Autor: Amilton Brandão

  • De Thanos a Dostoiévski – Os mitos que permeiam todos nós

    De Thanos a Dostoiévski – Os mitos que permeiam todos nós

    O vilão da Marvel Thanos sempre esteve rodeado por conceitos ligados ao desconhecido, questões morais, niilismo e morte, portanto não me surpreende que sua gênese tenha surgido enquanto seu criador, Jim Starlin assistia a uma aula de psicologia na faculdade. 

    Sua origem se assemelha a estruturas conhecidas de mitos antigos. Ao nascer, sua mãe tenta acabar com a vida do filho por se chocar com a sua aparência e por acreditar, de alguma forma, que ele trará fim a vida no universo. Ato que é evitado por seu pai. Em um contexto mitológico, é como se sua mãe tivesse recebido uma revelação divina direta, acreditando fazer parte de uma profecia sombria. Um nascimento que nada deve aos dramáticos mitos gregos.

    Como muitos vilões em tantas outras histórias, Thanos cresce inicialmente com intenções pacíficas. Porém na sua adolescência, seu interesse por temas mais sombrios começa crescer. Chegando a desenvolver uma forte atração e genuíno amor pela personificação da Morte em seu universo. Amor esse que o levará a cometer atos indignos de seu sentimento. 

    Isso gera nele um conflito claro. Thanos até chegou a sonhar em criar uma nova forma de vida, mas cada vez mais se sentia atraído pela morte. Seu amor é implacável, assim como seu destino, inexorável. Thanos é um paradoxo vivo, seguindo um comportamento comum na história humana, invocar a morte enquanto se prega o amor.

    Afinal, por que essa temática? Há algum valor em reconhecermos e talvez até amarmos a morte? 

    Memento Mori: o fim inexorável

    Isso me traz à mente o conceito de memento mori; lembre-se da morte. Artistas renascentistas faziam questão de nos lembrar disso ao terem em suas obras crânios humanos e frutas apodrecendo, representantes da passagem do tempo, da nossa finitude, da morte.

    Diversas correntes filosóficas e religiosas focam na importância de se refletir sobre a morte: Sócrates, Platão, Buda, hinduísmo e os estoicos são ótimos exemplos. Diferente dos outros seres vivos, sabemos que iremos morrer. Vita brevis.

    Essa consciência é nossa dádiva e ao mesmo tempo nosso fardo. Quase como um preço a se pagar por termos aceitado o fogo roubado dos deuses pelo titã Prometeu, ou por termos comido do fruto do conhecimento no Éden. Com isso, nos tornamos cientes pela primeira vez da malícia, da sombra que habita em todos nós. Percebemos a nossa vulnerabilidade diante da natureza. Nos vimos nus, frágeis e com a certeza de que teremos um fim. 

    Esse é o começo da história humana, encenada e condensada em mitos a experiência de uma consciência evoluída em primatas que há apenas alguns milhões de anos vagavam pelas savanas africanas tentando sobreviver.

    Incorporar a brevidade da vida e não fugir da noção da morte é o que dá significado e ritmo à existência. É o que nos permite mover em direção a algo que nos transcende. É o que nos leva a construir catedrais e pirâmides que levam séculos para serem concluídas. É podermos ler as palavras gravadas com tinta em folhas de árvores, escritas por ancestrais que viveram e morreram há milhares de anos. A recorrência desse tema em nossas histórias nos traz para perto de nós mesmos, nos define como humanos, mesmo que essa tensão com a morte aqui seja personificada por um personagem alienígena. 

    A tensão de vida e morte em Thanos cria no personagem um apetite ambicioso para trazer harmonia e equilíbrio para o cosmos, similar aos mais famosos ditadores da nossa História. 

    Em Thanos, isso se traduz em reduzir pela metade toda a vida do Universo.

    Mural Old Town Hall (Göttingen) – Alemanha

    Carstian Luyckx: Vanitas – Still life with a celestial globe. (Vazio – Ainda há vida com um globo celestial)

    Pensamentos dissonantes

    Sua justificativa é a mesma de todos que detêm muito poder. Eles têm a solução para os problemas do mundo e somente eles podem nos salvar. 

    Essa armadilha cognitiva de se ver como uma força necessária para o bem de todos é bastante comum e convence, não somente quem propõe tais ideias, mas também seus seguidores. Vemos isso em diversos dilemas humanos: faz-se guerra para se ter paz, mata-se para que a vida prospere.

    No romance clássico e obrigatório 1984 de George Orwell, as dissonâncias entre pensamento e ação foram exploradas com maestria. O lema do partido que detém o poder no livro é: Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força. O chamado ‘duplipensar no livro não tem como objetivo ressaltar essa clara contradição, mas sim causar um choque mental tão dissonante que dissolveria qualquer questionamento racional e lógico da população. Exemplos na política moderna em que as contradições são empilhadas não faltam. Na linguística o conceito se apresenta através de eufemismos como ”fogo amigo” ao invés de ”tiro acidental” e ”danos colaterais” ao invés de ”múltiplas fatalidades”. Orwell definiu o “duplipensar” da seguinte maneira: 

    Saber e não saber, estar consciente da mais completa verdade enquanto se conta mentiras cuidadosamente construídas, manter simultaneamente duas opiniões que se cancelam, sabendo que elas são contraditórias e acreditar em ambas, usar a lógica contra lógica, repudiar a moralidade enquanto e se diz ser moral, acreditar que a democracia é impossível e que o Partido é o guardião da democracia. Esquecer, o que quer que seja necessário esquecer, e se voltar a memória novamente quando for necessária, e prontamente esquecer novamente, e acima de tudo, aplicar o mesmo processo ao próprio processo. 

    No ramo da filosofia moral, cenários que testam os limites dos nossos vieses e escolhas morais são criados e dissecados à exaustão. O objetivo aqui não é detalharmos tais situações em que é muito comum termos apenas opções de ”um mal menor” a serem escolhidas, mas sim questionar a aparente atração e, repito, contradição de se buscar paz com guerra, amor com ódio, respeito com autoritarismo. Se usarmos como referência uma das nossas melhores ferramentas de análise do comportamento humano, a História, é fácil concluir como essas contradições nunca se sustentam no longo prazo. Joseph Stalin, Hitler e Mao Tsé são apenas os exemplos mais famosos, mas há muitos outros. 

    Podemos concluir que suas aspirações e métodos sempre se dissolvem nas areias do tempo. O que há de comum entre eles: se rebelar contra a criação em si, agir contra algo que pelo que as histórias nos contam, não detemos a sabedoria para tal. 

    Sacrifícios e consequências

    Grandes ambições pedem grandes sacrifícios. Para Thanos, o sacrifício é acabar com sua única relação afetiva real e assim obter o poder necessário para seguir com seu plano. É muito comum que sejam sempre os mais próximos a nós a terem que lidar com as consequências de nossas escolhas. Mas o que de fato é essa noção de sacrifício e porque ela é contada e recontada em mitos, performada em ritos, vivenciada por todos nós? 

    A experiência humana traz consigo uma diferença crucial de outras formas de vida no planeta, e como quase todas as características humanas, carregam consigo a dualidade dádiva/maldição. 

    Uma boa definição do conceito de sacrifício é descrita pelo psicólogo e escritor Jordan Peterson: Sacrifício é o ato consciente de se abrir mão do presente para se alcançar o futuro

    Mesmo sem entendermos os mecanismos por detrás disso, o sentimento é de que quanto maior o sacrifício, mais significativa a recompensa. É por esse sentimento que Abraão cogitar fazer o que é pedido dele. Esse ofício sagrado (tradução direta do Latim) toma então cores honradas, e pode ser usado para justificar praticamente qualquer ação que o precede. Dada essa premissa, Thanos age e sacrifica a sua filha.

    Há nessa ação certa inconsciência e ingenuidade sobre as consequências e transformações que tais atos podem gerar. Por um lado, é impossível realmente identifica-las, pois o agente executor antes do ato (o “eu atual”) é um ser diferente do “futuro eu”. Em termos fenomenológicos, o último só nasce após o ato em si. Mesmo no mais planejado cenário, vemos na literatura e nos mitos o quão diferente pode ser a vivência entre pré e pós sacrifício.

    Somos seres que naturalmente inferimos causas nos fenômenos ao nosso redor. Se vemos um raio e, alguns segundos depois ouvimos um trovão, é fácil compreender que antes de termos as ferramentas para sabermos que ambos são apenas manifestações da mesma coisa, poderíamos concluir que um causava o outro. Com sacrifícios essa noção se repete. Daí as oferendas associadas com as colheitas, ou sacrifícios humanos para se obter a graça dos deuses, entre muitos outros exemplos. Alguns atos são de mais fácil observação que outros, como plantar sementes para se obter alimentos meses depois. O ponto é que o presente pode ser vendido para se alcançar o futuro. Por isso tal noção é tão destacada. Ela simplesmente funciona.

    Você pode questionar se o método empregado é o mais apropriado para se ter o que deseja no futuro, mas poucos questionariam o poder do sacrifício em si. Por outro lado, mesmo que ele funcione, o preço pago pode ser alto demais.

    Existir para desistir? 

    O principal argumento moral de Thanos é de que vivemos em um Universo com recursos finitos para uma população que não para de crescer. Em sua defesa, foi exatamente esse problema que seu planeta natal enfrentou e o fez sucumbir. Penso com isso que Thanos poderia facilmente aderir aos argumentos da filosofia anti-natalista, dado seu ponto de vista. 

    Para os anti-natalistas, evitar sofrimento contém um peso moral maior do que gerar alguma felicidade. Portanto, não existir têm uma relevância maior do que existir, sofrer e acumular sofrimento através das gerações. A lógica é que nascer, invariavelmente, trará algum tipo de sofrimento. E se temos o poder de escolher entre gerar uma nova vida (mais sofrimento) ou não, a escolha ética seria um desconfortável não. Para alguém que nunca venha a existir, não há nada a ser perdido em termos de felicidade ou prazeres. Afinal, você sofria antes do seu nascimento? 

    A conclusão para os anti-natalistas é de que a nossa espécie deveria gradualmente e conscientemente não mais se reproduzir e, portanto, não mais existir.

    Reduzir a existência da consciência em uma balança de ‘’felicidade’’ e ‘’sofrimento’’ me soa um tanto reducionista e ignora as ramificações desses estados. Se olharmos para as nossas próprias vidas, podemos ver que ‘’mais sofrimento = ruim’’ e ‘’mais felicidade = bom’’ não é uma equação tão simples assim. Um momento definido inicialmente como ruim ou mau pode estar diretamente conectado com o que definimos como bom e prazeroso. Ou mesmo, como algo que traga maior significado para a vida em si. 

    Uma história comumente contada em círculos Taoistas exemplificam esse pensamento e serve de reflexão: O Conto do Fazendeiro Chinês: 

    Era uma vez um fazendeiro chinês. Um dia, um de seus cavalos fugiu. Seus vizinhos vieram até ele, comentando como aquele acontecimento era um infortúnio. O fazendeiro respondeu: “talvez”.

    No dia seguinte, o cavalo que fugiu voltou, trazendo com ele sete cavalos selvagens. Os vizinhos apareceram novamente, dizendo que isso era uma grande sorte. O fazendeiro respondeu: “talvez”.

    Depois disso, o filho do fazendeiro tentou domar um dos cavalos selvagens e caiu, quebrando uma perna. Os vizinhos vieram lamentar o ocorrido, dizendo que aquilo era muito ruim. O fazendeiro respondeu: “talvez”.

    No dia seguinte, oficiais do exército que estava recrutando soldados apareceram, mas não levaram o filho do fazendeiro por conta da sua perna quebrada. Os vizinhos vieram ao fazendeiro falando sobre como aquilo era ótimo, e ele respondeu: “talvez”.

    Por isso, pergunto aos anti-natalistas:

    Como mensurar o impacto de talvez sermos a única espécie na galáxia que olha para si mesma e compreende sua finitude? Como mensurar o significado de algo que levou bilhões de anos para ser alcançado, ou seja, um Universo que tem a capacidade de olhar para si próprio e dizer, Eu sou!

    E se o sofrimento que todos carregamos ao existir for parte do nosso sacrifício cósmico? 

    As regras do jogo

    Encerrar uma ou mais vidas. Como alguém se sente após isso?

    Mitos e religiões antigas comumente têm algo a dizer sobre o encerramento de vidas e suas possíveis consequências. Acabar com uma vida consciente parece ter um peso ainda maior para quem comete tal ato. Nos mitos modernos temos inúmeros exemplos de uma mudança drástica na essência de quem  segue por esse caminho. Mesmo os assassinos mais frios em filmes sobre a Máfia, por exemplo, carregam consigo ao longo do tempo uma inquietude, um vazio e uma insatisfação que pouco servem de consolo quando realmente olham para seu abismo interno. 

