Tag: Conrad

  • Resenha | I Am Not Okay With This

    Resenha | I Am Not Okay With This

    Considerado pela Organização Mundial da Saúde como o “mal do século” e a quarta principal causa de incapacitação no mundo, a depressão é hoje responsável pela interferência direta no cotidiano das pessoas, afetando desde a capacidade de trabalhar, estudar, como também o aproveitamento da própria vida. O Brasil hoje possui dados alarmantes de pessoas depressivas, sendo o segundo país das Américas com maior número de pessoas nesta condição, equivalentes a 5,8% da população, perdendo apenas para os EUA.

    As causas da depressão podem ser uma combinação de fatores, desde sociais como genéticos, e aliado ao fato das dificuldades no tratamento — menos de 25% dos pacientes que tomam antidepressivos continuam o tratamento por seis meses e uma grande parcela dos que param o fazem devido aos efeitos colaterais — e os preconceitos sofridos por muitos daqueles que padecem de tal transtorno, acendem um sinal de alerta sobre a importância da prevenção e da conscientização de toda a sociedade em relação à saúde mental.

    Desse modo, é natural que tais temas sejam cada vez mais discutidos em obras dos mais diversos gêneros. Algumas de forma responsável, outras não. Charles Forsman, aparentemente, se interessa muito pelo tema. Seus quadrinhos possuem um tom amargo e angustiante, além disso, tem como assinatura seu traço característico e temas que giram em torno de transtornos mentais envolvendo adolescentes e jovens adultos.

    Dono de um traço que remete diretamente aos Peanuts de Charles Schulz, Forsman se tornou conhecido com a publicação de The End of the F***ing World, publicado no Brasil pela Conrad e recentemente adaptado em uma série já cancelada pela Netflix. Curiosamente, esse traço fino e caricato, que nos remete diretamente à infância, causa uma estranheza direta pelos temas abordados. Ainda que Charlie Brown seja um personagem depressivo, Forsman eleva isso a uma leitura incômoda e difícil.

    I Am Not Okay With This, publicado pela editora Skript através do sistema de financiamento coletivo Catarse, retoma tais temas. Aqui acompanhamos a vida de Sydney, uma adolescente solitária que ganha um diário de sua orientadora estudantil como forma de expor seus sentimentos. Dessa forma, nossa relação com a personagem se dá por meio desse diário. Assim, o tom de monólogo em uma crônica episódica de sua vida permeia toda a obra. Através do diário sabemos da morte de seu pai e o quanto isso ainda afeta sua família, além das angústias, paixões e o vazio existencial da personagem.

    Ainda que a trama utilize o diário da protagonista para que conheçamos a personagem, o autor utiliza, em certos momentos, uma narrativa bifurcada na qual o viés da protagonista é sobreposto pelos fatos de certos personagens. Isso ocorre em dois momentos importantes da trama, ao demonstrar o dia-a-dia da mãe de Sydney e seu sofrimento, como também ao manter um olhar afastado envolvendo a violência sofrida por Dina, amiga e paixão da personagem.

    Ainda que utilize um diário como forma narrativa, o leitor percebe um sentimento de isolamento crescente da personagem. A cada página, um novo tijolo é posto em volta dela em relação à sociedade. Sua dificuldade de se expressar aumenta gradualmente, oprimida pelas próprias emoções. Essa dificuldade é demonstrada pelo autor sob um viés fantástico que diz muito sobre o caminho autodestrutivo da personagem. A violência, raiva e automutilação parecem ser a resposta da escuridão que aumenta lentamente e afasta Sydney de todos. Seu entorno não parece se dar conta do que está acontecendo com ela, algo tão comum atualmente. Mas o próprio diário e a narrativa bifurcada do autor demonstram que tais problemas não são exclusividades apenas dela, mas da nossa sociedade em geral.

    Em que pese os contornos obsessivos que o movimento “antispoiler” tem tomado — sem qualquer viés crítico e descolado da discussão da própria obra —, é necessário reforçar o caráter trágico do fim da obra, com a personagem sem qualquer capacidade de superar seu isolamento e optando por uma solução final. Forsman é direto. Não há nenhuma dramaticidade ou sentimentalismo. A crueza de seu trabalho atinge o ápice na página final.

    E sobre isso, não tenho condições técnicas ou intelectuais para esclarecer se a abordagem do autor foi a mais correta. Mas não me cabe ser censor da obra apenas pelo impacto que ela pode ter causado em mim. De qualquer forma, causa estranheza como a editora Skript anunciou esse quadrinho desde o seu lançamento como uma simples HQ alternativa, o que convenhamos, claramente não é só isso. Ainda assim, a resenha do Lucas, do site Melhores do Mundo, parece ter servido de alerta para que os editores se deem conta da responsabilidade que tem nas mãos e que um simples aviso na própria obra não é o suficiente.

    I Am Not Okay With This é um retrato opressivo, sombrio e contundente sobre nossos dias. Se Forsman parece não saber a melhor forma de retratar alguns temas, em contrapartida, tem muito a dizer sobre a vida de uma parcela da sociedade cujas emoções e problemas excedem sua capacidade de expressá-los.

    Se você sofre de depressão ou algum outro tipo de transtorno mental não hesite em buscar ajuda.

    Fontes e links úteis:
    https://www.cvv.org.br/
    https://www.setembroamarelo.org.br/
    https://www.paho.org/pt/topicos/depressao
    http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/no-dia-mundial-da-saude-oms-alerta-sobre-depressao/
    https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/d/depressao
    https://www2.samp.com.br/fique-por-dentro/noticias/janeiro-branco-brasil-esta-entre-os-paises-com-maior-numero-de-casos-de-depressao-e-ansiedade.htm
    SOLOMON, A. O Demônio do Meio-Dia: Uma anatomia da depressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
    DUNKER, C. O Palhaço e o Psicanalista: Como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo. Planeta, 2019.
    https://oilychuck.wordpress.com/
    https://melhoresdomundo.net/a-gente-lemos-i-am-not-okay-with-this-com-muitos-spoilerezes/

  • Resenha | Bob & Harv: Dois Anti-Heróis Americanos

    Resenha | Bob & Harv: Dois Anti-Heróis Americanos

    Bob e Harv: Dois Anti-Heróis Americanos apresenta o encontro do cronista Harvey Pekard com o quadrinista underground Robert Crumb em parceria de muita intensidade emocional. Lançado pela Conrad em 2006, a edição reúne tiras e narrativas maiores, além da introdução de Laerte falando sobre sua obsessão sobre ambos artistas, assumindo que boa parte de seus trabalhos tem inspiração de ambos.

