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  • Crítica | Evangelion: 1.11 Você (Não) Está Sozinho

    Crítica | Evangelion: 1.11 Você (Não) Está Sozinho

    Para quem não está familiarizado com Evangelion, este é o primeiro dos quatro filmes da série Rebuild. É uma espécie de nova versão da série clássica, que mantém a essência da história e dos personagens, mas a trama toma um rumo diferente a partir de certo ponto. Logo de cara vou responder à sua pergunta: então posso assistir aos Rebuild sem ter visto o anime? Olha, você pode fazer muitas coisas em sua vida, porém há consequências desastrosas para determinados atos. Por isso eu te respondo que sim, você pode assistir primeiro ao Rebuild, ainda que não seja o recomendado.

    Por que não? Acredito que muita gente pode ficar perdida se não estiver familiarizada com diversos conceitos da série. A série, assim como o anime clássico, mostra que a humanidade está sendo atacada por seres gigantes chamados Anjos, combatidos pelos EVA, robôs gigantes humanoides muito poderosos construídos pela entidade militar Nerv. Porém, quem pilota os robôs são adolescentes na faixa dos quinze anos. Um deles é Shinji, que acaba de chegar a Tokyo 3 convocado por seu pai, comandante na Nerv. O grande objetivo é impedir o Terceiro Impacto, evento que exterminaria o resto da humanidade, já que boa parte dela já foi exterminada pelo Segundo Impacto, um meteoro (?!) que caiu na Antártida no ano 2000. A história se passa no longínquo futuro de 2015.

    Aí você pensa: por que um moleque de 15 anos, sem experiência alguma de combate, vai pilotar um robô que provavelmente custou bilhões? Detalhe que Shinji e seu pai não se falam há anos, e o garoto está claramente sendo apenas um objeto nas mãos do pai. São estes aspectos humanos que destacam Evangelion.

    Quem assistiu ao anime vai perceber que a maior parte deste filme é praticamente igual à série. Pelo menos os acontecimentos, pois a qualidade de animação e imagem é muito melhor. Mas as diferenças vêm em detalhes. Por exemplo, aqui o mar já está todo vermelho. O design de alguns Anjos mudaram, apesar de a ideia ser quase a mesma. Shinji está um pouco menos introvertido. Rei parece mais humana. PenPen está mais engraçado. A Misato… bem, continua bebendo muito!

    Entretanto, outros detalhes sinalizam mudanças consideráveis. Um deles é a quantidade de Anjos previstos para aparecer, que aqui é menor. O fato de a Nerv guardar um Anjo em sua base não é mistério aqui, e desde o início eles já sabem que aquele não é Adão. Só esses dois elementos já permitem perceber que Rebuild não é apenas a série clássica com animação melhor.

    O filme se desenvolve bem, mas dá a impressão de que é apressado demais, e isso talvez deixe os novatos perdidos. Porém, acaba sendo um filme enxuto, onde praticamente tudo que é mostrado tem relevância. Por isso é uma boa pedida assistir mais de uma vez. Repito, recomendo assistir ao anime e a The End of Evangelion primeiro. Mas se quiser fazer um teste, este é um ótimo começo, o filme é bastante similar à série clássica. Se não conseguir absorver muito bem os conceitos e ideias deste filme, assista ao anime e depois tente novamente.

    A periodicidade da série Rebuild é bastante similar à do mangá: literalmente demorou mais de uma década para ser concluída. Este primeiro filme é de 2007. O segundo é de 2009. O terceiro, de 2012. Já o quarto e último, saiu apenas agora, em 2021. O lançamento ocorreu na Amazon Prime Video, que disponibilizou todos com a mesma dublagem brasileira da série clássica disponível na Netflix.

    Evangelion 1.11 não trouxe mudanças muito bruscas, e prepara o fã antigo para uma chuva de batalhas. Os próximos filmes, meus amigos… se preparem.

  • Crítica | The End of Evangelion

    Crítica | The End of Evangelion

    Evangelion teve uma produção mais conturbada que a mente de seus personagens. Seu diretor, Hideaki Anno, passava por uma depressão profunda, o Estúdio Gainax tinha pouquíssimo dinheiro e, por conta disso, o final do anime foi praticamente um recorte de cenas que mostrou apenas o ponto de vista do protagonista Shinji. Porém, o mundo dá voltas e, quando o anime começou a ser transmitido em um horário direcionado à audiência mais adulta ganhou muita fama e legiões de fãs no Japão e no mundo. Isso não impediu que vários fãs não gostassem do final “cabeçudo” do anime.

    De certa forma, o final do anime não é o que Anno realmente planejava. Ele e a Gainax fizeram o que foi possível na época. Eis que, pouco tempo após o fim do anime, eles conseguiram uma verba suficiente para fazer o que era planejado, e daí nasceu The End of Evangelion.

    Curioso notar que o filme tem a estrutura de dois episódios com o dobro da duração normal, totalizando quase 90 minutos. A qualidade de animação está muito boa e muito menos parada. Mas eles substituem o final do anime? Não!

    Acontece que o anime mostra, em seu final, o ponto de vista de Shinji após a Instrumentalidade Humana, que é uma espécie de unificação de todas as almas da humanidade. Porém, não é mostrado exatamente como chegamos até ali. Inclusive algumas cenas de personagens mortos simplesmente aparecem sem explicar o que os matou. Tudo isso é mostrado neste filme.

