Categoria: Resenhas

  • Resenha | Opus

    Resenha | Opus

    O mangá Opus começa no capítulo 24 da parte 3 de Resonance. Uma mulher está apontando uma arma para a própria mãe quando, de repente, a cara desta começa a derreter, revelando ser o vilão mascarado.

    Calma. Respira. Do que diabos estamos falando? Na verdade, Resonance é o mangá que o protagonista de Opus está prestes a finalizar. O artista Nagai quer dar um desfecho X, porém seu editor gostaria do final Y. A partir daí, uma série de acontecimentos bizarros tomarão a vida de Nagai, pois a realidade se juntará à ficção que ele mesmo criou!

    A obra é uma aula de metalinguagem, e Satoshi Kon esbanja genialidade nesse aspecto. O saudoso mestre Kon mostra os embates internos de um artista em relação à própria obra, além de deixar muito claro que forças externas podem simplesmente encerrar uma obra de forma abrupta. E quanto mais você avança nos dois volumes do mangá, compostos de 20 capítulos no total, por vezes esquecemos o que é realidade e o que é ficção.

    Nagai encontrará seus próprios personagens, e estes acabarão se rebelando contra o roteiro já escrito. Daí teremos o início da fusão entre realidade e ficção, e o termo “furos de roteiro” ganhará um novo significado para todos nós (leia para descobrir do que estou falando). É realmente incrível a sagacidade de Kon ao trazer tantas alegorias e loucuras para retratar algo extremamente real: a dificuldade de um artista conceber uma obra e ter controle sobre ela. No caso de Nagai, a força externa é seu editor. Para os personagens de Resonance, essa força externa é o próprio Nagai. E agora as criaturas encontram seu criador e juntos tentarão mudar os rumos do roteiro. Ou será que não?

    Talvez o ponto mais genial desta obra seja a casualidade que envolve a criação do final. O último capítulo da obra não foi finalizado pelo autor. Isso mesmo, Opus tem o mesmo problema de Resonance. “Então estamos diante de um mangá sem final?”, você pergunta. Felizmente, não. A editora, ao publicar o mangá, teve acesso ao rascunho do capítulo final, e este pode ser conferido na íntegra aqui. Interessante que mantiveram o material 100% original, com a arte quase toda em lápis. Eu custo a acreditar que isso não foi uma jogada de mestre de Kon, pois conversa de forma perfeita com Opus. Basta notar que no primeiro capítulo Nagai entrega o capítulo final em rascunho. E agora, o próprio autor de Opus só possui o final do mangá em rascunho…

    Intencional ou não, Opus é uma obra fascinante que brinca com a própria realidade e retrata uma espécie de bastidores da alma de um artista. Satoshi Kon é um mestre imortal que merece ser apreciado sempre (assista a Perfect Blue e Paprika para notar algumas ideias que diretores de Holywood “pegaram emprestado”, só para citar dois exemplos). Pena que a Editora Panini não deu um tratamento melhor a edição brasileira. Uma obra desse calibre merecia, pelo menos, páginas com papel de melhor qualidade, que é o caso das páginas coloridas que abrem o volume 1. Vencido esse pequeno obstáculo, Opus é um grande mangá que merece pertencer à sua estante.

  • Resenha | I Am Not Okay With This

    Resenha | I Am Not Okay With This

    Considerado pela Organização Mundial da Saúde como o “mal do século” e a quarta principal causa de incapacitação no mundo, a depressão é hoje responsável pela interferência direta no cotidiano das pessoas, afetando desde a capacidade de trabalhar, estudar, como também o aproveitamento da própria vida. O Brasil hoje possui dados alarmantes de pessoas depressivas, sendo o segundo país das Américas com maior número de pessoas nesta condição, equivalentes a 5,8% da população, perdendo apenas para os EUA.

    As causas da depressão podem ser uma combinação de fatores, desde sociais como genéticos, e aliado ao fato das dificuldades no tratamento — menos de 25% dos pacientes que tomam antidepressivos continuam o tratamento por seis meses e uma grande parcela dos que param o fazem devido aos efeitos colaterais — e os preconceitos sofridos por muitos daqueles que padecem de tal transtorno, acendem um sinal de alerta sobre a importância da prevenção e da conscientização de toda a sociedade em relação à saúde mental.

    Desse modo, é natural que tais temas sejam cada vez mais discutidos em obras dos mais diversos gêneros. Algumas de forma responsável, outras não. Charles Forsman, aparentemente, se interessa muito pelo tema. Seus quadrinhos possuem um tom amargo e angustiante, além disso, tem como assinatura seu traço característico e temas que giram em torno de transtornos mentais envolvendo adolescentes e jovens adultos.

    Dono de um traço que remete diretamente aos Peanuts de Charles Schulz, Forsman se tornou conhecido com a publicação de The End of the F***ing World, publicado no Brasil pela Conrad e recentemente adaptado em uma série já cancelada pela Netflix. Curiosamente, esse traço fino e caricato, que nos remete diretamente à infância, causa uma estranheza direta pelos temas abordados. Ainda que Charlie Brown seja um personagem depressivo, Forsman eleva isso a uma leitura incômoda e difícil.

    I Am Not Okay With This, publicado pela editora Skript através do sistema de financiamento coletivo Catarse, retoma tais temas. Aqui acompanhamos a vida de Sydney, uma adolescente solitária que ganha um diário de sua orientadora estudantil como forma de expor seus sentimentos. Dessa forma, nossa relação com a personagem se dá por meio desse diário. Assim, o tom de monólogo em uma crônica episódica de sua vida permeia toda a obra. Através do diário sabemos da morte de seu pai e o quanto isso ainda afeta sua família, além das angústias, paixões e o vazio existencial da personagem.

    Ainda que a trama utilize o diário da protagonista para que conheçamos a personagem, o autor utiliza, em certos momentos, uma narrativa bifurcada na qual o viés da protagonista é sobreposto pelos fatos de certos personagens. Isso ocorre em dois momentos importantes da trama, ao demonstrar o dia-a-dia da mãe de Sydney e seu sofrimento, como também ao manter um olhar afastado envolvendo a violência sofrida por Dina, amiga e paixão da personagem.

    Ainda que utilize um diário como forma narrativa, o leitor percebe um sentimento de isolamento crescente da personagem. A cada página, um novo tijolo é posto em volta dela em relação à sociedade. Sua dificuldade de se expressar aumenta gradualmente, oprimida pelas próprias emoções. Essa dificuldade é demonstrada pelo autor sob um viés fantástico que diz muito sobre o caminho autodestrutivo da personagem. A violência, raiva e automutilação parecem ser a resposta da escuridão que aumenta lentamente e afasta Sydney de todos. Seu entorno não parece se dar conta do que está acontecendo com ela, algo tão comum atualmente. Mas o próprio diário e a narrativa bifurcada do autor demonstram que tais problemas não são exclusividades apenas dela, mas da nossa sociedade em geral.

    Em que pese os contornos obsessivos que o movimento “antispoiler” tem tomado — sem qualquer viés crítico e descolado da discussão da própria obra —, é necessário reforçar o caráter trágico do fim da obra, com a personagem sem qualquer capacidade de superar seu isolamento e optando por uma solução final. Forsman é direto. Não há nenhuma dramaticidade ou sentimentalismo. A crueza de seu trabalho atinge o ápice na página final.

    E sobre isso, não tenho condições técnicas ou intelectuais para esclarecer se a abordagem do autor foi a mais correta. Mas não me cabe ser censor da obra apenas pelo impacto que ela pode ter causado em mim. De qualquer forma, causa estranheza como a editora Skript anunciou esse quadrinho desde o seu lançamento como uma simples HQ alternativa, o que convenhamos, claramente não é só isso. Ainda assim, a resenha do Lucas, do site Melhores do Mundo, parece ter servido de alerta para que os editores se deem conta da responsabilidade que tem nas mãos e que um simples aviso na própria obra não é o suficiente.

