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  • Resenha | O Que Aconteceu ao Homem Mais Rápido do Mundo?

    Resenha | O Que Aconteceu ao Homem Mais Rápido do Mundo?

    Com esse nome, poderia ser uma história do Flash. Porém, é uma das grandes histórias que tive a oportunidade de ler nos últimos tempos. Com roteiro de Dave West e desenhos de Marleen Lowe, O Que Aconteceu ao Homem Mais Rápido do Mundo? conta a história de Bobby Doyle, um homem comum com um poder extraordinário. Com uma narrativa simples, porém intrigante e magnética, essa HQ ganhou um lugar especial na minha prateleira.

    Interessante ressaltar, que essa edição brasileira foi bastante elogiada pelo roteirista Dave West, visto que a Gal Editora procurou incluir todo o material original publicado, desenhos pin-ups, textos extras e uma história bônus. Essa iniciativa, mencionada por West em comentários reproduzidos na edição, só enriquece a leitura.

    A história narra a saga de Bobby Doyle, um rapaz comum que possui o dom de parar o tempo. Porém, dentro dessa bolha temporal, Bobby continua a envelhecer normalmente. Quando uma bomba gigantesca ameaça toda uma área da cidade de Londres, Bobby resolve utilizar o seu poder para salvar todas as pessoas que ali vivem. É nesse momento que uma história intrigante e ao mesmo tempo muito sensível se inicia.

    Já de cara somos absorvidos para a vida de Bobby através da capa da HQ, que reproduz uma matéria de jornal que narra um dos grandes feitos do protagonista. Doyle retirou todas as pessoas de dentro de um trem antes que um grave acidente matasse todos. Nos relatos, alguém fala de um borrão, ou uma sombra, mas ninguém conseguiu perceber o rapaz. Após essa introdução, somos introduzidos a mais um dia comum na vida de Bobby até que a ameaça terrorista surge no noticiário, dando o pontapé para a trama principal.

    Durante o desenvolvimento da história, o roteiro dialoga muito com o senso de responsabilidade do protagonista. Em alguns momentos, podemos até mesmo traçar um paralelo com o lema “Grandes poderes trazem grandes responsabilidades” do Homem-Aranha. West joga muito bem com isso e também ao demonstrar os esforços de Bobby para cumprir seu objetivo heroico. Ao passo que vamos acompanhando tudo, somos cada vez mais tragados para a peleja do protagonista e nos tornando cada vez mais simpáticos a ele e seus dilemas. A narrativa é fluida e sem barrigas, o que faz a leitura ser prazerosa até chegar no seu terço final, que possui um viés um pouco mais investigativo e muito interessante até o desfecho que não poderia ser mais adequado e comovente. Tudo isso é devidamente amparado pela belíssima arte de Lowe, que capta com precisão as emoções do personagem, além de criar uma Londres viva apesar de congelada no tempo.

    Além da sensacional história principal, ao final somos presenteados com uma prequel. Um conto sobre um evento marcante da infância de Bobby, onde ele descobre e usa pela primeira vez os seus poderes. Toda a inocência e doçura que o personagem demonstra nessa história, só fazem aumentar a admiração pelo grande herói que ele um dia se torna.

    Correndo o risco de ser redundante, O Que Aconteceu ao Homem Mais Rápido do Mundo? é uma dessas histórias que ganham o coração do leitor, principalmente daquele que cresceu lendo histórias de super-heróis. A breve saga do incrível Bobby Doyle é uma pequena obra-prima e merece ser lida e relida.

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  • Resenha | Filósofos em Ação – Volume 2

    Resenha | Filósofos em Ação – Volume 2

    Nota-se o quão difícil foi para a dupla dinâmica dos quadrinhos, Fred Van Lente e Ryan Dunlavey, manter o interesse e a irreverência da primeira parte da saga dos grandes filósofos da história da humanidade aqui, na sua continuação publicada pela Gal Editora, a mesma do maravilhoso primeiro exemplar da obra dos dois artistas americanos. Isso porque, se antes eles não precisaram recorrer a uma extensa e desalinhada dialética tanto textual quanto visual para modernizar em uma nova linguagem figuras que já fazem parte de uma imaginário intelectual global (Platão, Freud, Santo Agostinho), há muito, tratando agora de Karl Marx, Jean-Paul Sartre e Descartes, este Volume 2 ganha seriedade ficando órfão da diversão, justamente o elemento mais marcante e bem equilibrado do que veio antes.