    Logo de início, devemos lembrar que Shinji estava mentalmente destruído no final da trama por ter matado alguém querido. Os episódios finais até amenizam um pouco essa situação, mas quando iniciamos este filme, relembramos o quanto ele estava no mais absoluto abismo existencial. Shinji se mantém apático e distante durante o filme todo, causando até um contraste com o final do anime, sendo que este acaba ficando com um tom “feliz” tendo em vista toda a desgraça apresentada neste filme.

    Asuka está desacordada e hospitalizada. O Eva 01 despertou e será fundamental para desencadear a Instrumentalidade. A SEELE fica irritada com a Nerv e decide mandar uma tropa para exterminar a todos e roubar os EVAs. Interessante notar que durante o anime  praticamente não vemos humanos morrerem. Aqui teremos um banho de sangue que certamente causa um impacto considerável.

    Outro ponto interessante é a aparição de uma nova linhagem de EVAs. Durante a série, as Unidades 00, 01 e 02 são as únicas com grande tempo em tela. A Unidade 03 aparece rapidamente (em uma das cenas mais icônicas do anime), outras Unidades são apenas mencionadas, e é isso. Aqui veremos vários outros EVAs em ação,

    Estes EVAs serão essenciais para iniciar a Instrumentalidade, logo após uma batalha sanguinária contra a Unidade 02, cena esta que destrói o pouco que sobrou da sanidade de Shinji. Hideaki Anno não teve pena dos espectadores.

    Temos que lembrar que, durante a série, a Unidade 01 absorveu um Dispositivo S2 de um Anjo, o que deixou-a muito próxima das criaturas, ou seja, supostamente tornou-se uma espécie de deus. Também ocorreu o “despertar” da Unidade 01, tudo isso é crucial para o desfecho da história.

    Alguns dizem que este filme é “o final com violência e orçamento que o anime não pôde ter”. Concordo plenamente. Mas não confunda as coisas, a parte psicológica está a mil por hora, e afirmo que sua cabeça vai fritar ainda mais. Estamos falando de Evangelion, então não espere um final mastigado, explicadinho, reto e definitivo. O término do filme dá brechas a diversas teorias, mas com delimitações. Não é aquele final aberto que possibilita qualquer tipo de interpretação.

    The End of Evangelion é perturbador e instigante, dá um tom mais adulto que a série e não encerra as discussões. A prova disso é que estou aqui, duas décadas depois, recomendando o filme pra vocês. Tanto o filme quanto a série estão disponíveis na Netflix com uma excelente dublagem brasileira. Não é a dublagem da Locomotion, porém algumas vozes permaneceram, como o próprio Shinji e Gendo. Particularmente acho esta dublagem muito melhor por causa das interpretações. Este elenco de dublagem foi mantido na série Rebuild, que estará aqui no Vortex muito em breve.

    OBS.: o filme DEATH (TRUE)², também disponível na Netflix, é apenas um compilado de cenas do anime. Vale assistir apenas para relembrar algumas coisas, mas é dispensável em termos de conteúdo.

  • Resenha | Por Que Não Sou Cristão – Bertrand Russell

    Resenha | Por Que Não Sou Cristão – Bertrand Russell

    Certas obras nascem com o propósito nobre, e aguerrido, de serem desacreditadas por seus detratores inevitáveis. Eles certamente aparecerão, na publicação dela, e tratarão de deslegitimar o seu valor – seja em qual mídia essa criatividade se manifestar. Russell tinha como dom a verdadeira provocação sobre tudo aquilo que falava, em plena Inglaterra e Estados Unidos do século XX, e na coragem histriônica que um homem histórico carrega nas costas, libertava suas noções feito ovelhas desgarradas para que o mundo, sempre pronto e ligeiro, entregasse o julgamento, qualquer que fosse.

    Sua maior bravura, entretanto, a mais polêmica e famosa pelo menos, tem nome e direção: Por Que Não Sou Cristão é um conjunto de ensaios, ou melhor, faz-se como uma extensa indagação cujas diversas respostas, desdobradas ao longo de poucas e ousadas páginas, são tão orgulhosamente mundanas quanto estimulantes, em prol da discussão do que é indiscutível para a maioria das pessoas. Aqui, todo tabu seria exterminado pelo escritor, explodindo a zona de conforto que traz a figura de um altar, uma cruz, a fé cega pelo invisível – mais do que em nós mesmos. Talvez Russell enxergava demais, mas para muitos, era certamente míope.

    Questionador, fazia jus a primeira dedução, ainda que duvidosa, ao revirar e explorar o potencial da consciência humana em detrimento da confiança absoluta em Deus, já que todo cego corre o risco de tropeçar. Assim, a fé e seus dogmas são sondados pela luz reconfortante e sempre válida da filosofia, por mais agressiva que ela possa parecer ser, aqui, aos cristãos que se aventuram pela leitura. Aviso: não há ataques, não há a rebeldia que muitos autores poderiam tecer em busca de uma “guerra pelo certo”, com o leitor. Porém, se hoje podemos enxergar sua postura como totalmente crítica, e inquieta, ainda nos anos quarenta isso afetou profundamente a sua reputação pública.