    O cotidiano de Pekard é o ponto de partida das historias, muitas publicadas na revista American Splendor. Nas tramas, é mostrado como um homem simples e talentoso, que gasta seus dias trabalhando e escrevendo ou (como na imensa maioria das vezes) procrastinando, se virando com o dinheiro que consegue arrumar, normalmente visando pagar, além da comida, seus sonhos de consumo como colecionar antiguidades e raridades de artistas de Jazz e Blues.

    Crumb aparece em algumas historias, inclusive na primeira , em que Harvey fala sobre seu trabalho (a parceria foi vista também no filme biográfico Anti-herói Americano). A HQ serve como uma auto biografia bem peculiar, explorando momentos de intimidade do  autor e revelando suas conclusões sobre o mundo e a vida.

    Diante desse cotidiano e das filosofias apresentadas, o formato das historinhas caem numa repetição meio incômoda. Apresenta Harvey lidando com algo complicado, depois falando diretamente com o leitor, sempre com alguma conclusão espirituosa e super esperta. Ao menos, Pekar não se leva a serio e trata essa verborragia como um defeito. Sendo um sujeito com a vida tão errática, é ótimo que seja dessa maneira. Pois se extingue o risco de glamorizar a vida do homem comum. Em geral, o gibi registra um país formado por pessoas cínicas. O traço anárquico de Crumb ajuda a fortalecer essa sensação. Além disso, há todo o referencial politicamente incorreto típico da arte do quadrinista.

    Bob & Harv resulta em um meta quadrinho melancólico e deprimente, mas que reúne dois artistas que se gostam e se admiram mutuamente ao ponto de um ser totalmente sincero com o outro. Ainda assim, grandiosos artistas, donos de legados sobre a vida marginal urbana sui generis.

    Compre: Bob & Harv.

  • Resenha | Coisas Frágeis – Neil Gaiman

    Resenha | Coisas Frágeis – Neil Gaiman

    Dentre os grandes autores britânicos a trabalhar com histórias em quadrinhos estadunidenses a partir de meados dos anos 1980, Neil Gaiman é com certeza um dos que mais se destacou. Sua obra mais conhecida, Sandman, ainda hoje é reverenciada por milhões de fãs através do mundo, e continua sendo reeditada em encadernados de luxo ou versões comemorativas de aniversário. Nada mais justo, pois os textos do autor trazem não só uma incrível imaginação quanto uma forma sóbria, ora fantástica de se contar histórias. Com textos que abordam a vida humana através da ótica do sobrenatural, Coisas frágeis é uma coletânea de contos do autor escritos e publicados em diversas ocasiões diferentes, que recheiam um volume que, mesmo não utilizando recursos gráficos das histórias em quadrinhos, fazem o leitor imaginar cada cena como algo bastante complexo e, ao mesmo tempo, agradável de se ler.

    Em suas páginas, Gaiman brinca com estilos diversos, chegando a fazer um crossover, logo no primeiro conto, entre o universo de Sherlock Holmes e o mito do Grande Cthulhu, seguindo de certa forma o que seu conterrâneo Alan Moore fez anos antes com A Liga Extraordinária. O autor se utiliza de elementos conhecidos por leitores de várias gerações e que já estão em domínio público para reimaginar Baker Street numa trama que nem mesmo o maior detetive de todos os tempos poderia sequer imaginar.

    De forma mais ou menos similar, vemos claramente em seus contos elementos “emprestados” de outras histórias – sem, contudo, ferir os direitos autorais de seus respectivos autores ou proprietários. Gaiman escreve uma história de ficção científica ambientada no universo de Matrix, outra sobre uma personagem de As Crônicas de Nárnia, e por aí vai. Contudo, a forma com que o autor aborda cada universo retratado é única e diferente, levando o leitor a refletir sobre temas pesados e importantes de forma inédita. Fazer algo novo de velhos e conhecidos conceitos parece ser uma especialidade inerente a Neil Gaiman.

    Dos nove contos apresentados no volume, talvez o que mais denuncie o estilo consagrado de Gaiman seja A vez de Outubro. Aqui, seres elementais da natureza – os meses do ano – ganham características humanas, algo que ele fez com os Perpétuos durante toda a saga de Sandman. Os meses conversam ao redor de uma fogueira e contam seus anseios, medos e incertezas, além de seus próprios mitos e lendas.

    Assim como o personagem Sonho o consagrou nos quadrinhos, foi também em um sonho que o título do livro surgiu para Gaiman: “Acho… que prefiro me lembrar de uma vida desperdiçada com coisas frágeis, a uma vida gasta evitando a dívida moral”. Coisas Frágeis foi publicado pela Editora Conrad no Brasil, e é uma excelente coletânea de contos de Neil Gaiman tanto para aqueles que já conhecem o consagrado escritor quanto para quem ainda não leu nada escrito por ele.

  • Resenha | América

    Resenha | América

    Quase todas as vezes que se fala sobre as obras de Robert Crumb é preciso reforçar uma explicação óbvia sobre sua produção artística contracultural, e que buscava o choque da sociedade americana conservadora. Dito isso, América é mais um dos retratos do país onde nasceu e viveu Crumb durante a maior parte de sua vida, e a partir desta obra, ele ataca toda sorte de pessoas e alguns grupos sociais e culturais.

    A altura que escreveu esses contos (a compilação compreende tiras de 1970 a 1997), o país estava em ebulição e a quantidade de pautas o deixava confuso, problema semelhante ao que ocorre nos últimos anos. O boneco de neve Frosty é outro bom exemplo disso, um personagem isento de ideologia, que não consegue entender o comportamento da esquerda, e essa digestão do tema é bastante madura e digna de reflexão, nas tiras antigas o autor acaba conversando até com questões mais recentes, como a dita zona cinza do eleitorado americano, que cansado de algumas posturas da esquerda, acaba sendo cooptado por parcelas reacionárias do espectro político, como Steve Bannon e o trumpismo soube aproveitar e surgir como alternativa.

    Crumb é tão autossuficiente, que seus defeitos são aludidos por ele mesmo. A classificação para ele mesmo é de um sujeito paranoico, e ele não tem receio de parecer louco, ao desenhar a si mesmo dizendo que o governo ou uma “força maior” está querendo matá-lo, ao mesmo tempo que ele desdenha de liberais que separam o lixo em coletas, ao passo que também reclama da sujeira que os terceiro mundistas fazem ao chegar nos EUA. Em Whiteman ele faz troça com o homem branco que se julga invulnerável e super poderoso, para o autor todos esses personagens compõe a multi-identidade do país, a parte mais baixa e tosca da nação, algo completamente impossível de desassociar do que é América.

