescente que ama jogar bola e com o próprio Lúcifer em seu trono da mesma forma, afinal, ambos o oferecem perigo nenhum nesta fantasia épica, e sem limites criativos para ser absolutamente inesquecível. Com Prelúdios e Noturnos, ficamos íntimos de uma criatura justa e implacável que também é íntima de nós, e que provavelmente após esta leitura, nos encontrará como um velho amigo em nossos sonhos (ou pesadelos), cedo ou tarde, mas sem que nos lembremos disso ao despertar.

    Compre: Sandman: Prelúdios & Noturnos.

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  • Resenha | Fábulas – Livro Dois

    Resenha | Fábulas – Livro Dois

    Escondidos na nossa dimensão, eles tentam passar despercebidos – enquanto a coisa só complica entre eles. Só o amor, na causa. Causa, no caso, dessas pobres fábulas perdidas e em constantes conflitos, uma com a outra, em que apenas um laço forte e sincero entre elas pode lhes salvar a pele, nas mais perigosas situações que se metem – e todo o resto é fadado a morte, e ao fracasso. No mundo dos homens, em que não há moral nem final para as histórias, já que a vida real é uma sucessão de coisas inacabadas ou mal terminadas, as figuras icônicas de Fábulas sabem que tudo é complexo e imprevisível demais, as vezes perverso também, e para sobreviver a uma realidade dessas, só se convertendo a seus princípios – sejam eles quais for.

    E onde fica o amor do xerife Lobo Mal, pela durona Branca de neve? Do mafioso e milionário Barba Azul, pela revolucionária fugitiva Cachinhos de Ouro? Tudo à base de interesses e intrigas, é claro, já que até o Príncipe Encantado esconde segundas e oitavas intenções da sua ‘amada’ Aurora – de quem só quer o dinheiro. A pureza não resiste a lógica mundana. Aparentemente, os autores aqui não apenas americanizaram e capitalizaram essas figuras de acordo com a moral financeira de uma sociedade, cujo poder financeiro é o que manda, mas neste terceiro volume da série, O Livro do Amor, deixam claro que a felicidade e o êxito, em qualquer coisa na vida, não podem ser atingidos sozinhos, e muito menos sob a égide do mal.

    Soa um tanto moralista, mas ironia dessas histórias reside justamente nisso. Assistimos a desconstrução dos inocentes enquanto acompanhamos um jogo de interesses tomar corpo e armar suas terríveis consequências, já que todos querem a cabeça da rebelde Cachinhos de Ouro, por ter colocado fábula contra fábula em busca de poder, no segundo volume, A Revolução dos Bichos. Escondida junto do seu amante Barba Azul, ela é descoberta e parte para a vingança contra os envolvidos na sua caça. Nem mesmo a mais angelical donzela evita em pegar num rifle e enfiar machados na cabeça de ninguém, em momentos tão chocantes que poderiam fazer parte de um filme de Quentin Tarantino – como no conto de abertura da revista, em que João das Montanhas, do folclore americano, consegue enganar e prender a própria morte para dar mais tempo de vida a sua amada.

    Este terceiro volume perde muito tempo, recompensado pelo belo trabalho gráficos de alguns quadros coloridos, com histórias paralelas que pouco contribuem com a trama principal de Branca de Neve, Cachinhos de Ouro e seus companheiros de fé. Com quase duzentas páginas, há inúmeros personagens cujas tramas se cruzam com certa naturalidade e um bom ritmo de leitura, atrasado por vezes com pequenos contos sem importância, e que são válidos apenas para explorar o potencial desta situação bidimensional, em que princesas e entidades do folclore mundial vestem terno, salto alto, usam celulares e se defendem, como podem. Em meio a boa dramaturgia e a ação de uma condição dessas, o final feliz do Lobo Mal e companhia (nem tão mal assim, já que na vida real o maniqueísmo absoluto não dura) parece ser uma utopia difícil de acreditar, tal como também o é para todos nós. Como diria Woody Allen: “a realidade é chata, mas ainda é o único lugar onde se pode comer um bom bife.”