    Numa época em que as liberdades de pensamento ainda passavam pelo filtro da religião, da sua moral e dos seus bons costumes ainda tão zelados pela Igreja, o escândalo das resoluções de Russell, que questionavam explicitamente a moralidade “irrefutável” do que era lei, se fez apenas uma questão de tempo. Não deu outra: foi expulso da Faculdade Municipal de Nova York, difamado e formalmente julgado, até finalmente ser condenado a não lecionar nunca mais em nenhuma escola dos Estados Unidos da América – intolerância esta que o fez retornar a Inglaterra, e, hoje, emblema um dos mais célebres casos de perseguições a filósofo modernos.

    Contudo, nota-se que não há entre os ensaios de Por Que Não Sou Cristão uma última palavra, e sim a existência democrática, e libertária de pensamentos, a respeito dos silêncios generalizados que existem em torno das doutrinas religiosas, e seus amplos efeitos no nosso comportamento individual, e coletivo. Indo muito além de discutir apenas a fé pelo divino, é portanto admirável o quanto Russell se estende em suas reflexões, e analogias, sem jamais perder o fio da miada, ou tampouco parecer um analista severo demais ao cristianismo, e as virtudes das faculdades humanas, uma vez que a dinâmica de sua escrita consegue ser divertida e instigante. Ao mesmo tempo.

    Estamos falando de uma verdadeira coletânea de catorze ensaios, sendo o primeiro datado de 1927, e publicada exatos quarenta e seis anos depois do filósofo vencer o grande prêmio Nobel de literatura, em 1950, ainda em meio à crise envolvendo sua imagem pública e non grata, em muitos lugares. No Brasil, tivemos em 2013 a chance da L&PM Editora traduzir os intrépidos pensamentos do britânico que defendia que “pessoas muito simpáticas são aquelas que têm mentes repulsivas”, a ponto de termos o prazer de acompanhar, em língua portuguesa, o ponto mais alto destes ensaios atemporais do cara: um debate do próprio acerca da existência de Deus com o padre F.C. Copleston, um sacerdote astuto, cujos argumentos certamente lavam a alma de muitos cristãos, até o clímax do livro. Um duelo de titãs que, por si só, já vale a leitura.

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  • Resenha | No Que Acredito – Bertrand Russell

    Resenha | No Que Acredito – Bertrand Russell

     

    “[…] A preocupação da moralidade é com aquilo que o mundo deveria ser, muito mais do que como ele é.”

    Bertrand Russell se fazia entendível aos ouvidos presentes. Com suas palavras acerca da natureza, do homem (coisas distintas), sobre a ciência, Deus, a moral que pode mover ou não o indivíduo e o seu social, do poder dos nossos impulsos e o que são, de fato, as virtudes atemporais favoráveis a uma vida realmente vivida, o filosofo humanista e palestrante, a favor até a morte da emancipação feminista e da globalização, e contra as guerras mundiais e o potência alienante de todas as religiões na mentalidade humana, tinha o prazer supremo de providenciar aos seus leitores e ouvintes, que viam nele uma espécie de sábio, alguns minutos de reflexão sobre os temas mencionados, em busca das verdades que possam vir a ser confirmadas pelo(a) leitor(a), ou não, a partir de um pensamento crítico honesto, livre, e bem articulado.

    Mas elas custam caro, um clichê antigo e atual. Ciente de que um pensamento calado é o combustível da ignorância, e da auto destruição, Russell manteve suas atividades de cunho pacifista, e altamente independente do militarismo logo no auge da Primeira Guerra Mundial. Por conta dos debates encorajados por seus questionamentos, na universidade de Cambridge, demonstrando a verdadeira exuberância de sua dialética, sempre claro e acessível no raciocínio entre leigos e alunos, passou a ser proibido de dar palestras devido sua filosofia política regrada basicamente sobre dois impulsos básicos ao ser-humano: O criativo, que estimula a criação de algo útil sem ninguém sair perdendo com isso, e o impulso possessivo, cujo fim é sempre custoso. Prêmio Nobel em 1950, Russell acreditava na presença de ambos os estímulos em nosso DNA, mas sobretudo, punha toda sua fé nas pessoas – e nenhuma na ideia de Deus.

    Nada é sagrado, quanto mais as noções bélicas, tão presentes ainda em 1925 no cenário político no qual ousava ter voz. Para o galês, o conflito era absolutamente irracional – tiro no pé da humanidade consigo mesma. Noções estas explicitamente bem conservadas neste No Que Acredito, no Brasil pela famosa Editora L&PM. Eis aqui um compêndio literário que visa reunir cinco capítulos curtos, originalmente publicados em formato de panfleto, e que tratam de maneira magistral temas de interesses universais: a natureza e o nosso papel nela (destacando que o homem faz parte intrínseca dela, e por isso não pode a ela se opor), ou ainda, através de uma prosa de extrema elucidação, que não se pode levar uma vida virtuosa se a mesma não for inspirada pelo amor, e guiada pelo conhecimento. Nisso, porém, Russell não propõe melhorar a conduta dos homens a serviço de nós mesmos. Isso seria moralismo.

    A fim de expandir nossa consciência, o livro guarda aos seus momentos finais uma das frases mais célebres de um filósofo no século anterior: “A coragem deve ser democratizada antes que possa tornar os homens humanos”, diminuindo, neste caso, a influência dos medos sociais a nós, indivíduos. Ademais, Russell não propunha um caminho, mas sua filosofia apontava o estudo sobre possíveis destinos na investigação sobre a(s) múltipla(s) verdade(s) que pode(m) existir. Nesta última afirmação de grandeza incalculável para o empoderamento da sociedade, o mestre expõe sua total falta de empatia para com as regras, o policiamento, a doutrinação, o totalitarismo e as normas que podem limitar a força do pensamento crítico, e os comportamentos humanos.

