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  • De Thanos a Dostoiévski – Os mitos que permeiam todos nós

    De Thanos a Dostoiévski – Os mitos que permeiam todos nós

    O vilão da Marvel Thanos sempre esteve rodeado por conceitos ligados ao desconhecido, questões morais, niilismo e morte, portanto não me surpreende que sua gênese tenha surgido enquanto seu criador, Jim Starlin assistia a uma aula de psicologia na faculdade. 

    Sua origem se assemelha a estruturas conhecidas de mitos antigos. Ao nascer, sua mãe tenta acabar com a vida do filho por se chocar com a sua aparência e por acreditar, de alguma forma, que ele trará fim a vida no universo. Ato que é evitado por seu pai. Em um contexto mitológico, é como se sua mãe tivesse recebido uma revelação divina direta, acreditando fazer parte de uma profecia sombria. Um nascimento que nada deve aos dramáticos mitos gregos.

    Como muitos vilões em tantas outras histórias, Thanos cresce inicialmente com intenções pacíficas. Porém na sua adolescência, seu interesse por temas mais sombrios começa crescer. Chegando a desenvolver uma forte atração e genuíno amor pela personificação da Morte em seu universo. Amor esse que o levará a cometer atos indignos de seu sentimento. 

    Isso gera nele um conflito claro. Thanos até chegou a sonhar em criar uma nova forma de vida, mas cada vez mais se sentia atraído pela morte. Seu amor é implacável, assim como seu destino, inexorável. Thanos é um paradoxo vivo, seguindo um comportamento comum na história humana, invocar a morte enquanto se prega o amor.

    Afinal, por que essa temática? Há algum valor em reconhecermos e talvez até amarmos a morte? 

    Memento Mori: o fim inexorável

    Isso me traz à mente o conceito de memento mori; lembre-se da morte. Artistas renascentistas faziam questão de nos lembrar disso ao terem em suas obras crânios humanos e frutas apodrecendo, representantes da passagem do tempo, da nossa finitude, da morte.

    Diversas correntes filosóficas e religiosas focam na importância de se refletir sobre a morte: Sócrates, Platão, Buda, hinduísmo e os estoicos são ótimos exemplos. Diferente dos outros seres vivos, sabemos que iremos morrer. Vita brevis.

    Essa consciência é nossa dádiva e ao mesmo tempo nosso fardo. Quase como um preço a se pagar por termos aceitado o fogo roubado dos deuses pelo titã Prometeu, ou por termos comido do fruto do conhecimento no Éden. Com isso, nos tornamos cientes pela primeira vez da malícia, da sombra que habita em todos nós. Percebemos a nossa vulnerabilidade diante da natureza. Nos vimos nus, frágeis e com a certeza de que teremos um fim. 

    Esse é o começo da história humana, encenada e condensada em mitos a experiência de uma consciência evoluída em primatas que há apenas alguns milhões de anos vagavam pelas savanas africanas tentando sobreviver.

    Incorporar a brevidade da vida e não fugir da noção da morte é o que dá significado e ritmo à existência. É o que nos permite mover em direção a algo que nos transcende. É o que nos leva a construir catedrais e pirâmides que levam séculos para serem concluídas. É podermos ler as palavras gravadas com tinta em folhas de árvores, escritas por ancestrais que viveram e morreram há milhares de anos. A recorrência desse tema em nossas histórias nos traz para perto de nós mesmos, nos define como humanos, mesmo que essa tensão com a morte aqui seja personificada por um personagem alienígena. 

    A tensão de vida e morte em Thanos cria no personagem um apetite ambicioso para trazer harmonia e equilíbrio para o cosmos, similar aos mais famosos ditadores da nossa História. 

    Em Thanos, isso se traduz em reduzir pela metade toda a vida do Universo.