    A Marcha dos Soldados de Madeira deveria se chamar ‘A guerra dos exilados’, uma vez que, agora, a subversão dos valores das figuras do mundo da magia, no mundo humano, em contato com os princípios complexos das relações humanas, é o que impera. Tudo é virado de ponta a cabeça, ninguém é quem parece ser, e a trama toma caminhos totalmente inesperados. Com a iminência do nascimento do filho de Branca com o Lobo, os protagonistas da série, há cada vez mais forças da dimensão em que todos vieram influenciando a paz das fábulas sobreviventes, escondidas parte em Nova York, e metade numa fazenda no interior americano. Tentando viver uma vida normal, enquanto uns tocam blues e outros tentam vender os feijões mágicos que lhe sobraram depois de tantos anos, uma personagem surge sem ninguém esperar por ela: Chapeuzinho Vermelho. Mais misteriosa que nunca, cheia de amor para dar, e histórias bem estranhas para contar.

    Mas nada mais é tão simples quanto, um dia, já foi para os envolvidos em sua tenra e fabulesca história: a realidade roubou a magia dos olhos dela, e agora, surge no mundo real como emissária direta do mal que assola a dimensão de onde todos conseguiram escapar. Um exército inspirado em Pinóquio, com soldados literalmente rústicos numa clara alusão ao mito dos homens de preto (agentes do governo dos EUA e que, supostamente, atuam entre civis a serviço das forças ocultas de inteligência do país), marcha em direção ao prédio nova yorkino onde estão a maioria das fábulas exiladas. Um estado de emergência se forma, mulheres e crianças também vão precisar lutar, e com o desaparecimento repentino do xerife Lobo Mau, o desespero só aumenta para aqueles que não tinham grandes problemas nas clássicas alegorias literárias do passado, mas agora, carecem um do outro para não serem assassinados em um grau de realismo assustador.

    A história é longa, e desta vez, sem tempo a perder em contos paralelos igualmente longos, mas entediantes. Logo no começo, somos apresentados a uma épica guerra na terra natal das fábulas, o que rende belíssimos quadros repletos de detalhes das paisagens, e suas criaturas fantásticas – dragões, homens-corvo, ogros e guerreiros de todo tipo. Padecida na batalha, e tida como morta, Chapeuzinho Vermelho nunca esqueceu do amor que cultivava pelo Menino Azul, o jovem amigo de Branca de Neve e o único conhecedor vivo dos horrores no campo de batalha que acometeram Chapeuzinho – e o que mais sofre, com seu retorno. É preciso afirmar, novamente, como este quarto volume de Fábulas, diferente de O Livro do Amor, flerta metaforicamente com o tema da perversão, no qual muitas garotas (e garotos) são expostos, geralmente por questões culturais, com suas vidas e sua índole alteradas para sempre em um processo, muitas vezes, sem volta.

    As fábulas, mesmo lutando contra o temível e homônimo soldados de madeira, se veem no dilema (i)moral de Chapeuzinho, já que neste mundo, é muito fácil sair dos trilhos que uma vez foram sugeridos como uma boa escolha, a alguém, mas é preciso lutar contra uma deles, o que os torna, é lógico, enfraquecidos como comunidade. As duas publicações aqui citadas da editora Panini, do selo Vertigo da DC são orgulhosamente cruéis com seus personagens, dando-lhes o destino que alguns não merecem, afinal, eles estão na complexa e inexplicável realidade humana. Tendo que se manter vivos, e da forma mais decente possível, o amanhã é incerto para todos, e a série, vencedora de 25 prêmios Eisner, o Oscar dos quadrinhos, ainda parece ter muito fôlego no desenrolar de suas tramas paralelas. E como diz o Príncipe Encantado, a certa altura da história: “O governo dos mundanos cuida deles!”. Gostaria que ele viesse para o Brasil ver a situação do cidadão brasileiro, em 2019. Seria uma dose de realidade forte demais, para ele.

    Compre: Fábulas – Volume 2.

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  • Resenha | O Universo de Sandman: O Sonhar – Volume 1

    Resenha | O Universo de Sandman: O Sonhar – Volume 1

    Embora a DC Comics já tenha anunciado que esse será o último ano do selo Vertigo (que a partir de janeiro de 2020 mudará para DC Black Label), um dos carros-chefe da marca voltou com força total apresentando nada menos que quatro títulos mensais levemente conectados entre si: é o Universo de Sandman, criado por Neil Gaiman no fim dos anos 1980 e começo de 1990. Gaiman já havia revisitado seus personagens em Sandman: Prelúdio, mas agora volta como curadoria para que novos autores brinquem no seu fabuloso playground onírico.