    Assim, não sendo um sujeito imoral unicamente por enxergar o cinismo e a hipocrisia que se escondem na moralidade cristã, por exemplo, e por isso negando-a como o ateu que foi, Russell seria, hoje, um prato cheio aos moralistas de plantão que resistem, de geração a geração, e julgam os outros com todo o imediatismo covarde de internet que conseguem juntar em seus comentários rápidos, de duas linhas, e mal embasados. Mais um achismo no mar incoerente de achismos que se transformaram as redes sociais do século XXI, fenômeno este (Ágora do pós-modernismo) que Russell não chegou a presenciar – mesmo com ele apostando na ciência como a grande provedora de conhecimento aos seus bisnetos e tataranetos do amanhã (teria ele profetizado o Google?). Com No Que Acredito nas mãos, o(a) leitor(a) precisa estar ciente do valor progressista e reflexivo desta joia da literatura, comensurável portanto em dois sentidos: Pequena no tamanho e descomunal em seu conteúdo.

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  • Resenha | Filósofos em Ação – Volume 2

    Resenha | Filósofos em Ação – Volume 2

    Nota-se o quão difícil foi para a dupla dinâmica dos quadrinhos, Fred Van Lente e Ryan Dunlavey, manter o interesse e a irreverência da primeira parte da saga dos grandes filósofos da história da humanidade aqui, na sua continuação publicada pela Gal Editora, a mesma do maravilhoso primeiro exemplar da obra dos dois artistas americanos. Isso porque, se antes eles não precisaram recorrer a uma extensa e desalinhada dialética tanto textual quanto visual para modernizar em uma nova linguagem figuras que já fazem parte de uma imaginário intelectual global (Platão, Freud, Santo Agostinho), há muito, tratando agora de Karl Marx, Jean-Paul Sartre e Descartes, este Volume 2 ganha seriedade ficando órfão da diversão, justamente o elemento mais marcante e bem equilibrado do que veio antes.

    A comparação é inevitável devido à baixa de dinamismo na qualidade narrativa. Uma pena, já que os desenhos caricatos e espirituosos de Dunlavey continuam impagáveis, principalmente no começo, ou seja, nas primeiras vintes páginas que dão conta de evidenciar o próprio e velho Marx, com suas famosas teorias ensinadas nas aulas de sociologia mundo afora, e Nicolau Maquiavel, quando Filósofos em Ação se propõe a provar que o cara nem foi tão mal assim; apenas acreditava piamente que o homem de poder, em prol de sua auto preservação, precisa aprender a ser mal nas situações necessárias a tanto. Dispondo de uma rapidez que já tínhamos atestado antes, é justamente daí em diante que a sensação de dessemelhança começa a apitar, e sem parar, até o final.

    As páginas, então designadas as teorias e a vida de São Tomás de Aquino, o homem que tentou e realmente provou por cinco provas diferentes a existência de Deus, e ao próprio Sartre, o cara que também tornou compreensível – e atraente – a atividade filosófica às massas do seu tempo, sofrem de um certo cansaço criativo jamais sentido quando antes se perguntava “Por que existe o bem?” (Santo Agostinho) ao invés de se afirmar que “penso, logo existo” (Descartes). O capítulo referente a Cabala, um sistema filosófico tido por muitos como doutrina religiosa, é tão corrido que beira a confusão, denotando uma falha no poder de síntese literária ainda inédita nesses dois volumes cheios de humor negro e satirização, a fim de tornar mais acessível esse mundo de ideias atemporais desses ídolos que tanto dedicaram suas vidas a estudar Confúcio, Sócrates, Buda, ou a própria bíblia em exaustão.

    Contudo, é de se admirar a própria premissa dada em continuidade por escritor e desenhista, esmerando-se entre relatos históricos e a sabedoria de grandes mentes e suas criações, inspirações e visões proféticas, criando um mural de lendas que, ora se inspiram umas nas outras para questionarem suas teorias e criarem novas, ora obtém da própria ideia do Divino o ímpeto da busca pela verdade por trás das coisas de uma vida mundana vazia, desprovida de explicações, e carente de um desenrolar reflexivo. Nisso, a série dos Filósofos de Ação termina quase que totalmente ancorada pelo poder do texto, quase que submetendo sua ótima parte visual a um segundo plano. Mesmo assim, com algumas passagens que valem a pena (você nunca mais vai ler Karl Marx da mesma forma), eis um fechamento digno para a co-criação que achou na nona-arte (o mundo dos quadrinhos) a mídia perfeita para as convenções e possibilidades criativamente almejadas, desde o início.

  • Resenha | Filósofos em Ação – Volume 1

    Resenha | Filósofos em Ação – Volume 1

    O quão nobre seria a arte, a artilharia de valores reunidos em uma única publicação, de tornar compreensível para “pessoas comuns” todo o conceito universal da Filosofia? Muito, não é verdade? Contudo, se o(a) leitor(a) já estiver com a resposta pronta entre suas certezas, já está traindo, sem ao menos perceber isso, todo o processo de pensamento não-imediatista que todos os nossos “heróis”, estivessem eles em busca da verdade ou das liberdades propriamente ditas de cada um, tanto defenderam e tentaram disseminar ao longo do tempo – alguns, inclusive, de forma não tão gloriosa ou eticamente admiráveis, assim.