    Mural Old Town Hall (Göttingen) – Alemanha

    Carstian Luyckx: Vanitas – Still life with a celestial globe. (Vazio – Ainda há vida com um globo celestial)

    Pensamentos dissonantes

    Sua justificativa é a mesma de todos que detêm muito poder. Eles têm a solução para os problemas do mundo e somente eles podem nos salvar. 

    Essa armadilha cognitiva de se ver como uma força necessária para o bem de todos é bastante comum e convence, não somente quem propõe tais ideias, mas também seus seguidores. Vemos isso em diversos dilemas humanos: faz-se guerra para se ter paz, mata-se para que a vida prospere.

    No romance clássico e obrigatório 1984 de George Orwell, as dissonâncias entre pensamento e ação foram exploradas com maestria. O lema do partido que detém o poder no livro é: Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força. O chamado ‘duplipensar no livro não tem como objetivo ressaltar essa clara contradição, mas sim causar um choque mental tão dissonante que dissolveria qualquer questionamento racional e lógico da população. Exemplos na política moderna em que as contradições são empilhadas não faltam. Na linguística o conceito se apresenta através de eufemismos como ”fogo amigo” ao invés de ”tiro acidental” e ”danos colaterais” ao invés de ”múltiplas fatalidades”. Orwell definiu o “duplipensar” da seguinte maneira: 

    Saber e não saber, estar consciente da mais completa verdade enquanto se conta mentiras cuidadosamente construídas, manter simultaneamente duas opiniões que se cancelam, sabendo que elas são contraditórias e acreditar em ambas, usar a lógica contra lógica, repudiar a moralidade enquanto e se diz ser moral, acreditar que a democracia é impossível e que o Partido é o guardião da democracia. Esquecer, o que quer que seja necessário esquecer, e se voltar a memória novamente quando for necessária, e prontamente esquecer novamente, e acima de tudo, aplicar o mesmo processo ao próprio processo. 

    No ramo da filosofia moral, cenários que testam os limites dos nossos vieses e escolhas morais são criados e dissecados à exaustão. O objetivo aqui não é detalharmos tais situações em que é muito comum termos apenas opções de ”um mal menor” a serem escolhidas, mas sim questionar a aparente atração e, repito, contradição de se buscar paz com guerra, amor com ódio, respeito com autoritarismo. Se usarmos como referência uma das nossas melhores ferramentas de análise do comportamento humano, a História, é fácil concluir como essas contradições nunca se sustentam no longo prazo. Joseph Stalin, Hitler e Mao Tsé são apenas os exemplos mais famosos, mas há muitos outros. 

    Podemos concluir que suas aspirações e métodos sempre se dissolvem nas areias do tempo. O que há de comum entre eles: se rebelar contra a criação em si, agir contra algo que pelo que as histórias nos contam, não detemos a sabedoria para tal. 

    Sacrifícios e consequências

    Grandes ambições pedem grandes sacrifícios. Para Thanos, o sacrifício é acabar com sua única relação afetiva real e assim obter o poder necessário para seguir com seu plano. É muito comum que sejam sempre os mais próximos a nós a terem que lidar com as consequências de nossas escolhas. Mas o que de fato é essa noção de sacrifício e porque ela é contada e recontada em mitos, performada em ritos, vivenciada por todos nós? 

    A experiência humana traz consigo uma diferença crucial de outras formas de vida no planeta, e como quase todas as características humanas, carregam consigo a dualidade dádiva/maldição. 

    Uma boa definição do conceito de sacrifício é descrita pelo psicólogo e escritor Jordan Peterson: Sacrifício é o ato consciente de se abrir mão do presente para se alcançar o futuro

    Mesmo sem entendermos os mecanismos por detrás disso, o sentimento é de que quanto maior o sacrifício, mais significativa a recompensa. É por esse sentimento que Abraão cogitar fazer o que é pedido dele. Esse ofício sagrado (tradução direta do Latim) toma então cores honradas, e pode ser usado para justificar praticamente qualquer ação que o precede. Dada essa premissa, Thanos age e sacrifica a sua filha.