    A edição lançada pela editora Panini sob o título O Universo de Sandman: O Sonhar – Volume 1 apresenta uma história introdutória que nos dá um panorama do que iremos ver nos quatro títulos que vem pela frente, além do primeiro arco de seis edições do título The Dreaming, que fala especificamente sobre o reino de Morfeu. Então, temos uma visão mais geral do que vai acontecer logo no início, e sabemos que Daniel – o Mestre do Sonhar atual – simplesmente desapareceu. Lucien, o bibliotecário, se torna guardião do Reino dos Sonhos até que seu mestre retorne. Temos um deslumbre do que vem por aí, com destaque para uma nova versão de Tim Hunter (qualquer semelhança com Harry Potter é mera coincidência), além de novos personagens baseados nas tradições vodu de New Orleans. Após essa introdução, começa o arco do Sonhar em si.

    Aqui fica interessante ver como o roteiro de Simon Spurrier casa perfeitamente com a proposta de Gaiman. A arte da brasileira Bilquis Evely é incrivelmente atual e nos brinda com easter eggs genuinamente brasileiros (uia! Cangaceiros!), que nos faz sentir ao mesmo tempo que estamos lendo algo moderno e já conhecido.

    Entre personagens já conhecidos, como Mervyn Cabeça-de-Abóbora, Lucien, Abel e seu eterno algoz e irmão Caim, acompanhamos a jornada de uma personagem nova com a qual facilmente nos identificamos: Dora. Ela é uma criatura incompreendida, que consegue saltar de sonho em sonho e não entende sua verdadeira essência. Dora é boca-suja e impetuosa, e incrivelmente adorável – mas também é um monstro horrendo! Ela é o fio que nos conduz à história do destino do Sonhar.

    Não é necessário nenhum conhecimento prévio para apreciar essa nova obra-prima dos quadrinhos atuais. Todo o background necessário está explicado na própria história. Mas ainda assim, a edição é muito mais aproveitosa para quem já tem afinidade com o material de Gaiman na Vertigo, pois expande esse universo de forma magistral. Aguardemos ansiosamente as próximas edições, tanto do Sonhar quanto dos outros títulos, antes que a Vertigo vire marca de uísque de vez!

    Compre: O Universo de Sandman: O Sonhar – Volume 1.

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  • Resenha | Fábulas – Livro Um

    Resenha | Fábulas – Livro Um

    A ideia de juntar o fabulesco com o real, as criações dos irmãos Grimm, de Walt Disney e outros antigos autores, e fazê-las se cruzar em mil e uma situações pelas calçadas e prédios de Nova York, é irresistível demais para habitar apenas o terreno das idealizações. E qual outra mídia seria mais adequada para o surreal explodir com suas cores, seus célebres exageros, seu ideal satírico do que as histórias em quadrinhos?

    A nona-arte consegue abordar com naturalidade e fascínios impressionantes a crueza do mundo real, cheio de leis, sexo e contradições, e ao mesmo tempo o fabuloso e o onírico, sendo um palco narrativo mais do que perfeito para uma premissa que visa juntar todas as figuras (ou boa parte delas) dos contos de fadas, e de outras mundialmente famosas reinações infanto-juvenis, em torno de um crime sem solução.

    Sempre no limiar entre a verdade, e a ficção, a trama desse primeiro volume se inicia com o arco Lendas no Exílio, e envolve os mitológicos Branca de Neve, o Lobo Mal, Príncipe Encantado, Barba Azul e muitos outros ícones em forma humana, infiltrados na sociedade americana após fugirem dos reinos encantados onde moravam, escapando de uma força demoníaca avassaladora. Conformados, e cientes de precisarem superar suas desavenças clássicas para sobreviverem do lado de cá, tudo vai bem até que o exílio dessas figuras é conturbado pela morte de Rosa Vermelha, a irmã de Branca de Neve.

    Ao desencadear uma investigação que nos faz conhecer a fundo vários segredos, descobrimos junto do Lobo Mal, o experiente detetive que parece uma versão caricatural de William Somerset, de Os Sete Crimes Capitais, que ninguém consegue se manter inocente neste mundo real. Com um mistério pedindo resolução, todas as personagens acabam se entrelaçando (a relação de um dos três porquinhos com o Lobo é ótima, mesmo que rapidamente mostrada), mas bem distante do contexto e dos valores fabulescos que aprendemos a vê-los, desde a nossa infância.

    Todos(as) estão jogados aqui numa espécie de rascunho de um conto mal elaborado de Agatha Christie. Isso porque a história é totalmente dependente da sua premissa inicial, e fraca no desenrolar da trama oriunda da ideia central. Em certos pontos, a trama (frágil, e previsível) recicla alguns diálogos expositivos e certas explicações também, pois parece não se sustentar com seu pleno desenvolvimento. Aqui, o roteirista Bill Willingham prefere sempre olhar o passado para desdobrar as situações presentes, e nunca alçar o futuro, como nem mesmo o final um tanto inseguro, deste primeiro volume, consegue transparecer.