    A comparação é inevitável devido à baixa de dinamismo na qualidade narrativa. Uma pena, já que os desenhos caricatos e espirituosos de Dunlavey continuam impagáveis, principalmente no começo, ou seja, nas primeiras vintes páginas que dão conta de evidenciar o próprio e velho Marx, com suas famosas teorias ensinadas nas aulas de sociologia mundo afora, e Nicolau Maquiavel, quando Filósofos em Ação se propõe a provar que o cara nem foi tão mal assim; apenas acreditava piamente que o homem de poder, em prol de sua auto preservação, precisa aprender a ser mal nas situações necessárias a tanto. Dispondo de uma rapidez que já tínhamos atestado antes, é justamente daí em diante que a sensação de dessemelhança começa a apitar, e sem parar, até o final.

    As páginas, então designadas as teorias e a vida de São Tomás de Aquino, o homem que tentou e realmente provou por cinco provas diferentes a existência de Deus, e ao próprio Sartre, o cara que também tornou compreensível – e atraente – a atividade filosófica às massas do seu tempo, sofrem de um certo cansaço criativo jamais sentido quando antes se perguntava “Por que existe o bem?” (Santo Agostinho) ao invés de se afirmar que “penso, logo existo” (Descartes). O capítulo referente a Cabala, um sistema filosófico tido por muitos como doutrina religiosa, é tão corrido que beira a confusão, denotando uma falha no poder de síntese literária ainda inédita nesses dois volumes cheios de humor negro e satirização, a fim de tornar mais acessível esse mundo de ideias atemporais desses ídolos que tanto dedicaram suas vidas a estudar Confúcio, Sócrates, Buda, ou a própria bíblia em exaustão.

    Contudo, é de se admirar a própria premissa dada em continuidade por escritor e desenhista, esmerando-se entre relatos históricos e a sabedoria de grandes mentes e suas criações, inspirações e visões proféticas, criando um mural de lendas que, ora se inspiram umas nas outras para questionarem suas teorias e criarem novas, ora obtém da própria ideia do Divino o ímpeto da busca pela verdade por trás das coisas de uma vida mundana vazia, desprovida de explicações, e carente de um desenrolar reflexivo. Nisso, a série dos Filósofos de Ação termina quase que totalmente ancorada pelo poder do texto, quase que submetendo sua ótima parte visual a um segundo plano. Mesmo assim, com algumas passagens que valem a pena (você nunca mais vai ler Karl Marx da mesma forma), eis um fechamento digno para a co-criação que achou na nona-arte (o mundo dos quadrinhos) a mídia perfeita para as convenções e possibilidades criativamente almejadas, desde o início.

  • Resenha | Filósofos em Ação – Volume 1

    Resenha | Filósofos em Ação – Volume 1

    O quão nobre seria a arte, a artilharia de valores reunidos em uma única publicação, de tornar compreensível para “pessoas comuns” todo o conceito universal da Filosofia? Muito, não é verdade? Contudo, se o(a) leitor(a) já estiver com a resposta pronta entre suas certezas, já está traindo, sem ao menos perceber isso, todo o processo de pensamento não-imediatista que todos os nossos “heróis”, estivessem eles em busca da verdade ou das liberdades propriamente ditas de cada um, tanto defenderam e tentaram disseminar ao longo do tempo – alguns, inclusive, de forma não tão gloriosa ou eticamente admiráveis, assim.

    Podemos, portanto, entre tantas outras coisas, afirmar de antemão que fazer a filosofia e seus representantes típicos terem um grande apelo popular, através da diversão que emana dos quadrinhos, é algo realmente nobre por si só. Afinal, não é todo dia, no tempo ultra corrido do século XXI, que nos sentimos animados de verdade para lidar, com livre e espontânea vontade, com ensinamentos filosóficos (e suas reflexões) em meio as múltiplas tarefas que esses idos contemporâneos nos impõe, categoricamente. Ainda assim, caso a resposta para aquela ou qualquer outra pergunta fosse feita às pressas, como nos ensinou o tempo atual e o senso comum, seria preciso voltar e tentar entender o motivo que levou essa primeira parte de Filósofos em Ação ser tão brilhantemente bem escrita por Fred Van Lente, e graficamente posta em vida com uma vibração invejável por Ryan Dunlavey.

