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  • De Thanos a Dostoiévski – Os mitos que permeiam todos nós

    De Thanos a Dostoiévski – Os mitos que permeiam todos nós

    O vilão da Marvel Thanos sempre esteve rodeado por conceitos ligados ao desconhecido, questões morais, niilismo e morte, portanto não me surpreende que sua gênese tenha surgido enquanto seu criador, Jim Starlin assistia a uma aula de psicologia na faculdade. 

    Sua origem se assemelha a estruturas conhecidas de mitos antigos. Ao nascer, sua mãe tenta acabar com a vida do filho por se chocar com a sua aparência e por acreditar, de alguma forma, que ele trará fim a vida no universo. Ato que é evitado por seu pai. Em um contexto mitológico, é como se sua mãe tivesse recebido uma revelação divina direta, acreditando fazer parte de uma profecia sombria. Um nascimento que nada deve aos dramáticos mitos gregos.

    Como muitos vilões em tantas outras histórias, Thanos cresce inicialmente com intenções pacíficas. Porém na sua adolescência, seu interesse por temas mais sombrios começa crescer. Chegando a desenvolver uma forte atração e genuíno amor pela personificação da Morte em seu universo. Amor esse que o levará a cometer atos indignos de seu sentimento. 

    Isso gera nele um conflito claro. Thanos até chegou a sonhar em criar uma nova forma de vida, mas cada vez mais se sentia atraído pela morte. Seu amor é implacável, assim como seu destino, inexorável. Thanos é um paradoxo vivo, seguindo um comportamento comum na história humana, invocar a morte enquanto se prega o amor.

    Afinal, por que essa temática? Há algum valor em reconhecermos e talvez até amarmos a morte? 

    Memento Mori: o fim inexorável

    Isso me traz à mente o conceito de memento mori; lembre-se da morte. Artistas renascentistas faziam questão de nos lembrar disso ao terem em suas obras crânios humanos e frutas apodrecendo, representantes da passagem do tempo, da nossa finitude, da morte.

    Diversas correntes filosóficas e religiosas focam na importância de se refletir sobre a morte: Sócrates, Platão, Buda, hinduísmo e os estoicos são ótimos exemplos. Diferente dos outros seres vivos, sabemos que iremos morrer. Vita brevis.

    Essa consciência é nossa dádiva e ao mesmo tempo nosso fardo. Quase como um preço a se pagar por termos aceitado o fogo roubado dos deuses pelo titã Prometeu, ou por termos comido do fruto do conhecimento no Éden. Com isso, nos tornamos cientes pela primeira vez da malícia, da sombra que habita em todos nós. Percebemos a nossa vulnerabilidade diante da natureza. Nos vimos nus, frágeis e com a certeza de que teremos um fim. 

    Esse é o começo da história humana, encenada e condensada em mitos a experiência de uma consciência evoluída em primatas que há apenas alguns milhões de anos vagavam pelas savanas africanas tentando sobreviver.

    Incorporar a brevidade da vida e não fugir da noção da morte é o que dá significado e ritmo à existência. É o que nos permite mover em direção a algo que nos transcende. É o que nos leva a construir catedrais e pirâmides que levam séculos para serem concluídas. É podermos ler as palavras gravadas com tinta em folhas de árvores, escritas por ancestrais que viveram e morreram há milhares de anos. A recorrência desse tema em nossas histórias nos traz para perto de nós mesmos, nos define como humanos, mesmo que essa tensão com a morte aqui seja personificada por um personagem alienígena. 

    A tensão de vida e morte em Thanos cria no personagem um apetite ambicioso para trazer harmonia e equilíbrio para o cosmos, similar aos mais famosos ditadores da nossa História. 

    Em Thanos, isso se traduz em reduzir pela metade toda a vida do Universo.

    Mural Old Town Hall (Göttingen) – Alemanha

    Carstian Luyckx: Vanitas – Still life with a celestial globe. (Vazio – Ainda há vida com um globo celestial)

    Pensamentos dissonantes

    Sua justificativa é a mesma de todos que detêm muito poder. Eles têm a solução para os problemas do mundo e somente eles podem nos salvar. 

    Essa armadilha cognitiva de se ver como uma força necessária para o bem de todos é bastante comum e convence, não somente quem propõe tais ideias, mas também seus seguidores. Vemos isso em diversos dilemas humanos: faz-se guerra para se ter paz, mata-se para que a vida prospere.

    No romance clássico e obrigatório 1984 de George Orwell, as dissonâncias entre pensamento e ação foram exploradas com maestria. O lema do partido que detém o poder no livro é: Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força. O chamado ‘duplipensar no livro não tem como objetivo ressaltar essa clara contradição, mas sim causar um choque mental tão dissonante que dissolveria qualquer questionamento racional e lógico da população. Exemplos na política moderna em que as contradições são empilhadas não faltam. Na linguística o conceito se apresenta através de eufemismos como ”fogo amigo” ao invés de ”tiro acidental” e ”danos colaterais” ao invés de ”múltiplas fatalidades”. Orwell definiu o “duplipensar” da seguinte maneira: 

    Saber e não saber, estar consciente da mais completa verdade enquanto se conta mentiras cuidadosamente construídas, manter simultaneamente duas opiniões que se cancelam, sabendo que elas são contraditórias e acreditar em ambas, usar a lógica contra lógica, repudiar a moralidade enquanto e se diz ser moral, acreditar que a democracia é impossível e que o Partido é o guardião da democracia. Esquecer, o que quer que seja necessário esquecer, e se voltar a memória novamente quando for necessária, e prontamente esquecer novamente, e acima de tudo, aplicar o mesmo processo ao próprio processo. 

    No ramo da filosofia moral, cenários que testam os limites dos nossos vieses e escolhas morais são criados e dissecados à exaustão. O objetivo aqui não é detalharmos tais situações em que é muito comum termos apenas opções de ”um mal menor” a serem escolhidas, mas sim questionar a aparente atração e, repito, contradição de se buscar paz com guerra, amor com ódio, respeito com autoritarismo. Se usarmos como referência uma das nossas melhores ferramentas de análise do comportamento humano, a História, é fácil concluir como essas contradições nunca se sustentam no longo prazo. Joseph Stalin, Hitler e Mao Tsé são apenas os exemplos mais famosos, mas há muitos outros. 

    Podemos concluir que suas aspirações e métodos sempre se dissolvem nas areias do tempo. O que há de comum entre eles: se rebelar contra a criação em si, agir contra algo que pelo que as histórias nos contam, não detemos a sabedoria para tal. 

    Sacrifícios e consequências

    Grandes ambições pedem grandes sacrifícios. Para Thanos, o sacrifício é acabar com sua única relação afetiva real e assim obter o poder necessário para seguir com seu plano. É muito comum que sejam sempre os mais próximos a nós a terem que lidar com as consequências de nossas escolhas. Mas o que de fato é essa noção de sacrifício e porque ela é contada e recontada em mitos, performada em ritos, vivenciada por todos nós? 

    A experiência humana traz consigo uma diferença crucial de outras formas de vida no planeta, e como quase todas as características humanas, carregam consigo a dualidade dádiva/maldição. 

    Uma boa definição do conceito de sacrifício é descrita pelo psicólogo e escritor Jordan Peterson: Sacrifício é o ato consciente de se abrir mão do presente para se alcançar o futuro

    Mesmo sem entendermos os mecanismos por detrás disso, o sentimento é de que quanto maior o sacrifício, mais significativa a recompensa. É por esse sentimento que Abraão cogitar fazer o que é pedido dele. Esse ofício sagrado (tradução direta do Latim) toma então cores honradas, e pode ser usado para justificar praticamente qualquer ação que o precede. Dada essa premissa, Thanos age e sacrifica a sua filha.