    Próximo do final, o autor exibe versões diferentes de domínio tirânico, mostrando como seria o domínio cultural, político e econômico dos povos negros e judeus, respectivamente, sob um olhar dos que dominam. O modo caricatural como agem esses “tiranos” exibe a visão preconceituosa e falsamente benevolente dos brancos, mas não só dos sulistas tipicamente racistas, passando um pouco sobre o conceito que muitos democratas fazem desses povos.

    Certamente essa compilação é uma das mais controversas entre as obras de Crumb, ele parece não ter qualquer receio de parecer malvado ou mal visto por seus pares, seja a elite branca e conservadora do país, ou os dito liberais, que evitam o moralismo barato mas que tem costumes condescendentes e se julgam superiores exatamente por fugir um pouco da mentalidade conservadora, embora não façam isso por convicção.

    É quase profético que décadas antes de Donald Trump entrar para a política, o quadrinista tenha colocado ele numa história, para mostrar o quão decadente é a classe “empreendedora” dos Estados Unidos. Crumb tem coragem, ele não usa um paralelo com um empresário, literalmente desenha uma pessoa pública, em uma história pervertida que o coloca como o extremo avesso de Trump.

    América termina sem verborragia, com gravuras sem falas, mostrando possibilidades de futuro, um pouco do passado, basicamente sobre a mesma paisagem, mostrando a transformação que o homem fez no cenário, e o quão predatória pode ser a presença humana, ao passo que também mostra que o mundo não tem como ser destruído por nós, já que o planeta se refaz.

  • Resenha | Blues

    Resenha | Blues

    Uma das influências para os quadrinhos alternativos que Robert Crumb sempre fez eram os músicos que ele tanto adorava, e em Blues ele pôde prestar uma pequena reverência a esses artistas. Robert Johnson, Charles Patton, Jelly Roll Morton, Jimi Hendrix e tantos outros que estão presentes no álbum Blues, uma grande homenagem de Crumb a muitos de seus heróis.

    A primeira história do encadernado da Conrad mostra uma retrospectiva sobre Patton, brincando inclusive dom o sobrenome homônimo do famoso general americano da Segunda Guerra Mundial, usando a coincidência como pontapé inicial da análise da carreira do músico pouco conhecido. A história vai desde quando ele era muito moço, escravizado em campos do algodão, onde tocava viola de maneira única, até às caminhadas dele já alforriado, à procura de novos ritmos como o ragtime com a The Chatmon Family. O roteiro também comenta sua inspiração e a proximidade de Henry Sloan, motivada pelo ritmo que o músico fazia, e claro, pela vida amorosa devassa que levava, interrompida por lampejos de conversão ao protestantismo evangélico, sendo assim um símbolo dos arquétipos envolvendo o blues, já que grande parte do pano de fundo das lendas da música passam também pelo movimento gospel.

    No prefácio de Rosane Pavan, se destaca que Crumb é o historiador confiável da América, uma vez que suas histórias, apesar da aura fantástica, jamais se livra do senso crítico e ácido de um homem que analisa todo o movimento artístico com um olhar próprio. A análise dessa e de suas outras obras só tem chance de ser minimamente acertada se levar em conta esse conceito, já que a alma e modo do desenhista de olhar o cenário tanto sobre o mapa de pobreza do país, quanto a forma de se fazer arte.

    O escritor usa seus personagens para diferenciar as sensações, como quando se aprecia músicas falando sobre os hits que não deixam a lembrança do ouvinte em paz, como também aqueles que mexem com o imaginário, fazendo-o fantasiar por muitos momentos com as palavras e acordes harmônicos ali estabelecidos. Blues é pródigo nisso, não só como ritmo, mas também como parte dessa compilação que busca traçar um cenário sobre o movimento como um todo, sendo fácil de compreender mesmo para um leigo.

    Há muitas historias diferentes no encadernado, algumas bem indiferentes e não tão dignas de notas, mas até as mais simples tem algo a acrescentar dentro do mapa que Crumb procura traçar, e por mais que essa não seja a revista mais inspirada do autor, certamente é uma das que ele mais derrama sua alma e sua devoção, e apreciar o que o autor considera seminal é obviamente proveitoso.

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  • Resenha | Desista! E Outras Histórias de Franz Kafka

    Resenha | Desista! E Outras Histórias de Franz Kafka

    Desista e outras história de Franz Kafka - Peter KuperA transposição de uma arte, e seus códigos fundamentais, para outra mídia distinta depende da qualidade de seu autor para compreender e adaptar um conceito a outro de maneira eficiente. A linguagem de uma narrativa escrita para uma história em quadrinhos, por exemplo, ainda que tenha parcialmente um campo comum, é erigida por conceitos diferentes.

    A vertente de adaptações literárias em quadrinhos é um rico manancial que, raramente, é lido de maneira atenta. Se por um lado há ousadia de seus autores em adaptar densas obras literárias, as versões não sabem dialogar e modificar a narrativa original adequadamente aos códigos dos quadrinhos, resultando em edições que atingem somente o público que anteriormente leu as obras e procura a leitura em quadrinhos com interesse curioso.

    O quadrinista Peter Kuper, famoso pelas histórias de Spy vs. Spy na revista Mad, se aventura pelas narrativas de Franz Kafka para compor uma série de histórias curtas baseadas em seus contos. A obra Desista! e Outras Histórias de Franz Kafka foi lançada originalmente em 1995 e, no mesmo ano, ganhou edição brasileira pela L&PM, reeditada pela Conrad em 2008. A edição foi a primeira incursão do autor na obra do tcheco, cuja novela A Metamorfose também foi versada pelo quadrinista.

    A obra de Kafka é narrativamente bem composta e carregada de um significado metafórico, cujas interpretação e sensibilidade são transmitidas para o leitor. Suas personagens, sempre alienadas, abordam situações simbólicas que representam esteticamente o conceito de fantástico, pela quebra de uma realidade aparente. No país, entre os diversos tradutores que o versaram, temos um conjunto de traduções excelentes do qual Modesto Carone se destaca como um dos tradutores fundamentais.