    No filme O Irlandês, de Martin Scorsese, o personagem principal beira a psicopatia na sua aparente frieza em lidar com os assassinatos cometidos ao longo dos anos. Mas basta ver sua insatisfação com a conexão perdida com a filha, o medo de morrer e ser esquecido e sua palpável solidão para notar que a sua alma se encontra inquieta sobre as ações tomadas. Sua mente conta para si uma narrativa simples para um homem do seu contexto, “você fez o que tinha que ser feito”, mas isso pouco vale quando se tem que conviver com o que de fato foi feito. No final, a consequência é mais pesada do que a justiça humana e suas leis. É isso que o conceito de ‘’vender a alma para o diabo’’ remete. Você faz um acordo no qual não tem como mensurar o que vai perder, afinal, quem consegue explicar o que é viver tendo perdido sua essência? Fausto, de Goethe é talvez o exemplo mais famoso da história arquetípica de se obter algo mundano em troca da sua alma. Nesse clássico da literatura Fausto faz um acordo com a representação do ‘’inimigo do mundo’’, Mefistófeles para obter conhecimento, poder e prazeres humanos. O argumento de Mefistófeles é similar ao de Thanos e dos anti-natalistas, de que o sofrimento inerente ao mundo não justifica sua existência, pelo contrário, que devemos cessar tamanho sofrimento se possível. E por mais que o argumento seja coerente, sempre que alguém tentou implementa-lo, ele se mostrou no mínimo um tanto quanto problemático. O que notamos é que algo dentro de você se rompe (e não quero aqui definir esse ‘’algo’’) quando se quebra essa aparente lei universal. De um ponto de vista metafórico, o que acontece com esses personagens é o mesmo que a queda de Lúcifer. A descida ao inferno, a corrupção do ser.

    Walter White na série Breaking Bad, Anakin Skywalker em Star Wars, Tony Soprano em The Sopranos são as versões modernas da mesma história. A questão, entretanto, permanece: por que o desconforto da alma em seres que aparentemente estavam acima de qualquer ética e moral?

    Temos o mesmo padrão com Thanos. Após ter dizimado metade da vida no Universo, encontramos o personagem em um estado de reflexão, apatia e certa tristeza. Encontra-se em um estado de aceitação até mesmo do seu fim, que vem quase como um alívio, e não uma punição.

    Crime, castigo e outros mitos

    Poucos escritores exploraram esse contexto tão bem quanto Dostoievski em Crime e Castigo. Temos no romance as peças para um estudo da condição humana. Com a popularidade do racionalismo ateísta e do cientificismo em meados do século XIX, tornou-se comum, entre os intelectuais da época, o questionamento do papel das religiões sobre a moral e ética humanas.

    Para muitos, deveríamos dispensar com o misticismo, e sua aparente arbitrariedade, a definição do que deve ou não ser feito. É com esse pano de fundo que o autor nos apresenta sua crítica. O personagem principal da narrativa, Raskolnikov, tem no nome uma dica sobre o seu destino: sua raiz em russo remete à ‘dividido’, ‘separado’. Dentro de si cresce um dilema filosófico poderoso. Uma das vozes dentro de si vocifera que a moral serve para o homem de pequeno intelecto, para os covardes. Pois para aqueles que obtêm uma mente mais privilegiada e que estão ‘’acima de Deus’’, é fácil ver como essas ‘’regras’’ são porque são, sem um real fundamento por detrás delas. E quem consegue perceber isso, poderia em tese transcende-las e quebra-las, se tivesse a devida coragem para tal. Pois eis que Raskolnikov se depara com uma situação tentadora para colocar sua teoria moral em prática no decorrer do seu relacionamento com a senhoria que lhe aluga um quarto, além trabalhar com penhores e empréstimos.  Corrupta, ranzinza, gananciosa e mesquinha. Sua própria existência gera um desconforto para quem está ao seu redor. Raskolnikov usa de sua lógica moral para concluir que estaria fazendo um bem ao mundo ao por fim a essa vida e ainda poderia ajudar sua família e a si próprio com os recursos obtidos da velha. O questionamento é direto e claro, nosso personagem pergunta a si se estaria quebrando alguma regra universal que o impediria de cometer o crime que intitula o romance. O argumento racionalista que desdenha as regras e tradições antigas vence e Raskolnikov mata a velha. 

    Entramos então em um novo mundo junto com Raskolnikov. Um inferno criado por si, para si, constantemente perturbador. Vale ressaltar aqui a genialidade de Dostoievski, pois sua escrita nos transporta para esse inferno de forma vívida. Uma agonia e angústia se derrama sobre o personagem e sobre o leitor, tamanho o impacto da narrativa empregada por Dostoiévski

    É recorrente a ruptura que permeia as histórias citadas. Thanos, Walter White, Raskolnikov e Darth Vader são seres transformados por suas ações. Acreditando estarem acima do bem e do mal, desceram ao inferno, de onde poucos conseguem voltar. Essa crença traz consigo uma cegueira intrínseca, pois nenhum deles percebe a tempo qual arquétipo estão representando. Vale dizer que essa é a relação comum que temos com os mitos do dia dia. Conhecemos muitas histórias, umas mais famosas e presentes do que outras, independente disso, estamos fadados a revive-las, reproduzi-las. Foge-se de um arquétipo apenas para cairmos em outro. Rivalidade entre irmãos como Caim e Abel é recorrente em diversas culturas. Ter ciência de tais histórias não impedem irmãos de aturarem esses mitos nas suas buscas por elogios, competitividade, disputas e afins para se provarem como indivíduos. Nesses mitos encontramos a representação de todos os irmãos e irmãs combinados, sobrepostos, resultando em uma narrativa que facilmente encontra conexões com praticamente qualquer pessoa que tenha um irmão/irmã. Isso não quer dizer que viveremos exatamente todos os aspectos narrados no mito, pois como disse, ele não representa apenas a sua história, mas a sua somada a de todo o mundo. É fácil para mim relembrar na infância diversos desses momentos vividos com meu irmão, sem ter (felizmente) chegado ao mesmo final que Caim e Abel. O ponto é que o mito é mais presente em nossas vidas do que damos conta. Ele nasce do nosso próprio comportamento repetido, observado e depois colocado em forma de drama nas histórias. Incontáveis gerações de irmãos na pré-história precederam o conto de Caim e Abel. Romeu e Julieta são outro exemplo, ambos são a personificação da paixão fustigante que acomete casais desde tempos imemoriais.

    Quando as cortinas se fecham

    Por um certo prisma, todos temos livre-arbítrio, por outro, fica difícil separar nossas narrativas das representações arquetípicas que continuamente revivemos.

    O mesmo para os nossos vilões. Ao entrarem no palco como tais, abrem possibilidades para um mundo de mitos que os precederam, quase nunca cientes de qual etapa do seu próprio mito se está vivendo. Talvez nosso maior poder de decisão esteja exatamente aí, quando entramos no palco, quando escolhemos o papel que encenaremos, pois depois disso, seguimos o roteiro já escrito. Porém o mais comum é estarmos já vestidos e caracterizados para o papel sem termos ciência disso e só vamos perceber qual papel estamos encenando quando as cortinas se fecham e as luzes se apagam. Iniciamos ações com escolhas que se ramificam de maneira imprevisível. Um efeito dominó do universo a cada passo dado, onde da sua perspectiva não se consegue nunca ver o seu fim. Olhando para trás tudo fica mais claro e é relativamente simples apontar heróis e vilões. 

    Entretanto, alguns sinais podem ser percebidos enquanto o jogo acontece, pois são estágios que se repetem. Acreditar estar acima de tudo e de todos, se rebelar contra a vida ou com o que representa a essência de algo vivo (árvores, oceanos e no caso de Thanos, planetas), executar sacrifícios desmedidos para se atingir poder ou controle, ter a percepção de quem se tornou nesse processo e finalmente a descida ao inferno. 

    Assim como as etapas na Jornada do Herói, temos o seu contraponto, a sua sombra e consequentemente, seus respectivos estágios. Tomar ciência desses estágios e compreendê-los melhor é possivelmente a nossa melhor ferramenta para identificar qual papel estamos encenando e tentar mudar o curso do filme das nossas vida. Afinal, você não quer descobrir que é o vilão da sua história na derradeira cena final.

  • Resenha | V.I.S.H.N.U.

    Resenha | V.I.S.H.N.U.

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    Então é assim… antes, eu estava atrás do que está atrás do meu pensamento… agora… só não queria que me levassem… para onde eu vim!

    Mas… estou. Ou… Sou.

    Eu sou o que vocês procuram… Me chamem pelo nome que me foi dado…

    Me chamem de… V.I.S.H.N.U.

    É com essa introdução, com um quê de filosofia e até mesmo com um tom shakespeariano, que se dá a abertura de V.I.S.H.N.U. E se ela soa um tanto quanto pretensiosa a princípio, seus idealizadores têm a confiança de que conseguirão entregar um trabalho à altura. Trata-se da primeira Graphic Novel brasileira de ficção científica, o que por si só já um marco.

    Em um futuro tecnológico, temos o dude, uma inteligência artificial quântica conectada à nuvem mesmo quando o seu dono pessoal não estiver online. Ele é capaz de organizar sua vida, realizar qualquer transação digital e até cuidar de seu lazer. Em poucos meses, possuir um ‘dude’ é tão banal quanto possuir um celular. Aclamado por um feito único, essa foi a primeira IA da história da humanidade a passar no Teste de Turing. Claro que, ao chegar ao cidadão comum, tal inteligência já era usada por indústrias ao redor do globo, o que criou uma grande dependência da humanidade no dude para manter o seu modo de vida. Serviços, transações, transporte e governos inteiros… o dude é praticamente onipresente. E quando essa IA se colapsa de forma misteriosa e sem deixar rastros de seu fim, o impacto é gigantesco. O que se ergue após isso é uma sociedade dividida pelo medo do que a tecnologia pode nos trazer ou nos tirar.

    Novos complexos de pesquisa tecnológica são criados ao redor do mundo com o objetivo de estudar inteligências artificias e nos precaver de um novo desastre como o dude. É em uma dessas bases que surge V.I.S.H.N.U., uma nova e assustadora IA que tranca todos os sistemas do complexo e se recusa a se comunicar até que tragam até ele o cientista greco-brasileiro Karabalis.

    O roteiro de Ronaldo Bressane mostra desde o início que o argumento que se seguirá neste thriller vai além do campo da ficção científica, demonstrando, também, que possui uma abordagem política e filosófica, como vimos em sua abertura. Cuidadosamente enveredando por temas que envolvem neurociência, além de descobertas recentes do campo tecnológico, tudo com um toque sutil para tornar tais temas incorporados à trama principal.

    A arte em preto e branco fica por conta de Fabio Cobiaco. Trabalhando menos nos detalhes e mais no contraponto entre preto, branco e cinza, ela traz uma aura que casa perfeitamente com o tom de uma sociedade que enfrenta um momento de pós-colapso tecnológico.

    A graphic novel é dividida em 12 capítulos não-lineares que mesclam muito bem os temas propostos. Em um formato pouco comum (29x29cm), mas muito bem estilizado, V.I.S.H.N.U. é promissor e mostra que temos, sim, espaço e demanda para tal temática dentro do mercado nacional. Fazendo justiça ao que de melhor se espera do gênero ficção científica, com uma trama bem conduzida, críticas sociais e existenciais, tudo isso envolto em um enredo que flui com facilidade.

    Espero que os idealizadores deem continuidade ao trabalho, pois, apesar de ser uma história com arco fechado, deixa também aberta a possibilidade para mais narrativas.

    No trailer abaixo, uma leve demonstração de sua arte e algumas das frases marcantes presentes nessa obra.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Resenha | A Arte da Guerra

    Resenha | A Arte da Guerra

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    A primeira experiência sensorial com esta graphic novel agrada bastante. Edição caprichosa, papel laminado de qualidade, letras garrafais remetendo ao famoso livro e cores contrastando em uma bela capa que clama por ser conferida.

    A princípio pensei que esta graphic novel era mais uma das adaptações de clássicos da literatura transposto para uma nova mídia. Não é o caso. Logo percebe-se que ele se define como uma obra baseada no livro milenar de Sun Tzu, mas com uma vertente própria, algo como uma história temática similar. Considerei a proposta ainda mais interessante do que pensei inicialmente.

    Acompanhamos a trajetória de Kelly Roman (homônimo ao autor), recém libertado por ter sido responsável por um acidente nas Forças Armadas. Kelly descobre que seu irmão mais novo, bem sucedido e que trabalhava para uma organização poderosíssima, está morto. O líder de tal conglomerado se chama… Sun Tzu. Kelly pretende descobrir quem está por trás da morte do irmão e não vê outra maneira de conseguir isso, e se infiltra na grande corporação para trilhar a sua redenção através da vingança.

    A perspectiva narrativa é a de que o próprio Kelly está escrevendo e nos relatando a história, e acrescentando citações de Sun Tzu ao longo de sua própria história. Essa é uma das pretensões da proposta inicial que causa tanta curiosidade mas que quando executada, carece de impacto. A questão é que as frases não necessariamente casam tão bem assim, seja com a narrativa, seja com a arte. Além de que a impressão que fica é que a narrativa principal está o tempo todo sendo interrompida por uma citação que pouco (em muitos casos nada) acrescenta ao conceito ali descrito/desenhado. O excesso de citações apenas transcritas ao longo da HQ são frias e parecem estar quase que a esmo ali, soltas e sem muito propósito.