    Há nessa ação certa inconsciência e ingenuidade sobre as consequências e transformações que tais atos podem gerar. Por um lado, é impossível realmente identifica-las, pois o agente executor antes do ato (o “eu atual”) é um ser diferente do “futuro eu”. Em termos fenomenológicos, o último só nasce após o ato em si. Mesmo no mais planejado cenário, vemos na literatura e nos mitos o quão diferente pode ser a vivência entre pré e pós sacrifício.

    Somos seres que naturalmente inferimos causas nos fenômenos ao nosso redor. Se vemos um raio e, alguns segundos depois ouvimos um trovão, é fácil compreender que antes de termos as ferramentas para sabermos que ambos são apenas manifestações da mesma coisa, poderíamos concluir que um causava o outro. Com sacrifícios essa noção se repete. Daí as oferendas associadas com as colheitas, ou sacrifícios humanos para se obter a graça dos deuses, entre muitos outros exemplos. Alguns atos são de mais fácil observação que outros, como plantar sementes para se obter alimentos meses depois. O ponto é que o presente pode ser vendido para se alcançar o futuro. Por isso tal noção é tão destacada. Ela simplesmente funciona.

    Você pode questionar se o método empregado é o mais apropriado para se ter o que deseja no futuro, mas poucos questionariam o poder do sacrifício em si. Por outro lado, mesmo que ele funcione, o preço pago pode ser alto demais.

    Existir para desistir? 

    O principal argumento moral de Thanos é de que vivemos em um Universo com recursos finitos para uma população que não para de crescer. Em sua defesa, foi exatamente esse problema que seu planeta natal enfrentou e o fez sucumbir. Penso com isso que Thanos poderia facilmente aderir aos argumentos da filosofia anti-natalista, dado seu ponto de vista. 

    Para os anti-natalistas, evitar sofrimento contém um peso moral maior do que gerar alguma felicidade. Portanto, não existir têm uma relevância maior do que existir, sofrer e acumular sofrimento através das gerações. A lógica é que nascer, invariavelmente, trará algum tipo de sofrimento. E se temos o poder de escolher entre gerar uma nova vida (mais sofrimento) ou não, a escolha ética seria um desconfortável não. Para alguém que nunca venha a existir, não há nada a ser perdido em termos de felicidade ou prazeres. Afinal, você sofria antes do seu nascimento? 

    A conclusão para os anti-natalistas é de que a nossa espécie deveria gradualmente e conscientemente não mais se reproduzir e, portanto, não mais existir.

    Reduzir a existência da consciência em uma balança de ‘’felicidade’’ e ‘’sofrimento’’ me soa um tanto reducionista e ignora as ramificações desses estados. Se olharmos para as nossas próprias vidas, podemos ver que ‘’mais sofrimento = ruim’’ e ‘’mais felicidade = bom’’ não é uma equação tão simples assim. Um momento definido inicialmente como ruim ou mau pode estar diretamente conectado com o que definimos como bom e prazeroso. Ou mesmo, como algo que traga maior significado para a vida em si. 

    Uma história comumente contada em círculos Taoistas exemplificam esse pensamento e serve de reflexão: O Conto do Fazendeiro Chinês: 

    Era uma vez um fazendeiro chinês. Um dia, um de seus cavalos fugiu. Seus vizinhos vieram até ele, comentando como aquele acontecimento era um infortúnio. O fazendeiro respondeu: “talvez”.

    No dia seguinte, o cavalo que fugiu voltou, trazendo com ele sete cavalos selvagens. Os vizinhos apareceram novamente, dizendo que isso era uma grande sorte. O fazendeiro respondeu: “talvez”.

    Depois disso, o filho do fazendeiro tentou domar um dos cavalos selvagens e caiu, quebrando uma perna. Os vizinhos vieram lamentar o ocorrido, dizendo que aquilo era muito ruim. O fazendeiro respondeu: “talvez”.

    No dia seguinte, oficiais do exército que estava recrutando soldados apareceram, mas não levaram o filho do fazendeiro por conta da sua perna quebrada. Os vizinhos vieram ao fazendeiro falando sobre como aquilo era ótimo, e ele respondeu: “talvez”.

    Por isso, pergunto aos anti-natalistas:

    Como mensurar o impacto de talvez sermos a única espécie na galáxia que olha para si mesma e compreende sua finitude? Como mensurar o significado de algo que levou bilhões de anos para ser alcançado, ou seja, um Universo que tem a capacidade de olhar para si próprio e dizer, Eu sou!

    E se o sofrimento que todos carregamos ao existir for parte do nosso sacrifício cósmico? 

    As regras do jogo

    Encerrar uma ou mais vidas. Como alguém se sente após isso?

    Mitos e religiões antigas comumente têm algo a dizer sobre o encerramento de vidas e suas possíveis consequências. Acabar com uma vida consciente parece ter um peso ainda maior para quem comete tal ato. Nos mitos modernos temos inúmeros exemplos de uma mudança drástica na essência de quem  segue por esse caminho. Mesmo os assassinos mais frios em filmes sobre a Máfia, por exemplo, carregam consigo ao longo do tempo uma inquietude, um vazio e uma insatisfação que pouco servem de consolo quando realmente olham para seu abismo interno. 

    No filme O Irlandês, de Martin Scorsese, o personagem principal beira a psicopatia na sua aparente frieza em lidar com os assassinatos cometidos ao longo dos anos. Mas basta ver sua insatisfação com a conexão perdida com a filha, o medo de morrer e ser esquecido e sua palpável solidão para notar que a sua alma se encontra inquieta sobre as ações tomadas. Sua mente conta para si uma narrativa simples para um homem do seu contexto, “você fez o que tinha que ser feito”, mas isso pouco vale quando se tem que conviver com o que de fato foi feito. No final, a consequência é mais pesada do que a justiça humana e suas leis. É isso que o conceito de ‘’vender a alma para o diabo’’ remete. Você faz um acordo no qual não tem como mensurar o que vai perder, afinal, quem consegue explicar o que é viver tendo perdido sua essência? Fausto, de Goethe é talvez o exemplo mais famoso da história arquetípica de se obter algo mundano em troca da sua alma. Nesse clássico da literatura Fausto faz um acordo com a representação do ‘’inimigo do mundo’’, Mefistófeles para obter conhecimento, poder e prazeres humanos. O argumento de Mefistófeles é similar ao de Thanos e dos anti-natalistas, de que o sofrimento inerente ao mundo não justifica sua existência, pelo contrário, que devemos cessar tamanho sofrimento se possível. E por mais que o argumento seja coerente, sempre que alguém tentou implementa-lo, ele se mostrou no mínimo um tanto quanto problemático. O que notamos é que algo dentro de você se rompe (e não quero aqui definir esse ‘’algo’’) quando se quebra essa aparente lei universal. De um ponto de vista metafórico, o que acontece com esses personagens é o mesmo que a queda de Lúcifer. A descida ao inferno, a corrupção do ser.

    Walter White na série Breaking Bad, Anakin Skywalker em Star Wars, Tony Soprano em The Sopranos são as versões modernas da mesma história. A questão, entretanto, permanece: por que o desconforto da alma em seres que aparentemente estavam acima de qualquer ética e moral?

    Temos o mesmo padrão com Thanos. Após ter dizimado metade da vida no Universo, encontramos o personagem em um estado de reflexão, apatia e certa tristeza. Encontra-se em um estado de aceitação até mesmo do seu fim, que vem quase como um alívio, e não uma punição.

    Crime, castigo e outros mitos

    Poucos escritores exploraram esse contexto tão bem quanto Dostoievski em Crime e Castigo. Temos no romance as peças para um estudo da condição humana. Com a popularidade do racionalismo ateísta e do cientificismo em meados do século XIX, tornou-se comum, entre os intelectuais da época, o questionamento do papel das religiões sobre a moral e ética humanas.