    Devido a esta vertente simbólica, o quadrinista tenta desenvolver um sentido visual diante desta narrativa fantástica, utilizando brevíssimos contos do autor. A escolha de textos curtos, apresentados sem cortes, potencializa a interpretação do quadrinista e a força da narrativa original; imagem e narrativa verbal buscando um equilíbrio. Por si só, Kafka é grandioso em sua obra a ponto de tornar a interpretação de Kuper inferior, devido a uma seleção de contos em que o leitor pode sorver o conto por completo – ainda que a tradução tenha perdido parte da prosódia do autor.

    O único conto apresentado com cortes é O Artista da Fome: única obra inserida na seleção que contém uma longa história além das breves tramas metafóricas. Assim, o quadrinista pode adaptar com melhor qualidade e desenvolver seus traços, selecionando como irá compor sua narrativa a partir da original. É o único momento em que se torna evidente a visão do quadrinista e a voz do conto simultaneamente.

    A escolha de contos breves e metafóricos, ainda que como um movimento ousado, impede uma grande reinterpretação na composição das imagens. Em parte porque o material escrito é bom o suficiente para tornar desnecessária uma interpretação visual única, afinal cada leitor desenvolverá sua própria composição imaginária a partir da metáfora. Quando o quadrinista, porém, trabalha desde a abordagem inicial do texto e sua adaptação, a versão cresce e se torna potencialmente forte como a original.

    Como obra-homenagem à obra de Kafka, apresentando uma seleção de contos ilustrados, Desista! é funcional e marca um primeiro elo entre dois autores para uma futura adaptação maior. Como registro visual e, portanto, uma história em quadrinhos adaptada, o apoio em demasia aos textos originais mantém Kafka como grande destaque, fazendo dos traços de Kuper, embora competentes e bem trabalhados no uso das duas cores, um detalhe menor.

    Desista - Peter Kuper

  • Resenha | Lugar Nenhum – Neil Gaiman (2)

    Resenha | Lugar Nenhum – Neil Gaiman (2)

    Criado primeiramente como roteiro para um seriado de TV, Lugar Nenhum não agradou ao público e tampouco ao seu próprio autor em razão da baixa qualidade da fotografia, filmagem e outras questões técnicas decorrentes do pouco orçamento direcionado à obra. Isso fez com que Neil Gaiman, ainda em início de carreira, o adaptasse para os quadrinhos e livros, e pudesse contar sua história do modo que havia idealizado.

    Somos apresentados a Richard Mayhew, um jovem que se muda para Londres ao receber uma proposta de emprego. Ao ajudar a misteriosa Door, ele vai parar na Londres de Baixo, um lugar fantástico, porém perigoso. A forma como esse universo é detalhado pelo autor faz com que o leitor se deixe ser levado, junto com o protagonista, na viagem pelo submundo desconhecido, reconhecendo as semelhanças e diferenças que partilha com o próprio mundo onde vive e refletindo sobre elas. O uso de diversos pontos turísticos ou históricos de Londres como referência a personagens e lugares do submundo, assim como alguns trocadilhos com certos nomes, é notável, o que torna a leitura mais interessante ao se imaginar se poderiam ser verdade ou uma lenda urbana.

    Alguns dos personagens secundários têm sua importância para o andamento da trama e consequentemente são melhor desenvolvidos. Suas nuances, pensamentos e ações, ora condizentes, ora absurdos, aprofundam suas personalidades, citando como exemplo o Marquês de Carabas, astuto, autoconfiante e com uma péssima reputação no submundo, apesar de seu título ilustre; e os assassinos Croup e Vandemar, donos de algumas das passagens mais surreais do livro nas quais conseguem ser cômicos enquanto falam de coisas “banais”, como torturas e mortes.

    A escrita é simples e dinâmica, as cenas de ação fazem jus ao seu objetivo original, sendo detalhadas e passíveis de serem imaginadas; sua leitura é muito satisfatória e rápida. Chegamos ao seu final não só com vontade de expandir este universo, caminhar mais por ele, como também ficamos convictos de que Neil Gaiman foi certeiro em sua escolha.

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    Texto de autoria de Carolina Esperança.

  • Resenha | Dylan Dog: O Despertar dos Mortos-Vivos

    Resenha | Dylan Dog: O Despertar dos Mortos-Vivos

    Sclavi e Stano introduzem o universo do personagem da Bonelli sem muitos circunlóquios, a ação é intensa e abusa de clichês de exploitation, como nudez gratuita e referências ao cinema americano de zumbis, mas especificamente A Noite dos Mortos Vivos de George A. Romero. Não poderia ser melhor representado o método de detecção do auto-intitulado Investigador do Pesadelo Dylan Dog, seu método inclui o confronto direto e sem embromação.

    A ausência de cores ajuda a aumentar a aura de filme de terror presente na história, que fica ainda mais interessante graças ao carisma dos personagens, tanto o protagonista quanto o seu Sancho Pança particular. As semelhanças com outros análogos da cultura pop é facilmente notada, a predileção pela flauta de Dylan Dog é semelhante ao Stradivarius de Sherlock Holmes, assim como toda a viagem de infecção por mortos-vivos lembra muito a abordagem escolhida pelo realizador Lucio Fulci na continuação não oficial de Despertar dos Mortos, a forma como o morto andante ataca a moça lembra absurdamente Zombie.

    Quando analisada a causa do despertar dos mortos, é possível verificar uma amálgama de referências, desde o Doutor Wesker de Re-Animator, e até prenunciava coisas vindouras, como a franquia Resident Evil e o remake de Zack Snyder, Madrugada dos Mortos. A verborragia presente nos diálogos rapidamente insere o leitor dentro do universo particular do detetive, deixando tudo mais curioso, indo muito além do simples cenário regado a fantasia de monstros de horror movies.

    A fleuma britânica do personagem título faz uma mistura interessante com a psicodelia de suas desventuras, além é claro do seu envolvimento com ciências ocultas, o que gera na equação um fino equilíbrio. A escolha por abordar os mitos ligados ao Vodu haitiano, como uma incessante busca pelo elixir da imortalidade é interessante, principalmente por explorar a situação de uma figura espiritual canônica como é o caso do vilão Doutor Xabaras, mas que se prova repleta de buracos e incongruências, mostrando-se uma tentativa falha de vencer a morte ao transformar os ressuscitados em criaturas acéfalas. Isto seria a parte primária do experimento e segundo a ideia do doutor, serviria como desrepressão ao instinto canibal do homem, o que não é um conceito de todo infundado à luz do pensamento freudiano.