    Chega-se ao ponto de questionar seriamente esta escolha. Foi ela executada para dar um peso intelectual maior à obra? Ou foi uma escolha mais comercial? Os elogios de capa do produtor de Kick Ass citando a HQ como uma das melhores graphic novels já lidas por ele, soam apenas como embuste após a leitura. A história em si e a estrutura narrativa nada remetem à obra de Sun Tzu, seja no quesito militar ou no filosófico e conceitual. O ponto é que não basta ter o mesmo nome, uma história violenta e um vilão homônimo ao estrategista milenar para se ter algo que realmente englobe tal conceito.

    A arte é realmente impressionante e algumas páginas são belíssimas, mas sem uma boa história para acompanha-las, elas nã0 salvam esta HQ. A violência gráfica é extrema, mas quase nunca visceral, o roteiro não acompanha o extremismo da arte e quase sempre o peso emocional de um, não se integra ao outro, o que dá a impressão de gratuidade na maioria das cenas.

    A sensação que fica é de que tentou-se reunir todos os elementos necessários para uma obra épica, de qualidade artística e peso literário. A conclusão é de que fomos apresentados a um pseudo intelectualismo brutal e que quase tudo nesta obra deixa muito a desejar.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Resenha | Império da Prata – Conn Iggulden

    Resenha | Império da Prata – Conn Iggulden

    imperiodaprata

    Retornamos à aridez das terras mongóis e além. Uma nova geração expande ainda mais o poder da recém-nascida nação mongol e os seus inimigos compreendem a verdade nas seguintes palavras: Deus tem misericórdia, os mongóis não.

    O Império da Prata é o quarto livro da saga de Genghis Khan trazida a nós por Conn Iggulden. As resenhas anteriores também podem ser lidas aqui no Vortex (Lobo das Planícies, Senhores do Arco, Ossos das Colinas) e quem não quiser saber de nenhum spoiler histórico, sugiro não prosseguir com a leitura caso não tenha lido o livro anterior.

    Império da Prata retoma a história anos depois da morte de Genghis, seu filho Ogedai está prestes a ser nomeado Khan da nação, conforme escolha do próprio Genghis em vida. Ogedai por si só é muito diferente de seu pai e pretende obter o juramento de toda a nação dentro de sua suntuosa e recém construída cidade, Karakorum, idealizada para ser um marco e a capital dos mongóis. A própria ideia de uma construção da magnitude de Karakorum iria de total encontro com o pensamento de Genghis, que sempre cuspiu, destruiu, pilhou e massacrou diversas cidades do Império Chin, mostrando a todos o quão frágil são muros e os homens que se acostumam ao seu conforto e ‘segurança’.

    A tensão dentro da nação é enorme pois um dos outros filhos do Grande Khan, Chagatai, está sedento por se tornar o novo Khan, e não um homem (fraco, na sua visão) como Ogedai.

    Dentro deste contexto somos introduzidos a terceira geração desde o nascimento da nação, os netos de Genghis nos são apresentados, conhecemos suas ambições e legados, eles que serão o fio condutor do destino de todo um povo que se originou de tribos minguadas para se tornar em algumas décadas no que o mundo ocidental apelidou de ‘’a praga mongol’’.

    O conflito de gerações é o grande foco deste quarto livro. A esta altura já conhecemos os principais heróis que lutaram tão bravamente para formar esta unidade mongol, acompanhamos suas maiores batalhas, quase mortes, aprendizado e uma inquestionável qualidade militar como exército. Conn foi muito feliz ao chocar esses generais dos primórdios da história (Khasar, Kachiun e o maior general da nação, Tsubodai) com os netos de Genghis, que na sua arrogância juvenil, questionam os que vieram antes, suas ordens e suas decisões. Alguns por terem sim uma já grande habilidade (Batu, por exemplo), mas outros apenas por serem netos do grande pai da nação. Isso gera um desconforto bastante interessante e prende o leitor ao romance. Algo que se faz necessário já que este deixa devendo um pouco na questão ‘batalhas épicas’, algo bastante comum principalmente no romance anterior.

    E no quesito pelo qual os mongóis são mais conhecidos, expansão territorial e batalhas taticamente impressionantes, aqui temos o deleite da narrativa das batalhas contra os poderosíssimos russos e sua cavalaria pesada. A tomada de Kiev e St. Petersburgo em pleno inverno é um dos pontos altos do livro. Quando questionado ao planejar uma campanha no inverno, Tsubodai explica aos seus homens que o inverno pertence aos mongóis, eles são os homens de ferro que ano a ano sobrevivem e se acostumaram a ele. Os nobres russos se escondem em suntuosos castelos no inverno, eis aí o fator do ataque surpresa mongol que sempre foi uma constante em suas campanhas. Isso somada a já conhecida velocidade de sua cavalaria eram vantagens sobre qualquer exército, mesmo os numericamente superiores. Nenhum exército na época conseguia transpor a mesma quantidade de quilômetros em tão pouco tempo.

    Enquanto a expansão para o Oeste prosseguia, algo acontece que mudaria o destino dos mongóis e consequentemente do mundo na época. Fato este que pode ter sido responsável pela salvação da tomada do Oeste por estes guerreiros insaciáveis. Sim, os mongóis poderiam ter tomado várias das grandes nações ocidentais e caso ainda existíssemos, possivelmente este texto seria escrito em mandarim ou uma variante do idioma mongol.

    É bastante curioso notar e poder analisar (a posteriori é claro), como um acontecimento local pode ter tamanho impacto no mundo, principalmente em eras onde o contato exterior entre os povos era muito mais restrito e incomum.

    Império da Prata têm um ritmo diferente dos livros anteriores, mais calcado nos seus personagens e menos em suas ações, menos pretensioso e épico, mais intimista e sutil. Pode-se dizer que a falta da chama de Genghis caracteriza esse tom mais ameno do romance, ele com certeza faz falta, mas sabíamos que a saga contada por Conn iria além do tempo de vida do grande Khan.

    Agora nos resta ver como terminará a saga da grande nação de Genghis Khan e sua horda impiedosa.

    Compre aqui.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Resenha | Os Miseráveis

    Resenha | Os Miseráveis

    Victor Hugo está inegavelmente entre os chamados imortais da literatura clássica mundial. Entre as suas principais obras, Os Miseráveis reina em uma posição de destaque por diversos fatores. Valendo-se do completo reconhecimento de tais aspectos, temos em mãos a adaptação para os quadrinhos deste grandioso romance.

    Confesso que fiquei bastante curioso ao saber de tal projeto (que conta ainda com diversos outros títulos adaptados de autores como Julio Verne, Tolstói e Cervantes, por exemplo), pois creio ser extremamente válido e de suma importância que mais e mais pessoas se familiarizem com tais clássicos, mesmo que em uma ‘’versão simplificada”.

    Os Miseráveis é a obra na qual Victor Hugo tentou consolidar todo um século em um único livro, abrangendo filosofia, política, drama e muitos outros aspectos que representavam a França no século XIX, mas que também são universais no que diz respeito ao humano e à sua luta para ser reconhecido como tal – principalmente os que vagueiam às margens da soberba e crueldade dos regimes autoritários que eram comuns e se sucediam em revoltas turbulentas e prejudiciais para o avanço da ética e de direitos humanitários que reconhecemos hoje como universais.

    O romance tem muito, mas muito estofo histórico e intelectual como um todo. Talvez esteja aí o motivo dessa adaptação apenas arranhar muitos dos quesitos levantados pelo autor no original. A espinha dorsal que rege os personagens e suas conexões está aqui e consegue, sim, levar a algum tipo de reflexão sobre alguns dos temas propostos, tais como a redenção, que é recorrente no personagem central. Jean Valjean, condenado por roubar um pão, tem sua pena aumentada por tentativas de fuga; passou 20 anos na prisão por algo que um burguês sequer teria que responder caso infringisse o mesmo ato. O personagem de Javert, o policial que passa a vida perseguindo Jean, Marius e muitos outros. Todos têm, a seu tempo, a sua redenção e a sua epifania; mesmo que não resulte em benefício direto para alguns, ela está ao alcance deles, dentro do que Victor acreditava ser inalienável ao ser humano.

    A HQ tenta ao máximo manter a profundidade dos temas tratados, mas lhe falta justamente o ‘’excesso’’. Falta-lhe a poesia de Victor, seus longos textos e suas reflexões. Os Miseráveis se tornou o que é justamente pelo que há “entre” os acontecimentos da história narrada de seus personagens. A famosa batalha napoleônica de Waterloo (que rende um livro inteiro no romance original) é apenas um reflexo fugaz nesta edição. Um outro exemplo simples pode ser conferido no final desta HQ, na qual temos dois textos escolhidos do original e que fecham a edição desta graphic novel. Lendo o texto “Paris Vista por Uma Coruja”, percebe-se o quão rico é o conteúdo original, que infelizmente não pode ser adaptado aqui em sua mestria.

    A edição como um todo é muito bem cuidada, com papel de qualidade e capa dura. Detalhes sobre o autor, a situação política da época e a própria obra original são belos adendos e na verdade fazem muito mais jus ao livro do que a HQ em si. A arte foi bem cuidada e as ilustrações remetem, sim, a uma Paris antiga, suja, revoltada. Seus personagens refletem quase que o tempo todo a opressão à qual os excluídos estão sujeitos com seus rostos cansados ou abatidos, seja pela tristeza ou pela fome.

    Infelizmente, condensar uma obra de tamanha importância e com tanto conteúdo em 110 páginas de uma graphic novel realmente não é nada fácil, e tenho completa ciência disso. Talvez com obras mais aventurescas (Viagem ao Centro da Terra, por exemplo) o objetivo de transcrever o espírito do original a uma nova mídia seja atingido com mais sucesso, e talvez seja melhor deixar de lado os grandes…

    Compre aqui.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Filosofando o Pulp | Teletransporte, invenção final ou instantânea liquidez?

    Filosofando o Pulp | Teletransporte, invenção final ou instantânea liquidez?

    Muitos dos problemas da humanidade em toda a sua história são constantes: transcendem cultura, evolução tecnológica, clima etc. Constantes também se tornam as reclamações sobre estes problemas mais comuns: “Impostos são uma praga!”, guerra, fome, disputa territorial, distribuição desigualitária de riquezas e meios de locomoção ou transporte.

    Pois bem. Desde que surgiu a ideia do famigerado “Teletransporte” (ou teleporte), ele é imaginado como resolvedor das mazelas dos nossos meios de transporte atuais, dando um ponto final à questão por sua praticidade intrínseca e com resultados que poderiam ser comprovados quase que instantaneamente.

    Ressalto aqui que me refiro a qualquer tipo de “transporte instantâneo” sequer imaginado, desenhado ou descrito ao longo da história da humanidade. Ou seja, aparições instantâneas carregam um conceito similar ao do nosso teletransporte moderno e maquinário. Eis aí o trunfo do teletransporte antigo ao novo. Vais entender no decorrer do texto.

    O principal ponto do teletransporte moderno, que já foi experimentado e de fato funcionou (um experimento que resultou no “teletransporte” de um fóton), basicamente consiste em transmitir informações para que seja possível reconstituí-las na máquina de destino. Ou seja, não é possível transmitir ”magicamente” as mesmas partículas através do espaço-tempo de forma instântanea. O que acontece, então, com o corpo original? Pode-se dizer de forma simplista que ele é “diluído em bits/bytes” para que sejam transmitidos. Portanto, mantenha em mente este conceito para analisar o cenário aqui discutido.

    Com essas informações agora transitando entre as suas sinapses neurais, eu lhe pergunto: adentraria então tal máquina, sabendo que todas as moléculas do seu corpo estão sendo pulverizadas e sendo reconstruídas em outra máquina a milhares de quilômetros de distância?! Sabendo (ou sem saber, talvez) que, mesmo que a cópia física e celular seja perfeita, você nunca irá garantir que toda a sua consciência estará intacta “do outro lado”? Pode-se o imaterial se perder durante tal transmissão de informação? É a consciência, de fato, material? Alguém tem a resposta definitiva para isso? Certo, eu sei… A certeza corre como um fóton de nossas mentes diante de tais questões.

    Mas, além de tudo isso, para mim a grande pergunta nem é essa. Todas essas perguntas anteriores ainda têm como base a ideia de que é você, sujeito em primeira pessoa na perspectiva do mundo, você é quem vai sair do outro lado da máquina. Incompleto ou imperfeito? Talvez, mas ainda assim, em essência o mesmo ser que momentos antes ali não estava. Não, o meu maior receio e dúvida, que me deprime se algum dia eu viver para ver o teletransporte inventado é: não será EU quem sairá no outro ponto espacial conforme planejado. Acredito, sim, que ele funcionaria perfeitamente e transmitiria todos os dados necessários para que eu seja replicado, assim como as minhas memórias, consciência, razão e qualquer outra propriedade mental difícil de ser comprovada materialmente. Tudo isso estaria lá, perfeitamente como o que “saiu” daqui, mas quem estaria lá não seria eu, ser senciente e único como todos somos. Outra pessoa como eu estaria “lá”, outro humano com as mesmas memórias, mazelas, pensamentos e gostos estaria lá, mas não eu. Células iguais, pele, cabelo, mas não a minha pele.