    Para muitos, deveríamos dispensar com o misticismo, e sua aparente arbitrariedade, a definição do que deve ou não ser feito. É com esse pano de fundo que o autor nos apresenta sua crítica. O personagem principal da narrativa, Raskolnikov, tem no nome uma dica sobre o seu destino: sua raiz em russo remete à ‘dividido’, ‘separado’. Dentro de si cresce um dilema filosófico poderoso. Uma das vozes dentro de si vocifera que a moral serve para o homem de pequeno intelecto, para os covardes. Pois para aqueles que obtêm uma mente mais privilegiada e que estão ‘’acima de Deus’’, é fácil ver como essas ‘’regras’’ são porque são, sem um real fundamento por detrás delas. E quem consegue perceber isso, poderia em tese transcende-las e quebra-las, se tivesse a devida coragem para tal. Pois eis que Raskolnikov se depara com uma situação tentadora para colocar sua teoria moral em prática no decorrer do seu relacionamento com a senhoria que lhe aluga um quarto, além trabalhar com penhores e empréstimos.  Corrupta, ranzinza, gananciosa e mesquinha. Sua própria existência gera um desconforto para quem está ao seu redor. Raskolnikov usa de sua lógica moral para concluir que estaria fazendo um bem ao mundo ao por fim a essa vida e ainda poderia ajudar sua família e a si próprio com os recursos obtidos da velha. O questionamento é direto e claro, nosso personagem pergunta a si se estaria quebrando alguma regra universal que o impediria de cometer o crime que intitula o romance. O argumento racionalista que desdenha as regras e tradições antigas vence e Raskolnikov mata a velha. 

    Entramos então em um novo mundo junto com Raskolnikov. Um inferno criado por si, para si, constantemente perturbador. Vale ressaltar aqui a genialidade de Dostoievski, pois sua escrita nos transporta para esse inferno de forma vívida. Uma agonia e angústia se derrama sobre o personagem e sobre o leitor, tamanho o impacto da narrativa empregada por Dostoiévski

    É recorrente a ruptura que permeia as histórias citadas. Thanos, Walter White, Raskolnikov e Darth Vader são seres transformados por suas ações. Acreditando estarem acima do bem e do mal, desceram ao inferno, de onde poucos conseguem voltar. Essa crença traz consigo uma cegueira intrínseca, pois nenhum deles percebe a tempo qual arquétipo estão representando. Vale dizer que essa é a relação comum que temos com os mitos do dia dia. Conhecemos muitas histórias, umas mais famosas e presentes do que outras, independente disso, estamos fadados a revive-las, reproduzi-las. Foge-se de um arquétipo apenas para cairmos em outro. Rivalidade entre irmãos como Caim e Abel é recorrente em diversas culturas. Ter ciência de tais histórias não impedem irmãos de aturarem esses mitos nas suas buscas por elogios, competitividade, disputas e afins para se provarem como indivíduos. Nesses mitos encontramos a representação de todos os irmãos e irmãs combinados, sobrepostos, resultando em uma narrativa que facilmente encontra conexões com praticamente qualquer pessoa que tenha um irmão/irmã. Isso não quer dizer que viveremos exatamente todos os aspectos narrados no mito, pois como disse, ele não representa apenas a sua história, mas a sua somada a de todo o mundo. É fácil para mim relembrar na infância diversos desses momentos vividos com meu irmão, sem ter (felizmente) chegado ao mesmo final que Caim e Abel. O ponto é que o mito é mais presente em nossas vidas do que damos conta. Ele nasce do nosso próprio comportamento repetido, observado e depois colocado em forma de drama nas histórias. Incontáveis gerações de irmãos na pré-história precederam o conto de Caim e Abel. Romeu e Julieta são outro exemplo, ambos são a personificação da paixão fustigante que acomete casais desde tempos imemoriais.

    Quando as cortinas se fecham

    Por um certo prisma, todos temos livre-arbítrio, por outro, fica difícil separar nossas narrativas das representações arquetípicas que continuamente revivemos.

    O mesmo para os nossos vilões. Ao entrarem no palco como tais, abrem possibilidades para um mundo de mitos que os precederam, quase nunca cientes de qual etapa do seu próprio mito se está vivendo. Talvez nosso maior poder de decisão esteja exatamente aí, quando entramos no palco, quando escolhemos o papel que encenaremos, pois depois disso, seguimos o roteiro já escrito. Porém o mais comum é estarmos já vestidos e caracterizados para o papel sem termos ciência disso e só vamos perceber qual papel estamos encenando quando as cortinas se fecham e as luzes se apagam. Iniciamos ações com escolhas que se ramificam de maneira imprevisível. Um efeito dominó do universo a cada passo dado, onde da sua perspectiva não se consegue nunca ver o seu fim. Olhando para trás tudo fica mais claro e é relativamente simples apontar heróis e vilões. 

    Entretanto, alguns sinais podem ser percebidos enquanto o jogo acontece, pois são estágios que se repetem. Acreditar estar acima de tudo e de todos, se rebelar contra a vida ou com o que representa a essência de algo vivo (árvores, oceanos e no caso de Thanos, planetas), executar sacrifícios desmedidos para se atingir poder ou controle, ter a percepção de quem se tornou nesse processo e finalmente a descida ao inferno. 

    Assim como as etapas na Jornada do Herói, temos o seu contraponto, a sua sombra e consequentemente, seus respectivos estágios. Tomar ciência desses estágios e compreendê-los melhor é possivelmente a nossa melhor ferramenta para identificar qual papel estamos encenando e tentar mudar o curso do filme das nossas vida. Afinal, você não quer descobrir que é o vilão da sua história na derradeira cena final.

  • 15 Séries Imperdíveis de Todos os Tempos

    15 Séries Imperdíveis de Todos os Tempos

    15 Séries Imperdíveis de Todos os Tempos

    Em tempos de jornalismo de listinha, aí vai uma lista das minhas séries que, além de grande qualidade estética e/ou narrativa, trouxeram grande contribuição para a qualidade na TV. Também coloquei menções honrosas, desonrosas e aquelas sem muita importância, sempre de séries que acompanhei. Para esta lista excluí algumas séries mais famosas e já debatidas em demasiado, que apesar de terem sido influentes, sofreram problemas graves de produção que afetaram sua qualidade, como Arquivo X ou Twin Peaks.

    1. The Wire

    The Wire

    A considerada “série das séries” realista da forma mais ficcional possível. Ou ficcional da forma mais realista possível. O tráfico de drogas. Tensões raciais. O crime. A polícia e todo o caldo cultural americano envolvido em uma narrativa simples, direta, crua e não perfeita, mas sempre honesta.

    2. The Sopranos

    The Sopranos

    A máfia ítalo-americana de Nova Jersey em sua forma mais crua. Com personagens densos e com dilemas sempre interessantes, mesmo os mais simples até os mais esdrúxulos, nunca menospreza o espectador. É O Poderoso Chefão sem glamour, mas com toda sua força narrativa, que também apesar de simples, não perde em nada por isso.

    3. Six Feet Under (A Sete Palmos)

    A Sete Palmos

    Uma família normal do subúrbio da Califórnia, a não ser pelo fato de serem extremamente disfuncionais e serem donos de uma agencia funerária. O humor negro, as alucinações narrativas e os personagens mais inconsequentes possíveis fazem qualquer pessoa se apaixonar pela série. Se você não gostou é porque não estava no momento certo. Veja de novo.

    4. Seinfeld

    Seinfeld

    A sitcom das sitcoms. Larry David e Jerry Seinfeld mudaram a TV quando trouxeram para ela esse formato repaginado da comédia sobre situações mundanas e da relação entre quatro amigos problemáticos e com personalidades diferentes, mas que se complementavam. A ajuda de roteiristas malucos também fez a diferença. Inimaginável a TV sem eles, pois daí surgiu a fórmula que deu origem a Friends e todas as outras sitcoms da atualidade.