    Há nessa ação certa inconsciência e ingenuidade sobre as consequências e transformações que tais atos podem gerar. Por um lado, é impossível realmente identifica-las, pois o agente executor antes do ato (o “eu atual”) é um ser diferente do “futuro eu”. Em termos fenomenológicos, o último só nasce após o ato em si. Mesmo no mais planejado cenário, vemos na literatura e nos mitos o quão diferente pode ser a vivência entre pré e pós sacrifício.

    Somos seres que naturalmente inferimos causas nos fenômenos ao nosso redor. Se vemos um raio e, alguns segundos depois ouvimos um trovão, é fácil compreender que antes de termos as ferramentas para sabermos que ambos são apenas manifestações da mesma coisa, poderíamos concluir que um causava o outro. Com sacrifícios essa noção se repete. Daí as oferendas associadas com as colheitas, ou sacrifícios humanos para se obter a graça dos deuses, entre muitos outros exemplos. Alguns atos são de mais fácil observação que outros, como plantar sementes para se obter alimentos meses depois. O ponto é que o presente pode ser vendido para se alcançar o futuro. Por isso tal noção é tão destacada. Ela simplesmente funciona.

    Você pode questionar se o método empregado é o mais apropriado para se ter o que deseja no futuro, mas poucos questionariam o poder do sacrifício em si. Por outro lado, mesmo que ele funcione, o preço pago pode ser alto demais.

    Existir para desistir? 

    O principal argumento moral de Thanos é de que vivemos em um Universo com recursos finitos para uma população que não para de crescer. Em sua defesa, foi exatamente esse problema que seu planeta natal enfrentou e o fez sucumbir. Penso com isso que Thanos poderia facilmente aderir aos argumentos da filosofia anti-natalista, dado seu ponto de vista. 

    Para os anti-natalistas, evitar sofrimento contém um peso moral maior do que gerar alguma felicidade. Portanto, não existir têm uma relevância maior do que existir, sofrer e acumular sofrimento através das gerações. A lógica é que nascer, invariavelmente, trará algum tipo de sofrimento. E se temos o poder de escolher entre gerar uma nova vida (mais sofrimento) ou não, a escolha ética seria um desconfortável não. Para alguém que nunca venha a existir, não há nada a ser perdido em termos de felicidade ou prazeres. Afinal, você sofria antes do seu nascimento? 

    A conclusão para os anti-natalistas é de que a nossa espécie deveria gradualmente e conscientemente não mais se reproduzir e, portanto, não mais existir.

    Reduzir a existência da consciência em uma balança de ‘’felicidade’’ e ‘’sofrimento’’ me soa um tanto reducionista e ignora as ramificações desses estados. Se olharmos para as nossas próprias vidas, podemos ver que ‘’mais sofrimento = ruim’’ e ‘’mais felicidade = bom’’ não é uma equação tão simples assim. Um momento definido inicialmente como ruim ou mau pode estar diretamente conectado com o que definimos como bom e prazeroso. Ou mesmo, como algo que traga maior significado para a vida em si. 

    Uma história comumente contada em círculos Taoistas exemplificam esse pensamento e serve de reflexão: O Conto do Fazendeiro Chinês: 

    Era uma vez um fazendeiro chinês. Um dia, um de seus cavalos fugiu. Seus vizinhos vieram até ele, comentando como aquele acontecimento era um infortúnio. O fazendeiro respondeu: “talvez”.

    No dia seguinte, o cavalo que fugiu voltou, trazendo com ele sete cavalos selvagens. Os vizinhos apareceram novamente, dizendo que isso era uma grande sorte. O fazendeiro respondeu: “talvez”.

    Depois disso, o filho do fazendeiro tentou domar um dos cavalos selvagens e caiu, quebrando uma perna. Os vizinhos vieram lamentar o ocorrido, dizendo que aquilo era muito ruim. O fazendeiro respondeu: “talvez”.