    Outro ser desceria na plataforma final. Outro ser que se passaria por mim perfeitamente, com os mesmos movimentos, jeito de agir e pensar. Nem mesmo tal replicante saberia que é uma farsa, uma cópia, que nasceu de fato apenas quando saiu da plataforma de desembarque; seria o disfarce perfeito. Quem, eu me pergunto, em sã consciência levantaria dúvidas sobre a eficácia de tal invenção e a sua perfeição ao nos transportar (copiar) para outro lugar? Ninguém o faria! E, para ser bem honesto, creio que com o tempo todos se acostumariam com isso e nem faria tanta diferença assim no resultado final sobre o curso da evolução humana. Mas, mesmo acreditando nisso, ainda me assombro com a ideia de ter o meu ser desfeito em partículas para em seguida usarem essa informação para colocarem um substituto na minha vida com a enorme chance de ninguém nunca questionar que “aquele cara” sou eu.

    Correndo o risco de parecer um velho medroso quando no futuro longínquo inventarem tal equipamento, ao me negar a entrar em um deles, peço que não tomem a minha aversão por medo irracional. Longe disso, a negação raivosa que surgirá em mim se algum dia tentarem me colocar à força numa máquina dessas é provida de um pensamento cuidado sobre as diversas variáveis que envolvem o gracioso teleporte. Por isso lhe pergunto:

    Entraria sem receios todas as vezes que fosse usar tamanha invenção…?

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Filosofando o Pulp | Sobre o gostar

    Filosofando o Pulp | Sobre o gostar

    O objetivo desta coluna é escrutinar alguns pontos da cultura popular que adentramos, discutimos e vivemos. Alguns tão perceptíveis quanto seria um Olifante a alguns metros de distância, outros sorrateiros e quase intangíveis como um neutrino perpassando seus neurônios sem deixar marca. Almeja-se nunca apontar uma certeza, e se algum sucesso obtiver, será pelo turbilhão causado dentro deste sempre transcendente vórtice cultural…

    Filmes, livros, séries, música etc. Entre as diversas discussões que permeiam o mundo da cultura pop e todas as suas mídias, uma talvez seja a maior fonte de discórdia, debate e deliberações.

    O que a princípio soa como uma pergunta boba e inocente em uma conversa casual com amigos (e aquele filme, é bom mesmo?), esconde um complexo mecanismo humano de absorção cultural. Afinal, quão subjetiva ou objetiva é a nossa avaliação de uma obra artística? O que aquilo nos diz sobre a nossa personalidade, ou o que para alguns é ainda mais sério: O que aquilo nos diz sobre a nossa intelectualidade?!

    O filósofo escocês David Hume (1711-1776), em uma de suas obras mais importantes e conhecidas (Enquiry Concerning Human Understanding) discorre no ensaio Do Padrão do Gosto sobre essa busca mais do que natural do ser humano de tentar compreender e justificar qualitativamente o gosto humano e suas variações. Entre os diversos pontos levantados por ele, um interessante é acerca do sentimento ao experienciarmos uma obra, e do nosso juízo ao tentarmos explaná-la para outros. Basicamente Hume pensava que, antes de qualquer análise mais cuidadosa, a priori temos apenas o sentimento como parâmetro do gosto e, baseado nesse sentimento, prosseguimos com as explicações e o porquê de termos gostado de algo ou não.

    Muitas vezes travamos uma verdadeira guerra verborrágica (com amigos ou aqui no Vortex) em acaloradas discussões ao tentarmos fazer a conexão entre o que sentimos (apreciando uma obra artística) e o que racionalizamos sobre ela. Muitas vezes tentando decodificar a si próprio. Achar um sentido para ter tido aquele tipo de reação.

    O curioso é que muitas vezes somos incapazes de relacionar estes dois estados. Quantas vezes você não já se pegou dizendo algo como: “Não sei por que exatamente, mas não gostei desse filme”. Mesmo após explicações perfeitamente plausíveis sobre a técnica do filme como um todo, sobre a qualidade da direção etc. Mesmo depois de demonstrado em detalhes que você deveria SIM gostar daquele filme, caso tenha um mínimo de bom senso, você não consegue ” perceber ” isso, sentir isso de fato. Claro que, se apreciássemos uma obra através da razão apenas, bastaria isso para nos convencer, ou seja, uma boa explicação. Felizmente para a longevidade dos debates acalorados aqui no site, isso não é verdade. O mesmo acontece na direção contrária: me refiro ao que chamamos em inglês de guilty pleasure. Quando se gosta de algo que mesmo você consegue perceber que é de extremo mau gosto, ou pelo menos de qualidade duvidosa. Mesmo sabendo de inúmeras razões para que qualquer ser humano inteligente ache aquele filme uma porcaria, você aprecia aquela obra, se diverte com ela e por aí vai…

    Listamos os pontos negativos e positivos, detalhes técnicos, padrões encontrados etc. Mas será que é por causa desses pontos que realmente consideramos algo “bom”? Ou estamos apenas justificando um sentimento com opinião já formada?

    Os adjetivos observáveis são realmente a causa do que gostamos, ou é o gosto já decidido que nos faz notar algumas qualidades e deixar de enxergar os defeitos daquela obra?

    Faça este exercício e tente analisar o que você realmente prioriza na sua avaliação. Garanto que algumas surpresas surgirão em ambas as direções: “análises detalhadas” VS “sentimentos primordiais”.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Resenha | Habibi

    Resenha | Habibi

    habibi - craig thompson

    Habibi é o trabalho mais audacioso de Craig Thompson desde que ele começou a nos deleitar com Graphic Novels que são verdadeiras obras de arte.

    Depois de seu último trabalho em 2004, Craig encarou uma jornada de 7 anos de pesquisas e experiências no mundo árabe para conceber Habibi e nos transbordar com muito conteúdo histórico, mítico, religioso, filosófico e sobretudo humano.

    Acompanhamos aqui a história de dois escravos, Dodola e Zam, unidos por circunstâncias nada aprazíveis para ambos. Estes são os pilares da nossa viagem e servem de base para Craig explorar os variados temas aqui abordados. A história se passa nos tempos atuais, em uma cidade mítica de origem arábica, mas isso pouco importa, pois grande parte da obra tem um tom muito mais mágico e antigo, remetendo a sabedoria oriental e as práticas antigas que muitas vezes fará você se perguntar realmente em que época a história se encontra.

    Uma das marcas em suas obras são as belíssimas metáforas casando perfeitamente o seu texto com os desenhos. E aqui a influência da cultura arábica se mescla sem igual, pois os intrincados mosaicos, caligrafia oriental e os belíssimos textos fluem em uma cadência de páginas e mais páginas muitas vezes deixando o leitor em transe com tamanha sensibilidade.

    Sempre com uma relação bem comedida entre o racional e o intangível, como por exemplo, as diversas conexões entre a milenar matemática oriental e a sua simbologia dentro da cultura islâmica.

      Outra particularidade interessantíssima de Habibi, a influência islâmica. Encontramos aqui muito do Corão e da “obra das histórias”, As Mil e uma Noites. Um dos grandes prazeres ao se ler Habibi é justamente esse, histórias dentro de histórias. Isso abre um leque de opções ao autor e o faz passear pelos variados temas aqui tratados, além de não seguir uma linha narrativa linear com os protagonistas, algo que já havíamos experienciado em Retalhos. Em tempos onde o extremismo sobre os árabes se destaca e apenas a visão reduzida e maniqueísta tem lugar, Craig volta às origens dos principais mitos dos três grandes livros (Torá, Bíblia e Corão) para mostrar a beleza poética ou narrativa de muitas de suas histórias.

    A sexualidade está bastante presente na obra e se alguns críticos torceram o nariz para o fato das metáforas muitas vezes associando o desejo sexual a algo pecaminoso, vale notar que em outros momentos encontramos também a visão mais hedonista, simples e bela de como lidamos com a nossa sexualidade. Para quem leu Retalhos (obra autobiográfica), sabemos o quão complicado foi a questão do erotismo acoplados a sentimentos de culpa durante o crescimento de Craig.

     O mais impressionante quando se lê Habibi é o modo como a consumimos. Os desenhos são muitas vezes absorvidos além de uma compreensão que possa ser colocada em palavras, ou mesmo dentro de um “contexto consciente”. Sua arte é inebriante, suas formas, linhas e “cores” parecem forjadas para serem impressas em nossas mentes e ao mesmo tempo tocar o nosso cerne. As imagens formam uma linguagem ininteligível, mas ao mesmo tempo completamente compreensível de alguma forma quase que metafísica. Os diversos momentos nos quais ele flerta com a caligrafia arábica e seu intrincado desenho, associando as palavras ao âmago dos sentimentos primordiais, à natureza e a nossa relação com ela. Sim, há espaço na obra para também se discutir como a nossa insaciável luxúria se alimenta do que o planeta pode nos entregar.

    No fim, fica claro que as 672 páginas parecem pouco para a magnitude das histórias aqui contadas, para os sentimentos aqui sentidos e para os pensamentos aqui refletidos. Você com certeza revisitará as histórias de Dodola e Zam e notará os detalhes despercebidos em uma primeira leitura, ou mudar de opinião ao refletir mais sobre os muitos temas de Habibi. Afinal somos também mutáveis e parte da água que flui como as letras de uma bela caligrafia, das ondulações que acompanham o inspirar e expirar rítmico, do sexo e do amor que queima, e do poder das histórias que nos eleva da terra.

    Compre aqui.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Crítica | O Grande Truque

    Crítica | O Grande Truque

    prestige

    A obsessão humana transcendendo os limites do agente que a gerou.

    Quando Christopher Priest foi abordado por produtores interessados em transformar o seu romance em filme através da visão de Chrisptopher Nolan, ele ficou bastante impressionado, pois o autor apreciava os filmes anteriores do diretor (The Following e Amnésia). Em meados dos anos 2000 Nolan terminou de ler o romance e envolveu o seu irmão na produção de um roteiro. Nascia assim O Grande Truque (The Prestige).

    Nolan pretendia terminar este filme antes mesmo de Batman Begins, mas a pressão do seu projeto do morcego era maior e o diretor teve que esperar um pouco para poder finalizar o seu “projeto paralelo”. O que se pensarmos bem, fez muito bem à produção de O Grande Truque (mais grana liberada pelo estúdio), além de facilitar o casting do mesmo, muito graças ao sucesso de Batman.

    O plot inicial soa quase despretensioso: Dois ilusionistas, após terem sido afastados por um trauma em um truque do passado se sucedem em uma obsessão dantesca na busca pelo truque de mágica máximo, gerando tragédias para ambos assim como para as pessoas próximas a eles. Mas dentro deste enredo Nolan explora diversos conceitos interessantíssimos da natureza humana, e extrapola para a ficção gerando inclusive dilemas filosóficos da representação do ‘’Eu’’ e sua natureza transcendental, ou não.

    Robert Angier (Hugh Jackman) e Alfred Borden (Christian Bale) são algumas das peças que Nolan tem para revisitar temas que marcariam toda a sua carreira. Um indivíduo obcecado e que está disposto a ir além do que muitos iriam, para alcançar de alguma forma a sua realização, o sentimento de ter cumprido a sua função existencial. Se aqui temos a busca pela fama e o reconhecimento como melhor ilusionista de Londres como foco, em Amnésia esta busca seria a vingança do assassinato de sua mulher, ou mesmo a obsessão de um vigilante mascarado em querer “limpar” uma cidade (e com isso amenizar as dores que o afligem desde criança). Todos eles em diversos momentos transitam em uma linha muito tênue do que consideram moral. Angier e Borden são constantemente questionados pelas pessoas ao seu redor sobre as suas ações, sobre a obsessão que os corrói, mas eles seguem sempre em frente, sempre na busca por algo que os libertará disso tudo. Ingênuos, eles se esquecem de que o caminho espinhoso percorrido deixará cicatrizes permanentes, não importa o quão gratificante seja ter atingido o seu propósito inicial.

    Outro tema recorrente em Nolan é o seu modo de brincar ou questionar a realidade. Seja através de uma lesão cerebral na qual as memórias não se fixam mais, seja através da insônia e um estado mental perturbado ou simplesmente com um truque de mágica. Aqui a metáfora do que é ou não real nunca foi mais clara. Nolan brinca em várias cenas com os truques de ambos, isso somado as reviravoltas do roteiro justificam assistir a obra mais de uma vez.

    Integram o cast de peso Michael Caine, Scarlett Johansson, Andy Serkis e a mais que curiosa participação de David Bowie como o cientista e inventor Nicola Tesla. A fotografia e a produção de arte são fidedignas a Londres do final do século IXX (o que rendeu 2 indicações ao Oscar), cores frias permeiam quase toda a película, representando em grande parte a racionalidade de nossos protagonistas, seus maquinários para os truques e sua amoralidade quando levado em conta seus objetivos. Essa frieza é contrastada em pequenos momentos que clamam mais do emocional humano, principalmente nas cenas de Michael Caine e a linda filha de Borden (Samantha Mahurin), um misto de ingenuidade e deslumbramento ao se deparar com os truques mais simples do mundo ilusionista.