    5. Community

    Community

    Um grupo de estudantes de uma universidade comunitária nos EUA seria algo super normal, não fosse o local mais estranho e que juntasse as pessoas mais desajustadas da sociedade no mesmo lugar. Utilizando de referências a cultura pop mas sem se apoiar exclusivamente nela, Community oferece uma comédia de alto nível raramente visto na TV. Por causa de problemas de produção algumas temporadas foram ruins, mas seu legado permanece.

    6. The IT Crowd

    The IT Crowd

    O humor britânico em sua forma. Misturando situações esdrúxulas, tirando sarro de estereótipos de técnicos de TI e de todo o mundo corporativo, essa curta série britânica tem o maior índice de momentos memoráveis por episódios que já vi. São quatro temporadas de seis episódios. Curta demais para algo tão bom.

    7. Mad Men

    Mad Man

    Uma das melhores produções da TV. Mad Men retrata o mundo corporativo da publicidade do auge do american way of life nos EUA, e retrata cruelmente não só o mundo dos negócios, mas também a sociedade da época sem fazer concessões.

    8. Louie

    Louie

    Louis CK aqui deixa de lado seu humor mais escrachado e se volta a uma dramédia com toques surreais e situações inusitadas que divertem ao mesmo tempo que fazem o espectador se questionar porque está rindo daquilo. Também uma das melhores coisas em exibição hoje na TV.

    9. American Dad

    American Dad

    Ao estilo Family Guy, mas mais ácida, mais maluca e mais criativa, American Dad satiriza o estilo de vida americano de forma mais contundente e engraçada do que o principal produto de seu criador. Mesmo com vários problemas de produção, ainda se mantém como uma das melhores animações da TV.

    10. Archer

    Archer

    Uma comédia adulta, só que nem tanto. Ao retratar como seria uma agencia de espionagem conduzida por pessoas com todos os distúrbios sociais e psicológicos possíveis, o resultado não poderia ser outro. É algo como uma mistura de Family Guy com 007, só que melhor que ambos.

    11. Band of Brothers

    Band of Brothers

    Uma das primeiras séries que vi, e uma das primeiras produções fechadas da HBO, que ainda não sabia estar produzindo a chamada “Era de Ouro” da TV. Uma série sobre um destacamento de soldados americanos na 2ª guerra, ao melhor estilo O Resgate do Soldado Ryan.

    12. Sherlock

    Sherlock

    O maior detetive de todos os tempos, mas modernizado. E feito por ingleses, garantindo uma atmosfera típica que só eles conseguem criar. Casos mirabolantes e cada vez mais inverossímeis não importam. A leveza com que os atores interpretam os excelentes roteiros e a química entre todos faz essa uma das melhores séries do gênero. FUJA da versão americana Elementary

    13. Wallander

    Wallander

    Livros policiais são moda na Suécia faz tempo, mas a série Wallander, também britânica, traz o veterano ator Kenneth Branagh como o também policial sueco Kurt Wallander, que além de resolver crimes com um faro policial aguçado, mas sem malabarismos, precisa cuidar dos problemas particulares com seus pais, filha e sempre na corda bamba para não ser vítima do próprio comportamento. Excelente para quem curte um bom drama policial.

    14. Rectify

    Rectify

    Daniel Holden fica preso numa solitária por 15 anos por um crime que não cometeu. É solto por evidencias de DNA e precisa reaprender a conviver em sociedade, mas em uma pequena cidade no interior dos EUA que ainda acha que ele cometeu o crime. Também um excelente drama.

    15. Breaking Bad

    Breaking Bad

    Ok, essa todo mundo viu e nem precisaria falar, mas apesar de todos os problemas narrativos e atalhos preguiçosos, a jornada de Walter White se mostra muito interessante (menos por ele, uma cópia mal feita de Tony Soprano) especialmente por conta de outros personagens como Mike, Saul e outros. Porém, o ponto positivo ainda é a espetacular cinematografia, que ajudava a contar visualmente uma história.

    Menções Honrosas

    Sons of Anarchy (história cafona, mas com personagens interessantes, vale a pena);
    Homeland (interessante história sobre terrorismo mas que as vezes se perde);
    Episodes (Muito boa série de comédia sobre bastidores de uma…série de comédia);
    Treme (do mesmo autor de The Wire, os mesmos elementos, mas dessa vez lidando com Nova Orleans pós-Katrina);
    The Knick (A NY do início do século XX é palco dessa série sobre médicos tentando expandir as fronteiras da cirurgia enquanto lidam com os mais diversos problemas e barreiras. Muito bem contextualizada social e culturalmente);
    – True Detective 1ª temporada (Excelente série policial sobre um culto no sul dos EUA, com um grande destaque para a atmosfera e música americanas da região. Não veja a 2ª);
    Fargo (Baseada no filme dos irmãos Coen, adotando o formato de antologia, possui uma 1ª temporada Ok e uma 2ª excelente);
    Flight of the Conchords (como seria se os hipsters fossem engraçados ou interessantes como pensam que são);
    Séries da Marvel na Netflix (Demolidor e Jessica Jones são boas, mas não perfeitas. Problemas especialmente na narrativa. Mas Luke Cage eu nem vi e já gostei);
    House of Cards (apesar de cansativa, é um interessante debate sobre bastidores da política institucional);
    Mr. Robot (interessante história sobre hackers e cyber ativismo no século XXI, mas o lado pessoal da trama deixa a desejar);
    Black Mirror (Antologia britânica de minicontos de ficção científica com debates muito interessantes sob os mais variados temas);
    Friends (Praticamente a primeira sitcom que veio na esteira do sucesso de Seinfeld, trouxe um humor mais diluído e açucarado, mas a boa química entre os atores e algumas temporadas de nível acima de média – especialmente a 4ª e a 5ª – garante uma boa diversão, mesmo que no final a série perca muito o fôlego).

    MENÇÕES “MEH”

    House M.D. (8 temporadas, OITO, da mesma coisa);
    Californication (7 temporadas, SETE, da mesma coisa);
    Game of Thrones (ok gente, 1ª temporada excelente, mas depois foi só ladeira abaixo, vamos agilizar esse novelão aí. Já, já encontra The Walking Dead na falta de coragem);
    Hannibal (Um clima muito bom, as vezes diálogos interessantes, mas derrapam demais na enrolação e condução da história);
    The Killing (Um clima muito bom, as vezes diálogos interessantes, mas derrapam demais na enrolação e condução da história);
    The Mentalist (Um protagonista interessante, mas só. Faltou desenvolver o lado crítico que começou forte contra os charlatães. A obsessão e consequente resolução desastrosa do vilão principal deixou muito a desejar);
    Boardwalk Empire (De uma 1ª temporada excelente a episódios cada vez mais comuns e uma trama mais diluída em conflitos menores e desinteressantes);
    Agents of Shield. (é tão ok que nem tem muito o que dizer. Não vale a pena nem para se manter por dentro do Marvel Cinematic Universe. Veja só caso não tenha absolutamente nada a ver. Ou caso goste do Phil Coulson e do ator que o interpreta);
    Narcos (era para todo mundo gostar, mas é um discurso sobre drogas tão raso, com vários elementos requentados de Tropa de Elite que… Veja The Wire. É melhor :P);
    Supernatural (Apesar de algumas temporadas muito boas no começo, a série definitivamente abandonou qualquer ambição em meados de sua 6ª temporada, onde os irmãos Winchester se viram morrendo, ressuscitando, visitando o céu, o inferno e no meio de um conflito celestial. Se mantém no ar pela grande audiência, mantida por um público cativo, especialmente de adolescentes).