    No dia seguinte, oficiais do exército que estava recrutando soldados apareceram, mas não levaram o filho do fazendeiro por conta da sua perna quebrada. Os vizinhos vieram ao fazendeiro falando sobre como aquilo era ótimo, e ele respondeu: “talvez”.

    Por isso, pergunto aos anti-natalistas:

    Como mensurar o impacto de talvez sermos a única espécie na galáxia que olha para si mesma e compreende sua finitude? Como mensurar o significado de algo que levou bilhões de anos para ser alcançado, ou seja, um Universo que tem a capacidade de olhar para si próprio e dizer, Eu sou!

    E se o sofrimento que todos carregamos ao existir for parte do nosso sacrifício cósmico? 

    As regras do jogo

    Encerrar uma ou mais vidas. Como alguém se sente após isso?

    Mitos e religiões antigas comumente têm algo a dizer sobre o encerramento de vidas e suas possíveis consequências. Acabar com uma vida consciente parece ter um peso ainda maior para quem comete tal ato. Nos mitos modernos temos inúmeros exemplos de uma mudança drástica na essência de quem  segue por esse caminho. Mesmo os assassinos mais frios em filmes sobre a Máfia, por exemplo, carregam consigo ao longo do tempo uma inquietude, um vazio e uma insatisfação que pouco servem de consolo quando realmente olham para seu abismo interno. 

    No filme O Irlandês, de Martin Scorsese, o personagem principal beira a psicopatia na sua aparente frieza em lidar com os assassinatos cometidos ao longo dos anos. Mas basta ver sua insatisfação com a conexão perdida com a filha, o medo de morrer e ser esquecido e sua palpável solidão para notar que a sua alma se encontra inquieta sobre as ações tomadas. Sua mente conta para si uma narrativa simples para um homem do seu contexto, “você fez o que tinha que ser feito”, mas isso pouco vale quando se tem que conviver com o que de fato foi feito. No final, a consequência é mais pesada do que a justiça humana e suas leis. É isso que o conceito de ‘’vender a alma para o diabo’’ remete. Você faz um acordo no qual não tem como mensurar o que vai perder, afinal, quem consegue explicar o que é viver tendo perdido sua essência? Fausto, de Goethe é talvez o exemplo mais famoso da história arquetípica de se obter algo mundano em troca da sua alma. Nesse clássico da literatura Fausto faz um acordo com a representação do ‘’inimigo do mundo’’, Mefistófeles para obter conhecimento, poder e prazeres humanos. O argumento de Mefistófeles é similar ao de Thanos e dos anti-natalistas, de que o sofrimento inerente ao mundo não justifica sua existência, pelo contrário, que devemos cessar tamanho sofrimento se possível. E por mais que o argumento seja coerente, sempre que alguém tentou implementa-lo, ele se mostrou no mínimo um tanto quanto problemático. O que notamos é que algo dentro de você se rompe (e não quero aqui definir esse ‘’algo’’) quando se quebra essa aparente lei universal. De um ponto de vista metafórico, o que acontece com esses personagens é o mesmo que a queda de Lúcifer. A descida ao inferno, a corrupção do ser.

    Walter White na série Breaking Bad, Anakin Skywalker em Star Wars, Tony Soprano em The Sopranos são as versões modernas da mesma história. A questão, entretanto, permanece: por que o desconforto da alma em seres que aparentemente estavam acima de qualquer ética e moral?

    Temos o mesmo padrão com Thanos. Após ter dizimado metade da vida no Universo, encontramos o personagem em um estado de reflexão, apatia e certa tristeza. Encontra-se em um estado de aceitação até mesmo do seu fim, que vem quase como um alívio, e não uma punição.

    Crime, castigo e outros mitos

    Poucos escritores exploraram esse contexto tão bem quanto Dostoievski em Crime e Castigo. Temos no romance as peças para um estudo da condição humana. Com a popularidade do racionalismo ateísta e do cientificismo em meados do século XIX, tornou-se comum, entre os intelectuais da época, o questionamento do papel das religiões sobre a moral e ética humanas.