    Podemos, portanto, entre tantas outras coisas, afirmar de antemão que fazer a filosofia e seus representantes típicos terem um grande apelo popular, através da diversão que emana dos quadrinhos, é algo realmente nobre por si só. Afinal, não é todo dia, no tempo ultra corrido do século XXI, que nos sentimos animados de verdade para lidar, com livre e espontânea vontade, com ensinamentos filosóficos (e suas reflexões) em meio as múltiplas tarefas que esses idos contemporâneos nos impõe, categoricamente. Ainda assim, caso a resposta para aquela ou qualquer outra pergunta fosse feita às pressas, como nos ensinou o tempo atual e o senso comum, seria preciso voltar e tentar entender o motivo que levou essa primeira parte de Filósofos em Ação ser tão brilhantemente bem escrita por Fred Van Lente, e graficamente posta em vida com uma vibração invejável por Ryan Dunlavey.

    Ao calcular a viabilidade de uma história em quadrinhos que condensa toda a moral filosófica de Platão (tido aqui como um lutador mesmo, metáfora para sua incansável luta pela verdade, cujo preço foi alto e cruel), Sigmund Freud (o grande pesquisador da sexualidade humana, e sua rixa histórica com seu próprio discípulo, Carl Jung) e vários outros, aqui tidos como símbolos centrais de suas próprias teorias e atividades que, de uma forma ou de outra, tanto influenciaram as sociedades que se originaram após seus estudos, é de se notar o esforço de Van Lente para resumir, em dez páginas cada, a história de vida e as forças ideológicas que, rumo a iluminação e a imortalidade histórica, moveram esses homens e a única mulher entre eles, a russa Ayn Rand, a mais objetiva de todos – até ser traída por seu companheiro, momento esse que resulta num dos pontos chave do livro desenhado: o uso de um bom humor impagável.

    Este é expresso tanto nos diálogos, quanto nos traços de Dunlavey. Sempre expirado, tal o coleguinha escritor, formando uma unidade visual deliciosa ao longo de quase cem páginas divertidíssimas, que levam qualquer um a entender e querer praticar o ato da reflexão – nem que seja só por um instante, o cara faz o uso da cor além dos tons monocromáticos que emprega ser tão necessário, em Filósofos em Ação, quanto mais páginas além das dez já mencionadas aos seus protagonistas. Com total irreverência e credibilidade, conhecemos as mentes filosóficas revolucionárias e traduzidas aqui através de uma centena de situações fantásticas, mas que nunca se distanciam da realidade – a forma irônica como é ilustrada a relação do iluminista Thomas Jefferson com os negros (o homem que redigiu a declaração de independência dos E.U.A. com a Inglaterra abominava a escravidão, mas se viesse a abolir seus escravos, iria à ruína financeira), fica sendo nada menos que genial, ainda que dolorosamente justa. A história dos fatos nunca perdoa.

    Seja como for, e deixando claro que todo fato é linguagem, e portanto, mera opinião, segundo os ensinamentos de Bodhidharma, o homem que trilhou a China e seus templos para mostrar como a verdade é relativa a consciência de cada ser pensante, é de se surpreender como Filósofos em Ação não diminui nem simplifica, ou desmistifica a aura lendária dessas personas já mortas, mas cuja semente de suas ideias e ideais seguem mais vivas do que nunca. A publicação da editora Gal, perfeitamente traduzida ao português, toma o cuidado de provar isso página por página, redigidas com um esmero impressionante, evidenciando todo o processo artístico de Van Lente e Dunlavey, e promovendo na graça e na inteligência que tem em comum todas as histórias envolvendo Nietzsche, Platão e Santo Agostinho, a importância, o fascínio e a diversão que existem em todo e qualquer tipo de questionamento humano.

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  • Resenha | Desejo de Status – Alain de Botton

    Resenha | Desejo de Status – Alain de Botton

    A obra Desejo de Status do autor Alain de Botton é um “simples” manual explicativo das causas e soluções da obsessão contemporânea, o desejo de  status em sociedade. Publicado pela editora Rocco, a edição a ser resenhada é da coleção L&M Pocket com texto integral. O autor é o escritor Alain de Botton com formação nas áreas de Historia, Literatura e Filosofia.

    Percebemos em uma leitura prévia que o autor divide a obra em duas partes, as causas de um desejo de status e as soluções do que as causas podem provocar. Botton começa definindo e diferenciando o que é o status e o que seria o desejo de status. Conforme o autor, dentro dos motivos primogênitos das causas, poder-se-ia dividir os sintomas da ambição em subgrupos: A falta de amor, o esnobismo, a expectativa, a meritocracia e a dependência. Essas causas levantadas pelo autor ocuparão boa parte da obra de forma explicativa com dados históricos, políticos, religiosos e filosóficos.

    Botton aprofunda a questão de causas de forma detalhada, trilhando o caminho originário das pressões sociais e nos leva a entender como essas afetam a psique de forma involuntária. A segunda parte é clara quanto  ao que seria segundo o autor as soluções para os males que o desejo de status pode trazer, que também é dividida em subgrupos: filosofia, arte, política, Cristianismo e boêmia.