    Menções Desonrosas feat NÃO VEJA ou PARE DE VER

    The Big Bang Theory (Dez anos de atores repetindo falas, bordões e comportamentos são legais apenas porque fazem referencia a quadrinhos? Zorra Total é mais eficiente que isso);
    The Walking Dead (George Romero já disse que a série é ruim. E é. Drama arrastado, com personagens chatos, e que se baseia apenas em cliffhangers para manter a audiência. Desonesta e mal produzida até o osso);
    Lost (Um dos começos mais promissores com um dos piores finais que já foram exibidos na TV. Não perca seu tempo);
    Dexter (Um dos começos mais promissores com um dos piores finais que já foram exibidos na TV. Não perca seu tempo)²;
    Séries de heróis da DC. Não veja.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Resenha | Homens Difíceis – Brett Martin

    Resenha | Homens Difíceis – Brett Martin

    homens dificeis - brett martinEntre o final do século XX e o início do XXI, um seleto grupo de séries televisivas dramáticas revolucionou não só o meio, mas mudou completamente a forma como assistimos à televisão nos dias de hoje. Brett Martin, colaborador de diversas revistas e jornais, conseguiu entrevistar os criadores das séries, roteiristas, elenco, equipes de filmagem e executivos, e conseguiu documentar este momento único no livro Difficult Men: Behind the Scenes of a Creative Revolution, From The Sopranos and The Wire to Mad Men and Breaking Bad – traduzido e lançado no Brasil pela editora Aleph sob o título Homens Difíceis – Os Bastidores do Processo Criativo de Breaking Bad, Família Soprano, Mad Men e Outras Séries Revolucionárias.

    Começando por The Sopranos (1999), Six Feet Under (2001 – review aqui), The Wire (2002 – review aqui) e Deadwood (2004 – review aqui) da HBO, passando por The Shield (2002) do FX e terminando em Mad Men (2007) e Breaking Bad (2008) da AMC, Difficult Men analisa os bastidores destas séries para tentar entender como ocorreu a revolução que mudou a forma como apreciamos um programa televisivo atualmente.

    Não é preciso dizer que existem spoilers das séries durante a análise do livro, por isso recomenda-se assisti-las antes, inclusive para acompanhar melhor o raciocínio do autor. Segundo Brett Martin, estamos vivendo uma terceira Era de Ouro dentro da história da televisão moderna. O livro começa analisando as outras duas eras de ouro da televisão, uma logo no seu início, nos anos 50, quando os roteiristas tiveram mais liberdade para criar, pois estavam explorando os primeiros anos do novo meio, e a segunda no início dos anos 80, com a explosão do videocassete, fazendo com que a demanda de programas e telefilmes aumentasse não só em quantidade, mas em qualidade. Já a terceira era de ouro, segundo Martin, vai desde The Sopranos, 1999 até 2013, ano do lançamento do livro, e termina como uma junção dessas duas: a explosão dos DVDs no final dos anos 90 e o streaming no meio dos anos 2000, permitindo que as histórias seriadas, feitas por roteiristas com liberdade criativa, pudessem ser acompanhadas com mais facilidade.

    HBO Premiere Of "The Sopranos" - After PartyOs dois desbravadores: James Gandolfini, o falecido ator que deu vida a Tony Soprano, e David Chase

    DavidSimonOmar2David Simon, criador de The Wire, e Michael K. Williams, que interpretou o personagem mais famoso, Omar Little

    Por que homens e por que tão difíceis? Segundo Martin, os EUA estavam divididos por causa da eleição americana em que George Bush venceu de maneira controversa, permitindo o avanço da direita radical através das guerras do Afeganistão e Iraque. Agora, quem comanda o país não está mais interessado em dialogar, mas em impor; e não quer ajudar os mais pobres, caso do desastre causado pelo furacão Katrina. O país foi comandado por homens difíceis, eleitos graças a um desejo que vinha aflorando desde os anos 90 por boa parte da população.

    Para definir o que entraria ou não em sua análise, o autor decidiu escolher séries dramáticas da TV a cabo com uma história contínua (ao invés das episódicas – onde toda a trama inicia e termina no mesmo episódio) e temporadas menores, de 10 a 13 episódios de uma hora. O que importa agora são séries que têm feito sucesso há mais de 15 anos por centrarem-se em figuras masculinas tão controversas quanto improváveis: um chefe de máfia que sofre de depressão; uma funerária administrada por uma família de malucos; um detetive de polícia narcisista e um bandido que rouba outros bandidos; o dono de bar mais politicamente incorreto de todo o Velho Oeste; um chefe de esquadrão de polícia assassino; um diretor de criação de agência que finge ser quem não é; e um professor de química que passa a ser traficante. Ou, como diz o título do livro, os Homens Difíceis.

    SixFeetUnder_11_SF_380-scaledNo set de Six Feet Under, onde o criador da série Allan Ball passa instruções a Peter Krause, que interpretou Nate Fisher

    20080616090158_milchDavid Milch, criador de Deadwood, conversa com um dos atores do show

    Nunca estes tipos de personagens seriam protagonistas ou teriam espaço maior nas séries tradicionais da televisão aberta norte-americana, com suas longas e desnecessárias temporadas de 22 a 24 episódios e personagens pouco complexos e desenvolvidos. Agora, o que importa são histórias que possuam algum diferencial, em que a personalidade e atitude destes Homens Difíceis imperem e personagens importantes para a trama morram; em um momento que não exista mais a catarse representada pela curva dramática, pois não existe mais final. A realidade havia chegado à dramaturgia televisiva, e o que importa agora é atingir qualidade com o máximo de verossimilhança possível para o espectador.

    Porém, para que houvesse esta ascensão, não se pode esquecer da época que antecedeu estas grandes séries. O autor da obra consegue contextualizar bem a época pré-The Sopranos através dos sucessos de crítica e público da HBO, como OZ (1997) e Sex And The City (1998), e o início de uma noção sobre televisão autoral. Enquanto isso, analisa a história de David Chase, tido como o líder e desbravador de todos os autores de TV, e como ele conseguiu se impor perante os executivos do canal ao ter completo controle sobre a primeira temporada de The SopranosMartin explica que ele negava a rede televisiva, mas acabou aceitando o meio do qual tanto se esforçou em fugir, porém sendo como suas inspirações, os cineastas franceses dos anos 60 e os americanos dos 70. Desta forma, os roteiristas viraram autores, ou showrunners. Brett também analisa a história da HBO e como os executivos da época conseguiram mudar a ideologia da emissora e passar a produzir conteúdo inédito de qualidade.

    73727829Os dois carecas de The Shield: Michael Chiklis, que viveu o detetive Vic Mackey, e o criador Shawn Ryan

    Mesmo tendo controle de sua produção, Chase se deparou com um desafio que pôs em xeque a sua visão de autor, logo antes da metade da primeira temporada, no 5º episódio, College. Durante uma viagem com a sua filha, Tony mata um dedo-duro depois de avistá-lo, impondo algo inédito na televisão até então: a morte de um personagem, que não vilão, a sangue frio pelo protagonista. Confrontado pelos executivos do canal, David Chase aceitou mudar a caracterização do delator, transformando-o em traficante, além de inserir uma cena em que o mostra contratando assassinos para matar Tony, deixando a morte do inimigo mais “aceitável” para o espectador. A importância do episódio em específico, segundo Martin, foi ter se tornado o principal pilar de toda a Terceira Era de Ouro: nunca mais deixar que os executivos interfiram na visão do autor para a história.