    I Am Not Okay With This é um retrato opressivo, sombrio e contundente sobre nossos dias. Se Forsman parece não saber a melhor forma de retratar alguns temas, em contrapartida, tem muito a dizer sobre a vida de uma parcela da sociedade cujas emoções e problemas excedem sua capacidade de expressá-los.

    Se você sofre de depressão ou algum outro tipo de transtorno mental não hesite em buscar ajuda.

    Fontes e links úteis:
    https://www.cvv.org.br/
    https://www.setembroamarelo.org.br/
    https://www.paho.org/pt/topicos/depressao
    http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/no-dia-mundial-da-saude-oms-alerta-sobre-depressao/
    https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/d/depressao
    https://www2.samp.com.br/fique-por-dentro/noticias/janeiro-branco-brasil-esta-entre-os-paises-com-maior-numero-de-casos-de-depressao-e-ansiedade.htm
    SOLOMON, A. O Demônio do Meio-Dia: Uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
    DUNKER, C. O Palhaço e o Psicanalista: Como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo. Planeta, 2019.
    https://oilychuck.wordpress.com/
    https://melhoresdomundo.net/a-gente-lemos-i-am-not-okay-with-this-com-muitos-spoilerezes/

  • Resenha | Arlequina & Hera Venenosa: Paixões Violentas

    Resenha | Arlequina & Hera Venenosa: Paixões Violentas

    Em Batman: A Série Animada, desenvolvida por Bruce Timm, já havia um esboço de parceira (e até alguma tensão sexual mínima) entre as personagens Hera Venenosa e Arlequina. Diante disso, o roteirista Chuck Dixon ao lado do artista Joe Chiodo decidem explorar um pouco dessa interação entre as personagens na curta história Arlequina e Hera Venenosa: Paixões Violentas.

    Publicada há alguns anos pela Editora Mythos, e ainda que seja uma história curta, merecia uma edição mais caprichada. A arte de Chiodo emula o traço da animação dos anos 90 sem deixar de lado seu caráter próprio, apesar de apelar à sexualidade das personagens. O trabalho de cor realmente chama a atenção, se assemelhando a tintas de aquarela, infelizmente, pouco valorizado no papel desta edição.

    Na trama, Coringa expulsa a namorada após um assalto que dá errado. Ao invés dela perceber a relação abusiva existente, ela resolve obedecer sua ordem autoritária, acreditando que caso consiga se virar sozinha, ele a aceitaria de volta. Esse fato certamente serve de paralelo com a realidade de muitas mulheres abusadas física e emocionalmente, assim como a personagem.

    Há uma máxima falaciosa de que a DC Comics só começou a sexualizar a personagem após mudar seu uniforme, perto da época dos Novos 52, tal qual se vê em Batman: Assalto em Arkham e Esquadrão Suicida. Nessa história, publicada em 2001, ela luta contra a dupla dinâmica em poses praticamente impossíveis de ocorrer para uma mulher normal, faz às vezes de pinup, como um objeto sexual, assim como outras personagens.

    Em À Prova de Morte, filme  dirigido por Quentin Tarantino, há uma fala que conversa bem com a premissa desse gibi. O personagem assassino de Kurt Russell diz “existem poucas coisas mais atraentes que o ego amargurado de um anjo”, e isso combina com a postura da personagem após romper com o Palhaço do Crime. Embora Quinzel não tenha uma consciência sã de que sofria assédios constantes por parte de quem ela tinha como parceiro, enfim ela passou a ter uma postura resoluta quando tomou noção da rejeição que sofreu.

    Dixon apresenta uma história simples, com momentos de ação bem pensados e sem grandes arcos dramáticos. A temática é igualmente simples, o que mais faz brilhar certamente é o subtexto contestador de Hera reclamando que Harley que é submissa demais, ainda assim não lhe negando ajuda, seja por amizade ou por segundas intenções. Mesmo sendo uma história breve Paixões Violentas faz refletir, diferente de boa parte dos produtos da cultura pop, e isso se torna ainda mais válido quando reflete a realidade de violência doméstica existente em diversos lares.

  • Resenha | Blueberry: Amargura Apache

    Resenha | Blueberry: Amargura Apache

    Baseado no clássico herói do faroeste de Jean-Michel Charlier e Jean Giraud (Moebius), Blueberry: Amargura Apache é uma história de aventura do tenente e herói título Mike Blueberry, com arte compartilhada por Joan Sfarr e Christophe Blain. A história é um western escapista, bastante direta e tradicional, mostrando uma aventura do agente da lei e se utilizando do cenário desértico e montanhoso os cânions colossais quase como um personagem.

    Blueberry testemunha um crime de intolerância, cujas circunstâncias são estranhas, envolvendo o assédio a duas mulheres nativo-americanas — parentes de um apache — e um assassinato passional que claramente não tem as mesmas intenções vis dos estupradores. Em poucas páginas já se estabelece a simpatia do personagem central aos navajos, as disputas socio-ideológicas entre os locais e a coisificação dos nativos.

    Mesmo sendo curta, a história possui um ar bastante melancólico em seu texto, sobretudo nas conversas entre os homens brancos que não são tão intolerantes. As conversas entre os policiais são longas, eles parecem ter as palavras travadas na garganta, possivelmente para disfarçar a vergonha de se discutir o futuro e o presente de todas as outras pessoas com menos privilégios e menos liberdade de viver, como são os nativos e as mulheres neste retrato.

    Esta versão da editora Faria e Silva é bastante caprichosa, com um acabamento simples e cuidadoso tanto na parte externa do gibi quanto no trabalho interno. O papel ajuda a valorizar o traço característico, as cores e as paisagens do oeste selvagem.

    As tramas secundárias são ordinárias e desimportantes, mas a história tem seus méritos, especialmente quando recicla os clichês de herói e ressignifica-os. Essa desconstrução casa bem com o traço simples das expressões que Blain coloca aqui, lembrando os personagens da Era de Ouro dos quadrinhos norte americanos.

    As personagens que aparecem na história são humanas, tem dilemas adultos que, mesmo sem se aprofundar demais dão conta de uma complexidade de fácil entendimento e igualmente fácil associação com dilemas atuais. Chega a ser curioso como o tom do quadrinho muda quando há confrontos. Os embates são violentos e sanguinários, a história mostra o quão cruel e agressivo era esse tempo. Amargura Apache é uma boa história de introdução a novos leitores, e promete dar continuidade a essa nova versão do herói que reverencia o clássico, com novas camadas de complexidade e discurso.

  • Resenha | Dragonero: O Caçador de Dragões

    Resenha | Dragonero: O Caçador de Dragões

    Dragonero: O Caçador de Dragões é a série de fantasia da editora Bonelli criada por Luca Enoch e Stefano Vieti com desenhos de Giuseppe Matteoni. Essa edição especial lançada pela editora Mythos é o ponto de partida da história originalmente publicada na revista Romanzi e Fumetti em junho de 2007, introduzindo o personagem central e seus comparsas em um mundo cujo cenário remete a alta fantasia com elementos de aventuras de RPG de mesa.

    A história começa fora de Erondar, a terra civilizada além da barreira do Valo, onde se separa o Império da Terra dos Dragões. Este mundo possui figuras fantásticas como elfos, anões, orcs e humanos, figuras conhecidas pelo leitor de outras obras tanto clássicas, como Irmãos Grimm, como mais contemporâneas com J.R.R. Tolkien. Antes do leitor conhecer o protagonista são apresentados típicos personagens de aventuras de fantasia: um mago com receito de tecnologias recém-chegadas no reino, uma bela guerreira que organiza investigações contra tecnocratas, um caçador, um mensageiro imperial, um monstro civilizado, além de um chamado a aventura bem típico dos jogos de roleplay de mesa.