    A falta de amor, segundo Botton, está profundamente ligada ao desejo de status. Somos seres morais e sentimentais em busca de amor, de forma que nosso desejo é intensamente ligado à esse grito desesperado pelo amor total e absoluto. O autor escreve, “Pode-se dizer que a vida adulta é definida por duas grandes histórias de amor. A primeira – a da busca por amor sexual – é bem conhecida e bem representada, suas peculiaridades formam a matéria-prima da música e da literatura, ela é socialmente aceita e celebrada.” (de Botton, Alain; Desejo de Status; p.16)

    Em seguida o autor entra na causa da sede de desejo de status, o esnobismo. Vemos que o esnobismo é comum e parece invencível dentro do meio social, uma espécie de doença coletiva. A frustração e a incompreensão diante do esnobe parece fomentar nossa vontade de parecer melhores, de uma forma totalmente inconsciente.

    Segue o autor no que seria a terceira causa, a expectativa. Aqui Botton inicia com o fato ocorrido em 1959, onde o vice-presidente americano, Richard Nixon, viaja a Moscou para uma exposição tecnológica, demonstrando a busca pelo progresso material, após explicar como seria o modelo moderno de cozinha. Aqui ele estaria relatando não só a realidade que os EUA estavam vivendo nesse período, mas também o restante do mundo Ocidental, que vinham buscando modernidade e facilidade nos vários segmentos do cotidiano, aprofundado muito a busca por tecnologia. Todo esse contexto histórico em busca de uma vida mais superiormente confortável e de certa maneira invejável, provoca, segundo Botton um aumento nos níveis de preocupação com o que se tem. “É o sentimento de que podemos ser um pouco diferentes do que somos – um sentimento transmitido pelas realizações daqueles que consideramos nossos iguais –  que gera desejo e ressentimento. Se somos baixos e vivemos entre pessoas que são todas do nosso tamanho, não seremos perturbados pela nossa altura. Mas se os outros em nosso grupo crescem e ficam um pouco mais altos, ficamos sujeitos a um desconforto súbito e podemos ficar insatisfeitos e sentir inveja…” ( Botton; Desejo de Status; p. 42-43).

    No capitulo seguinte, Botton adentra ao tema sobre ao mito da meritocracia, abordando algumas fábulas que são muito úteis para o entendimento do que sugere esse fator social. Enquanto, no último capítulo, o autor desenvolve sobre as causas dessa dependência, exemplificando os tantos motivos de sermos escravizados por uma dependência social em vários âmbitos no mundo contemporâneo.

    A partir daí Botton aborda oque poderia ser as soluções para todas essas causas sociais, e então é um mergulho nos fantásticos universos que não são explorados pela mídia, pelos coachings e pelos messiânicos, os caminhos da filosofia, política, espiritualidade e o mundo recluso dos boêmios.

    A leitura de Desejo de Status é extremamente prazerosa e viciante, apesar da complexidade do livro em atrelar dados e fatos históricos, mas não é um livro para ser lido apenas uma vez. De certa forma ele nos alivia e nos ajuda a entender como é complexo nosso mundo atual e como muitos acontecimentos considerados normais e obrigatórios não são simples e tem um fator muito explicativo do por que ocorrem. Certamente ao chegar no fim do livro percebemos que a opinião do senso comum diante de tantos fatos relevantes da nossa trajetória pode ser uma maldição. Botton é recomendadíssimo nessa obra não só para leitores de filosofia e psicologia, mas para todos que estão em busca do verdadeiro autoconhecimento.

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    Texto de autoria de Ana Oliveira (Críticas de Livros).

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  • Crítica | Jauja

    Crítica | Jauja

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    Quando o exercício filosófico brota de uma realidade bruta, a favor e servindo a uma mitologia moldada em delírio, instintos, carma e a coragem natural que move o espírito de um pai, no caso, em busca da filha e seu sonho de vida, e principalmente, à procura de seu papel no mundo. Uma viagem pelo subconsciente insondável e imprevisível de um homem, de psiquê por vezes violenta e melancólica, tal qual a nossa, transvestida em forma de deserto e danação. Bem-vindo a Jauja, um cenário sem fim como base a infinitas expedições e interpretações.

    O diretor Lisandro Alonso  externiza esse subconsciente, essa parte sombria e tão pouco inexplorada de cada um de nós, na dúvida de que tudo ali, na tela à nossa frente, não passa de uma fantasia moldada pela ambição humana e a poesia visual exuberante em cada plano (poesia assinada pela energia dos planos, e do tempo, desses planos em cena), partes de um quebra-cabeça ambíguo e questionável, de propósito, para uma definição única. A tanto, há uma trama bem simples para os que gostam de racionalizar as coisas: no meio de uma expedição a fim de encontrar o mítico destino homônimo nunca antes alcançado, espécie de terra prometida, pai e filha, carne do general Gunnar, são separados sem motivo aparente. Aliás, é a falta de esclarecimentos em qualquer leitura de qualquer camada da trama, junto à poesia já mencionada, que torna Jauja um desses enigmas visuais cuja narrativa vale mais que as (impossíveis) conclusões.