    Em algumas partes do livro, o autor descreve como eram as salas dos roteiristas (ou writer’s room – sala dos escritores) de todas as séries citadas. A sala sempre existiu na televisão americanas, mas a de The Sopranos foi diferente, pois mostrou como a imposição de David Chase perante os demais roteiristas e executivos foi importante para passar a sua visão. Ao analisar as salas de roteiristas de The Wire, The Shield e Deadwood, o pesquisador mostrou a diferença entre todas elas, e principalmente as dos escritores que se inspiraram nos pioneiros e acabaram virando autores: Matthew Weiner, criador de Mad Men, era um dos roteiristas de The Sopranos, assim como Terrence Winter, criador de Boardwalk Empire; já Kurt Sutter, criador de Sons of Anarchy, foi roteirista de The Shield.

    Por fim, é necessário ressaltar a importância de cada uma das séries citadas na revolução da Era de Ouro: The Sopranos por ter dado início a este grande momento, mas principalmente por representar a essência de uma série autoral; Six Feet Under, que desconstruiu todo o sonho americano com uma família disfuncional; The Wire pelo realismo; The Shield por mostrar como a polícia pode ser maquiavélica; Deadwood pela reconstituição histórica; Mad Men por explicar como a fantasia é vendida; e Breaking Bad pela direção e fotografia.

    tumblr_luth5sYEzm1qfhewmJon Hamm, intérprete de Don Drapper em Mad Men, conversa com Matthew Weiner, criador da série

    10bad_span-articleLargeO criador de Breaking Bad, Vince Gilligan, dando instruções para os dois astros do programa, Bryan Cranston e Aaron Paul

    O livro foi bem editado, e o tamanho dele está de acordo com a análise do autor. Esta resenha foi realizada a partir da edição em inglês, portanto não há como avaliar a tradução do livro em português que a editora Aleph lançou em 2014.

    Homens Difíceis vale a pena ser lido por quem gosta de séries e entende que elas não estão mais no patamar abaixo do cinema. Hoje em dia, elas se equivalem ao cinema e podem ser consideradas obras de arte, semelhantes aos melhores filmes do ano ou da década, graças a esses pioneiros que conseguiram impor a sua visão na indústria.

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    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • O Último Respiro de Breaking Bad

    O Último Respiro de Breaking Bad

    breaking-badTentei deixar um texto final com o mínimo de spoilers possível, para ser uma leitura tanto para quem já viu, como quem não viu a série.

    Então, todas as coisas ruins chegam ao fim, certo? As boas também, e chegou a hora de Breaking Bad. Pretendo aqui analisar a série como um todo, e não apenas a última temporada, ou a impressão final, apesar de como algo termina sempre ter um peso maior do que o resto.

    Se você já conhece a série pode pular para o próximo parágrafo, pois não me pergunte porque, eu colocarei uma breve sinopse aqui: BB trata de Walter White, um professor de química da High School, frustrado por várias razões, é um gênio da química, mas que pulou fora de uma empresa bilionária, quando ela não valia nada. Frustrado porque está com câncer, não tem grana pra pagar o seu tratamento, e o seu ego não permite que ninguém à sua volta o ajude. Ele então resolve que sua única saída para poder pagar o tratamento do câncer e ainda deixar uma grana pra família, quando ele morrer, é começar a cozinhar meta-anfetamina.

    Ok, mas porque uma série com um plot tão absurdo, e num primeiro olhar, inverossímil, afinal de contas, um professor frustrado? De onde ele vai tirar coragem pra fazer tudo que é necessário para se tornar um traficante? Como ele vai conseguir se desvencilhar de todas essas amarras que uma pessoa de classe média padrão tem para se tornar o temido Heisenberg. E acredito que o grande trunfo e acerto de Breaking Bad, está justamente nisso: usar essa capa de violência, tráfico, mortes e tudo de ruim em que Walt vai se transformando, para nos mostrar que na verdade, aquilo tudo sempre esteve com ele, de uma forma inerente, ele sempre foi capaz de fazer tudo que o fez, só precisava de uma centelha, precisou se encontrar em uma situação fatal, uma situação em que tudo, a não ser um pouco que restava da sua dignidade já estava perdido, portanto, se já não resta mais nada, porque não arriscar? Isso toma ainda mais corpo, quando no episódio final, em seu último encontro com Skyler, ele finalmente admite, que ele não fez tudo aquilo pela família, ele fez por ele mesmo, para se sentir vivo, para poder fazer algo que ele realmente era bom. Afinal, se fosse pela família, ele teria aceitado a grana do pessoal da Grey Matter pra fazer o tratamento, e a série não existiria. hehehe

    Breaking Bad tem vários pontos altos, sua fotografia, trabalho de edição e colorização, montagem, escolha de trilha sonora, a maioria das atuações durante toda a série também são magníficas, mas pra mim o grande estouro da série, maior do que todo o resto, é o roteiro. Principalmente por um motivo recorrente da série em que ao mesmo tempo que estamos vendo cenas de violência brutal, tráfico, assassinatos a sangue frio, enfim, todo tipo de situação ruim, que sabemos que existe, mas que não faz parte do nosso dia-a-dia. Toda essa brutalidade era vivida por Walt, que apesar de alguns deslizes e desvios de percurso, na maior parte do tempo vivia uma vida dupla, sendo o criminoso Heisenberg, e também Walter White, um cara meio esquisito, mas gente boa, que trata bem os filhos, faz um churrasquinho no fim de semana com os amigos, enfim, um cara normal. Com essa dualidade, é muito fácil você se colocar no lugar de Walter White, e muitas vezes se perguntar, o que seria necessário para mim, para que eu fizesse o meu próprio “Breaking Bad” (usado aqui como a expressão linguística que da nome à serie), o que pra mim seria o meu limite pra finalmente chutar o balde? Largar minha vida mediana, e partir pra uma jornada de loucura como Walt fez? Visto que, loucura aqui não precisa ser necessariamente traficar drogas e matar meio mundo. Digo isso num sentido mais amplo, como quebrar de uma vez a rotina, pra fazer algo que queremos e gostamos, mas que num primeiro momento nos parece impossível, ou fora de qualquer padrão?

    Para mim, o grande tema de Breaking Bad, é justamente esse, qual é o limite que cada um chegaria pra alcançar algo que quer. Ou ainda mais, esse limite seria diretamente proporcional a situação ruim que você se encontrava para mandar tudo pro alto de uma vez? Ou é algo inerente a cada pessoa, seja por qualquer motivo, e o limite de cada um já seria “pré-estabelecido”?

    Tentando fazer um recap mental da série, dos temas que ela pretende abordar, e os assuntos que estão colocados por ali, principalmente puxando a última temporada. Você facilmente percebe, que dentre os personagens apenas um importa, Walt/Heisenberg, todo o resto gira apenas em torno dele, têm o destino selado e definido por ele, seja a paz, o esquecimento, ou o caixão. O que não faz com que os secundários sejam menos interessantes, como o meu favorito, Hank, por justamente ser o completo oposto do Mr. White. Ele é um oficial do DEA, que funciona quase como um paladino da justiça, mas em nenhum momento deixando de ser humano, com falhas. É como se o fazer justiça, e caçar traficantes, resolver casos complexos, tudo isso que o Hank faz, sempre me passou a impressão de ser quase que pelos mesmos motivos do Walter. Hank não é um agente por que ficar do lado da lei é “a coisa certa a se fazer”, mas sim porque ele sabe que é bom nisso, e de certa forma aquilo o mantém vivo, aquilo preenche e massageia o ego dele.

    Tudo isso fica claro, quando acidentado ele começa a colecionar minerais, deitado na cama, como se esperando pela morte, numa vida que não mais valia a pena. E apenas quando seus amigos do DEA trazem trabalho para ele, é que ele volta a se sentir com força e vontade de sair da situação que se encontra. Ou até mesmo para o final em que sua mulher, Marie, tenta convencê-lo a contar ao DEA o que ele descobriu sobre o Walt, para pelo menos salvar a carreira dele que estava a perigo caso tudo viesse à tona. E ele simplesmente não o faz, preferindo correr o risco de ficar sem nada seguindo em sua caçada “low profile”, do que simplesmente dar tudo como perdido, ou deixar aquilo correr como se deve, já que ele não mais era um agente de campo, e sim coordenador do DEA. E esse espelho entre os cunhados, sempre foi meu ponto favorito da série.