    Vemos aqui que há um preço enorme a se pagar caso não haja limites para a sua obsessão. Seja ele pequeno (um pássaro que morre para o sucesso dos truques de desaparição) ou até mesmo os que podem comprometer de forma irreversível a sua vida. Direta ou indiretamente, Angier e Borden sofrem e muito com isso. Mas dentro deles há impulsos fortes demais para serem ignorados. Fica fácil perceber que não importa se eles serão alcançados ou não, o impulso sempre estará lá, forte e ainda devastador. Os sacrifícios decorrentes de tal perseverança são impactantes e é difícil se manter indiferente. A reflexão resultante de tais atos por si só já valem o filme. Pena que ele muitas vezes acaba passando ao largo da filmografia do diretor como algo menor. Ao meu ver, ele consta entre os melhores filmes de Christopher Nolan.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Review | Diablo III

    Review | Diablo III

    Mais de uma década de se passou desde o lançamento do aclamado Diablo II. As expectativas não poderiam ser maiores para a sequência que prometia acabar com namoros, estudos de vestibular, empregos e até a vida de alguns (coreanos).

    Eu não havia jogado o primeiro jogo da franquia tampouco o segundo. Nada contra, simplesmente não era um ‘PC Gamer’ na época de tais títulos. Por isso o meu grau de expectativa era relativamente pequeno. Eu diria até receoso, pois não podia deixar de lembrar de outro jogo prometido por mais de dez anos e que só nos trouxe frustração e vergonha alheia (‘’I’ve got balls of steel”).

    O dia do lançamento mundial chegou e eu me peguei arrebatado pelos incessantes cliques do mouse ao enfrentar infindáveis hordas infernais. A Blizzard pouco inovou e manteve o ‘core’ do jogo praticamente o mesmo, isso serve aqui como mérito, pois é sim uma fórmula que funciona muito bem e que (ainda) não está desgastada como outros gêneros.

    Algo muito interessante foi que a Blizzard conseguiu um bom balanceamento técnico do jogo. Sendo ao mesmo tempo bonito e bem polido, sem demandar muito da sua máquina. Isso só agrega à comunidade multiplayer que cresceu em torno da franquia, o que consequentemente aumenta (e muito) o fator diversão pura. Enfrentar os senhores do Inferno sozinho é divertido, mas quando se está fazendo isso com alguns amigos usando o Skype, fica MUITO mais divertido e interessante (um sistema de voz do próprio jogo seria bem legal Blizzard, ‘just a hint’ ).

    A grande mudança à estrutura do jogo foi com relação à polêmica ‘skill tree’. Vi e ouvi diversos fãs antigos de Diablo reclamando dessa suposta simplificação da mecânica de evolução das classes e confesso que entendo o ponto deles. Mas também acho válido o contra argumento da própria Blizzard. Em uma entrevista com o produtor geral Alex Mayberry, ele explica que a intenção deles era suprir principalmente dois pontos: O primeiro sendo que eles queriam que os jogadores fizessem uso (ou pelo menos experimentassem) todos os poderes disponíveis para aquela classe. O segundo ponto é de tornar a estratégia de combate escolhida muito mais dinâmica, pois você pode selecionar um conjunto de habilidades que funciona muito bem, por exemplo, no primeiro ato, mas que falharia miseravelmente no segundo, ou em um nível de dificuldade distinto (eu passei por isso e achei muito válido poder mudar completamente o estilo de combate em alguns momentos).

    O fator replay continua muito bom mesmo depois de você ter terminado o jogo mais de uma vez. A busca por itens raros (o famoso ‘looting’) e a quase necessidade que o jogador sente de evoluir torna o jogo extremamente viciante, razões óbvias para quem está acostumado com o gênero. Claro que dependeremos de DLCs para manter o jogo interessante para a maioria, por mais tempo, mas isso é algo que a Blizzard está acostumada a fazer. Sem contar que ainda nem foi implementado o PVP, algo esperado ansiosamente por este que vos fala (uma batalha entre alguns integrantes do Vortex não seria nada mal 😛 ).

    A meu ver, podemos sim dizer que Diablo III entregou o que as namoradas mais temiam: Um jogo divertido, viciante, com um ‘co-op’ bem ajustado e muitas horas de diversão garantida. Ah, quase me esqueci de falar da história do jogo. Pois bem, vamos poupar o seu e o meu tempo e dizer que ela é tão relevante e envolvente quanto a história de Street Fighter, ou Mortal Kombat. Ou seja…who really cares???

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Resenha | Três Sombras

    Resenha | Três Sombras

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    Confesso que enveredei relativamente tarde no mundo dos quadrinhos, e talvez seja este justamente o fator que me faça apreciar mais os trabalhos alternativos, em detrimento da convencional história de super-herói.

    O ponto é que a cada obra alternativa que me deparo mais cresce a minha admiração por este seguimento.  Com Três Sombras, não foi diferente.

    A premissa é singela. Joachim vive com seus pais (Louis e Lise) em um local recluso, seguem uma vida de campo modesta, simples e feliz. Tudo corria perfeitamente até que um dia os nossos personagens notam três sombras, paradas no horizonte.  Eis que a trama se inicia.

    A simbologia e a representação metafórica destas sombras ante a vida da família é imensa, e Cyril Pedrosa discorre muito bem ao longo da HQ manifestando os mais primários e complexos sentimentos que tais sombras causam em cada um deles (e também em cada um de nós).

    Entre eles estão a mudança, a inconstância da vida e de tudo ao nosso redor. O pai de Joachim reage em um primeiro momento da maneira mais previsível e ineficaz possível, ou seja, cede à negação de tais entidades ou do que elas podem representar.  Não consegue aceitar a mudança e toda a corrente de eventos trazidos com ela.

    Joachim, ironicamente acaba tendo (a seu tempo) a visão mais madura de toda a situação, talvez justamente por não estar tão carregado dos temores dos adultos, nem da carga que os anos da vida trazem, seja ela boa ou não.

    Tudo isso é representado com maestria no traço de Pedrosa. Vale dizer que a HQ tem pouquíssimo texto, sendo talvez a sua arte o que mais lhe dá força e simbologia.

    O traço é fluído, contínuo, alongado, natural e terno. Casando perfeitamente com a temática central da obra: não se para o tempo, não se consegue fugir do seu destino, e o preço ao se tentar tal empreitada, pode ser caro demais. O desenho percorre as páginas como um rio fluindo através do tempo. O leitor, apenas mais um apreciando esta vista transitória, mas não por isso menos especial, ao contrário, exatamente por isso  extremamente especial.

    Há muito mais de significado nesta obra do que eu discorri aqui, valores e temores que afligem muitos de nós, mas creio que parte do prazer em lê-la seja justamente cada um assimila-la de maneira particular. Trazer para si o significado que Cyril Pedrosa transmitiu com o seu trabalho.

    O filósofo pré-socrático Heráclito (para quem a natureza está sempre em constante fluxo/mudança) com certeza apreciaria esta obra.

    Para finalizar, atente para o poema no final, simplesmente tocante dentro do contexto.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

    Compre: Três Sombras.

  • Resenha | O Guia de Sobrevivência a Zumbis – Max Brooks

    Resenha | O Guia de Sobrevivência a Zumbis – Max Brooks

    guia de sobrevivencia a zumbisQuer se preparar para o inevitável? Saber como sobreviver ao apocalipse nunca profetizado pelo Antigo Testamento? Então não deixe de ler este guia…

    É isso mesmo. Segundo Max Brooks, o tempo em que os mortos caminharão pela Terra tendo como único e voraz instinto, o insaciável apetite por carne humana fresca, pode estar mais próximo do que você imagina. Por isso…Por que não se preparar da melhor maneira possível para enfrentar, talvez, o declínio completo do que conhecemos como sociedade moderna?

    Max Brooks (filho do cineasta Mel Brooks) parece ter puxado a veia humorística do pai e resolveu se enveredar pelo ramo literário. Com este guia de sobrevivência ele desmistifica (ou talvez crie novos mitos) praticamente tudo o que diz respeito ao que hoje chamamos de Zumbi. Max tenta não deixar passar nada e analisa a fisiologia dos Zumbis (matei a minha curiosidade sobre seu sistema digestivo), seus comportamentos, como evita-los, como fugir deles e claro (o mais divertido!), quais são as melhores maneiras de mata-los.

    Max mantém um tom sério, jornalístico e didático no decorrer do guia, o que só torna algumas passagens ainda mais engraçadas.  A parte didática é bem dosada, e se em alguns momentos ele chega a listar os itens necessários para uma possível fuga, ou sobrevivência em lugares inóspitos, elas nunca se estendem por muito tempo, o que poderia tirar tanto o dinamismo da leitura quanto começar a gerar questionamentos de continua-la. Afinal, você precisa mesmo saber TODOS os detalhes de como se virar caso sua casa esteja cercada por mortos-vivos?

    Confesso que me peguei questionando isso em alguns momentos, mas como eu disse, as listas são bem dosadas e isso pouco tira do valor do livro como um todo.

    Depois de todas as dicas serem dadas, todas as armas analisadas, todos os ambientes estudados, segue-se o que a meu ver contém o melhor do livro. Refiro-me aos “relatos históricos” de ataques zumbis desde os primórdios da humanidade. Isso mesmo. Pensou que os zumbis eram uma praga dos nossos tempos? Nada disso. Max traz relatos tão antigos quanto os egípcios e mais. Inclusive, uma curiosidade que ele inteligentemente liga ao seu guia é o fato dos egípcios, ao mumificarem seus mortos terem como parte do processo a retirada do cérebro do morto pelo nariz. Max sugere que este costume pode-se ter originado depois dos primeiros ataques sofridos pelo povo das pirâmides por seus faraós mumificados. Romanos, chineses e até relatos de ataques no Brasil não ficam de fora. Essas pequenas histórias, muitas vezes narradas com um cunho jornalístico, dão um sabor a mais a já prazerosa leitura do guia. Eles servem também como introdução para o livro seguinte de Max, World War Z – An oral history of the Zombie War (ainda sem lançamento em português), que junta relatos dos sobreviventes à guerra travada entre humanos e mortos-vivos. Este segundo livro também se tornou um best-seller, dada a fértil imaginação de Max nos relatos mais variados.

    A crítica social (sempre presente nos filmes de George Romero, por exemplo) também tem seu lugar aqui, comedido, mas tem. Principalmente quando se analisa a ineficácia do governo em conter epidemias ou a sua eficácia ao tentar esconde-las.

    Se você está à procura de um livro com uma leitura simples, prazerosa, divertida e que esbanja criatividade, não pense duas vezes e compre o seu guia. Se pensarmos bem, muitas das dicas de sobrevivência podem sim ser úteis mesmo fora do contexto ‘’apocalipse zumbi’’. Portanto, não ignoremos a importância didática deste guia.

    A última dica que dou é: Se você não tem problemas para ler em Inglês, cogite adquirir a versão importada. Falo por ser vantajoso financeiramente mesmo. O livro aqui está entre 26 e 36 Reais. Paguei pelo guia e o World War Z apenas 6 doletas cada um na Amazon. Claro, tem o frete e tudo mais, mas dividindo com alguém, ou fazendo uma compra maior (meu caso), compensa bastante.

    Max Brooks faz uma homenagem relevante a uma das criaturas mitológicas modernas mais interessantes já criadas. Tenho certeza de que George Romero indicaria O Guia de Sobrevivência a Zumbis como leitura obrigatória… E se Romero diz, quem sou eu para discordar.

    Confira as 10 dicas básicas contra os undead:

      • Organize-se antes que eles despertem!
      • Eles não sentem medo. Por que você deveria?
      • Use sua cabeça: corte a deles.
      • Lâminas não precisam ser recarregadas.
      • Proteção ideal: roupas apertadas, cabelos curtos.
      • Suba a escada, mas destrua ela depois.
      • Saia do carro, suba na moto.
      • Mantenha-se em movimento, fique escondido, fique quieto, fique alerta!
      • Nenhum lugar é seguro, apenas ‘mais seguro’.
      • O zumbi pode ter ido embora, mas a ameaça permanece.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Crítica | De Volta ao Planeta dos Macacos

    Crítica | De Volta ao Planeta dos Macacos

    De Volta ao Planeta dos Macacos 1

    Depois do estrondoso sucesso comercial do original Planeta Dos Macacos, uma sequência era quase certa para o que se tornaria uma lucrativa  franquia simiesca.

    O filme se passa dando sequência direta aos acontecimentos finais da primeira película, uma nova espaço-nave foi enviada da Terra em busca de Taylor e seus companheiros. A nave acaba por sofrer dos mesmos distúrbios temporais que a original e aterrissa no planeta agora dominado pelos símios. O protagonista agora é Bret, interpretado por James Franciscus (cuja tamanha semelhança com Charlton Heston é até mencionada no filme), ele se junta a Nova (Linda Harrison) que juntos, ao fugir dos símios acabam por descobrir uma passagem subterrânea que os levam a explorar o que há abaixo do planeta dos macacos (daí o nome original Beneath the Planet of the Apes). É na estação subterrânea de metrô que Bret descobre que está na Terra do futuro. Claro, sem nem um décimo da carga emocional que sentimos no final do filme anterior.