    Nós, a certo ponto, percebemos assumir o papel de Gunnar (Viggo Mortensen), ou seja, nos tornamos os exploradores da terra que este vaga, sem fim, visando miragens e espectros na pradaria argentina sob o sol escaldante, sob a luz das estrelas; talvez pedaços de si mesmo, alucinações que fazem parte do mero ser. É claro que nesta circunstância, se para ele o que vale são as descobertas, a nós o que vale é o caminho. Ao público, a ficha cai aos poucos, inconscientemente, muito antes de percebermos, na experiência coletiva de uma sala de cinema, quando já fomos engolidos pela escala transcendental do filme. E se a Gunnar é concebido o desprendimento forçado de sua filha, o próprio filme nega e se separa da história, afinal um filme é sempre maior que as palavras – incluindo as desta crítica, feito que Jauja alcança desde a estranha atração que sentimos, no início da projeção, na tela de formato 4:3, achatando um universo para que seja a nossa tarefa expandi-lo, engrandecê-lo, com a imaginação de quem vê e sente o poder do audiovisual.

    De Platão: “Tente mover o mundo – o primeiro passo será mover a si mesmo.” Mover-se num universo que nos atrai e repele, este achatado pelas dimensões da câmera, e que não pode, nem passa despercebido por quem nele embarca de cabeça. Uma trilha banhada pela luz e a escuridão que encontram os seres jogados à própria sorte. Um filme sobre dimensões internas, exteriorizadas nas veias ora da representação teatral ao ar livre, ora de uma ficção permeada em metáforas e signos e elementos além de nossa vã filosofia casual. Filme livre, de peito e mente aberta num ângulo de 360º que nada condiz com sua forma de exibição, mas cuja abertura crítica não encontra limites junto ao término da sessão, sendo então o começo de uma reflexão bem-vinda. Filme que pede nossa atenção e lucidez para nos guiar por um espaço-tempo tão encantador, quanto particular. Filme filho de Leone, Bresson, Resnais e tantos outros. Jauja é uma aula de educação artística, obra platônica oriunda da atração coletiva e individual pelas curvas, e veredas, do desconhecido.

  • Filosofando o Pulp | Teletransporte, invenção final ou instantânea liquidez?

    Filosofando o Pulp | Teletransporte, invenção final ou instantânea liquidez?

    Muitos dos problemas da humanidade em toda a sua história são constantes: transcendem cultura, evolução tecnológica, clima etc. Constantes também se tornam as reclamações sobre estes problemas mais comuns: “Impostos são uma praga!”, guerra, fome, disputa territorial, distribuição desigualitária de riquezas e meios de locomoção ou transporte.

    Pois bem. Desde que surgiu a ideia do famigerado “Teletransporte” (ou teleporte), ele é imaginado como resolvedor das mazelas dos nossos meios de transporte atuais, dando um ponto final à questão por sua praticidade intrínseca e com resultados que poderiam ser comprovados quase que instantaneamente.

    Ressalto aqui que me refiro a qualquer tipo de “transporte instantâneo” sequer imaginado, desenhado ou descrito ao longo da história da humanidade. Ou seja, aparições instantâneas carregam um conceito similar ao do nosso teletransporte moderno e maquinário. Eis aí o trunfo do teletransporte antigo ao novo. Vais entender no decorrer do texto.

    O principal ponto do teletransporte moderno, que já foi experimentado e de fato funcionou (um experimento que resultou no “teletransporte” de um fóton), basicamente consiste em transmitir informações para que seja possível reconstituí-las na máquina de destino. Ou seja, não é possível transmitir ”magicamente” as mesmas partículas através do espaço-tempo de forma instântanea. O que acontece, então, com o corpo original? Pode-se dizer de forma simplista que ele é “diluído em bits/bytes” para que sejam transmitidos. Portanto, mantenha em mente este conceito para analisar o cenário aqui discutido.

    Com essas informações agora transitando entre as suas sinapses neurais, eu lhe pergunto: adentraria então tal máquina, sabendo que todas as moléculas do seu corpo estão sendo pulverizadas e sendo reconstruídas em outra máquina a milhares de quilômetros de distância?! Sabendo (ou sem saber, talvez) que, mesmo que a cópia física e celular seja perfeita, você nunca irá garantir que toda a sua consciência estará intacta “do outro lado”? Pode-se o imaterial se perder durante tal transmissão de informação? É a consciência, de fato, material? Alguém tem a resposta definitiva para isso? Certo, eu sei… A certeza corre como um fóton de nossas mentes diante de tais questões.

    Mas, além de tudo isso, para mim a grande pergunta nem é essa. Todas essas perguntas anteriores ainda têm como base a ideia de que é você, sujeito em primeira pessoa na perspectiva do mundo, você é quem vai sair do outro lado da máquina. Incompleto ou imperfeito? Talvez, mas ainda assim, em essência o mesmo ser que momentos antes ali não estava. Não, o meu maior receio e dúvida, que me deprime se algum dia eu viver para ver o teletransporte inventado é: não será EU quem sairá no outro ponto espacial conforme planejado. Acredito, sim, que ele funcionaria perfeitamente e transmitiria todos os dados necessários para que eu seja replicado, assim como as minhas memórias, consciência, razão e qualquer outra propriedade mental difícil de ser comprovada materialmente. Tudo isso estaria lá, perfeitamente como o que “saiu” daqui, mas quem estaria lá não seria eu, ser senciente e único como todos somos. Outra pessoa como eu estaria “lá”, outro humano com as mesmas memórias, mazelas, pensamentos e gostos estaria lá, mas não eu. Células iguais, pele, cabelo, mas não a minha pele.