    Para muitos, deveríamos dispensar com o misticismo, e sua aparente arbitrariedade, a definição do que deve ou não ser feito. É com esse pano de fundo que o autor nos apresenta sua crítica. O personagem principal da narrativa, Raskolnikov, tem no nome uma dica sobre o seu destino: sua raiz em russo remete à ‘dividido’, ‘separado’. Dentro de si cresce um dilema filosófico poderoso. Uma das vozes dentro de si vocifera que a moral serve para o homem de pequeno intelecto, para os covardes. Pois para aqueles que obtêm uma mente mais privilegiada e que estão ‘’acima de Deus’’, é fácil ver como essas ‘’regras’’ são porque são, sem um real fundamento por detrás delas. E quem consegue perceber isso, poderia em tese transcende-las e quebra-las, se tivesse a devida coragem para tal. Pois eis que Raskolnikov se depara com uma situação tentadora para colocar sua teoria moral em prática no decorrer do seu relacionamento com a senhoria que lhe aluga um quarto, além trabalhar com penhores e empréstimos.  Corrupta, ranzinza, gananciosa e mesquinha. Sua própria existência gera um desconforto para quem está ao seu redor. Raskolnikov usa de sua lógica moral para concluir que estaria fazendo um bem ao mundo ao por fim a essa vida e ainda poderia ajudar sua família e a si próprio com os recursos obtidos da velha. O questionamento é direto e claro, nosso personagem pergunta a si se estaria quebrando alguma regra universal que o impediria de cometer o crime que intitula o romance. O argumento racionalista que desdenha as regras e tradições antigas vence e Raskolnikov mata a velha. 

    Entramos então em um novo mundo junto com Raskolnikov. Um inferno criado por si, para si, constantemente perturbador. Vale ressaltar aqui a genialidade de Dostoievski, pois sua escrita nos transporta para esse inferno de forma vívida. Uma agonia e angústia se derrama sobre o personagem e sobre o leitor, tamanho o impacto da narrativa empregada por Dostoiévski

    É recorrente a ruptura que permeia as histórias citadas. Thanos, Walter White, Raskolnikov e Darth Vader são seres transformados por suas ações. Acreditando estarem acima do bem e do mal, desceram ao inferno, de onde poucos conseguem voltar. Essa crença traz consigo uma cegueira intrínseca, pois nenhum deles percebe a tempo qual arquétipo estão representando. Vale dizer que essa é a relação comum que temos com os mitos do dia dia. Conhecemos muitas histórias, umas mais famosas e presentes do que outras, independente disso, estamos fadados a revive-las, reproduzi-las. Foge-se de um arquétipo apenas para cairmos em outro. Rivalidade entre irmãos como Caim e Abel é recorrente em diversas culturas. Ter ciência de tais histórias não impedem irmãos de aturarem esses mitos nas suas buscas por elogios, competitividade, disputas e afins para se provarem como indivíduos. Nesses mitos encontramos a representação de todos os irmãos e irmãs combinados, sobrepostos, resultando em uma narrativa que facilmente encontra conexões com praticamente qualquer pessoa que tenha um irmão/irmã. Isso não quer dizer que viveremos exatamente todos os aspectos narrados no mito, pois como disse, ele não representa apenas a sua história, mas a sua somada a de todo o mundo. É fácil para mim relembrar na infância diversos desses momentos vividos com meu irmão, sem ter (felizmente) chegado ao mesmo final que Caim e Abel. O ponto é que o mito é mais presente em nossas vidas do que damos conta. Ele nasce do nosso próprio comportamento repetido, observado e depois colocado em forma de drama nas histórias. Incontáveis gerações de irmãos na pré-história precederam o conto de Caim e Abel. Romeu e Julieta são outro exemplo, ambos são a personificação da paixão fustigante que acomete casais desde tempos imemoriais.

    Quando as cortinas se fecham

    Por um certo prisma, todos temos livre-arbítrio, por outro, fica difícil separar nossas narrativas das representações arquetípicas que continuamente revivemos.