    Depois do começo truncado, a história flui bem. Uma mensagem imperial chega a Ian, um bravo guerreiro e caçador que, por sua vez, morava com Gmor, um orc que reside no subterrâneo de sua casa. A química entre os dois é inegável, são dois amigos, muito bem humorados e que aparentemente tiveram muitas aventuras até então, e é exatamente essa química que diferencia essa de outras histórias genéricas.

    A construção dos cenários é bem feita, as planícies são bonitas e as cavernas idem e isso  ajuda a tornar esse mundo um lugar rico e palpável. Tudo é bem detalhado e se encaixa bem, e as criaturas são bem compostas, resultando em lutas emocionantes e bem longas. Dentre os personagens, Gmor é a alma de Dragonero. Ele é engraçado, tem ótimas tiradas e lida bem até com o preconceito ligado aos membros de sua raça. Os elfos nesta versão são bem diferentes, parecem mais com o que se espera de um alienígena do que belos homens e mulheres com poucas diferenças físicas dos humanos, e a diferença entre as espécies é bem demarcada já nessa edição inicial.

    Ao ganhar a alcunha de Dragonero, Ian lamenta ter matado um ser inteligente. Ele não é um simples bárbaro, e ao seu ver isso era algo incivilizado. O código ético dele tem bastante semelhanças com o cimério Conan de Robert E. Howard e com paladinos das aventuras de capa e espada, resultando em uma história simples, direta e bastante divertida,  com roteiros e desenhos que, se não são extraordinários, ao menos cooperam com toda a aura de fantasia escapista típica dos filmes de matinê dos anos 80 e 90.

  • Resenha | Marighella #Livre

    Resenha | Marighella #Livre

    Marighella #Livre, publicado pela editora Draco, narra três momentos importantes da vida de Carlos Marighella: quando tinha 24 anos e foi torturado na véspera do que seria o Estado Novo em 1936; nos Anos de Chumbo da ditadura civil militar iniciada em 1964 quando levou um tiro no peito e enfrentou 14 policiais; pós AI-5, quando foi executado em 1969. A história é assinada por  Rogério Faria, tendo como ilustradores Ricardo Sousa nas duas primeiras histórias, e Jefferson Costa na última.

    Na primeira, Sousa emprega um traço mais solto, cartunizado, com desenhos que, caso não fossem sobre uma história de luta e violência, pareceriam inocentes e ingênuos. Esse contraste funciona bem, ainda mais quando se mostram detalhes de tortura e violência explícita que, nesta primeira história, é apenas um prenúncios dos tempos complicados que viriam décadas depois.

    Na segunda história, as autoridades perseguem Marighella quando ele está apenas vivendo como um civil tranquilo, assistindo um filme no cinema. Para além de efeitos dramáticos, Sousa denuncia que há poucas diferenças reais entre os tristes métodos das duas ditaduras, seja a varguista ou a militar.

    Na história desenhada pelo autor de Jeremias: Pele, há um clima semelhante às revistas policiais da Vertigo, com elementos de thriller, violência estilizada e, mesmo assim, não se perde o contato com o real. Por mais que seja a mais curta (e sangrenta) das três, é a mais carregada de conteúdo. As entrelinhas dão conta de um sujeito que queria pouco, que queria ver o povo livre, que via no sonho comunista um modo de todos os trabalhadores serem tratados como iguais. Marighella era um homem simples, que nessas breves histórias sequer tinha chance de discursar. Sua voz é resumida nos momentos onde lhe faltava fôlego, mas nas suas ações sobrava verve e vontade de lutar. Uma vida poética e inspiradora, que mira a revolução como única alternativa a classe trabalhadora.

  • Resenha | Hulk: Futuro Imperfeito

    Resenha | Hulk: Futuro Imperfeito

    A cultura pop está repleta de histórias ambientadas em futuros pós-apocalípticos, seja na literatura, no cinema ou nos quadrinhos em geral. Em que pese as características basilares do gênero, algumas obras se destacaram ao longo dos anos, por diferentes fatores.

    Nos anos noventa, o prolífico artista George Pérez procurou Peter David para trabalharem juntos em algum projeto. Sendo David o maior escritor da história d’O Incrível Hulk, nada mais natural do que a parceria entre esses dois talentosos profissionais resultar em uma aventura do Golias Esmeralda.

    Assim nasceu Futuro Imperfeito, minissérie publicada originalmente em duas partes pela Marvel Comics nos últimos meses de 1992. Na HQ, David e Pérez concebem a cidade de Dystopia, um lugar superpovoado, cercado por desertos e erigido a partir de ruínas do que outrora foi uma metrópole civilizada.

    Nesse lugar em que vozes se confundem e pessoas vestidas em trapos fazem de tudo para sobreviver, rebeldes se camuflam no meio da multidão, enquanto organizam a resistência ao sombrio e monstruoso Maestro, tirânico líder da região. Nesse lugar em que o futuro parece se encontrar com um passado remoto, a esperança surge no verde da pele do Hulk, que é trazido de seu tempo até esse futuro absurdo para descobrir questões inconvenientes de sua vida e então se provar em batalha, pelo bem do que restou da humanidade.

    Elogiar a qualidade de escrita de David é chover no molhado. Tecer elogios à narrativa visual de Pérez seria igualmente redundante. Fenomenal, a dupla construiu de forma conjunta uma história tão simples quanto memorável para um dos personagens mais complicados de se compreender no Universo Marvel.

    Por ser o escritor da série mensal do Hulk à época, David possuía amplo domínio do background do personagem. Desse modo, o herói surge em Futuro Imperfeito da mesma forma com que vinha sendo representado em sua série solo daquele tempo: a consciência de Banner no corpo do Hulk, o que fazia do herói tão genial quanto poderoso, ao mesmo tempo.

    Assim, o maior inimigo possível para o Hulk debuta no Universo Marvel. O Maestro é tudo o que o Hulk pode vir a ser, e tal sombra paira a todo instante na HQ, que não perde tempo nem apresenta nenhuma barriga na execução de seu dinâmico enredo.

    Diálogos poderosos se intercalam entre cenas de ação ágeis e impactantes, que reafirmam a escala de poder na qual se inserem os protagonistas desse embate de iguais, tão desiguais quanto o tempo poderia tornar. Recheada de referências, a HQ entrega uma aventura distópica de primeira grandeza e se configura como uma das histórias mais emblemáticas do Gigante Verde.

    Complementando o encadernado publicado pela Panini Comics, a história O Último Titã é escrita também por David, mas ilustrada por outro parceiro seu dos tempos da série mensal: Dale Keown. Ambientada em um futuro ainda mais longevo, no qual somente o Hulk sobreviveu na Terra, vemos o dilema existencial entre Banner e Hulk novamente trabalhado, de forma diferente da vista em Futuro Imperfeito, já que agora as duas personas lutam por espaço e possuem desejos completamente diferentes para encararem o fim dos tempos.

    Com tradução de Jotapê Martins, Fernando Lopes e Marcelo Soares, o encadernado Hulk: Futuro Imperfeito aquece aquele coração marvete com sucesso e preenche a lacuna existente no mercado com a ausência inexplicável dessa HQ durante tantos anos, após uma republicação lá do comecinho dos anos 2000.

  • Resenha | O Fantasma: O Fantasma Vai à Guerra

    Resenha | O Fantasma: O Fantasma Vai à Guerra

    Parte da iniciativa da Editora Pixel em publicar histórias antigas do Espírito que Anda em cores, O Fantasma Vai à Guerra é mais uma parceria de Lee Falk e Ray Moore (roteiro e arte, respectivamente) apresentando tramas mais longas, em um encadernado simples. Esse é mais um exemplo do esforço de guerra que boa parte dos heróis clássicos fizeram nos anos 1940, com o personagem participando do conflito contra o Eixo de Adolf Hitler, em uma época anterior até ao ataque a Pearl Harbor.