    Outro ser desceria na plataforma final. Outro ser que se passaria por mim perfeitamente, com os mesmos movimentos, jeito de agir e pensar. Nem mesmo tal replicante saberia que é uma farsa, uma cópia, que nasceu de fato apenas quando saiu da plataforma de desembarque; seria o disfarce perfeito. Quem, eu me pergunto, em sã consciência levantaria dúvidas sobre a eficácia de tal invenção e a sua perfeição ao nos transportar (copiar) para outro lugar? Ninguém o faria! E, para ser bem honesto, creio que com o tempo todos se acostumariam com isso e nem faria tanta diferença assim no resultado final sobre o curso da evolução humana. Mas, mesmo acreditando nisso, ainda me assombro com a ideia de ter o meu ser desfeito em partículas para em seguida usarem essa informação para colocarem um substituto na minha vida com a enorme chance de ninguém nunca questionar que “aquele cara” sou eu.

    Correndo o risco de parecer um velho medroso quando no futuro longínquo inventarem tal equipamento, ao me negar a entrar em um deles, peço que não tomem a minha aversão por medo irracional. Longe disso, a negação raivosa que surgirá em mim se algum dia tentarem me colocar à força numa máquina dessas é provida de um pensamento cuidado sobre as diversas variáveis que envolvem o gracioso teleporte. Por isso lhe pergunto:

    Entraria sem receios todas as vezes que fosse usar tamanha invenção…?

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Filosofando o Pulp | Sobre o gostar

    Filosofando o Pulp | Sobre o gostar

    O objetivo desta coluna é escrutinar alguns pontos da cultura popular que adentramos, discutimos e vivemos. Alguns tão perceptíveis quanto seria um Olifante a alguns metros de distância, outros sorrateiros e quase intangíveis como um neutrino perpassando seus neurônios sem deixar marca. Almeja-se nunca apontar uma certeza, e se algum sucesso obtiver, será pelo turbilhão causado dentro deste sempre transcendente vórtice cultural…

    Filmes, livros, séries, música etc. Entre as diversas discussões que permeiam o mundo da cultura pop e todas as suas mídias, uma talvez seja a maior fonte de discórdia, debate e deliberações.

    O que a princípio soa como uma pergunta boba e inocente em uma conversa casual com amigos (e aquele filme, é bom mesmo?), esconde um complexo mecanismo humano de absorção cultural. Afinal, quão subjetiva ou objetiva é a nossa avaliação de uma obra artística? O que aquilo nos diz sobre a nossa personalidade, ou o que para alguns é ainda mais sério: O que aquilo nos diz sobre a nossa intelectualidade?!

    O filósofo escocês David Hume (1711-1776), em uma de suas obras mais importantes e conhecidas (Enquiry Concerning Human Understanding) discorre no ensaio Do Padrão do Gosto sobre essa busca mais do que natural do ser humano de tentar compreender e justificar qualitativamente o gosto humano e suas variações. Entre os diversos pontos levantados por ele, um interessante é acerca do sentimento ao experienciarmos uma obra, e do nosso juízo ao tentarmos explaná-la para outros. Basicamente Hume pensava que, antes de qualquer análise mais cuidadosa, a priori temos apenas o sentimento como parâmetro do gosto e, baseado nesse sentimento, prosseguimos com as explicações e o porquê de termos gostado de algo ou não.

    Muitas vezes travamos uma verdadeira guerra verborrágica (com amigos ou aqui no Vortex) em acaloradas discussões ao tentarmos fazer a conexão entre o que sentimos (apreciando uma obra artística) e o que racionalizamos sobre ela. Muitas vezes tentando decodificar a si próprio. Achar um sentido para ter tido aquele tipo de reação.

    O curioso é que muitas vezes somos incapazes de relacionar estes dois estados. Quantas vezes você não já se pegou dizendo algo como: “Não sei por que exatamente, mas não gostei desse filme”. Mesmo após explicações perfeitamente plausíveis sobre a técnica do filme como um todo, sobre a qualidade da direção etc. Mesmo depois de demonstrado em detalhes que você deveria SIM gostar daquele filme, caso tenha um mínimo de bom senso, você não consegue ” perceber ” isso, sentir isso de fato. Claro que, se apreciássemos uma obra através da razão apenas, bastaria isso para nos convencer, ou seja, uma boa explicação. Felizmente para a longevidade dos debates acalorados aqui no site, isso não é verdade. O mesmo acontece na direção contrária: me refiro ao que chamamos em inglês de guilty pleasure. Quando se gosta de algo que mesmo você consegue perceber que é de extremo mau gosto, ou pelo menos de qualidade duvidosa. Mesmo sabendo de inúmeras razões para que qualquer ser humano inteligente ache aquele filme uma porcaria, você aprecia aquela obra, se diverte com ela e por aí vai…

    Listamos os pontos negativos e positivos, detalhes técnicos, padrões encontrados etc. Mas será que é por causa desses pontos que realmente consideramos algo “bom”? Ou estamos apenas justificando um sentimento com opinião já formada?

    Os adjetivos observáveis são realmente a causa do que gostamos, ou é o gosto já decidido que nos faz notar algumas qualidades e deixar de enxergar os defeitos daquela obra?

    Faça este exercício e tente analisar o que você realmente prioriza na sua avaliação. Garanto que algumas surpresas surgirão em ambas as direções: “análises detalhadas” VS “sentimentos primordiais”.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.