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  • Crítica | Fique Comigo

    Crítica | Fique Comigo

    fique comigo-minGosta de filmes como Contos de Nova York, de 1989, dirigido por Woody Allen, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola? Ou quem sabe a HQ de Will Eisner com crônicas urbanas cotidianas? Não sei se foi intencional mas Fique Comigo, dirigido e roteirizado por Samuel Benchetrit, recolhe o espírito dessa narrativa cotidiana e a mistura com um pouco de nonsense para seu filme.

    Na trama, o filme traça pequenos contos que se passam entre os moradores de um prédio, dando a impressão que vão focar em prioridade o morador do primeiro andar, Sterkowitz (Gustave Kervern), que se recusa a ajudar a pagar um elevador novo para os condôminos e acaba precisando dele mais que todos eles. Também acompanhamos um garoto (Jules Benchetrit) que acaba construindo uma pequena relação com uma nova moradora, interpretada por Isabelle Huppert; além de um astronauta americano na sua rotina monotonamente diária (Michael Pitt) e que por um acidente cai em em cima desse mesmo prédio e é abrigado por uma dona de casa (Tassadit Mandi).

    Se não fosse o pequeno incômodo da tela propositalmente quadrada, a progressão dos primeiros minutos do longa seria sem dúvida a principal barreira para um olhar menos acostumado com o cinema francês. Esse início é lento e não faz questão de manter o interesse imediato dentro de uma possível história, preferindo o silêncio. Apesar disso todas as tramas começam a fisgar um estranho interesse entre os núcleos da película até o fim. O pior dos desenvolvimentos ainda consegue dar pleno suporte a uma narrativa natural, mas esse mesmo cuidado por parecer legitimamente interessante apenas do meio da história em diante também soa proposital, assim como uma trilha sonora que ressoa em cada uma das passagens.

    Quem sabe seja essa a real natureza de Fique Comigo: pequenas histórias individuais que não fazem muito sentido a não ser que você consiga capturar a essência do que exatamente está querendo ser mostrado pelo todo. Eu não consegui, mas é algo familiar.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Resenha | Garotas de Tóquio

    Resenha | Garotas de Tóquio

    Garotas de Tóquio é uma HQ erótica publicada em 2006 pela editora Conrad, que reúne sete breves histórias, escritas e desenhadas pelo mangaká francês Fréderic Boilet. A maioria publicado originalmente pela revista japonesa Manga Erotics.

    Nas histórias o leitor é colocado como voyeur daquelas situações e aventuras sexuais. Observando não só o sexo, mas também o exibicionismo do autor sobre seu processo de criação, ao nos mostrar como ele consegue as modelos, como ele as deixa no controle da situação, talvez até numa tentativa de poupar o seu esforço criativo para a hora de transpor o material fotografado ou filmado para o nanquim. Mas também aproveitando as fantasias das jovens, e a espontaneidade da interação, juntamente com a tão comum fixação do artista por suas musas inspiradoras.

    Existem boas diferenças na parte sexual de cada história, algumas mais explícitas, outras mais sutis, com poesia e sentimento, além de passagens apenas emocionais. Nesse ponto também é interessante notar o uso dos diálogos, pois dão o tom de intimidade entre os pares, quanto mais as pessoas falam entre si e se expressam verbalmente, menos intimidade e sentimento há entre elas e vice-versa.

    O ponto alto do álbum fica para a arte, com desenhos que mantém uma “linha mestra” do autor, mas que variam bem de estilo entre cada um dos contos. Alguns com muitas cores fortes e marcantes, outras com tons mais frios, predominando azul e cinza. Alguns com traços mais sutis e levez, outras com o traço mais fino e marcado, puxando o desenho para o realismo com cores mais claras e vivas.

    Envolvido ainda com a arte, há um aspecto interessante sobre as mulheres que servem de inspiração e populam as páginas, pois o autor não usa super gostosas com atributos perfeitos, saídas de algum reality show ou programa de humor de domingo a noite. Nada de peitões, bundas enormes em posições sexuais acrobáticas para incitar o erotismo. Mas sim, mulheres comuns, com imperfeições, sutilezas com uma pitada de timidez, em situações cotidianas como um passeio no parque ou uma conversa com a parceira na cama. Isso tudo torna não só as histórias, como também aquelas jovens, críveis, fazendo com que a carga de erotismo fique por conta do leitor. E não explícita pelo artista forçosamente.