    A história mostra Bengala sendo invadida pelos japoneses, e contém os mesmos problemas ao retratar os selvagens, fato que já ocorreu em O Tesouro do Fantasma e tantos outros momentos do herói. Para fortalecer a ideia de que o Fantasma é o auge do homem civilizado, os pigmeus são mostrados como pessoas tolas e sem evolução mental e civilizatória. O protagonista defende os acordos para lidar com reféns iguais aos do Tratado de Genebra, humanizando os inimigos encarcerados.

    O roteiro surpreende por ser maduro para sua época, ainda mais se posto em comparação com outras aventuras do personagem. Quando chega para a ação, demonstra sua humanidade e sentimentalismo, sendo a exceção das outras pessoas “comuns”. Já os japoneses são mostrados como cruéis, como era de se esperar, afinal, eram tempos de guerra e essa era uma revista de propaganda também. Mesmo o herói sendo benevolente, lamentando a morte de seus adversários, há momentos que ele precisa assassinar os vilões, fato que o deixa claramente sensibilizado.

    Após 50 páginas a ação passa a ser frenética. Os combates entre aviões são bem feitos, Moore desenha bem momentos de tiroteios e veículos blindados. Dentre os gibis de esforço de guerra, O Fantasma Vai à Guerra não é dos mais escapistas, brinca bem com os clichês e até é bem sério se comparado com outras histórias dessa mesma época envolvendo Superman, Batman ou Capitão América. Lee Falk, mesmo fazendo tramas pueris, não tem receio de condenar veementemente o fato desse conflito armado, e propaga sua mensagem de maneira bastante sóbria.

  • Resenha | Capa Preta

    Resenha | Capa Preta

    Lourenço Mutarelli é um autor brasileiro cuja obra é bastante peculiar. A editora Comix Zone aproveitou da proximidade de um de seus editores com ele para publicar compilados de algumas de suas histórias clássicas. Foi assim com o fanzine Over-12, recentemente trazido de volta junto com  Mundo Pet.

    Capa Preta possui quatro histórias, publicadas originalmente em anos diferentes e que tem em comum a temática da violência e escatologia. As histórias são Transubstanciação (1991), Desgraçados (1993), Eu te amo, Lucimar (1994) e A confluência da Forquilha (1997). Na primeira é mostrado que nesse mundo de Mutarelli, as pessoas são degeneradas, podres e taradas em sua maioria. A trama aborda um poeta vagabundo, que comete infidelidades e tem sonhos bastante estranhos, envolvendo gente e divindades deformadas. Esses pesadelos ocorrem depois dele tentar ocupar sua mente com qualquer coisa: ouve rádio ou vê TV com volume de ambos altos. A atmosfera aqui lembra um pouco o trabalho do quadrinista Robert Crumb, embora mais sujo e cínico, deprimente em seus personagens como os do poeta e contista Charles Bukowski, ou seja, esse cenário fálico, violento e infernal, possui influência de autores malditos, cuja visão de mundo é mirada em desesperança, basicamente.

    As pessoas mostradas nas histórias são feias, cheias de imperfeições e imoralidades, e o uso do preto e branco valoriza essas condições. Outro aspecto curioso é que Mutarelli parece gostar demais de música portenha, as canções em espanhol permeiam mais de uma história, e servem de pano de fundo para a narrativa. Apesar da brevidade das histórias, há um monte de referências visuais em cada uma. A leitura para ser apreciada precisa ser feita com atenção, afinal, seu traço característico envolve um número de detalhes imenso em cada página dupla que  trabalha.

    As pessoas das quatro histórias são destruídas moral e sentimentalmente, viciadas e insensíveis mesmo quando são as “mocinhas”. Há poucos momentos de alegria e muitos de agonia. Elas são personagens, de fato, desprovidas da graça. Em mais de uma história há também a questão de profanação de elementos bíblicos, embora a maioria das vezes, só se referencie momentos contraditórios que o escrito cristão normalmente tem, como as brigas fraternais de Caim e Abel ou Esaú e Jacó. As cenas de sexo são grotescas, e caso o leitor seja muito sensível, é preciso apreciar com cuidado e parcimônia.

    A mais anárquica e pesada entre as desventuras reunidas é A Confluência da Forquilha, que mistura sentimentos familiares com fetiches estranhos em praticamente todos os personagens. Toca o “Divino Mau” de fato e mostra um apego dos homens estranhos ao comum e ordinário como forma de rechaçar o que o sujeito conservador acha ser errado. A curadoria que a Comix Zone fez ao escolher essas quatro edições para formar sua publicação é bem pensada, e apesar de não haver entre elas amarras cronológicas ou narrativas, há o mesmo espírito permeando todas, sem que se perca a identidade e originalidade de cada uma.

  • Resenha | Hell NO!: Uma Busca dos Diabos – Bem-vindo ao Inferno

    Resenha | Hell NO!: Uma Busca dos Diabos – Bem-vindo ao Inferno

    Hell NO!, do autor brasileiro Leo Finocchi, é uma HQ independente produzida graças a um financiamento coletivo. A trama se desenvolve em apenas quatro volumes que foram produzidos pouco a pouco. Quando analisamos os dois primeiros volumes, o terceiro ainda estava em produção. Finalmente poderemos falar do desfecho deste épico (?) quadrinesco saído de uma mente de sanidade duvidosa e lançado em duas partes pela Balão Editorial.

    Vamos relembrar o enredo? O Diabo reinava normalmente no Inferno até que um de seus aliados próximos decide tomar o poder. Para evitar essa tentativa de golpe infernal, os três filhos do Diabo partirão em uma grande aventura em busca de relíquias que têm poder suficiente para fazerem frente ao subversivo demônio.

    A interação entre os irmãos continua a mil por hora. Lúcio tenta levar as coisas da maneira mais lúcida possível, até porque é o único que possui mãe humana, então não possui uma alma completamente diabólica. O brucutu Satã, por outro lado, é um lunático que age por impulso. Por isso que Bel vive mediando as encrencas e brigas entre Lúcio e Satã, mas nem sempre ela é tão equilibrada.

    Nossos “heróis” percorrerão vários locais para coletar as relíquias capazes de fazer frente ao poder do Tridente do Diabo, poderosa arma que está em posse do “vilão” que pretende tomar o poder no Inferno. No final do segundo volume, os irmãos chegam em uma igreja e possuem o corpo de um padre. O resultado disso está no início do terceiro volume em que já conhecemos uma das poderosas relíquias.

    Depois eles vão até um templo isolado e lá conhecem alguém bem inusitado: Deus. O Todo-Poderoso, inclusive, tem uma ligação inesperada com eles. Ali conseguirão outra relíquia que, digamos, é esdruxulamente blasfêmica. Deus é retratado como um tiozão do churrasco, todo gente boa mas um tanto bobão.

    Em seguida, os irmãos finalmente enfrentarão o demônio usurpador do trono demoníaco, voltando ao Inferno (o que justifica o nome do quarto volume, Bem-vindo ao Inferno).

    Confesso que o desfecho da trama dividiu minha opinião sobre a obra. Obviamente não irei revelar o desfecho, mas tentarei explicar sem revelar nada. Houve uma espécie de anticlímax bobo, bem esdrúxulo, que praticamente tornou aquela aventura inútil. Ao mesmo tempo, isso até que faz sentido tendo em vista a pegada desta obra. O fator inusitado foi um ponto positivo, e por isso fiquei dividido quanto ao final. Isso faz com que eu recomende a leitura, pois é garantia de diversão, e presumo que essa é a principal missão desta HQ.