    Ao calcular a viabilidade de uma história em quadrinhos que condensa toda a moral filosófica de Platão (tido aqui como um lutador mesmo, metáfora para sua incansável luta pela verdade, cujo preço foi alto e cruel), Sigmund Freud (o grande pesquisador da sexualidade humana, e sua rixa histórica com seu próprio discípulo, Carl Jung) e vários outros, aqui tidos como símbolos centrais de suas próprias teorias e atividades que, de uma forma ou de outra, tanto influenciaram as sociedades que se originaram após seus estudos, é de se notar o esforço de Van Lente para resumir, em dez páginas cada, a história de vida e as forças ideológicas que, rumo a iluminação e a imortalidade histórica, moveram esses homens e a única mulher entre eles, a russa Ayn Rand, a mais objetiva de todos – até ser traída por seu companheiro, momento esse que resulta num dos pontos chave do livro desenhado: o uso de um bom humor impagável.

    Este é expresso tanto nos diálogos, quanto nos traços de Dunlavey. Sempre expirado, tal o coleguinha escritor, formando uma unidade visual deliciosa ao longo de quase cem páginas divertidíssimas, que levam qualquer um a entender e querer praticar o ato da reflexão – nem que seja só por um instante, o cara faz o uso da cor além dos tons monocromáticos que emprega ser tão necessário, em Filósofos em Ação, quanto mais páginas além das dez já mencionadas aos seus protagonistas. Com total irreverência e credibilidade, conhecemos as mentes filosóficas revolucionárias e traduzidas aqui através de uma centena de situações fantásticas, mas que nunca se distanciam da realidade – a forma irônica como é ilustrada a relação do iluminista Thomas Jefferson com os negros (o homem que redigiu a declaração de independência dos E.U.A. com a Inglaterra abominava a escravidão, mas se viesse a abolir seus escravos, iria à ruína financeira), fica sendo nada menos que genial, ainda que dolorosamente justa. A história dos fatos nunca perdoa.

    Seja como for, e deixando claro que todo fato é linguagem, e portanto, mera opinião, segundo os ensinamentos de Bodhidharma, o homem que trilhou a China e seus templos para mostrar como a verdade é relativa a consciência de cada ser pensante, é de se surpreender como Filósofos em Ação não diminui nem simplifica, ou desmistifica a aura lendária dessas personas já mortas, mas cuja semente de suas ideias e ideais seguem mais vivas do que nunca. A publicação da editora Gal, perfeitamente traduzida ao português, toma o cuidado de provar isso página por página, redigidas com um esmero impressionante, evidenciando todo o processo artístico de Van Lente e Dunlavey, e promovendo na graça e na inteligência que tem em comum todas as histórias envolvendo Nietzsche, Platão e Santo Agostinho, a importância, o fascínio e a diversão que existem em todo e qualquer tipo de questionamento humano.

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  • Resenha | Três Dedos: Um Escândalo Animado

    Resenha | Três Dedos: Um Escândalo Animado

    tres-dedos-capaUma das histórias em quadrinhos mais surpreendentes e interessantes que li nos últimos tempos: Três Dedos: Um Escândalo Animado, do autor Rich Koslowski, publicada no Brasil pela Gal Editora. Em Três Dedos a história é ambientada em uma realidade distópica na qual os “animados” (Mickey Mouse, Pernalonga, Patolino etc.) vivem na mesma sociedade que as pessoas, ou seja, eles existem de fato, não se tratam de criações ficcionais e, além disso, vivem no subúrbio dessa sociedade, são párias e excluídos dentro desse complexo e engraçado mundo. Até que Rickey Rat (isso mesmo, trata-se do nome verdadeiro de Mickey) se destaca e consegue sair da periferia e fazer grande sucesso em um mercado que pertencia unicamente às pessoas comuns, vamos dizer assim. E, após isso, ele abriu as portas para outros animados que também passaram a fazer parte do showbiz e tiveram uma valorização que nunca tinham conhecido até então.