    Não sou adepto dos exageros, não gosto dos rótulos mesmo antes de terminar, como a de melhor série já feita, ou que nunca mais veremos algo tão bom, etc, etc. Até porque a série, a meu ver, tem seus pontos negativos, como o arco dramático sempre seguindo uma estrutura muito parecida entre as temporadas, em algo como: cozinhar, dar uma merda violenta pra conseguir vender e se safar, ganhar a grana, perder tudo. Sempre escalando no nível de violência, volume e profissionalismo do tráfico conforme a série avança. Outro ponto bastante negativo para mim foi o foco total no Walter ao fim da série, mesmo sabendo que era ele que importava, ele era a “estrela principal do show”, muitos personagens foram subaproveitados ao fim da trama, principalmente Jesse Pinkman, que ao final da história me deixou com a impressão de um ratinho acoado, que estando ali, ou não, não faria grande diferença para a história, virando uma peça para girar o roteiro e não mais ser explorado pela história. Principalmente porque até a quarta temporada, ele sempre foi peça chave, e junto com o Hank formavam meus personagens preferidos. Gostaria de um final mais digno para ele.

    Apesar dessas falhas, o resultado final é muito positivo, tanto por toda a sua qualidade técnica, as grandes atuações, e novamente pelo seu roteiro, tratando de personagens humanos, multifacetados, que abordam temas complexos e aplicáveis a nós mesmos, apenas sem o seu invólucro de sangue, e drogas. Trazendo também vários temas e questionamentos ao espectador, às vezes mais implícitos, outros claramente abertos, para nos colocarmos na situação dos personagens e talvez se perguntar, eu faria tal coisa nessa condição, ou meu limite já teria sido ultrapassado? Muitas vezes esse tipo de pergunta, com sinceridade, nos surpreende, assim como Walter White, professor de química do High School, inofensivo, com câncer inoperável, surpreendeu a todos ao se tornar Heisenberg.

    breaking bad

  • Review | Deadwood

    Review | Deadwood

    deadwoodAtenção, este review contém alguns spoilers da série.

    Infelizmente, Deadwood não é tão conhecida na internet pelos adoradores de séries, talvez por ser de época e ter como cenário o velho oeste americano ou mesmo por ter sido cancelada pela HBO após a terceira temporada devido aos altos custos de produção. Seja como for, a série criada por David Milch (também criador de Nova York Contra o Crime), mesmo com os 36 episódios, conseguiu de forma magistral recriar a cidade de Deadwood com seu clima instável de território livre, os mistérios do garimpo do ouro e, principalmente, os personagens históricos que a habitaram.

    Sinopse: durante a turbulenta década de 1870, acompanhamos o período antes, durante e depois da anexação da cidade livre de Deadwood pelo estado da Dakota do Sul, transformando-se em território norte-americano.

    As três temporadas se dividem quase que exatamente entre estas três fases: a primeira é a anterior à anexação e apresenta o clima clássico de velho oeste americano, de uma cidade sem lei que está em guerra eterna com os índios perto dali. Consolidando o elenco principal, ela se foca em mostrar basicamente a vida no local, que alternava entre o bar e as firulagens de Al Swearengen e as disputas dos garimpos de ouro das regiões em volta.

    Ian McShane é o fucking c**ksu**er Al Swearengen.

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    Timothy Olyphant é o xerife durão Seth Bullock.

    A série começa com a chegada na cidade de uma caravana, liderada pelo protagonista Seth Bullock e seu sócio na loja de ferragens Sol Star. No mesmo comboio estão Wild Bill Hickock com Charlie Utter e Calamity Jane, em uma cidade já dominada pelo dono do bar/saloon The GemAl Swearengen, que tem como comparsas Dan Dority e Johnny Burns, além do dono de hotel E.B Farnum e do médico Doc Cochran.

    É logo no começo da série que vemos o clichê do gênero com a figura do lendário atirador Wild Bill Hickcok e a sua repercussão local. Porém, este clichê logo é superado nos primeiros episódios, principalmente ao focar nos dois protagonistas que se transformam em adversários: Seth Bullock e Al Swearengen.

    A segunda temporada ganha com a chegada de um competidor à altura de Al, Cy Tolliver, que monta o seu próprio bar/saloon/puteiro Bella Union com sua ajudante e cafetina Jonnie Stubbs. Além disso, passa-se a mostrar para o espectador todo o processo de negociação com os delegados e juízes estaduais para ver qual estado anexaria a cidade, sempre liderados por Swearengen. É muito curioso ver todos os trâmites legais da época, além, é claro, da repercussão que isso irá gerar sobre todos os envolvidos, principalmente os que possuem negócio, como o jornalista A.W. Merrick, Al e Cy com os bares/saloons/puteiros, e, óbvio, os donos dos terrenos que estão procurando ouro.

    É nesta metade que também se insere a figura de Francis Walcott, o procurador de George Hearst (pai de William Handolph Hearst, em que Orson Welles se baseou para criar o Cidadão Kane), que deseja comprar todo o garimpo de ouro, e toda a mudança que Hearst trará para a cidade na última temporada. Nesta metade insere-se a figura da cunhada de Seth Bullock, interpretada por Anna Gunn, a esposa de Walter White na “impecável” Breaking Bad.

    Uma das melhores cenas da série.

    A terceira temporada e o período pós-anexação prefere focar na legalidade da cidade. Como se transformou em território americano, Deadwood agora precisa de xerife, prefeito, banco e outros cargos/necessidades públicos. É aí que esta última temporada tem um ganho substancial, pois mostra como a corrupção é intrínseca à cidade, e agora ela se torna institucionalizada. Outra enorme adição é finalmente a chegada de George Hearst. Poder e corrupção agora se elevam a um nível nunca visto antes por uma pequena e simples comunidade.

    A linda abertura da série.

    A última temporada também apresenta o arco dramático e a relação entre Calamity Jane e Joanie Stubbs. O amor das duas é apresentado de uma forma natural por causa da Joanie, que já mostrava indícios de sentir atração por outras mulheres, e da Calamity Jane, por ser o tipo pessoa agressiva que sempre espantava qualquer um que se aproximasse dela, principalmente homens. O envolvimento entre ambas não deixou de ser surpreendente, e a forma como isso aconteceu foi um dos grandes trunfos da série. Outro destaque é mostrar como George Hearst se tornou um adversário à altura de Al Swarengen e Seth Bullock, que terminaram por se unir contra o magnata.

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    Calamity Jane, interpretada por Robin Weigert, um dos melhores personagens da série.

    A atuação é outra questão a ser ressaltada. Apesar de alguns atores limitados, os personagens principais baseados em personagens históricos estão muito bem representados. O dono de bar/saloon Al Swearengen interpretado magistralmente pelo inglês Ian Macshane pode entrar para a história da televisão moderna como um dos melhores personagens de todos os tempos; o limitado, porém esforçado Timothy Olyphant dá rosto e voz ao xerife Seth Bullock; a igualmente limitada Molly Parker encara Alma Garret, esposa de um interessado em procurar ouro na região; o excelente Brad Dourif, o Grima Língua de Cobra da trilogia Senhor dos Anéis, encarna Doc Cochran em um dos melhores papéis da sua vida; o ótimo ator John Hawkes é Sol Star, o sócio de Seth Bullock na loja de ferragens; Paula Malcomson, a mãe de Katniss Everdeen no plágio de Battle Royale em Jogos Vorazes, é a prostituta Trixie; Dayton Callie é Charlie Utter, o melhor amigo de Wild Bill Hickcock; William Sanderson consegue criar o dono de hotel E.B. Farnum, um dos mais interessantes personagens da série; o pouco expressivo Powers Boothe encarna Cy Tolliver; Robin Weigert é a bêbada Calamity Jane, um dos melhores papéis em Deadwood; Kim Dickens é a cafetina Joanie Stubs; e Gerald McRaney é o inigualável George Hearst.