  • Resenha | Crise Final

    Resenha | Crise Final

    Quando um dos novos deuses aparece morto e os céus mudam de cor, os heróis começam a desconfiar de que algo está errado. O que eles não imaginavam é o quão crítica a situação já era, e “algo errado” se torna um eufemismo de péssimo gosto, diante do caos que se avizinha no horizonte.

    Ao se infiltrar na Terra, Darkseid e seus asseclas prepararam o estratagema definitivo, o plano dos planos, e assim deflagram uma crise de proporções monumentais, sem qualquer precedente, e opõem Vida e Antivida, fragmentando tempo e espaço por todo o Multiverso, com consequências imprevisíveis.

    Diante de uma ameaça tão grande e tão inesperada, talvez nem mesmo a força combinada de todos os heróis seja o bastante para vencer a batalha das batalhas, um embate decisivo pela existência, que leva o conflito de “bem versus mal” a um patamar inimaginável. Exigidos ao máximo de suas forças, os heróis do multiverso DC se colocam contra deuses, em uma guerra definitiva dos paladinos da justiça contra os arautos da morte, servos de Darkseid.

    Grant Morrison concebe em Crise Final uma saga hermética e envolvente, que capta a essência dos personagens da editora das Lendas. O autor escocês aplica na saga conceitos que lhe renderam fama ao longo dos anos, como viagens no tempo, conflitos multiversais e narrativas em paralelo que posteriormente se perpassam e assim tecem uma intrincada colcha de retalhos, cuja significação só se mostra possível em sua plenitude ao final da trama, quando tudo se encaixa e começa a fazer sentido.

    Tal como num épico de guerra tradicional, a crise intercala diferentes focos narrativos, múltiplos frontes de batalha, dando urgência para os eventos e espaço para que os personagens se desenvolvam em cena. A diferença, contudo, reside no forte apelo da ficção científica que recai sobre a narrativa e lhe dá um charme incomum.

    Como de costume, o roteirista concebe sua trama trafegando por referências incontáveis à mitologia DC, muitas delas somente reconhecíveis para o leitor médio com o auxílio do Google, mas que se transformam em um deleite para o fã de longa data, que imerge na história tanto a nível diegético quanto na caça desenfreada a referências, das mais sutis às mais evidentes.

    Acompanhado de diversos artistas de alto calibre como J.G. Jones, Doug Mahnke, Carlos Pacheco entre outros, a trama se resulta em um trabalho de difícil fruição mas cuja experiência de leitura é bastante recompensadora.

    A edição definitiva de Crise Final publicada pela Panini Comics reúne as sete edições de “Final Crisis”, originalmente publicadas em 2008, além de “Final Crisis: Submit #1”, “Final Crisis: Superman Beyond #1” e “Final Crisis: Superman Beyond #2”. Com tradução de Jotapê Martins, o encadernado merece um maior apuro na revisão para as próximas reimpressões, pois apresenta muitos erros diminutos, que quando lidos em sequência acabam chamando a atenção.

  • Resenha | Chainsaw Man – Volume 1

    Resenha | Chainsaw Man – Volume 1

    Denji é um jovem que herdou uma dívida gigantesca de seu falecido pai e acaba tendo que aceitar todo tipo de trabalho para focar no pagamento infindável do débito de seu progenitor. Junto com seu mascote demoníaco Pochita, uma espécie de cachorro com forma de motosserra, Denji vive numa situação miserável e tenta se sustentar como caçador de demônios, exterminando os seres sobrenaturais das mais diversas aparências e tipos que surgem cotidianamente. Acontece que Denji e Pochita caem numa armadilha de um demônio e acabam sendo mortos, esquartejados e jogados num container de lixo. A breve história do jovem parece ter sido encerrada, até que Pochita absorve seu sangue e se funde com seu dono, transformando Denji num demônio humanoide com braços e cabeças de motosserra, buscando vingança a quem o matou.

    Assim começa Chainsaw Man, o mangá sensação dos últimos anos da revista japonesa Shonen Jump, lançado de 2018 a 2020, que chegou ao Brasil pela editora Panini. Escrito por Tatsuki Fujimoto, Chainsaw Man tem uma característica comum dos mangás em tratar sobre uma organização antimonstros, mas ganha pontos por abordar um contexto social num Japão fictício horrorizado por uma catástrofe, tendo em Denji, um garoto que sai dos guetos e é conduzido para sociedade média, uma exposição do abismo socioeconômico que estamos inseridos. Além de mesclar vários gêneros, sendo o horror, o primordial e mais característico nas páginas do mangá. Repleto de gore nos seus traços, Fujimoto consegue transparecer seu estilo na violência e sangue através das serras de Denji.

    Após o ressuscitado Denji acabar com o demônio que o matou, ele é encontrado por Makima, a responsável pela 4ª Divisão Especial Antidemônios da Segurança Pública do Japão, sendo acolhido por ela e tendo seu primeiro laço verdadeiramente humano após vários anos. O protagonista, a partir desse momento, começa a criar suas relações na sociedade, interagindo em grupo, além de conhecer o próprio mundo que estava tão distante da sua situação de vida.

    Além de se tornar um caçador de demônios oficial do governo e por meio disso, conhecer os demais personagens recorrentes, como Aki Hayakawa, um caçador que logo se posta como o rival do Denji, e a infernal Power, uma mulher que teve sua cabeça dominada por um demônio. Os três dividem o mesmo apartamento, o que traz momentos descontraídos durante a leitura, entre diálogos sobre o cotidiano, com um toque de humor, com Hayakawa deixando explícito seu ódio por demônios, mas tendo que conviver com dois, Denji e seu despertar sexual e Power aprendendo a lidar com humanos.

    Durante os primeiros sete capítulos que compõem o volume 1 de Chainsaw Man, o básico do que se espera de um mangá da Shonen Jump é apresentado, ao mesmo tempo que somos apresentados a um enredo promissor e subtextos envolvendo geopolítica, armamento e desigualdade social. Enquanto Denji faz suas pequenas missões, Fujimoto vai apresentando o universo ao protagonista e ao leitor.

    Texto de autoria de Wedson Correia.

  • Resenha | O Eternauta II

    Resenha | O Eternauta II

    Publicado entre 1976 e 1978, a continuação de O Eternauta,  torna a história do Viajante da Eternidade ainda mais política, utilizando claramente a repressão da Ditadura Militar da Argentina como pano de fundo. O quadrinho trazido para o Brasil pela editora Martins Fontes reprisa a parceria do escritor Héctor G. Oesterheld com o desenhista Francisco Solano Lopez. Alias, a história sobre a composição da revista é, por si só, ainda mais aventuresca que o visto nas páginas dessa publicação.

    Para entender essa nova aventura de Juan Salvo, até por conta do quadrinista Hector, alter ego de Oesterheld, ser um personagem recorrente aqui, precisamos de uma breve contextualização. Eternauta II foi publicado na revista Skorpio nos anos de chumbo da ditadura argentina, e a editora não falava abertamente sobre a condição dos artistas. Acredita-se que o roteirista, em determinado ponto da publicação, entregou os manuscritos para o desenhista em encontros clandestinos, já que ele era perseguido pelas autoridades militares que tomaram o poder na Argentina.

    No país existe um termo específico para quem não tem paradeiro nessa época: chupado (pronuncia Chuparro), o caso de Hector. Para entender a gravidade da situação, além de ser perseguido, suas quatro filhas foram assassinadas. Além disso, Gabriel Solano López, filho do desenhista, foi detido em 77,  e liberado por conta dos contatos do pai. Sua família na Espanha. Pontuar tais elementos explica muito sobre o cenário pós apocalíptico em que os personagens são inseridos logo no início dessa nova empreitada.