    As últimas 30 páginas reservam uma correria desenfreada, onde o trio de heróis tenta fugir de uma horda de mortos-vivos. A violência do lápis de Stano é pródiga e implacável, explícita como um bom filme do gênero e o suspense do roteiro causa uma enorme sensação de aflição no leitor. A astúcia de Dylan Dog é posta a prova e ele se mostra um sagaz planejador, com toda a ironia e sarcasmo frequentes na publicação da Bonelli. O Despertar dos Mortos-Vivos é uma ótima introdução às histórias do Investigador do Pesadelo, é balanceada entre ação, suspense e terror, e livre de grandes pretensões quanto a mensagem, é simples, direta ao ponto e honesta em sua proposta, que é entreter o fã do gênero de Terror.

  • Resenha | Palestina

    Resenha | Palestina

    palestina-joe-sacco

    Em 2006 eu estava em Israel a passeio, boa parte da minha família e alguns amigos moram lá, quando o país entrou em guerra com o Líbano. Estive lá por três semanas após o início do conflito e o que me chamou atenção foi a falta de surpresa, o preparo das estruturas, a visão da guerra como algo que chega, mais cedo ou mais tarde, algo natural do lugar.

    Em 1991, Joe Sacco foi atrás dessa mesma sensação, mas do outro lado da Linha Verde (fronteira que separa a Israel reconhecida dos territórios disputados). Em primeiro lugar, é preciso notar que a realidade da região e da cobertura da mídia era outra nesse momento: a Intifada, movimento de resistência palestino lembrado sobretudo pela imagem de crianças atirando pedras, havia começado em 1987, a luta armada não estava estabelecida, os recursos de grupos militantes e terroristas não eram os mesmos, nem o apoio de países vizinhos como a Síria e o Líbano. Por outro lado, se a luta era menor, os jornais eram mais alinhados com Israel, pouco se sabia sobre a condição dos territórios que deveriam constituir o Estado Palestino. O livro conta com um prefácio de Edward Said e outro do próprio Sacco afirmando a importância desse mergulho, de se olhar para um povo que os jornais da época retratavam como apenas bárbaros atiradores de pedra.

    Contudo, nos 20 anos que separam a escrita de Palestina da minha experiência com Israel, muita coisa mudou. Ambos os lados tornaram-se mais extremos, a mudança do governo israelense para a direita levou diversos veículos da mídia a adotarem o lado palestino e 1948 está distante demais para lembrarmos porque aquele país foi criado às pressas. Tudo isso influencia e enriquece a leitura da graphic novel de Sacco.

    O autor visitou a Palestina como um jornalista independente, entrou em casas, fez amigos, conheceu e conversou com os habitantes de Gaza, Nablus, Rafah, Kalândia e diversos campos de refugiados. É tão importante lembrar da mudança na abordagem dos palestinos porque de início Sacco tem uma missão muito clara que hoje parece menos necessária (em parte graças a ele): mostrar os palestinos como vítimas. Mostrar seu sofrimento, os abusos, a situação quase desumana em que vivem. Tudo isso é importante, ainda hoje é importante lembrar, mas a agenda muito definida do escritor incomoda.

    No entanto, conforme convive com essas pessoas e ouve as mesmas histórias milhões de vezes, os sentimentos de Sacco tornam-se mais ambíguos: todos foram presos injustamente, ninguém nunca fez nada, mesmo os filiados a grupos extremos como o Hamas ou a Jihad Islâmica, ainda assim, carros explodem e ônibus são jogados de barrancos. Isso não escapa ao autor. Também não escapa aqueles que vivem em uma grande casa, no meio de um campo de refugiados miserável, e reclamam das imposições econômicas.

    Palestina está em seu melhor quando Sacco não tenta se excluir da história, ou disfarçar seus preconceitos: ele é um ocidental, um americano, em terra islâmica e lhe incomoda a posição das mulheres, o ódio expresso tão sem disfarces. Ele quer entender aquela gente, mas não consegue, se compadece de verdade com seu sofrimento, mas ainda se sente alheio, muito distante da realidade das pessoas com quem conversa. Ele quer vê-los como iguais, mas não pode e sabe que o problema não está com eles, mas consigo mesmo, tão cheio de preconceitos, mesmo sendo tão liberal. A coragem de expor pensamentos óbvios, mas incômodos, é o que a HQ tem de melhor, assim como o detalhamento dos desenhos do autor.

    O traço de Joe Sacco é realista, exceto para seu próprio personagem, e há diversas imagens de página inteira de campos de refugiados esburacados, lamacentos, frios e desumanos. As expressões de ódio são enfatizadas, quadros em que há apenas o rosto de um personagem, muito grande, espumando de raiva contra o oponente. A imagem nos coloca dentro daquelas salas de estar, cheias de homens (há pouquíssimas falas de mulheres em Palestina) e chás, conseguimos imaginar vivamente os gestos e o tom exaltado dos interlocutores do jornalista.

    Palestina é, assim, um livro corajoso. Importante por sua iniciativa, mas mais importante ainda por reconhecer suas limitações. Sacco afirma para as duas israelenses no fim do livro que foi até ali conhecer os palestinos, o lado palestino da história, não tem pretensão de entender a situação toda. Nem poderia ter. Ao conversar com as moças ele ouve, como ouviu do outro lado, opiniões contraditórias, medo, cansaço e ilusões que se repetem, até hoje (já não sei mais quantas vezes eu também ouvi a mesma rotina “o exército israelense atira primeiro nas pernas, dá um aviso, só depois mira no tronco, se o oponente não obedecer”). O maior defeito do livro é que é extremamente repetitivo, ouvimos a mesma história várias e várias vezes até que no final nem escritor nem leitor aguentam ouvir a mesma narrativa, sempre exatamente a mesma narrativa. A repetição é importante na tentativa de ser o mais imparcial possível (sempre sabendo que não será) e no esforço de Sacco para representar seus sentimentos ambíguos, mas acaba entediando um pouco o público.

    No fim, o que temos é um livro incompleto, falho, parcial, mas esse é o único jeito de abordar essa questão. Joe Sacco faz esforço para dar voz ao lado que não tinha voz, mas não tenta convencer ninguém de que estão certos, ou de que ele sabe o que é certo, ou de que poderia sequer sugerir alguma solução para aquilo tudo. Ele não pode. O tempo que passa na Palestina lhe comove e repele em partes iguais e no fim, ele só pode chegar a única conclusão que parece viável: é uma discussão de dois lados errados.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.