    Devido ao orçamento mais do que reduzido se comparado à primeira obra, esta sequência fica logo de cara comprometida com os efeitos especiais utilizados e nas vergonhosas mascaras de gorilas, contrastando com as maquiagens que haviam sido extremamente elogiadas no primeiro filme.

    Além destes ‘detalhes’ técnicos, a sequência não traz nada de novo para o debate filosófico, moral e religioso abordado no original.  Na verdade, isso é algo deixado quase que totalmente à margem dos acontecimentos vivenciados pelo nosso protagonista e pelas cenas de ação. Todos estes aspectos deixam no espectador a impressão de que a sequência só existiu por um objetivo ‘caça-níquel’ (algo que infelizmente permeará praticamente toda a franquia).

    Talvez o grande momento de inspiração e ousadia do roteiro esteja no final inesperado e categórico. Ele talvez gere alguma discussão mais aprofundada, algo que é sempre inerente a qualquer boa obra de ficção científica (seja qual for a mídia). O final também seria algo que encerraria a franquia ali mesmo. Mas como bem sabemos, isso não aconteceu. Porém, deixo as críticas com relação à continuação para o próximo filme.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

    Ouça aqui nosso podcast sobre a saga “Planeta dos Macacos”.

  • Crítica | Cisne Negro

    Crítica | Cisne Negro

    Cisne Negro

    Darren Aronofsky nos apresenta um thriller psicológico intenso, desafiante, até mesmo aflitivo… Mas ao mesmo tempo imperdível.

    Em uma primeira leitura da sinopse do Cisne Negro, dificilmente alguém se surpreenderia com a sua história. O mais atento, porém notaria que a obra é assinada por um diretor autoral que já nos trouxe filmes de qualidade dificilmente questionáveis, para se dizer o mínimo.

    A obra acompanha a história de Nina Sayers (Natalie Portman), uma dançarina de balé clássico que  almeja o papel principal no mais do que famoso espetáculo ‘O Lago dos Cisnes’. A Rainha Cisne é este papel, e para interpretá-lo Nina terá que mostrar não somente o seu lado doce e frágil do cisne branco, mas também deixar aflorar seu alter ego, o cisne negro. Metáfora clássica maniqueísta que por sí só já diz muito sobre a personagem e os diversos obstáculos que ela vivenciará.

    E é aí que o filme arrebata o espectador mostrando o que Aronofsky tem de melhor. Sua edição singular unida a uma interpretação por parte de Natalie Portman sem igual, merecidamente indicada ao Oscar de melhor atriz. Como tantos outros personagens do diretor, Nina se vê cercada de ameaças aos seus maiores objetivos de vida, sejam estas reais ou não. Sua obsessão culmina na personagem de Mila Kunis (Lyli). Lyli em teoria teria as qualidades faltantes em Nina para interpretar o lado mais sombrio da Rainha Cisne. A interação entre as duas é cercada de mistério e desconfiança por parte de Nina. Mila Kunis também não deixa a desejar, atuando com uma sensualidade e sedução que atinge perfeitamente o que o cisne negro representa na história.

    Conseguimos ver em Nina diversas características de trabalhos anteriores de Darren. A sua busca por perfeição, superação e até mesmo sua autodestruição são recorrentes. Max em π (PI), Randy em O Lutador e Tomas em A Fonte da Vida, todos têm em si um pouco dessas características. Isso dá uma identidade aos personagens de Darren, e que quase que invariavelmente resulta em ótimas atuações, seguido de um terror psicológico até mesmo incômodo. Com isso Darren consegue atrair e (algo ainda de maior mérito) manter a nossa atenção em seu núcleo esquizofrênico, bestial, frenético.

    Não poderia deixar de comentar também a magnífica trilha sonora, sempre bem dosada com as aflições de Nina. Quem assina a trilha é Clint Mansell, que já havia trabalhado com Aronofsky em seus quatro filmes anteriores. Ele usa da trilha original de Tchaikovsky para o Lago dos Cisnes com algumas nuances. Tornando algumas cenas simplesmente épicas e que valem a pena serem conferidas no cinema.

    A fotografia é outro espetáculo neste filme. Os poucos, mas muitíssimo bem executados efeitos especiais adicionam o terror, ou a beleza necessária em diversas cenas. Estes efeitos são importantes para marcar o contraste dos fantasmas internos de Nina, como também para acentuar sua integração, principalmente quando esta não pode mais ser negada ou escondida.

    Com tudo isso, Darren Aronofsky nos delicia com mais um grande filme. Um real espetáculo em diversos quesitos técnicos e ainda com uma substância psicológica que não pode ser desconsiderada e vale como uma síntese da obstinação do ser humano na busca pela perfeição.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

    Ouça nosso podcast sobre Darren Aronofsky.

  • Resenha | Crônicas Saxônicas: O Último Reino – Bernard Cornwell

    Resenha | Crônicas Saxônicas: O Último Reino – Bernard Cornwell

    O Ultimo Reino - Cornwell

    O Último Reino inicia mais uma saga do romancista histórico Bernard Cornwell.  Uma série repleta de elementos que deliciam os fãs do gênero. Uma história crua, violenta, cheia de conquistas impressionantes e traumas ainda maiores.

    Para quem já leu a série mais famosa autor, logo perceberá algumas semelhanças entre as Cronicas Saxônicas e Crônicas de Arthur. Principalmente no que se refere ao personagem principal de cada série. Quero logo ressaltar que essa impressão inicial não compromete em nada a apreciação do livro. Por se tratarem ambos de crônicas, é justificável o formato adotado de o personagem estar contando uma história já vivenciada por ele há algum tempo, fica aos leitores notarem as outras semelhanças… Ou não.

    Cornwell nos apresenta dessa vez sua visão histórica/ficcional sobre o século IX. Focando-se nas contínuas invasões que a Inglaterra sofria na época principalmente pelos povos nórdicos.

    Seguimos a linha de vida de Uthred, filho de um nobre senhor do norte da Inglaterra, herdeiro de uma fortaleza considerada inexpugnável. Uthred logo tem sua aparente segurança comprometida quando dinamarqueses surgem no litoral inglês, com seus barcos com cabeças de feras nas proas, trazendo morte, destruição e saque por onde quer que passem.

    Cabe ao pai de Uthred, juntamente com outros nobres da região tentar expulsar os nórdicos de suas terras.

    Isto é apenas o inicio de uma série de reviravoltas que iremos vivenciar neste primeiro volume, e deixo para o leitor descobrir as surpresas seguintes no decorrer da história.

    Se nas cronicas arthurianas aprendemos um pouco mais sobre a religião druida, neste, devido à grande presença nórdica na história, entramos em contato com o culto das terras geladas aos deuses antigos. Estou falando de Tor, Odin, Frigg, entre outros. O cristianismo já está na época bem arraigado entre os saxões, mas ainda há alguns resquícios das chamadas religiões pagãs entre alguns deles. Lembrando que os saxões são os donos da terra agora. Sim, é triste, mas Arthur não conseguiu manter a Bretanha livre deles e serão eles que formarão o que hoje chamamos de Inglaterra.

    Cornwell mantém nesta série as duras criticas ao cristianismo comparada a simplicidade e até praticidade de alguns ritos antigos. Com o cristianismo mais forte, conseguimos vislumbrar o início de uma estrutura cristã a qual estamos habituados hoje, com padres, bispos, monges e também santos. Com essa estrutura, fica mais fácil para Cornwell demonstrar as diversas inconsistências e hipocrisias latentes entre o que os sacerdotes pregam versus o que eles praticavam.

    Historicamente é interessante notar o interesse que a Inglaterra atraía para os povos nórdicos em busca de uma terra melhor para se viver. Dinamarqueses, noruegueses, entre outros migram, guerreiam e fazem de tudo para conquistar um pedaço dessa terra onde deuses antigos enfrentam o crescimento do deus cristão.

    Cornwell constrói um ambiente histórico bastante verossímil. Uthred não é apenas mais um clichê do ideal herói medieval normalmente concebido pelo século atual. Ele é cheio de falhas, comportamentos imprevisíveis e arrogantes. Por tudo isso ele é uma personagem muito crível, principalmente quando se compreende o pano de fundo da época.

    Cornwell mantém sua precisão na narração das diversas batalhas que Uthred enfrentará e realmente nos transporta para o campo de guerra onde praticamente conseguimos sentir o hálito azedo de cerveja do inimigo quando uma parede de escudos se entrechoca. Muito sangue e mutilação, detalhes das táticas adotadas na batalha, além de todo o júbilo por ela proporcionado acompanham o resto da descrição.

    Meu único pesar referente à escrita dele com relação a esta série pode ser um tanto quanto subjetivo, mas creio que pode sim ser notado por outras pessoas. Refiro-me a uma certa ausência na construção de um clímax para alguns acontecimentos no decorrer da história. Cornwell opta (diferentemente de outros livros seus) por ser mais direto ao narrar acontecimentos de grande impacto emocional para o nosso personagem principal. Talvez com o objetivo de ser mais marcante e talvez tocar ainda mais o leitor, mas pelo menos no meu caso, essa escolha resulta em uma falta de emoção que ao meu ver poderia ter sido mais bem construída, resultando sim em um impacto emocional maior.

    Alguns outros detalhes interessantes a se notar. A fortaleza de posse do nosso Uthred (Bebbanburg, atual castelo de Banburgh na Nortúmbria) originou a família da qual Bernard Cornwell é descendente. Inclusive ele mesmo relata que deliberadamente gosta de escrever sobre Uthred por esse motivo.  Outra curiosidade é sobre os chamados vikings. O termo para definir os nórdicos como vikings era utilizado para descrever os assaltos que eles cometiam no litoral inglês. Ou seja, o ato de chegar com o navio, saquear, matar e ir embora. Nesse momentos eles eram considerados vikings. No momento que eles adentravam o interior da Inglaterra para considera-la sua terra, eles eram simplesmente nórdicos.

    As Crônicas Saxônicas não irá decepcionar os fãs do gênero e pode até mesmo atrair novos. Vale sim a pena embarcar nos navios vikings e acompanhar a história de vida de Uthred, filho de Uthred… senhor de Bebbanburg.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Resenha | Os Ossos das Colinas – Conn Iggulden

    Resenha | Os Ossos das Colinas – Conn Iggulden

    Os Ossos das Colinas - Conn IgguldenO Supremo Soberano está de volta. Pronto para liberar sua horda de mongóis ensandecidos sobre desafortunados inimigos. Ansioso para conquistar e destruir novos territórios. Sedento por vingança!

    Ossos das Colinas é o terceiro livro da série O Conquistador. Saga essa que narra a vida de Temujin, mais conhecido por Gêngis Khan. Para quem não conhece os livros, aconselho antes de continuar que leiam as resenhas do primeiro (O Lobo das Planícies) e do segundo livro (Os Senhores do Arco).

    Este terceiro volume inicia-se relatando acontecimentos ocorridos três anos após o final de Os Senhores do Arco. Gêngis havia dividido seu já numeroso exército, mandando seus generais para diferentes regiões do planeta para saquear, conquistar e destruir em seu nome. Cada general partiu com um tuman (10 mil homens) e com um dos filhos de Gêngis, a fim de treiná-los e endurecê-los na arte da guerra.

    Tsubodai, (o maior general que Gêngis já teve sob seu comando) ficou com o filho mais velho, Jochi. Este, no alto dos seus 17 anos havia se tornado um grande guerreiro e líder astuto sob a tutela de Tsubodai. Apesar de tudo, Jochi nunca fora aceito por Gêngis como filho legítimo e herdeiro direto do Cã. Havia a possibilidade de Jochi ter sido fruto de um estupro sofrido pela primeira mulher de Gêngis. O Cã o ressentia, e sequer admitia a maioria dos feitos do filho bastardo. Jelme levou consigo o arrogante Chagatai e Khasar ficou com o mais novo dos três: Ogedai.

    Gêngis chama-os de volta à Mongólia, a fim de iniciar uma nova campanha marcial. Desta vez contra os ‘’povos do deserto’’. Gêngis havia enviado mensageiros para as mais diversas terras, entre elas as terras Árabes, governadas pelo xá Ala-ud-Din Mohamed. Eis que estes homens não voltaram, Gêngis tentou por mais de uma vez estabelecer um contato ‘’diplomático’’ com os governantes daquela terra, porém recebeu as cabeças de seus homens como resposta. Isso bastava. Como ele mesmo diz em um trecho do livro: “Não sou o autor dessa crise, mas rezei ao pai céu para me dar a força de exercer vingança”.

    Este é o grande estopim do livro, motivo mais do que suficiente para um povo como os Mongóis entrarem em guerra. Guerra esta narrada com os mesmos predicados dos outros volumes, mas em uma escala nunca antes vista pelo exército mongol. Além de números impressionantes do exército do xá, desta vez eles enfrentarão bestas de guerra gigantes, monstros de carne com presas de marfim nunca antes vistos por um mongol. Como derrotariam tal criatura? Eles se perguntam.