    A narrativa começa em 1959, o contador da história tem consciência que publicou uma aventura em outras oportunidades (quebrando a quarta parede citando nominalmente as reedições inclusive). Esse argumento metalinguístico é encarado como paranoia e como conspiração dentro da trama, e pode ser lido também no cenário real. O que se percebe são os anos 2000 como terra arrasada.

    A edição da Martins Fontes tem um bom prefácio de Fernando Ariel Garcia, que contextualiza as escolhas políticas do texto. A versão de O Eternauta 1969 com desenhos de Alberto Breccia já havia mais contornos políticos, culpando os países desenvolvidos pela miséria ocorrida na América Latina e nos demais países periféricos, mas aqui a condição se agrava.  De vários modos, a nova história é mais angustiante que o volume anterior, pra além do salto temporal.

    O cenário de pós apocalipse e a convivência com animais irracionais domésticos como parte do aspecto social dá a dimensão do quão selvagem era esse novo momento,  um reflexo dos pensamentos de Oesterheld, um perseguido pelo regime autoritário e castrador. A história corre em cenários estranhos. Além disso, os próprios personagens mudaram, há Mãos que conseguem driblar a glândula de medo, Juan parece mais poderoso, quase que como um super-herói.

    Em entrevista ao livro Bienvenido: Um passeio pelos quadrinhos argentinos de Paulo Ramos, a viúva Elsa Oesterheld descreve a sensação de ter que viver com a dor das perdas das filhas e marido como uma mutilação física. Por mais que o roteirista não soubesse exatamente qual seria seu destino enquanto rascunhava a trama, o texto acabou sendo bastante profético e ecoando o mundo real, e isso por si só torna a apreciação deste gibi em um evento triste e bastante poético.

    O cenário de terra arrasada lembra filmes como Planeta dos Macacos e sua continuação malfadada De Volta ao Planeta dos Macacos, especialmente por mostrar um mundo arrasado, e com alguns seres humanos ainda com algumas regalias além do simples dia a dia destruído de um mundo que acabou ou está em vias de acabar. Fato é que a história soa confusa em muitos pontos, parece realmente ter sido escrita sob pressão, e pudera, exigir tranquilidade e sobriedade de um contador de histórias em situação tão limite é demais, e por mais que O Eternauta II não seja um dos trabalhos mais brilhantes de Oesterheld, há muitos momentos memoráveis e reflexivos. O final triste e pragmático para Salvo e Hector mostram o quanto as personas do escritor se confundem, as perdas irreparáveis e inevitáveis na família Salvo tem fortes paralelos com a tragédia dos Oesterheld.

     

  • Resenha | Asterix: O Escudo Arverno

    Resenha | Asterix: O Escudo Arverno

    Uma certeza? Nunca tire nada de Júlio César, muito menos uma prova de rendição a ele. A busca pelo Escudo Arverno que era de César já começou, e ele vai virar a Europa de pernas para o ar se for preciso, até encontrar esse item perdido da sua valiosa coleção de conquistas. O que a publicação das editoras brasileiras Cedibra, originalmente, e posteriormente, Record, comenta é a ganância de uma figura imperial que de tão desmedida, torna-se motivo de piada nas mãos dos autores franceses Albert Uderzo e René Goscinny. Fora que o escudo nem é tão lindo assim, mas como ele era de um herói gaulês, eis a prova material de que César conquistou até mesmo a enorme região da Gália.

    Só tem um pequeno detalhe: a Gália possui uma pequena tribo resistente, lar dos mais loucos (e eficientes) guardiões que, quando não estão bebendo e festejando como se fossem hobbits, protegem sua terra-natal mais do que qualquer exército sonharia em fazer. É claro que estamos falando de Asterix e Obelix que, ao ficarem sabendo da empreitada atrás do Escudo Arverno, vão fazer de tudo para chegarem nele antes dos romanos – afinal, foi forjado por um conterrâneo deles e derrotado em batalha por César. Assim, a história investiga o paradeiro desse pedaço de metal, desejado por uns como questão de honra, e por outros, por pura soberba de imperador.

    Será possível que uma guerra vai começar, só pelas confusões que envolvem essa busca? Asterix e Obelix não querem saber, e juntos do cãozinho Ideiafix, vão varrer a Gália (e testar sua amizade) para alcançarem a tal da relíquia antes. Uma aventura que não enriquece a mitologia das histórias da famosa dupla, amada mundo afora desde 1960, mas que prova também a magia e a graça de suas peripécias, caricaturas deste período histórico e suas personalidades. Com alguns momentos hilários beirando a histeria de sempre, vale tudo tanto pela superioridade em tempos de conquistas de território, quanto pela preservação dos símbolos nacionais, aqui na forma deste bendito escudo.

  • Resenha | Fantasma – Casamento e Lua-de-Mel

    Resenha | Fantasma – Casamento e Lua-de-Mel

    Imagine um diálogo, com Superman dizendo: “Eu comecei tudo isso”, e o Fantasma, hoje esquecido pela cultura pop, dividida entre DC e Marvel, respondendo: “Eu sou uma piada pra você?”. Em 1936, um dos primeiros “heróis” dos quadrinhos surgiu, quase cem anos antes de vermos Hollywood ser salva (literalmente) pelo mundo das HQ’s. Assim, o Fantasma pode ser encarado como um fóssil dessas aventuras de pessoas estilizadas que lutam pelo bem, a justiça e o patriotismo (algo inserido dois anos depois na figura do Super Homem, 100% americano). Quando a realidade bateu na porta, e as pessoas perceberam que uma guerra, na década de 30, poderia de fato afetar o mundo todo, criou-se então o desejo de medo, de salvação. Não pelos militares, mas pelos novos deuses do homem moderno. Saiu o Hércules, veio o 21º representante dos Fantasmas da Ilha da Caveira.

    E bem antes do Cabeça de Teia, e cia. Os cartunistas Lee Falk e Sy Barry criaram o arquétipo que iria definir, para sempre, o salvador dos oprimidos. Homem forte, inteligente e rápido, e que sempre vence os vilões antes de beijar sua amada, no final das histórias – nada previsíveis, acredite. O Fantasma vem de uma linhagem antiga de outros heróis do mesmo nome, e que ao habitarem a Ilha da Caveira pelos últimos quatrocentos anos, passaram o manto um  para o outro, protegendo o lugar de perigos inimagináveis que o assolam. Assim, nota-se que a criação de Falk e Barry é inseparável da sua mitologia, tal qual Flash Gordon, mas algo diferente do Batman. A própria ilha do Fantasma, seus aborígenes, suas criaturas lendárias e seus desafios são intrínsecos a quem o personagem é, algo que mestres como Stan Lee evitaram de fazer com o Thor, por exemplo. O Deus do Trovão funciona muito bem lutando em Nova York, algo difícil de imaginar com o simpático e um tanto inocente Guardião da Caveira.

    Entenda: O Fantasma – Casamento e Lua de Mel simboliza tempos mais simples, quando a pós-verdade era um conceito distante. No ano da publicação era OK dialogar sobre trágico de drogas, fanatismo religioso e totalitarismo político numa publicação para as crianças, e a polêmica talvez em torno disso poderia ser nula – principalmente devido ao talento de Falk e Barry em traduzir assuntos pesados através da ação, e do viés de uma jornada gostosa e descompromissada do herói. Ao explorar, no início dos primórdios dos quadrinhos de massa, arcos leves e muito expressivos envolvendo o Fantasma e a sua noiva Diana (uma mistura de Jane e Lois Lane) contra ditadores orientais, um deus do mundo antigo, e traficantes malucos escondidos na Ilha, torna-se irresistível acompanhar os triunfos e derrotas de um marco das HQ’s e que clama por ser resgatado para as novas gerações.