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  • Resenha | Garotas de Tóquio

    Resenha | Garotas de Tóquio

    Garotas de Tóquio é uma HQ erótica publicada em 2006 pela editora Conrad, que reúne sete breves histórias, escritas e desenhadas pelo mangaká francês Fréderic Boilet. A maioria publicado originalmente pela revista japonesa Manga Erotics.

    Nas histórias o leitor é colocado como voyeur daquelas situações e aventuras sexuais. Observando não só o sexo, mas também o exibicionismo do autor sobre seu processo de criação, ao nos mostrar como ele consegue as modelos, como ele as deixa no controle da situação, talvez até numa tentativa de poupar o seu esforço criativo para a hora de transpor o material fotografado ou filmado para o nanquim. Mas também aproveitando as fantasias das jovens, e a espontaneidade da interação, juntamente com a tão comum fixação do artista por suas musas inspiradoras.

    Existem boas diferenças na parte sexual de cada história, algumas mais explícitas, outras mais sutis, com poesia e sentimento, além de passagens apenas emocionais. Nesse ponto também é interessante notar o uso dos diálogos, pois dão o tom de intimidade entre os pares, quanto mais as pessoas falam entre si e se expressam verbalmente, menos intimidade e sentimento há entre elas e vice-versa.

    O ponto alto do álbum fica para a arte, com desenhos que mantém uma “linha mestra” do autor, mas que variam bem de estilo entre cada um dos contos. Alguns com muitas cores fortes e marcantes, outras com tons mais frios, predominando azul e cinza. Alguns com traços mais sutis e levez, outras com o traço mais fino e marcado, puxando o desenho para o realismo com cores mais claras e vivas.

    Envolvido ainda com a arte, há um aspecto interessante sobre as mulheres que servem de inspiração e populam as páginas, pois o autor não usa super gostosas com atributos perfeitos, saídas de algum reality show ou programa de humor de domingo a noite. Nada de peitões, bundas enormes em posições sexuais acrobáticas para incitar o erotismo. Mas sim, mulheres comuns, com imperfeições, sutilezas com uma pitada de timidez, em situações cotidianas como um passeio no parque ou uma conversa com a parceira na cama. Isso tudo torna não só as histórias, como também aquelas jovens, críveis, fazendo com que a carga de erotismo fique por conta do leitor. E não explícita pelo artista forçosamente.

    Garotas de Tóquio é uma boa escolha num gênero de HQ não muito difundido no Brasil, talvez a extensão do livro deixe um pouco a desejar, fazendo com que queiramos mais. Porém, o preço de R$ 9,00 é bastante acessível para um álbum no formato 21,5 x 27,5, com papel e impressão impecáveis, fazem valer a compra e a leitura.

  • Resenha | Lugar Nenhum – Neil Gaiman (1)

    Resenha | Lugar Nenhum – Neil Gaiman (1)

    Lugar-Nenhum

    No começo da carreira que o tornaria famoso – quando a obra Sandman ainda estava sendo publicada, mas ele ainda não era conhecido por suas outras obras fora dos quadrinhos -, o promissor Neil Gaiman seria contratado pela produtora britânica de TV BBC para ser roteirizar uma serie chamada Lugar nenhum, que estreou em 1996. Mas não é sobre essa obra que falaremos hoje.

    A série contou com restrições de orçamento e alguns enganos na produção, que podem ser notados principalmente pela qualidade da direção de fotografia, que não tem uma iluminação boa. A qualidade da filmagem também não é boa e os efeitos são feitos com carinho, mas sem dinheiro. Por causa disso, Neil Gaiman não gostou do resultado da série e sempre achou que poderia fazer algo melhor. E ele de fato fez, recriando a mesma obra em outras mídias, como HQs, e lançando também um livro, em 1996 (que chegou ao Brasil em 2005).

    O fato de querer criar uma história digna do que ele imaginou e bem melhor do que o modo como a série foi feita fez com que Neil Gaiman escrevesse o seu primeiro livro, incrivelmente adaptado do roteiro que ele tinha desenvolvido na série, que pouco tempo depois foi publicado com o nome também de Lugar nenhum.

    O livro demostra o estilo literário de Neil Gaiman, muito parecido com o que ele usa em Deuses americanos e em outras obras. Podemos ver a falta de informação sobre alguns elementos da história, como em muitos contos de fantasia clássicos. Pelo fato de não ser explicado o porquê e o como, em muitos momentos a história abre para o próprio leitor imaginar o passado de lugares e personagens, o que acaba tornando bem mais fácil de criar cenários interessantes para o livro. Esse recurso é muito bem utilizado no livro porque normalmente essa é a realidade de quem vive em uma cidade (porque, por exemplo, não sabemos quem é a pessoa que tem um nome em uma placa ou local da cidade), mas ele extrapola esse desconhecimento para conceitos de historias fantásticas. Por exemplo, existe um distrito em Londres chamado Angel Islington (Anjo Islington), então Neil Gaiman extrapola o nome do lugar e diz que realmente existe um anjo chamado Islington, e depois revela pela metade detalhes sobre o passado dele em pequenas conversas entre os personagens. Isso é bem usado para passar o clima de uma sociedade dentro de outra sociedade.

    O livro também conta com um o clima bem punk inglês, porque Neil Gaiman descreve tudo de forma bem suja, com um visual sempre em farrapos e um clima bem “do it yourself“. A obra adquire uma identidade única (uma fantasia punk), além do leitor sempre ficar imaginando o visual da protagonista de forma especial, já que ela é uma gracinha.

    Outra coisa a se destacar é o trabalho de usar o próprio ambiente de Londres, que tem milhares de referências locais muito legais – até porque Neil Gaiman é inglês. Além de já estar acostumado com o ambiente por ser natural da Inglaterra, ele faz um ótimo trabalho criando ainda mais conteúdo com esses ambientes, fazendo brincadeiras e trocadilhos com nomes de lugares e personagens da cidade, e dando um background que eu não sei se são contos malucos e lendas urbanas londrinas, ou se ele tirou tudo da cabeça dele mesmo. Isso tudo para transformar todos os lugares (isso mesmo, os lugares) em personagens interessantes, imagine os personagens normais…

    São legais as mensagens que o livro passa também: a existência de uma sociedade dentro de um sociedade, de pessoas esquecidas, porque simplesmente é mais conveniente esquecer essas pessoas. Mas, apesar de tudo, por eles serem esquecidos, eles acabam sendo mais livres do que as pessoas que vivem na Londres de cima, onde todos são presos aos seus itens de consumismo, ou a vidas que eles não conseguem largar ou se adaptar, como era o personagem principal. A história chama o leitor a refletir mais sobre o mundo à sua volta, mais localmente, e sobre suas histórias de certa forma esquecidas ou que fazemos questão de não saber.