    O mesmo para os nossos vilões. Ao entrarem no palco como tais, abrem possibilidades para um mundo de mitos que os precederam, quase nunca cientes de qual etapa do seu próprio mito se está vivendo. Talvez nosso maior poder de decisão esteja exatamente aí, quando entramos no palco, quando escolhemos o papel que encenaremos, pois depois disso, seguimos o roteiro já escrito. Porém o mais comum é estarmos já vestidos e caracterizados para o papel sem termos ciência disso e só vamos perceber qual papel estamos encenando quando as cortinas se fecham e as luzes se apagam. Iniciamos ações com escolhas que se ramificam de maneira imprevisível. Um efeito dominó do universo a cada passo dado, onde da sua perspectiva não se consegue nunca ver o seu fim. Olhando para trás tudo fica mais claro e é relativamente simples apontar heróis e vilões. 

    Entretanto, alguns sinais podem ser percebidos enquanto o jogo acontece, pois são estágios que se repetem. Acreditar estar acima de tudo e de todos, se rebelar contra a vida ou com o que representa a essência de algo vivo (árvores, oceanos e no caso de Thanos, planetas), executar sacrifícios desmedidos para se atingir poder ou controle, ter a percepção de quem se tornou nesse processo e finalmente a descida ao inferno. 

    Assim como as etapas na Jornada do Herói, temos o seu contraponto, a sua sombra e consequentemente, seus respectivos estágios. Tomar ciência desses estágios e compreendê-los melhor é possivelmente a nossa melhor ferramenta para identificar qual papel estamos encenando e tentar mudar o curso do filme das nossas vida. Afinal, você não quer descobrir que é o vilão da sua história na derradeira cena final.

  • Review | OZ

    Review | OZ

    Atenção: este review contem spoiler de toda a série. Siga por sua conta e risco.

    OZ tem importância histórica para o momento atual da Era de Ouro da televisão norte-americana. Criada por Tom Fontana em 1997, foi uma das primeiras séries originais da HBO ao lado de Sex And The City, de 1998, a serem concebidas de forma autoral, onde o criador e roteirista tinham mais liberdade criativa. As duas ganharam prêmios relevantes e tiveram o reconhecimento da crítica suficiente para encorajar o canal a cabo a continuar o investimento que permitiu produzir The Sopranos em 1999.

    A série acompanha a rotina na Penitenciária Estadual nova-iorquina Oswald de Segurança máxima Level 4, mais conhecida como OZ, mostrando a convivência entre os presos de diversas facções e diferentes entre si.

    Claustrofobia, essa é a sensação de assistir a série. O tema central é um só: o aprisionamento do ser humano e todas as discussões levantadas ao longo dos 56 episódios giram em torno do encarceramento do homem na sociedade. O tema é desenvolvido sob diversos ângulos, como também outros temas como a fé e a falta dela; os estupros constantes e a sexualidade; o tráfico de drogas, o poder e vício gerados; e o maior deles, a reabilitação social do preso.

    A narrativa da série é tão densa que sentiu a necessidade de recorrer a um narrador, Augustus Hill, que se dirige à câmera e aparece no início, final de cada episódio, além de flashes no meio. No início ele aborda o tema do episódio, no final faz uma conclusão, e sempre que um preso novo chega à OZ ele lê a sua ficha criminal, como também ocasionalmente lê a ficha de outros que estão lá há tempos.

    Augustus Hill, um dos personagens mais icônicos de OZ

    As digressões da série feitas pelo narrador

    A primeira temporada da série se inicia com a inauguração do projeto experimental Emerald City, cujo objetivo é forçar uma convivência entre os grupos dos mais variados possíveis para que sua reabilitação futura na sociedade seja menos traumática. A rotina da série mostra os presos criando ou mantendo seus grupos de influência e competindo pelo poder.