  • Resenha | Máquinas Não Choram

    Resenha | Máquinas Não Choram

    Em tempos de smart houses, smartphones, alexas e dispositivos tecnológicos dos mais diversos, nossas vidas estão cada vez mais automatizadas, constantemente assessoradas pela tecnologia. Se por algum motivo tais recursos se esgotassem, teríamos enorme dificuldade para nos readaptarmos à vida analógica, não é verdade?

    Pois então, em Máquinas Não Choram somos apresentados a um futuro próximo nos quais robôs são produtos massificados e já integrados de forma profunda na sociedade, acompanhando seus donos e os auxiliando em tarefas diárias. Após supostos problemas com o ifeel,  upgrade que possibilitou aos robôs desenvolver sentimentos, as fábricas anunciaram downgrade obrigatório, desabilitando a capacidade de sentir dos mesmos.

    Por sorte, Boy e Girl, dois robôs que desenvolveram forte laço de amizade ao longo do tempo, estavam sem conexão à hypernet no momento em que o downgrade foi realizado, e agora se tornaram párias a serem caçados e temidos pelas autoridades. O acontecimento modifica para sempre as relações entre os dois e seus respectivos donos, e os leva a uma jornada de sobrevivência e de reafirmação de valores como amizade e lealdade.

    Concebido por André Turtelli Poles e Renato Quirino, Máquinas Não Choram vai de referências como Wall-E e Blade Runner para desenvolver uma história leve e descompromissada que discute sobre vidas artificiais, construções sentimentais e até mesmo sobre liberdade. Com traço cartunesco e prosa ágil, a HQ alterna focos dramáticos a todo instante e dinamiza seu desenvolvimento ao entrecortar flashbacks e digressões com sutileza.

    Expressiva, a narrativa visual remonta ao traço cartunesco para transmitir leveza e descontração para um roteiro que, em uma segunda olhada, se mostra mais sério do que se poderia esperar. Com uma conclusão anticlimática e um uso criativo para a “trilha sonora” da história, mesclando-a com as onomatopeias e lançando-as de forma mais solta através dos requadros, Poles e Quirino discutem livre arbítrio e autoritarismo sem maiores cerimônias, fazendo dessa pequena fábula não convencional um conto ligeiramente maior do que se supunha inicialmente.

    Finais abertos carregam consigo o ônus e o bônus da controvérsia: muitos gostam, muitos desgostam, e ao se optar por algo nesse sentido, o risco se torna calculado da parte da equipe criativa. Assim, o final pode soar abrupto demais, caso se espere por um fechamento padrão para a narrativa. Essa sensação de conclusão aqui não aparece, o que deixa em aberto possibilidade de continuidade, mas também não possibilita opções imediatamente críveis para qualquer que seja o desenlace da história de Boy e Girl enquanto fugitivos da lei e sentimentais clandestinos.

    Publicado via catarse, o quadrinho possui lombada quadrada, capa cartonada e cinquenta e seis páginas em papel pólen.

  • Resenha | Eu Matei Adolf Hitler

    Resenha | Eu Matei Adolf Hitler

    Jason é um autor de quadrinhos bastante inventivo entre os que permeiam o circuito alternativo. A realidade que ele estabelece tem muitos momentos nonsense e o modo como suas personagens são apresentadas é igualmente diferenciada. Em Eu Matei Adolf  Hitler o que se vê é uma ficção científica, que apesar do nome forte, não tem grandes discussões políticas, e sim uma premissa básica: neste mundo, os personagens são antropomorfizados, a função de assassino de aluguel é uma profissão legalizada e bastante comum, e por fim, existem viagens no tempo.

    O personagem principal é um matador contratado para um trabalho, e em paralelo a isso, ele lida com uma forte crise emocional em seu relacionamento. Sua missão é baseada no título do quadrinho, e o motivo da história seguir reside exatamente no fracasso do personagem em matar o Fuhrer. A solução para o insucesso é engraçada, e lida muito bem com paradoxos temporais.

    A leitura é rápida, engraçada e mordaz, seu caráter episódico brinca com questões da vida adulta, discutindo as relações conturbadas do casal e que servem de exemplo universal para relacionamentos em crise. A exploração desses envolvimentos é tão madura que surpreendente por serem tão bem resolvidas na história, seus personagens são complexos e as situações corriqueiras conversam bem com o que é universal. Além disso, é interessante observar como o autor brinca com questões como o alvorecer do nazismo, e se torna ainda mais irônica por tratar de tal modo que o vai-e-vem de um casal tem maior importância do que a intolerância de um líder político mal resolvido com seus pensamentos e com sua própria identidade.

  • Resenha | Batman Extra N° 11: Terapia Mortal

    Resenha | Batman Extra N° 11: Terapia Mortal

    Hipnose, e piromania. Quantas vezes podemos nos dar ao luxo de ver esses temas tratados, num gibi mensal do Batman? Em Terapia Mortal, publicado em Batman Extra nº 11 da Editora Panini, Batman ainda está no começo do trabalho, e o jovem Bruce Wayne ainda está perdido, entendendo o que é ser o Cavaleiro das Trevas. A morte de seus pais ainda é muito recente, mas o mundo não tem dó, e o clima em Gotham já começa a sentir a influência do justiceiro. Cada vez mais, jovens alienados começam a se vestir de preto pra fazer justiça, e os Lordes do crime estudam a situação, com cuidado. E tudo seria bem mais simples, se apenas no submundo houvesse problemas: sem os Wayne pra comandar as empresas da família, os “lobos de wall street” dentro da companhia fazem de tudo agora para prejudicar o herdeiro, e tirar os privilégios do “jovem órfão”.

    Evitando o drama, e caindo de boca na ação e sua dinâmica, totalmente voltada para adolescentes com déficit de atenção (e quem não é assim, na era do Instagram?), Terapia Mortal explora a paranoia que existe sobre aquele cujo mundo virou as costas, e todos conspiram por sua queda. Aqui, Bruce Wayne é atacado por crianças que, misteriosamente, se unem para atear fogo em prédios públicos, enquanto os novos dirigentes das empresas Wayne querem tirá-lo da jogada, a qualquer custo. Mas Bruce ainda é um moleque aqui, e Alfred é o único que lhe mostra piedade, e amor, numa selva de pedra chamada Gotham City em que ninguém está a salvo, até que Bruce é finalmente pego e trancado no Arkham, condenado a escapar por conta própria. Talvez porque as ovelhas acham que os lobos terão pena delas.

    Mas eles nunca terão. Trancafiado no Arkham, Bruce entende que é prisioneiro de sua própria imaturidade, lidando com traidores de toda sorte que, justamente por isso, o fazem aprender a ser um homem responsável. A dor e o medo ensinam demais, e são elas que fazem Bruce fortalecer o seu Batman interior, através desses fatores “terapêuticos” que o destino o submete. O roteiro de Andrew Helfer é hábil o bastante para trilharmos esse caminho de escuridão e da loucura bem ao lado desse Homem Morcego iniciante, pelas trevas que fazem o jovem rapaz valorizar as virtudes de ser adulto caso ele sobreviva. Uma pena a arte de Tan Eng Huat não combinar com a qualidade da história, expressiva mas visualmente desagradável em diversos momentos que pedem uma sutileza que o ilustrador não consegue atingir. Nada que atrapalhe o resultado, e as intenções finais deste pequeno, grande história.

  • Resenha | O Eternauta 1969

    Resenha | O Eternauta 1969

    Releitura da obra de ficção científica argentina O Eternauta, a nova versão foi veiculado originalmente na revista Gente, uma revista tradicional e de costumes, que trata da vida de celebridades e que, vez por outra, possuía espaço para histórias em quadrinhos. Cada edição da revista trazia três páginas da história, com Francisco Solano López dando lugar para Alberto Breccia, que já havia trabalhado com Héctor G. Oesterheld em Mort CinderSherlock Time.