    Mas a que custo? Esse é justamente o tema da HQ. Já na capa, a figura de Rickey, com um copo de tequila, um charuto na mão e um ambiente de decadência já mostra que a vida desses artistas animados não se tratou de um grande mar de rosas onde tudo deu certo. Aliás, há muitos segredos e muitas histórias mal contadas entre todos esses animados que fizeram sucesso, mas que, no momento em que a história se passa, estão velhos e decadentes. Alguns estão, inclusive, em sanatórios devido a graves danos cerebrais causados por sucessivas pancadas (quem já assistiu minimamente desenhos na vida é capaz de adivinhar quem seria esse). E a grande questão é investigar o que ficou conhecido como “o ritual”, que seria algo como uma ação necessária para os animados fazerem sucesso. Mais do que isso e eu poderia estragar o prazer de ler essa grande HQ.

    tres-dedos-1Em relação à narrativa há alguns elementos bastante interessantes. Em primeiro lugar, toda a história é contada como se fosse a gravação de um documentário. Assim, o narrador poderia ser considerado como o diretor que conduz a investigação e as entrevistas com os animados, os quais poderiam melhor elucidar sobre a questão do ritual. Com isso, o autor vai nos mostrando as “verdadeiras” personalidades de todas as figuras que nos acostumamos a ver com alegria e satisfação na TV. A ideia é mostrar a realidade por trás de personalidades famosas, como se descortinássemos a vida íntima de atores e atrizes que povoam filmes e novelas. Portanto, o autor criou um modelo fácil e bastante atraente para nos contar uma história, e que também difere da maioria das histórias em quadrinhos.

    Esta abordagem também faz com que o leitor tenha uma interação bastante interessante com a HQ, uma vez que você se sente como o próprio condutor do documentário e do gibi (para todos aqueles que não gostam dos termos gibi, revistinha ou outras formas que consideram depreciativas, e que por excesso de zelo preferem História em Quadrinhos ou terminologias mais rebuscadas, busquem se preocupar com coisas mais sérias). Quando uma personagem é entrevistada, não existem “balões” de pergunta, apenas a resposta do entrevistado, o que intensifica essa relação com a narrativa e, usando uma expressão da moda, a “quebra da quarta parede” (outro preciosismo dos dias de hoje).

    tres-dedos-2Sobre a arte é interessante notar o formato da HQ, widescreen, ou seja, mais alongado no comprimento do que na altura, contribuindo para a sensação de assistir a um documentário televisivo ou cinematográfico. Toda a arte é feita em preto e branco, o que confere um ar mais pesado e sério que cai muito bem com a proposta do gibi. Traz uma sensação mais sombria, que é fundamental para determinadas passagens da história contada naquelas páginas, já que algumas revelações não são tão alegres e festivas como os desenhos que acompanhávamos na TV.

    Sendo assim, fica a indicação de uma HQ que traz um tema bastante diferente e corrobora com a possibilidade de se utilizar o formato de história em quadrinhos para contar os mais variados tipos de histórias e temas. Essa HQ prova que não somente heróis e super seres compõem o universo dos quadrinhos. Enfim, se quiser investir em algo diferente, mas de grande qualidade, não pense duas vezes: corra atrás de Três Dedos: Um Escândalo Animado.

    Texto de Autoria de Douglas Biagio Puglia.

  • Resenha | Fracasso de Público

    Resenha | Fracasso de Público

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    Talvez uma das melhores sensações relacionadas ao consumo de obras de arte seja o da surpresa. Surpresa, não de achar que algo seria ruim mas na verdade foi bom. Falo da surpresa sincera, que hoje somos praticamente privados com tanta informação abundante. Surpresa, de arriscar a comprar um livro, HQ, ingresso de cinema, sem saber absolutamente nada sobre a obra, sem nenhuma expectativa sobre ser bom ou ruim. Surpresa, com uma obra de autoria, até então, desconhecida, que não evoca nenhum sentimento em função de seus trabalhos pregressos. Quando essa obra escolhida ao acaso é também uma obra-prima, talvez isso seja o equivalente a um orgasmo cultural.

    Foi nessas condições que conheci Fracasso de Público, lançado no Brasil em 3 volumes pela Editora Gal. Comprei por indicação de um amigo, mas em função da minha mania de apenas começar uma leitura depois de ter a série completa em mãos. Qualquer palavra sobre a indicação, já havia a muito sido esquecida, e assim como o personagem Ed, eu estava completamente virgem para a obra.