    Mantendo um certo interesse (em especial nas primeiras cenas, nas quais as interações entre personagens provam o potencial pobremente aproveitado da história), e com belíssimos painéis beneficiados pelo traço instigante e detalhista de Lan Medina, o começo desta saga publicada no Brasil em 2012 pela editora Panini, sob o selo Vertigo, da DC Comics, conta com inúmeras lendas dos contos de fadas refugiadas em um cenário urbano, onde é proibido revelarem suas reais aparências. Porém, em termos de juntarem essas figuras em torno de um desaparecimento de uma delas, em uma ambientação atual, cínica, e cheia de conflitos mesquinhos, digamos que o antigo O Mistério de Feiurinha fez muito menos, ser muito mais.

    Afinal de contas, a resistência, o não-conformismo e a luta instigam muito mais que a possível vitimização, o silêncio e a fuga conformista dos exilados. Com Fábulas – A Revolução dos Bichos, a evolução natural da história acontece, com seus elementos básicos sendo muito mais bem aproveitados que no início desta saga sobre os mitos refugiados, e em convívio, neste nosso mundo real não tão doce, e colorido, assim. Se no fraco Lendas no Exílio, os ícones dessa dimensão surreal precisavam se acostumar com um novo cenário, e com a saudades da terra natural (de onde foram enxotados, por uma força diabólica irrefreável), agora chegou a vez da revolta dos exilados – e no maior estilo George Orwell, versão luta armada de guerrilha.

    Saem os conformados civilizados, entram os rebeldes inconformados: não mais na Nova York do volume anterior, mas numa fazenda isolada aonde as lendas que se recusam a ficar numa forma humana precisam morar – bem longe dos olhos dos “mundanos”, como por eles somos chamados, assim como éramos os “trouxas” para os bruxos de Harry Potter. Cientes de que não estão vivendo um “felizes para sempre” nesta fazenda, já que o gosto de injustiça ainda é muito presente para eles, os porquinhos apenas desejam reconquistar o reino encantado de onde todos precisaram escapar da noite, para o dia.

    A tanto, um ideal separatista toma conta dos ânimos das criaturas da Fazenda, e os porcos se mostram militantes obstinados a agregar mais pessoas a aventura de retomada do seu lugar de origem. Caso contrário, a opinião é de que nunca terão de volta a liberdade e a segurança que tinham, mas nem todos querem se arriscar. Numa crítica ao totalitarismo, e a selvageria que habita em toda ideologia imposta a uma população, a história se entrega ao gênero de aventura de suspense, recheada de pequenos bons momentos satíricos quando a tensão é capaz de sufocar quaisquer dos leitores, numa trama deliciosamente imprevisível.

    Neste segundo volume, muito mais bem resolvido e ousado, vários clássicos da literatura do pós-guerra são homenageados, como o próprio A Revolução dos Bichos, de Orwell, e o extraordinário O Senhor das Moscas, de William Golding. Quando uma facção começa a se formar na fazenda das fábulas, uma luta pelo poder toma corpo entre os conterrâneos que deveriam se unir contra um mal maior. Assim, lidando com esse trabalho de filosofia moral que a história sobre separações e autoritarismo oferece, o roteirista Bill Willingham explora com grande dinamismo as relações mundanas entre os ícones mitológicos, e acima de tudo, a ética dessas criaturas que passam a lidar com seus choques ideológicos num mundo antes simples, e hoje, complexo.

    Mortes, prisões, e reviravoltas inesperadas começam a dar o tom, e o plano que era o melhor para todos os exilados, vira exatamente o contrário. Ninguém está seguro, mais, e todos parecem ser cúmplices de verdades absolutas que não beneficiam ninguém. Difícil acreditar que Branca de Neve, o coelho da Alice, e até mesmo uma Cachinhos Dourados armada não merecem nossa confiança, mas nota-se ser impossível reconquistar o reino encantado, e manter a paz entre todos, ao mesmo tempo. A Revolução dos Bichos é uma ótima e reflexiva diversão com uma arte gráfica belíssima, e belos painéis ilustrando novamente este mundo remodelado, e tão simbólico quanto real, do ‘era uma vez’.

    Compre: Fábulas – Volume 1.

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