    A diferença mais gritante entre as versões começa nas cores. Breccia usa muito mais a dualidade do preto e branco, hachuras e jogo de sombras, enquanto Solano López possuía um traço mais normativo, suas imagens não divergiam tanto da realidade, eram menos fantasiosas, expressionistas, e claro, desconfortáveis. Aqui a arte está longe de ser discreta, e isso ajuda a inserir o leitor naquela Buenos Aires que é atacada pelo fator externo, e o senso de urgência tende a ser ainda maior por conta do grafismo que mora na tensão dos pretensos sobreviventes.

    O quadrinho é consideravelmente mais curto que o original. Oesterheld parecia não ter receio em ir direto ao ponto,  boa parte dos plots é atalhada, embora haja aqui algumas questões diferenciadas, como um olhar mais detalhado para questões de sobrevivência sexual em meio a aproximação de um possível fim do mundo ou da existência humana, e de fato, cenários pós apocalípticos provavelmente trariam esse tipo de pensamento à tona, ainda mais em se tratando de homens, de pessoas dentro do limite da humanidade.

    Há nessa versão da editora Comix Zone um texto que traduz uma entrevista de Guillermo Saccomanno e Carlos Trillo, localizado no final da publicação, onde são dados detalhes dessa edição e do quanto O Eternauta  original teve peso na produção de quadrinhos na Argentina e na carreira de seu escritor. Isso vindo de dois roteiristas tão premiados dá um pouco da dimensão de como a história é importante, não apenas para para a carreira dos envolvidos, mas também para toda uma cena de quadrinhos no país, e de fato quando um evento tão seminal se tornar popular, facilita com que outras histórias no mesmo estilo ou até em outros tipos, e boa parte dessa reflexão deles se dá também para a republicação de 1969.

    O traço de Breccia nesta obra faz lembrar muito seu trabalho em Mort Cinder, e apesar do tom das duas histórias serem diferentes, ao menos no que toca o Viajante da Eternidade há um ganho enorme, pois a aura em torno do Juan Salvo que vem do futuro resulta em um ser que parece ter contato íntimo com o Divino, parecendo uma entidade. Além disso, no texto de introdução, o doutor em Sociologia André Pereira de Carvalho faz um prefácio que compara essa versão da neve tóxica com a Ditadura Militar argentina, que imobilizava os argentinos que buscavam liberdade, e por vezes os matava. Esse comentário acabou por ser profético a Oesterheld, assim como a tentativa de Salvo de voltar no tempo para tentar evitar aquele futuro distópico.

    Essa versão, tão diferente da outra em desenho e pressa narrativa, questão essa até hoje muito turva em suas origens, tal qual é discutido pelo próprio Oesterheld que afirma que a revista Gente o apressou e censurou boa parte do seu trabalho (fala retratada no Brasil pelo estudioso Paulo Ramos em Bienvenido: Um Passeio pelos Quadrinhos Argentinos) ajuda a dar novos significados à obra.

  • Resenha | Giovaníssima

    Resenha | Giovaníssima

    Quando Nelson Rodrigues ditou, na famosa citação do gênio brasileiro, que “toda nudez será castigada”, muitos levaram a sério sem saber o mal que estavam fazendo a eles mesmos. Mas na época dos nudes, sites picantes, e aplicativos de “encontros”, quem ainda se importa com esse castigo? Muitos e é por isso que Giovaníssima veio para acabar de vez com os que ainda resistem a libertação sexual, e assim arrastar a todos para esse microcosmo dos prazeres mundanos de se revirar os olhos, cuja punição pode ser muito mais gostosa do que Rodrigues já cogitou. Bem-vindos a dimensão de Giovanna Casotto, a ilustradora italiana que leva até o mais sisudo dos marmanjos a uivar com o simples desenho do pé feminino, da boca vermelha a salivar, e de outras partes que exclamam um desejo sobre-humano de serem deliciosamente degustadas.

    Se as lolitas de Milo Manara transbordam uma sensualidade acidental, as mulheres de Giovanna conhecem muito bem o seu poder de sedução. Assim, suas histórias expõem, sem pudor algum e absoluto refinamento gráfico (seus traços e a escolha precisa das cores são visualmente orgásticos), o quanto de malícia pode existir numa figura feminina dona de si e pronta para o êxtase. Não, elas não são apenas femme fatales: elas são tudo o que elas se permitem Ser, Obter, e Sentir. Arquétipos da libertação sexual e do rompimento da hipocrisia que rege a maioria das pessoas e seus relacionamentos. Pode-se afirmar que as mulheres de Giovanna aplicam o feminismo na entrega da carne, no gozar da vida, na aventura da libertinagem que, ao homem, quase nunca é condenada pela sociedade, mas que à mulher apedrejam há milênios.

    Em Giovaníssima, temos dez contos eróticos recheados de sarcasmo, ora flertando com uma assassina de aluguel, ora nos convidando a uma tarde de puro tesão na praia. É o jogo de se brincar com os regozijos que tantos afogam, mas que agora se tornam uma experiência ultra realista para ninguém botar defeito. Se ao leitor desavisado tudo isso é pornografia, talvez um delírio vulgar com ares de fantasia sexual traduzida em quadrinhos, a arte publicada no Brasil pela editora Veneta (para maiores de 18 anos) serve para explorar, na mais elegante das excitações visuais, a força irresistível e triunfante de uma sexualidade feminina sem amarras para irromper e se encarnar, sempre com a boca bem cheia e lábios bem encharcados, entre quatro paredes efervescentes. Por que se podar? Se as donas de casas têm medo de ser feliz, aqui elas temem o tédio.

  • Resenha | Júlia – Aventuras de uma Criminóloga: O Crime Negado

    Resenha | Júlia – Aventuras de uma Criminóloga: O Crime Negado

    Iniciado em media res, técnica literária em que a narrativa se desenvolve a partir do meio da história, a ação marca o início da 17ª trama de Júlia – Aventuras de uma Criminóloga. Após uma ótima perseguição que se encerra no metrô, o assassino Murphy é pego pela equipe de Garden City. Procurado por uma série de estupros seguidos de morte, o homem nega um dos crimes do qual é acusado, e Júlia será a responsável por descobrir quem imitou seu modus operandi.

    Literariamente falando, a presença de um serial killer sempre é um motivo de destaque na narrativa policial. Em Julia, não poderia ser diferente, já que sua estreia foi marcada por uma assassina, Myrna, grande vilã, presente em muitas narrativas futuras. Mesmo que os roteiros apresentem uma gama de crimes investigados, uma trama com um assassino serial sempre conquista a atenção rapidamente.

    Em Crime Negado, porém, não é o assassino e sua pulsão o grande foco. Mas sim, a procura pelo autor do sexto crime. Em outras palavras, a narrativa demonstra como o senso de justiça não se estabelece por aproximação ou no atacado. Cada crime merece punição específica.

    Como costumeiro nos roteiros de Giancarlo Berardi, a condução da trama e os personagem em cena são ecos da sociedade. Como Julia sempre traça um perfil psicológico tanto de agressores, quanto das vítimas, o leitor contempla um panorama das relações sociais e lados obscuros de cada um, resultado em narrativas ricas que fogem do escapismo. Nessa trama, os fetiches são combustíveis que tanto podem relevar o crime, quanto esboçam que há sempre segredos guardados na intimidade.

    Essa história foi também o último trabalho desenhado pelo argentino Gustavo Trigo, uma produção inacabada devido a sua morte. Assim, o capista Marcus Soldi e Eni finalizaram as artes para a publicação.