    Garotas de Tóquio é uma boa escolha num gênero de HQ não muito difundido no Brasil, talvez a extensão do livro deixe um pouco a desejar, fazendo com que queiramos mais. Porém, o preço de R$ 9,00 é bastante acessível para um álbum no formato 21,5 x 27,5, com papel e impressão impecáveis, fazem valer a compra e a leitura.

  • Resenha | Fracasso de Público

    Resenha | Fracasso de Público

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    Talvez uma das melhores sensações relacionadas ao consumo de obras de arte seja o da surpresa. Surpresa, não de achar que algo seria ruim mas na verdade foi bom. Falo da surpresa sincera, que hoje somos praticamente privados com tanta informação abundante. Surpresa, de arriscar a comprar um livro, HQ, ingresso de cinema, sem saber absolutamente nada sobre a obra, sem nenhuma expectativa sobre ser bom ou ruim. Surpresa, com uma obra de autoria, até então, desconhecida, que não evoca nenhum sentimento em função de seus trabalhos pregressos. Quando essa obra escolhida ao acaso é também uma obra-prima, talvez isso seja o equivalente a um orgasmo cultural.

    Foi nessas condições que conheci Fracasso de Público, lançado no Brasil em 3 volumes pela Editora Gal. Comprei por indicação de um amigo, mas em função da minha mania de apenas começar uma leitura depois de ter a série completa em mãos. Qualquer palavra sobre a indicação, já havia a muito sido esquecida, e assim como o personagem Ed, eu estava completamente virgem para a obra.

    Fracasso de público é uma HQ independente com roteiro e arte de Alex Robinson, publicada originalmente em 78 capítulos, depois compilados pela editora TopShelf para um volume único de 608 páginas em 2001. A HQ é ganhadora de diversos prêmios e foi hiperbolicamente considerada pela revista Wizards americana, como a melhor HQ independente já lançada até o momento.

    A história trata de um grupo de amigos composto por: Sherman, que é atendente de uma livraria e aspirante a escritor. Ele vai morar com Stephen e Jane, um casal formado por um professor de história boa-praça, e uma quadrinista que odeia Dorothy, a atual namorada de Sherman. O já citado Ed, amigo de Sherman dos tempos de faculdade, além de ter o sonho de se tornar quadrinista, tem um sério problema de timidez com as mulheres e ainda é virgem. Dos principais, temos por último Irving Flavor, um quadrinista veterano criador do mais popular personagem “Nightstalker”, mas que hoje vive em uma situação difícil depois de problemas com a maior editora de quadrinhos, Zoom Comics.

    O roteiro nos entrega uma história cotidiana, comum, sobre a vida daqueles personagens. Boa parte do álbum se foca em seu dia-a-dia. Toda a irritação de Sherman com o emprego que detesta, as frustrações e aspirações sexuais de Ed, a vida em casal ao mesmo tempo pacata e complexa entre Jane e Stephen. Quase como um retrato da vida cotidiana de jovens com seus 20 e poucos anos na cidade de Nova York. Com suas angústias, sonhos muitas vezes distantes, realizações, alegrias ou tristezas.

    Talvez esse seja o maior mérito da HQ, com influência clara de Apanhador no Campo de Centeio, ela transforma uma história sobre o nada, ou pelo menos nada realmente grande ou interessante, em um relato riquíssimo de verossimilhança e aplicabilidade. Envolvente a ponto de podermos imaginar nas situações expostas, como nós mesmos e nossos amigos.