    Quanto aos personagens, temos que o principal é o que representa o personagem que guia o leitor da melhor forma possível nesse universo. O personagem principal carece de uma personalidade mais forte, mas ele foi feito para representar o londrino médio, o leitor do livro, então não podia ser alguém muito diferente do normal. Ele tem algumas características que o tornam diferente das pessoas comuns, mas só dando a ideia de que algo o diferencia e que por isso ele vai entrar na história. Os personagens restantes são personificações de lugares ou de ideias, e eles são tão marcantes quanto pensamos que eles sejam, já que Neil Gaiman deixa muito da personalidade deles para que o leitor imagine.

    Esse livro tem uma história muito bem desenvolvida, e tudo se acerta de uma forma bem mais natural do que em outras obras de Neil Gaiman, como Deuses americanos. Como este é o primeiro livro de Neil Gaiman, em resumo, Lugar Nenhum é mais obrigatório do que outras obras do autor – em minha opinião, claro.

    Compre aqui.

    Texto de autoria de Psycho Mantys.

  • Resenha | Gourmet

    Resenha | Gourmet

    Pelas minhas incursões pelo mundo dos quadrinhos, me deparei com o mangá Gourmet empoeirado em uma estante de uma comic store paulista. O título incomum e a arte da capa da revista chamaram minha atenção e ao dar uma lida rápida sobre o que se tratava, decidi comprá-la. Quem disse que comprar algo pela capa é uma má escolha? Ao menos dessa vez, foi uma escolha mais do que acertada.

    Jiro Taniguchi e Masayuki Qusumi transportam o leitor para o cotidiano de um comerciante japonês, que devido ao seu trabalho, vive se locomovendo pela cidade, e durante essas andanças compartilhamos de pequenos momentos de sua vida, momentos estes onde o personagem está sempre em busca de um local para fazer uma refeição. Pouco conhecemos sobre ele, nem ao menos seu nome é citado, mas é através desses almoços e jantares que pouco a pouco conhecemos seu passado e sua personalidade.

    Em 18 capítulos acompanhamos 18 refeições do protagonista e momentos importantes de seu passado, suas reflexões e seu amor pelos pratos culinários que saboreia. A obra soa como pequenas crônicas cotidianas que qualquer pessoa comum se identificaria, afinal quem não se pegou relembrando uma antiga paixão enquanto fazia um almoço solitário pela cidade, aquele momento onde temos um break do trabalho e problemas e nos pegamos a vaguear pelo passado, ou então em observar as pessoas que frequentam este lugar, o que pensam, de onde vêm, o que as trazem até ali, enfim, questionamentos básicos que qualquer refeição solitária (ou não) nos traz.

    Além disso tudo, Gourmet traz um relato apaixonado da gastronomia (principalmente japonesa), por toda a história somos apresentados para as mais diversas iguarias da culinária japonesa, uma verdadeira incursão gastronômica. É impossível não ficar com vontade de correr até um restaurante japonês e experimentar o prato que nos foi apresentado com tanto apreço, um legitimo gourmet.

    Muita gente deve estar se perguntando o que faria alguém ler um quadrinhos repleta de indicações gastronômicas. Bem simples, Gourmet vai muito além disso, contando a cada capítulo a realidade de um personagem solitário que vagueia por uma metrópole onde estamos rodeados de pessoas, mas ao mesmo tempo sozinhos. Página a página seus relatos vão despertando mais curiosidade, identificação e contemplação, tudo isso somado à um trabalho artístico lindíssimo.

    [Atualização] Em janeiro de 2020, a obra foi republicada pela editora Devir, por meio do selo Tsuru, com o nome O Gourmet Solitário.

    Compre: O Gourmet Solitário.

  • Resenha | Vagabond

    Resenha | Vagabond

    Vagabond - 1 - capa

    Quando falamos em história do Japão, mesmo aqueles que conhecem muito pouco têm alguns nomes que vem a cabeça como: Oda Nobunaga, Hideyoshi Toyotomi, Ieyasu Tokugawa, e claro, Miyamoto Musashi. Agora imagine uma história em quadrinhos contando a vida de um desses nomes. É isso que Vagabond é.

    Vagabond, de Takehiko Inoue, conta a história de Miyamoto Musashi, baseado na biografia existente. Takehiko é extremamente conhecido por seu trabalho em Slam Dunk, com alguns prêmios para este titulo e com Vagabond também não é diferente, atualmente possui 3 prêmios.

    Shinmen Takezo é um rapaz de uma pequena vila chamada Miyamoto que vai a guerra em busca de um nome para si, junto dele está seu amigo Hon’iden Matahachi que tem o mesmo objetivo. Sobrevivem por pouco da guerra e são ajudados por duas mulheres que roubaram as armas dos mortos na guerra, quando bandidos atacam a casa das mulheres Takezo enfrenta os bandidos enquanto Matahachi foge com uma delas. E assim começa a aventura solitária de Takezo, que logo mais tarde será rebatizado como Miyamoto Musashi.

    Ao contrário do que muitos pensam mangá não tem sempre o traço do Astro Boy de olho grande, Vagabond é um excelente exemplo disso. O traço é bem diferente do que normalmente você vê por ai e a riqueza de detalhes é incrível, embora não seja um dos meus traços preferidos. Uma das coisas que o autor consegue fazer de forma excelente é pelo olhar do personagem passar o que ele está pensando e suas sensações, é possível ver pelo olhar de Musashi sua evolução durante todo o mangá.

    Quanto à história, como disse, ela é baseada na biografia do Musashi e isso já bastante coisa, e o autor consegue traduzir o livro para quadrinhos de forma fantástica. Para quem gosta de mangá sabe que a forma narrativa é diferente das comics, quadros, imagens é tudo usado para a narrativa e para ambientar melhor a noção do leitor, e Takehiko faz de uma maneira extasiante em determinadas partes e calma em outras, fazendo a história correr extremamente bem. Para quem não conhece Miyamoto Musashi é um dos samurais mais conhecidos da história do Japão (se não O mais), grande estrategista e lutador, ele criou doutrinas tanto de comportamento quanto de luta e as escreveu em seu livro “O Livro dos 5 Anéis”, além disso, um dos grandes pontos de sua fama é o fato de ele ter ficado famoso em sua época por lutar usando duas espadas, uma em cada mão.