    Fracasso de público é uma HQ independente com roteiro e arte de Alex Robinson, publicada originalmente em 78 capítulos, depois compilados pela editora TopShelf para um volume único de 608 páginas em 2001. A HQ é ganhadora de diversos prêmios e foi hiperbolicamente considerada pela revista Wizards americana, como a melhor HQ independente já lançada até o momento.

    A história trata de um grupo de amigos composto por: Sherman, que é atendente de uma livraria e aspirante a escritor. Ele vai morar com Stephen e Jane, um casal formado por um professor de história boa-praça, e uma quadrinista que odeia Dorothy, a atual namorada de Sherman. O já citado Ed, amigo de Sherman dos tempos de faculdade, além de ter o sonho de se tornar quadrinista, tem um sério problema de timidez com as mulheres e ainda é virgem. Dos principais, temos por último Irving Flavor, um quadrinista veterano criador do mais popular personagem “Nightstalker”, mas que hoje vive em uma situação difícil depois de problemas com a maior editora de quadrinhos, Zoom Comics.

    O roteiro nos entrega uma história cotidiana, comum, sobre a vida daqueles personagens. Boa parte do álbum se foca em seu dia-a-dia. Toda a irritação de Sherman com o emprego que detesta, as frustrações e aspirações sexuais de Ed, a vida em casal ao mesmo tempo pacata e complexa entre Jane e Stephen. Quase como um retrato da vida cotidiana de jovens com seus 20 e poucos anos na cidade de Nova York. Com suas angústias, sonhos muitas vezes distantes, realizações, alegrias ou tristezas.

    Talvez esse seja o maior mérito da HQ, com influência clara de Apanhador no Campo de Centeio, ela transforma uma história sobre o nada, ou pelo menos nada realmente grande ou interessante, em um relato riquíssimo de verossimilhança e aplicabilidade. Envolvente a ponto de podermos imaginar nas situações expostas, como nós mesmos e nossos amigos.

    Alias, os personagens no decorrer da história se tornam nossos melhores amigos de infância durante aquele período. Nos chateamos, aprovamos ou desaprovamos atitudes. Temos ciúmes, gostamos mais ou menos dos pares de cada um deles. Nos sentimos parte do grupo completamente imersos e envolvidos naquele microcosmo, consumindo freneticamente cada página, pois queremos saber mais sobre os nossos fraternos. Em contraste com o sentimento de pesar cada vez maior com o desenrolar e a chegada mais próxima do fim, em que cada um seguirá seu caminho, o leitor com a sua vida, e os personagens imutados para sempre nas páginas do álbum. Esse sentimento é ajudado com o último capítulo e prólogo. Num encerramento que pode até parecer anti-climático, mas que funciona como nossa vida, em que não há grandes conclusões finais para tudo. Apenas observação e constatação do que ficou realmente marcado.

    Toda essa carga emocional e aplicabilidade, muito se deve as próprias referências do autor, é possível sentir a autorialidade latente da história, com Robinson colocando na trama muitos aspectos de sua vida para nossa apreciação. Ao sabermos, por exemplo que o autor trabalhou por sete anos em uma livraria antes de se dedicar full-time aos quadrinhos, isso só se confirma ainda mais. Além das críticas a grande industria editorial, e também aos fãs dela, por momentos chamados de zumbis. Ou também uma personagem que fala em desistir desse mercado porque está começando a pegar nojo.

    Interessante página de perguntas e respostas, que acontece entre alguns capítulos

    Além das inserções pessoais, o quadrinho é abarrotado de referencias à cultura pop em geral. Seja nos desenhos com easter eggs, citações a diálogos de filmes, discussões sobre o melhor filme de um diretor. Dentre uma lista imensa posso citar alguns: Planeta dos Macacos, Beatles, Star Wars, Peanuts, Mafalda, Woody Allen, o já citado Apanhador no Campo de Centeio, e por aí vai. Essas referências, muitas vezes podem soar jogadas em obras que o autor não constrói um cenário ideal para incluí-las, apenas para mostrar que ele conhece e gosta. Mas esse não é o caso de Fracasso de Público, onde tudo se encaixa, você consegue imaginar uma pessoa como aquela retratada, na vida real, fazendo uma citação a Star Wars por exemplo.