    Neste volume, Conn dá um pouco mais de ênfase na impressionante estratégia e organização militar mongol. Conseguimos compreender como era prática e funcional a divisão decimal aplicada aos homens. Cada arban (10 homens) tinha seu líder, que se comunicava diretamente com o líder do jagun (100 homens), que por sua vez se dirigia ao líder do mingan (1000 homens), culminando no já mencionado tuman.

    Os conflitos internos do povo de Gêngis também são mais bem explorados neste livro. As disputas por poder e reconhecimento entre Jochi e Chagatai têm, por exemplo, seu embasamento em um conceito muito bem aplicado por Gêngis: a meritocracia.

    Desde os seus primeiros atos como líder, Gêngis sempre preferenciou o mérito ao parentesco. Para um homem obter seu respeito, ele tinha que se provar como merecedor de tal por suas ações, não importando sua origem. A maior prova desse sistema era o próprio Tsubodai, que começou como um adolescente no exército de Gêngis, mas que devido à sua mente astuta e raciocínio tático sem igual, subiu ao mais alto posto, se tornando um general, dono de um tuman, respondendo diretamente ao Cã. Tsubodai é somente um exemplo entre muitos. Este sistema de promoção era inédito aos povos daquela época e região. E não é difícil deduzir porque cada mongol guerreava e treinava por horas a fio sob o frio olhar de Gêngis. Esse sistema contribuía com toda a moral do exército, proporcionando-lhes vitórias improváveis e ao mesmo tempo espetaculares.

    Este talvez seja o mais bem escrito livro de Conn Iggulden. Talvez o ponto no qual a história se encontra contribua para isso. Prepare-se para se deparar com tons mais sombrios desta vez. Ele se mistura com a alegria da guerra, com os anos que passam, com a nostalgia das lembranças dos principais personagens, como sempre, muito bem construídos. Ou talvez, seja apenas a evolução natural de um autor relativamente novo no mercado editorial.

    As conquistas de Gêngis Khân continuam nos fascinando. Ensinando um pouco de História e nos cativando ao mesmo tempo. Não cansamos de nos impressionar com os feitos dele. Impondo a sua superioridade militar sobre diversas outras nações. Depois de três volumes, nos sentimos ainda mais próximos desse povo, das suas conquistas, das suas dificuldades. Não se espante se ao final da leitura você querer tomar um pouco de airag preto, montar o seu pônei e cavalgar pelas planícies…

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Resenha | O Imperador: Os Portões de Roma – Conn Iggulden

    Resenha | O Imperador: Os Portões de Roma – Conn Iggulden

    Primeiro livro de uma série de quatro. Livro que colocou Conn Iggulden no mapa de escritores de romances históricos ao lado de nomes como o de . Depois de décadas tentando publicar algo, Conn estava prestes a desistir de ganhar a vida no ramo literário e pretendia manter até a aposentadoria a sua profissão na época: professor. Felizmente isto não aconteceu e hoje temos a oportunidade de apreciar seus livros.

    Parte da aceitação deste livro pelos editores (e futuramente pelos leitores) se deu ao hype do filme Gladiador (lançado no ano 2000). Muitas pessoas queriam entender melhor o Império Romano, e Conn foi inteligente em usar este momento a seu favor. Portões de Roma é então publicado em 2003 e logo se torna um sucesso. O próprio Conn diz que deve muito ao filme pelo seu sucesso inicial.

    Inicia-se então a série que contaria a vida do governante mais famoso e importante do Império Romano. Caio Júlio César. Seu nome se tornaria mais do que uma referência, seria usado como título de governante em nações vindouras (Kaiser na Alemanha, Csar na Rússia, Tsar para os eslavos). Por 2000 mil anos depois do assassinato de Júlio César, houve pelo menos um governante usando seu nome. O herói grego Aquiles, que tinha como maior ambição ter seu nome imortalizado na história, com certeza ficaria impressionado com estes dados.

    Iggulden começa narrando a infância de um garoto chamado Caio e de seu amigo Marco. Ambos vivem em uma das muitas áreas rurais que circundavam Roma na época. Seu pai Júlio César é um cidadão romano com voz ativa no senado e por conta das responsabilidades para com a república, quase não acompanha o crescimento de seu filho.

    A primeira visita de Caio e Marco a Roma para acompanhar as lutas dos gladiadores é descrita com detalhes, o que nos dá uma visão do avanço tecnológico dos romanos comparados com outras culturas da época. Afinal é difícil conceber uma cidade de tempos longínquos com água encanada por exemplo. Mas também fornece dados para entendermos os principais problemas de Roma como uma grande metrópole. Sua sujeira, sua densidade populacional, sua violência transbordando pelos becos estreitos. Com a descrição de Iggulden, cheiramos esse fedor, nos sentimos espremidos pelos cidadãos romanos, e vivemos o medo que se esvanece, ou se concretiza a cada esquina. Mesmo assim, Caio fica embasbacado com tamanho esplendor e vivacidade. Mercadores, mendigos, legionários, políticos, todos dentro do mesmo cenário, fazendo parte do majestoso império.

    É nesta visita que tomamos conhecimento de um grande gladiador de Roma, que traçará um importante papel na vida dos garotos. Ele será responsável pelo treinamento de Caio e Marco na arte do combate, Rênio é seu nome.

    Seguimos o aprendizado dos garotos até que o destino os catapulta para uma série de eventos que resultarão em aventuras emocionantes para um, escolhas difíceis para outro. Em terras estrangeiras temos os perigos de emboscadas, rebelião de povos já conquistados por Roma e como não podia deixar de faltar, embate entre os legionários e os famigerados bárbaros. Dentro de Roma temos os perigos e sutilezas do mundo político. Suborno, conspirações e brigas pelo poder são os protagonistas da cidade das sete colinas.

    Conn alterna entre estes dois mundos com habilidade, convergindo os dois na medida em que a trama se intensifica. Essa alternância mantém o leitor preso aos acontecimentos seguintes, sempre ávido pelo desfecho.

    Apesar de tudo isso, este primeiro livro é bem introdutório se comparado ao primeiro livro da série O Conquistador. Talvez por ser mais curto (pouco mais de 370 páginas), ou talvez por ser o primeiro livro publicado pelo autor, muito do que vemos aqui é de certa forma contido se comparado ao volume O Lobo Das Planícies. As batalhas são descritas de modo menos detalhado, poucos personagens são realmente aprofundados no decorrer da narrativa e algumas viradas na trama não são tão surpreendentes como esperaríamos. Lendo sua série seguinte, nota-se a evolução de Conn como escritor ao tratar essas questões com uma abordagem diferente. Apesar disso, pelo que conhecemos da história de Júlio César, tenho certeza que os próximos livros da série trarão ainda mais emoção à estória. A tendência é que as batalhas épicas e as tramas políticas se intensifiquem, com a adição de personagens conhecidos por todos nós, como Cleópatra, Pompeu e Marco Antônio por exemplo.

    Recomendo o romance sem grandes ressalvas para o fã do gênero, e irei com certeza seguir a diante com a narrativa da magnífica vida de Gaius Iulios Caesar

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Resenha | Retalhos

    Resenha | Retalhos

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    Confesso que peguei (emprestada) esta obra para ler sem grandes expectativas. Simplesmente pelo fato de nunca ter tido contato com nenhuma obra do quadrinista. Em tempos onde sempre sabemos de antemão o que iremos consumir, é realmente muito gratificante absorver algo totalmente novo e estranho para você.

    Retalhos é uma obra autobiográfica, repleta de alegorias gráficas e literárias. Craig Thompson utiliza sua história de vida para nos inserir na mente de um garoto criado em Wisconsin por uma família protestante, juntamente com seu irmão Phil.

    A graphic novel é composta por capítulos não necessariamente cronológicos, onde o autor mostra ao mesmo tempo a simplicidade da vida de um garoto comum, e a complexidade psicológica que resulta dessa vida “simples”. A infância de Craig é repleta de dificuldades e traumas. A imposição da religião junto com a inocência inerente em uma criança causou nele uma temeridade ao divino que guiou e influenciou seu comportamento enquanto ele crescia.

    Descrevendo-a assim, parece que a obra é extremamente séria, mas isso não é totalmente verdadeiro. Retalhos está também repleta de momentos suaves, de sentimentos verdadeiros e que apelam ao que de mais humano temos. O relacionamento dele com seu irmão, por exemplo, é um desses momentos engraçados, contrastando com o teor mais pesado da obra. Mas o ápice na descrição de sentimentos belos fica realmente evidente quando Craig conhece Raina, seu primeiro grande amor. E que se tornaria sua musa inspiradora.

    Craig deixa isso bem claro, desenhar se torna uma constante homenagem à Raina. E neste ponto vale a pena mencionar os desenhos de Retalhos. Eles casam com o texto e o sentimento descrito de forma singular. Ele utiliza muitas alegorias fantásticas para expressar determinadas cenas e acerta em todas!

    De modo sutil, Retalhos também critica o “pensamento religioso em massa”. Sempre cercado de pessoas (pais, professores, pastores, etc.) dizendo como ele deveria pensar e agir. É interessante notar que mesmo no auge de sua ingenuidade, mesmo fazendo exatamente o que diziam para ele fazer, Craig sempre se sentia amargurado pelo seu modo de pensar/agir. Sempre com uma ponta de culpa, remorso. É como se internamente, em alguma caverna profunda dentro de si, ele soubesse que aquilo não estava realmente certo. Que todos os temores e receios eram usados como ferramentas de controle por gerações e gerações. E que fazendo o que era “certo” para os outros, não correspondia com o seu verdadeiro ser.

    Com Raina, Craig expressa as dúvidas e aflições de um primeiro relacionamento amoroso entre adolescentes. Expressa também seus prazeres. Novamente de modo simples, sutil e verdadeiro. Não há como não se encantar com a sua narração somada aos belíssimos desenhos. Você se sente parte do mundo no qual eles mesmos estão profundamente mergulhados e perdidos. Não deixem de notar os desenhos que formam o blanket de retalhos e os fundos dos cenários em diversos momentos da obra.

    Outro “personagem” que tem um grande papel na vida de Craig é certamente o inverno de Wisconsin. As brincadeiras na neve com seu irmão Phil. As carícias trocadas com Raina sob a neve e a própria e lógica passagem de tempo que as estações representam. A forma cíclica de mudanças, sempre pontuando momentos importantes de sua vida. O modo como Craig percebe o inverno gera diversas interpretações sobre Retalhos, e o autor é feliz em deixar que as tiremos por conta própria. O gelo duro, resistente, e até certo ponto constante pode ser encarado como os dogmas aos quais Craig é exposto. Na chegada do verão, o calor do Sol derrete e transforma em água toda essa dureza. A maturidade de Craig e seus questionamentos podem facilmente representar esta mudança. Mas Craig nunca deixará de olhar para o inverno com ternura, pois quer queira ele ou não, quer ela tenha sofrido com a sua dureza ou não, ele fez parte de momentos inesquecíveis para ele.

    O autor disse que ao produzir Retalhos, tinha como objetivo atingir algo “simples”. Descrever sentimentos comuns a muita gente, queria fugir da cena comum de HQs de ação e super-heróis. Desnecessário dizer que ele não somente atingiu como transcendeu este objetivo, pois Retalhos definitivamente está longe de ser uma história “simples”.

    Gostaria de ressaltar mais uma passagem que me emocionou profundamente. Craig caminha pela neve, sem deixar de notar as marcas que suas pegadas produzem. Ele diz o quão bom é deixar uma marca sua no mundo, mesmo que ela seja temporária. Com Retalhos ele consegue isso. Fica para a gente a chance de olhar mais de perto essa marca deixada por Craig Thompson.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Resenha | Os Senhores do Arco – Conn Iggulden

    Resenha | Os Senhores do Arco – Conn Iggulden

    Os Senhores do Arco Conn Iggulden

    No primeiro livro da série, O Lobo das Planícies, vimos Temujin nascer, crescer e se tornar um grande guerreiro. Líder nato. Passamos por suas maiores dificuldades, desde muito pequeno, com a morte sempre à espreita, seja ela ‘vestida’ de fome, frio ou simplesmente um guerreiro de uma tribo inimiga. Nos habituamos ao clima feroz da Mongólia, as batalhas lideradas por Gêngis na sua busca por unificação das tribos mongóis. Esta unificação, enfim se torna realidade no início do segundo volume da série O Conquistador.

    No inicio do livro, Gêngis está prestes a derrotar a ultima tribo mongol que ainda não havia se unido ao seu exército. Com mais esta vitória, seu objetivo primário está então completo. A Mongólia agora é uma nação de um só ‘Cã’, como ele sempre sonhou. Gêngis tem agora a seu dispor um incrível poder militar. E o pretende usar para livrar a Mongólia de seus inimigos, que para Gêngis são os Tártaros, povo responsável pela morte de seu pai e que desde muitas gerações guerreavam com os mongóis. Gêngis ainda desconhecia seus verdadeiros inimigos: o grande Império Chinês.