    Um dos pontos fracos de Vagabond é seus personagens, enquanto a história é focada em Musashi e Matahachi e te mostra a vivência dos dois e suas evoluções, ele simplesmente ignora qualquer outros personagens. Personagens secundários não são emotivos e você não consegue pegar profundidade neles, eles simplesmente ali estão pois o centro do mundo é Musashi. Falta um trabalho melhor nos personagens secundários, alguns que aparecem bastante dentro da história ficam um tanto quanto chatos pelo fato de você não conseguir pegar a motivação deles. A história não possui antagonista certo, a cada batalha é um oponente, após ele ser vencido que venha o próximo, não há um grande inimigo, embora este não faça falta.

    Vagabond é um mangá que conta a história de um personagem real da história japonesa, possui um excelente traço, uma narrativa empolgante e, embora os personagens secundários deixem a desejar, os personagens principais são carismáticos. Vale a pena para quem se interessa por história japonesa, vale a pena para quem gosta de história de samurais e vale a pena para quem gosta de boas lutas de espada.

    Compre: Vagabond.

    Texto de autoria de André Kirano.

  • Resenha | Blade: A Lâmina do Imortal

    Resenha | Blade: A Lâmina do Imortal

    blade - a lamina do imortal

    “Um dojô de estilo de luta espadachim e uma família encarregada de ensinar neste local. Pai, mãe e filha, juntos com todos os discípulos que ali residem e treinam diariamente, vivem uma vida pacata durante a “era de paz” do Japão. Então tudo muda, quando um jovem que está juntando outros espadachins sem nome e sem “estilo” por ai aparece reclamando uma vingança e mata os discípulos, o pai e sua esposa, deixando apenas a filha viva. Dois anos depois, após jurar vingança sobre o túmulo de seus pais a garota vai em busca de seu juramento. É recomendada que contrate certo homem como “guarda-costas”, e junto dele vai atrás dos que mataram sua família.”

    No geral, este é o plot, a história, que está por trás de Blade of the Immortal, ou Blade, A lâmina do imortal, nome que o mangá recebeu ao vir para o Brasil, de Hiroaki Samura. Parece simples, mas não é. Rin Asano, a filha que jurou a vingança sob o túmulo dos pais, quer matar Kagehisa Anotsu. Anotsu é denominado um gênio da espada, e mesmo sendo muito novo juntou sob seu comando um bando de espadachins e formou a escola “Itto-Ryu”. Pregando que as artes com espada nada mais eram que danças e não combate, ele quer reviver o espírito guerreiro do povo e acabar com os estilos que povoam o Japão.

    Para completar sua vingança Rin é recomendada a contratar um guarda-costas: Manji. Este é também conhecido como “Hyakunin-Guiri”, o matador de 100 pessoas. Um Ronin que desobedeceu a ordem de seu senhor e por causa disso foi perseguido, durante a perseguição foi matando um atrás de outro, assim recebeu a alcunha de matador de 100 pessoas. Durante esta matança sua irmã ficou louca com algo que ocorreu e ele passou a cuidar dela. O especial é que enquanto cuidava de sua irmã uma monja apareceu e colocou em seu corpo os “kessenchus”, vermes simbióticos que reconstroem seu corpo assim que ele é ferido, fazendo com que ele se tornasse imortal. Após sua irmã ser morta por bandidos que queriam ser conhecidos como “os que mataram o Hyakunin-Guiri” ele jurou que iria matar 1000 bandidos e assim os Kessenchus iriam sair de seu corpo e ele morreria. Por esse juramento ele começou a ajudar a Rin e junto dela enfrentar os membros da Itto-Ryu um após o outro.

    Após falar tanto da história do mangá é hora de falar sobre ele como um todo. Blade é estritamente um mangá da era samurai do Japão, era que após a unificação todas as terras estavam sob ordem do Xogum e dividida entre daimyos, e como tudo que relata essa época é repleto de batalhas com espadas e tudo o que tem direito. Porém ao contrário de muitos outras histórias que mostram batalhas de espada, Blade demonstra as batalhas como elas realmente eram, em pouco tempo de combate pelo menos um membro dos lutadores já está voando, ISSO é uma batalha de espada, não é ficar batendo espada durante uma hora e só depois dar o golpe final. Pelo personagem principal ser imortal, você o vê sendo realmente cortado em varias lutas.

    Outro grande ponto do mangá é que o antagonista principal não é, necessariamente, o vilão da historia, ele TEM um lado humano e que é extremamente bem trabalhado, tornando Anotsu um personagem carismático e que você torce por ele também em muitos pontos da historia. Manji, protagonista e “herói” têm seu comportamento no melhor dos padrões do “anti-heroísmo”, é briguento, fala muito palavrão, não foge a briga e vive discutindo com a Rin. Rin, personagem que você fala que é boba, porém ela também te conquista com sua inocência e dúvida em certos momentos. Parando para analisar, poucos são os personagens que participam da trama que não tem um fundo muito bem trabalhado. Cada um tem seu motivo para estar na historia, tem sua força de vontade para viver e suas dúvidas a serem respondidas. Samura consegue mostrar a essência de alguns personagens de maneira tão forte que algumas vezes você torce pro antagonista ao menos fugir ou, em certos momentos, pra vencer. Aliás, um dos meus personagens preferidos faz parte da Itto-Ryu que é o Taito Magatsu, também antagonista a dupla de personagens principais do Mangá.

    A história do mangá esta sendo distribuída em arcos. Quatro já terminaram, entramos no quinto arco de historias, e este está sendo dito que será o último. Cada arco apresentou novos detalhes a trama e fechou alguns, porém não todos, mudou objetivo de alguns personagens, enfim, cada arco representa uma evolução para os personagens e fechados em história entre si.

    Mas o que realmente impera em Blade é o desenho e estilo de Samura. Que evolui com a série, porém mesmo no inicio é de extrema beleza. Os kanjis de sons entram em perfeita sintonia com a cena, não são apenas recurso dos quadrinhos, eles fazem PARTE da cena. É admirador o traço do desenho, principalmente em algumas cenas, um tanto quanto sangrentas, mas ainda assim, de uma beleza indescritível.

    Em resumo, uma história de espadachins japoneses, lutas sangrentas, um enredo vibrante e envolvente, um traço estupendo, personagens carismáticos e que tem “alma”, trama rica porém sem pontas soltas e também tem mulher segurando espada, e sendo uma das melhores espadachins do mangá. Recomendo fortemente para quem curte o estilo, não vão se arrepender.

    Compre: Blade – A Lâmina do Imortal.

    Texto de autoria de André Kirano.