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    George Hearst, interpretado por Gerald McRaney.

    Deadwood é o tipo de série que envolve o espectador logo de cara pela excelência do roteiro. Diferente da “impecável” Breaking Bad, aqui não há golpes de roteiro aparentes, os furos existentes são pequenos, e, da mesma forma que em The Sopranos, não existe encheção de linguiça – não há um detetive que passa uma série inteira sem saber que seu cunhado fabricava drogas, por exemplo. As situações de tensão e os vários dramas são apresentados, e seus personagens, logo postos à prova. Cada episódio de uma hora em média costuma ter tanta informação que pode ser difícil fazer maratona para quem gosta do tipo.

    A fotografia da série mantém o padrão HBO de qualidade, com o diferencial de adaptar um período histórico riquíssimo. Filtros e tons de marrom são escolhidos o tempo todo por causa da terra batida, das casas e móveis de madeira, além de alguns figurinos. A edição dos episódios segue o padrão televisivo HBO de qualidade, focando no roteiro e na atuação. A direção de arte também merece destaque, pois foi primorosa ao reconstruir de forma crível todos os cenários e figurinos da época.

    Se o seu receio é o cancelamento da série após a terceira temporada, fique tranquilo, pois no final dela se fecha uma espécie de ciclo na história. Portanto, não há motivos para não assistir Deadwood.

    Sem exageros, Deadwood pode ser considerada uma das poucas obras da dramaturgia televisiva moderna que conseguiu atingir a excelência no roteiro, e figura ao lado de The Sopranos e The Wire como as séries que mudaram o roteiro da televisão moderna e a percepção dos espectadores sobre elas. Foram estas três séries que, por exemplo, abriram espaço para que Game of Thrones, Breaking Bad e Mad Men pudessem ser feitas e hoje figurarem nas listas de melhores séries da atual era de ouro da televisão norte-americana.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Os Maiores Golpes de Roteiro de Breaking Bad

    Os Maiores Golpes de Roteiro de Breaking Bad

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    Atenção: contém spoilers de toda a série. Siga por sua conta e risco.

    De forma merecida, Breaking Bad entrou para o seleto grupo de séries da considerada atual era de ouro da televisão americana. A esta lista, em que também figuram SopranosMad Men, The Wire e A Sete Palmos, eu acrescentaria ainda a pouco comentada Deadwood da HBO, que, apesar de ter sido cancelada após a terceira temporada, em 2006, continua sendo uma das séries mais bem escritas até hoje.

    No entanto, algumas pessoas creditam a ótima série criada por Vince Gilligan para o canal pago AMC como a melhor série de todos os tempos, que dividiu a televisão entre antes e depois, e que Breaking Bad é um exemplo Impecável da televisão como forma de arte. Não sei se chega a tanto, já que ela tem problemas narrativos perceptíveis, entre eles muitos “golpe de roteiro”. Golpe de roteiro é quando o roteirista e/ou diretor resolvem forçar uma situação não natural entre os personagens para que se crie uma tensão entre eles. Quando bem feita, tudo passa desapercebido e o roteiro chega ao nível de excelência de Sopranos e Deadwood; agora, quando não é, quebra a quarta parede e tira o espectador da história.

    Como desconstruir é muito mais interessante do que construir, sem mais delongas, vamos a elas:

    01 – Episódio “Sunset” (6º epi/3a temp): Hank deixa o ferro-velho onde está encurralando Jesse e Walt no trailer e segue correndo para o hospital depois de receber uma ligação informando que Marie está internada.

    Golpe de roteiro: encontrar uma solução para livrar Hank de quase prender Walt e Jesse.

    Forçada de barra: entende-se que o personagem pode entrar em choque ao receber uma notícia do tipo, mas não é do feitio do melhor agente investigativo do DEA não checar e confirmar a veracidade de qualquer informação que receba, ainda mais um que lide com chefões do crime organizado.

    02 – Episódio “Sunset” (6º epi/3a temp): Walt ignora o aviso de Badger sobre avisar Jesse de que mudariam o trailer de lugar, mesmo sabendo que Hank o estava seguindo.

    Golpe de roteiro: fazer com que Hank quase prenda Jesse e Walt por causa do trailer.

    Forçada de barra: o sempre cuidadoso Walter White não o foi dessa vez por conveniência do roteiro.

     03 – Episódio “4 Days Out” (9º epi/2ª temp): Jesse “esquece” a chave do trailer ligado durante todo o final de semana, arriando a bateria.

    Golpe de roteiro: deixar os dois protagonistas à revelia no meio do deserto.

    Forçada de barra: eles sempre passaram dias cozinhando no meio do deserto e nada nunca aconteceu, somente quando os roteiristas quiseram.

    04 – Episódio “ABQ” (13º epi/2ª temp): Sob o efeito da anestesia, Walter revela o segundo celular para Skyler.

    Golpe de roteiro: além da grande revelação bombástica, iniciar o arco de decaída do protagonista ao mostrar o começo da ruptura familiar, a falta de apoio de Skyler e Jr.

    Forçada de barra: mesmo tendo falado “sem querer” e sob o efeito do anestésico, nada justifica o descaso do roteiro, jogando a informação sem mais nem menos, com o único propósito já dito acima.

    05 – Episódio “Half Measure” (12º epi/3ª temp): Tomás, o irmão da namorada de Jesse, aparece morto mesmo depois de Gus Fring fazer os traficantes prometerem não usar mais meninos.

    Golpe de roteiro: fazer com que Jesse busque vingança do modo mais desesperado possível, a ponto de uma catástrofe em potencial surgir.

    Forçada de barra: mesmo sendo inconsequente durante boa parte da série, Jesse já havia tido o seu momento estúpido minutos antes do encontro com Fring, ao tentar envenenar os traficantes ao lado da prostituta. Fring sempre foi conhecido como um homem de negócios razoável e que sempre cumpriu a sua palavra, portanto, não é justificável o acontecido com o menino.

    06 – Episódio “Say My Name” (07º epi/5ª temp): Walter mata Mike para pegar os nomes dos comparsas de Mike que estavam na prisão.

    Golpe de roteiro: matar um dos personagens mais carismáticos da série.

    Forçada de barra: para evitar que o roteiro fosse criticado como um grande furo, o roteirista tratou de colocar que o próprio Walter “se lembrou” de que Lydia tinha a lista.

     07 – Episódio “Gliding Over All” (08º epi/5ª temp): Hank finalmente descobre que Walter é Heisenberg.

    Golpe de roteiro: promover uma das maiores revelações da série e iniciar o último arco da história.

    Forçada de barra: assim, do nada, enquanto está cagando, Hank percebe que Walter é Heisenberg por causa da dedicatória WW, sendo que é algo que “o maior investigador da DEA” poderia ter deduzido uma temporada e meia atrás. Então tá, né.

    Antes que algum leitor apele para a “humanidade” dos personagens como justificativa para seus atos falhos nestes exemplos citados aqui, lembro que a humanidade emBreaking Bad é mostrada de forma exemplar quando Walter aos poucos vai se transformando no Heisenberg durante toda a história, Skyler traindo o Walt com o Ted Beneke, Jesse tendo suas recaídas de drogas e se sentindo deprimido de vez em quando, Hank tendo sua crise de pânico e a difícil recuperação do hospital, além de Marie tendo o seu dia de cleptomaníaca.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

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