    O Império Chinês se dividia em três grandes reinos na época. Os Xixia, os Song e os da dinastia Jin. O que Gêngis desconhecia era que a China e suas dinastias financiavam a guerra entre as tribos mongóis e os Tártaros. Tudo para manter os ‘bárbaros’ guerreando entre si, sem nunca se importarem com as grandes riquezas dos verdadeiros senhores daquela terra.

    Toda a ambientação que Conn Iggulden nos introduziu no primeiro livro, se mostra muitíssimo relevante para entendermos a mente de Gêngis e de seus fieis discípulos nos desafios que encontrarão daqui para frente.

    A inicial ignorância de Gêngis perante a tecnologia chinesa e seus hábitos civilizatórios são mostrados de forma muito interessante neste volume. Mas conseguimos ver também a sagacidade da mente do Khan, ao se adaptar rapidamente e surpreender a todos na luta contra estes “novos” inimigos.

    Parece difícil de acreditar, mas este segundo volume é ainda mais dinâmico e envolvente que o primeiro. Com o pano de fundo definido logo no início, sobra espaço para as batalhas épicas que Conn narra tão bem.

    Gêngis usa da arrogância sempre inerente em um grande império para atacar a China com uma brutalidade e engenhosidade militar que ninguém esperava. Isso somado à adaptação que ele implantou nas armaduras de seu exército, e fica fácil compreender como um grupo inicialmente de desgarrados conseguiu enfrentar tal potência.

    A cada vitória obtida pelo exército do grande Khan, ele incorpora ao seu povo a tecnologia e habilidade do império milenar. Armaduras em placas, onde antes só tinha couro curtido. Seda por baixo da armadura, que não se rompe quando atingida por uma flecha inimiga. Até culminar nas grandes armas de cerco. A mente de Gêngis trabalha de forma lógica e simples. Quando deparado com a primeira muralha que protegia os Xixia, um dos seus generais o aconselha a desistir, pois seria impossível para eles conseguir derrubar tamanha construção. E Gêngis responde que algo que foi construído por homens, pode também ser destruído por homens!

    A saga de Gêngis Khan e seus irmãos continua tão interessante quanto antes e nos incita a continuar nesta aventura, guiada pela escrita perspicaz de Iggulden. Com um cliffhanger no ato final que vai deixar qualquer um sedento pelo próximo livro da série.

    Se no primeiro livro vimos o início da trajetória deste magnífico homem que se tornaria senhor da Mongólia. O segundo demonstra o quão impressionante foram as conquistas em sua vida adulta.

    O Conquistador. Série esta que já se tornou imperdível para qualquer amante de um bom romance histórico.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Resenha | Minority Report – A Nova Lei – Philip K. Dick

    Resenha | Minority Report – A Nova Lei – Philip K. Dick

    Minority Report – A Nova Lei – Philip K. Dick - book

    Para quem não conhece, Dick é um dos autores mais cultuados de Ficção Científica dos nossos tempos, sendo quase sempre citado junto com outros grandes nomes do gênero, como Asimov ou Arthur C. Clark. E se você ainda não reconheceu seu nome no meio literário, com certeza ouviu falar dos filmes que algumas obras de Dick inspiraram.

    São elas: Blade Runner: O Caçador de Andróides (adaptado de “Do Androids Dream of Eletrical Sheep?”), O Vingador do Futuro (do conto “We Can Remember It for You Wholesale”), O Pagamento (baseado em “Paycheck”), Screamers: Assassinos Cibernéticos (conto “Second Variety”), O Impostor (“Impostor”), O Homem Duplo (“A Scanner Darkly”) e Minority Report: A Nova Lei (“Minority Report”). Há algumas outras adaptações para o cinema, mas essas são as que se tornaram mais conhecidas do grande público.

    Para o bem ou para o mal, logo de cara fica fácil afirmar que Dick é o autor de FC que mais tem adaptações para o cinema. Isso com certeza representa um pouco da influência do autor no gênero. E é na aposta deste reconhecimento que a editora Record lança esta coleção de contos logo depois do lançamento do blockbuster de Spielberg, com título homônimo. De todos os contos inspirados em filmes que citei, nesta coleção fica faltando apenas ‘O Homem Duplo’, ‘O Pagamento’ e o que inspirou ‘Blade Runner‘. Temos aqui todo o resto e mais alguns, totalizando dez contos.

    Confesso que peguei para ler este livro com uma expectativa muito grande, afinal sou fã de Ficção Científica, apesar de nunca ter lido nada do autor (com exceção de alguns contos “soltos por aí”). Talvez essa expectativa tenha influenciado no modo como recebi a leitura, mas se isso de fato aconteceu, representa apenas uma parte da minha análise, a outra parte são os contos em si.

    O livro abre com Minority Report, que é um conto muito bem estruturado. Ele basicamente levanta as mesmas questões que Spielberg levou para o cinema, mesmo sendo bem diferente da adaptação em muitos aspectos.

    O ponto principal a ser discutido nele é sobre a moral do sistema de prevenção de crimes descrito em Minority Report. Basicamente a trama se desenrola em um futuro próximo onde há um sistema na polícia que prevê a concretização de crimes com até uma semana de antecedência, a polícia então prende o suspeito (ou seria culpado?) antes do mesmo exercer o ato e a pergunta aqui é: Pode-se condenar alguém por um ato que ela ainda (?) não cometeu, ou em muitos casos, nem sabia que iria cometer? E se ao invés de prender os suspeitos, por que simplesmente não avisamos os mesmos de suas ações futuras, talvez assim alterando o resultado das previsões?

    Essas são as questões levantadas pelo conto e creio que é uma ótima escolha ele abrir o livro.

    Depois dele, bem, temos alguns contos não tão representativos filosoficamente falando, que é algo comum no gênero. Outros simplesmente não têm uma construção de personagens muito boa (como no conto ‘O Que Dizem os Mortos’) ou mesmo de enredo e/ou curva dramática (como em ‘Ah, Ser um Bolho!’). Neles, o enredo não te prende e a conclusão termina por ser uma grande decepção. Eu compreendo que em contos não se tem mesmo muito ‘tempo’ para se construir um bom personagem, mas quando eles passam a agir de forma quase que totalmente aleatória, torna-se algo de difícil aceitação para o leitor mais atento.

    Não estou dizendo que Dick não merece a fama que tem como grande nome de FC, pois como mencionei, esta é a primeira obra completa que li dele, mas realmente creio que a seleção dos contos aqui não foi das melhores. Ao meu ver, dos dez contos do livro, gostei realmente de apenas três, são eles: ‘Minority Report‘, ‘A Formiga Elétrica’ e ‘Impostor’. Esses três trazem elementos interessantíssimos para contos de FC. Elementos de reflexão, questionamentos e por último mas não menos importante, desfechos surpreendentes e/ou contundentes.

    Quero chamar a atenção para ‘A Formiga Elétrica’, por levantar questões bem interessantes. Qual não foi o meu prazer ao começar a ler este conto, e lembrar que eu já o conhecia de uma coletânea de Ficção Científica intitulada ‘Histórias de Robôs’. Como mencionei acima, eu já havia lido alguns contos de Dick antes e este em especial ficou gravado na minha mente. Ele conta a história de um empresário bem sucedido que após um acidente descobre que ele na verdade é uma ‘formiga elétrica’, uma gíria para robôs humanóides.

    O nosso personagem principal, devido a falsos implantes de memória, não tinha a menor suspeita de que ele não era humano. Mas esta revelação dada logo na terceira página do conto torna-se secundária quando ele descobre dentro de seu peito cheio engrenagens algo que é responsável por toda a sua percepção de realidade, uma espécie de ‘fita de realidade’, onde um scanner laser lê as perfurações na fita para reproduzir para o robô os cinco sentidos humanos além de toda a sua percepção de mundo como um todo. E é quando ele começa a brincar com essa fita que as especulações mais interessantes acontecem. Segue um trecho:

    “Eu gostaria de controlar o tempo. Inverte-lo. Vou cortar um pedaço da fita e cola-la
    de volta de cabeça para baixo. As sequências de causa e efeito, então, vão passar ao
    contrário. Por conseguinte, vou caminhar de costas até a minha pia, de onde vou tirar
    uma pilha de pratos sujos com a comida produzida pelo meu estômago…então transfiro a comida para a geladeira. No dia seguinte tiro a comida da geladeira, guardo em sacolas e as levo para um supermercado, distribuo a comida aqui e ali pela loja. E
    finalmente, na porta, vão me pagar dinheiro por isso, direto de sua caixa registradora. Mas o que tudo isso provaria? Uma fita de vídeo andando de trás para frente… eu não saberia mais do que sei agora, o que não é suficiente.
    _O que quero é a realidade extrema e absoluta, por um microssegundo. Depois disso, nada importa, porque tudo vai ser conhecido. Não faltará nada a ser visto ou compreendido”

    Antes de terminar, gostaria de ressaltar também que a edição em si não é lá muito caprichosa. Diversos erros de tradução e também de português, acabam por incomodar algumas vezes. No mais, com certeza irei atrás de outras obras do autor para melhor compreender por que coloca-lo na mesma ‘prateleira’ que Asimov, por exemplo, o qual admiro muito como escritor. Mesmo contendo alguns contos bons, mais da metade ficaram bem aquém do que eu esperava, por isso não recomendo esta coletânea, sugiro irem atrás de outras fontes de contos para conhecerem melhor o autor, se esta é a sua intenção.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Crítica | A Estrada

    Crítica | A Estrada

    the-road

    O que a estrada nos oferece? Aonde ela nos leva? Há sequer um destino?

    Essas questões permeiam a jornada de um pai (Viggo Mortensen) e seu filho (Kodi Smit-McPhee) na brutal, crua e também simples realidade em que se encontram.

    Sobrevivência (ou a luta por ela) é o que mantém a relação quase simbiótica dos personagens principais. Em um mundo exaurido de recursos, percebemos que de nada adianta lutar para manter a integridade física se a sanidade mental se esvai, ponto bem representado pela personagem de Charlize Theron. O filho, por sua simples existência provê essa sanidade ao pai, o mantém em foco, dá a este homem um final objetivo de vida: preparar o filho para sobreviver neste mundo, quando ele não mais fizer parte dele.

    Após um evento cataclísmico que pouco nos é explicado, percebemos que o mundo vive agora um cenário de pós-guerra nuclear, onde a luz do sol se tornou uma vaga lembrança, e nos resta apenas paisagens áridas e desoladas a serem contempladas. Pai e filho partem em uma jornada determinados a chegar à costa americana, com uma vaga e ingênua esperança de que as coisas simplesmente serão melhores por lá. O destino da jornada no entanto, se mostra apenas um detalhe, quase um subterfúgio mental quando analisamos a obra de uma forma mais profunda.

    Baseado no livro homônimo de Cormac McCarthy (autor de Onde os Fracos Não Têm Vez), a direção de John Hillcoat e o roteiro de Joe Penhall mantêm o teor sombrio da obra. A fotografia do filme proporciona exatamente o tom que A Estrada quer nos passar. Um mundo sem vida, cinza, com o inverno nuclear sempre presente.

    Neste cenário não há espaço para sutilezas ou eufemismos. Sobra sim o grotesco, o visceral, o medo generalizado de qualquer outro ser que possa cruzar o seu caminho. Qualquer um que possa querer tomar o pouco alimento que lhe resta, seu abrigo, ou simplesmente seu precioso sapato.

    A resposta deste medo é representada ao extremo no personagem de Viggo, com uma atuação tocante e verdadeira, conseguimos ver e compreender em seu olhar, em seu corpo corrompido, o que este homem sofreu e o que ele é capaz para manter imaculada (outro esperança ingênua) sua prole.

    Poucos filmes pós-apocalípticos tratam o tema com tamanha crueza e subjetividade. Muitos enveredam por caminhos onde a ação desenfreada ou o escapismo ficcional acabam se sobressaindo, deixando pouco espaço para uma reflexão sobre questões humanas primordiais dentro do cenário escolhido. Sejam elas de sobrevivência, relação interpessoal ou até mesmo de confiança. Esta última, vale notar, ainda presente no garoto e quase que completamente esgotada no pai. Mais um ponto interessante na relação pai/filho do filme.Pode-se questionar a verossimilhança do modos operandi de alguns grupos retratados no filme na luta pela sobrevivência. Mas basta um pouco de reflexão histórica para percebermos que os atos que nos causam mais asco no filme, não seriam assim tão difíceis de serem concretizados pela nossa natureza animalesca.

    A jornada empreendida aqui é análoga a caminhos tortuosos trilhados por todos nós. Viggo não sabe o que vai encontrar na costa, nem exatamente por que decidiu ir para lá. Mas sabe sim que não pode ficar estático, inerte ao destino reservado para ele e seu filho. Sabe que não pode parar, em certo momento abre mão até de certos recursos que ele sabe serem indispensáveis para ele e para o garoto. Este, não compreende a obsessão do pai, a importância de terem um objetivo final traçado, a sua (sempre presente) desconfiança para com o mundo deixado para eles. Um mundo destruído, sem cor, morto… e ao mesmo tempo, real.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.