    Sobre a arte, ao mesmo tempo que nota-se a evolução das primeiras até as últimas páginas, ainda assim não há nada de excepcional, o que existe é consistência. Além de um esforço muito bem aplicado para dar vida e emoção aos personagens. A sequência de quadro dá ainda mais o tom autoral da história, basicamente seguindo a mente do autor, fazendo malabarismos interessantes, mesclando elementos entre cenas, ou enquadrando separado vários pontos de um mesmo ambiente para mostrar a separação entre os retratados no momento.

    Outro ponto a se ressaltar é que a HQ te leva em vários momentos para uma montanha russa emocional. Passando de sequencias hilárias, para um ou dois quadros depois sofrermos um baque de tristeza ou agonia. O autor trabalha isso muito bem, tanto a dramaticidade sem nunca forçar o tom. Como na comédia que chegam a render crises de riso. Há de se notar que é mais um dos casos em que a HQ é inspirada em nossa própria vida. Em que as situações mudam sem aviso, sem enrolação, os bons ou maus momentos podem ser iniciados ou interrompidos de maneira estanque sem nem bem percebemos o que de fato aconteceu.

    Há também, alguns momentos de tensão na história. Mas por se tratar de uma trama cotidiana, nunca será uma cena entre o super-herói enfrentando o super-vilão para salvar o mundo. Mas sim, uma cena de tensão pré-beijo por exemplo, que se estende por várias páginas, com diálogos atravessados, construindo tão bem a situação de ambiguidade que o personagem está passando. Que ao final do trecho, tive que dar uma pausa na leitura, relaxar e tomar um ar, tenso como nunca poderia imaginar por causa de um simples beijo.

    Fracasso de público é uma das melhores HQs que tive o prazer de ler. Justamente por sua simplicidade, por ser quase um retrato de uma vida que poderia muito bem ser a nossa. Uma história sem grandes reviravoltas, mas que nos faz refletir e observar sobre a nosso próprio cotidiano, nossas escolhas e atitudes, sem nunca versar por qualquer tipo de auto-ajuda, ou julgamentos moralistas, tão comuns nesse tipo de narrativa. Uma obra-prima dos quadrinhos independentes que merece ser apreciada, por qualquer público, habituado ou não com a arte sequencial.

  • Resenha | Mundo Fantasma

    Resenha | Mundo Fantasma

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    Mundo Fantasma, HQ de Daniel Clowes que ganhou uma tradução brasileira ano passado, não conta exatamente uma história, é mais um apanhado de narrativas curtas ambientadas no estranho mundo de Enid e Rebecca.

    As duas são melhores amigas recém-formadas no ensino médio, irônicas e inteligentes elas navegam entre seu mundinho particular e um desinteresse geral por todo o resto. Ao longo das histórias, as duas tentam se ajustar com a nova condição de “adultas” e como consequência acabam se separando: Rebecca arranja um emprego em uma cafeteria e um namorado e Enid, depois de não conseguir entrar na faculdade, pega um ônibus para qualquer lugar, sem saber bem o que quer fazer, mas com a eterna sensação de não se encaixar.

    Um dos elogios feitos frequentemente a Clowes é o como um homem de 30 anos consegue capturar com precisão o universo de duas meninas adolescentes e eu vi ali, em cada uma, mas principalmente na relação entre elas, muito da minha própria adolescência. Há uma concorrência sutil entre Enid e Becky (elas disputam principalmente a atenção de Josh, um amigo de quem ambas gostam sem admitir) que não nasce por competitividade e sim por insegurança. Além disso ele retrata muito bem o incômodo entre querer a atenção de garotos e ao mesmo tempo não querer ser a menina que se esforça para isso, ou acha-los idiotas e ainda assim querer que eles te achem interessante.

    Talvez, independente do sexo, essas sejam as ambiguidades de qualquer adolescente e é isso que Clowes traz tão sensivelmente nas suas histórias e no seu traço. “Mundo Fantasma” é sobre os incomodos e as mudanças necessárias para se achar seu lugar no mundo e também sobre como as vezes encontrar esse lugar demora bem mais do que se esperava.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.