    Alias, os personagens no decorrer da história se tornam nossos melhores amigos de infância durante aquele período. Nos chateamos, aprovamos ou desaprovamos atitudes. Temos ciúmes, gostamos mais ou menos dos pares de cada um deles. Nos sentimos parte do grupo completamente imersos e envolvidos naquele microcosmo, consumindo freneticamente cada página, pois queremos saber mais sobre os nossos fraternos. Em contraste com o sentimento de pesar cada vez maior com o desenrolar e a chegada mais próxima do fim, em que cada um seguirá seu caminho, o leitor com a sua vida, e os personagens imutados para sempre nas páginas do álbum. Esse sentimento é ajudado com o último capítulo e prólogo. Num encerramento que pode até parecer anti-climático, mas que funciona como nossa vida, em que não há grandes conclusões finais para tudo. Apenas observação e constatação do que ficou realmente marcado.

    Toda essa carga emocional e aplicabilidade, muito se deve as próprias referências do autor, é possível sentir a autorialidade latente da história, com Robinson colocando na trama muitos aspectos de sua vida para nossa apreciação. Ao sabermos, por exemplo que o autor trabalhou por sete anos em uma livraria antes de se dedicar full-time aos quadrinhos, isso só se confirma ainda mais. Além das críticas a grande industria editorial, e também aos fãs dela, por momentos chamados de zumbis. Ou também uma personagem que fala em desistir desse mercado porque está começando a pegar nojo.

    Interessante página de perguntas e respostas, que acontece entre alguns capítulos

    Além das inserções pessoais, o quadrinho é abarrotado de referencias à cultura pop em geral. Seja nos desenhos com easter eggs, citações a diálogos de filmes, discussões sobre o melhor filme de um diretor. Dentre uma lista imensa posso citar alguns: Planeta dos Macacos, Beatles, Star Wars, Peanuts, Mafalda, Woody Allen, o já citado Apanhador no Campo de Centeio, e por aí vai. Essas referências, muitas vezes podem soar jogadas em obras que o autor não constrói um cenário ideal para incluí-las, apenas para mostrar que ele conhece e gosta. Mas esse não é o caso de Fracasso de Público, onde tudo se encaixa, você consegue imaginar uma pessoa como aquela retratada, na vida real, fazendo uma citação a Star Wars por exemplo.

    Sobre a arte, ao mesmo tempo que nota-se a evolução das primeiras até as últimas páginas, ainda assim não há nada de excepcional, o que existe é consistência. Além de um esforço muito bem aplicado para dar vida e emoção aos personagens. A sequência de quadro dá ainda mais o tom autoral da história, basicamente seguindo a mente do autor, fazendo malabarismos interessantes, mesclando elementos entre cenas, ou enquadrando separado vários pontos de um mesmo ambiente para mostrar a separação entre os retratados no momento.

    Outro ponto a se ressaltar é que a HQ te leva em vários momentos para uma montanha russa emocional. Passando de sequencias hilárias, para um ou dois quadros depois sofrermos um baque de tristeza ou agonia. O autor trabalha isso muito bem, tanto a dramaticidade sem nunca forçar o tom. Como na comédia que chegam a render crises de riso. Há de se notar que é mais um dos casos em que a HQ é inspirada em nossa própria vida. Em que as situações mudam sem aviso, sem enrolação, os bons ou maus momentos podem ser iniciados ou interrompidos de maneira estanque sem nem bem percebemos o que de fato aconteceu.

    Há também, alguns momentos de tensão na história. Mas por se tratar de uma trama cotidiana, nunca será uma cena entre o super-herói enfrentando o super-vilão para salvar o mundo. Mas sim, uma cena de tensão pré-beijo por exemplo, que se estende por várias páginas, com diálogos atravessados, construindo tão bem a situação de ambiguidade que o personagem está passando. Que ao final do trecho, tive que dar uma pausa na leitura, relaxar e tomar um ar, tenso como nunca poderia imaginar por causa de um simples beijo.

    Fracasso de público é uma das melhores HQs que tive o prazer de ler. Justamente por sua simplicidade, por ser quase um retrato de uma vida que poderia muito bem ser a nossa. Uma história sem grandes reviravoltas, mas que nos faz refletir e observar sobre a nosso próprio cotidiano, nossas escolhas e atitudes, sem nunca versar por qualquer tipo de auto-ajuda, ou julgamentos moralistas, tão comuns nesse tipo de narrativa. Uma obra-prima dos quadrinhos independentes que merece ser apreciada, por qualquer público, habituado ou não com a arte sequencial.