    Os personagens e núcleos principais também se consolidam aqui. A irmandade ariana liderada por Vern Shillinger que odeia os negros encabeçados por Jefferson Keane e Simon Adebisi, que tem diferenças com os muçulmanos ministrados por Kareem Said e se chocam com os mafiosos italianos de Nino Schibetta. Neste meio, os latinos de Miguel Alvarez e o irlandês Ryan O’Reily, além dos quatro personagens mais icônicos da série que não pertencem a grupo nenhum, os veteranos Busmalis e Rebadow, o cadeirante Augustus Hill e Tobias Beecher. O outro lado da prisão é o corpo administrativo, o diretor Leo Glynn permite que Tim McManus crie Emerald City, ele conta com a ajuda da guarda Diane Whittlesey, a freira e psiquiatra Irmã Pete Marie, o padre Ray Mukada, além da médica Gloria Nathan e as aparições esporádicas do governador James Devlin.

    Jefferson Keane é executado pelo estado no meio da temporada e Nino Schibetta morre após comer vidro esmagado que O’Reily e Adebisi colocaram na sua comida, provando que em OZ não deve-se apegar a nenhum personagem, e termina com uma rebelião após os grupos antagônicos se reunirem contra a administração de OZ.

    Kareem Said, interpretado por Eamonn Walker, o melhor personagem de OZ

    Na segunda temporada vemos os desdobramento da rebelião que fechou Emerald City e causou a morte de dois guardas e seis presos. Ela se inicia uma investigação da corregedoria que não chega a nenhuma conclusão com provas. 10 meses depois Emerald City é reaberta e inicia na série os projetos sociais que marcam cada temporada. Nesta segunda, McManus cria um projeto de aula para os detentos. Poeta, um viciado em heroína, se inscreve no programa e com a ajuda de Kareem Said publica as suas poesias, conseguindo a condicional. Porém, ele volta à OZ após matar um dos traficantes. Ryan O’Reily é diagnosticado com câncer de mama pela Dra Glória e se apaixona por ela, ele pede para seu irmão Cyril matar o marido de Glória e Cyril acaba indo para OZ.

    Novos personagens aparecem nesta temporada além de Cyril O’Reily; Chris Keller, aliado de Vern, seduz Beecher e quebra suas costelas; Shirley Bellinger como a nova presa do corredor da morte; El Cid como o líder dos latinos; o guarda Eugene Rivera que é atacado por Miguel Alvarez e acaba cego; Peter Schibetta, filho de Nino, assume a máfia, porém após se envolver em uma briga com Adebisi, Peter é estuprado e perde a liderança dos italianos para outro recém chegado Antonio Nappa. Uma característica desta temporada é a inserção do aspecto espiritual na série com a chegada de Jara. Ele se torna um xamã para Adebisi, fazendo com que ele se reconecte com a sua origem africana, até que Jara é morto e Simon se sente à deriva.

    Na terceira temporada, um novo programa social é implementado pela irmã Peter Marie, encontros entre vítimas e agressores. Novos personagens entram na série, como o guarda Clayton Hughes, filho de um antigo amigo de Glynn que morreu no seu lado. Clayton investiga a morte do pai e aos poucos vai ficando louco até tentar matar o governador em um evento e acabar preso, provocando o fechamento de Emerald City. Outro personagem importante é o novo guarda Sean Murphy, antigo amigo de McManus, que organiza um campeonato de boxe como forma de aliviar a tensão dos detentos. Cyril decide participar e Ryan vai dopando seus adversários até que na última luta Cyril acidentalmente mata o favorito Hamid Khan.

    Enquanto isso, Adebisi ainda à deriva rouba uma agulha infectada de HIV e fere Antonio Nappa, provocando a sua transferência de Emerald City para a ala dos aidéticos, fazendo com que Chuck Pancamo vire o novo líder dos italianos. Mais um personagem marcante da terceira temporada é Claire Howell, a guarda de OZ que usa o seu poder para explorar sexualmente primeiro McMannus e depois os presos, especial Ryan O’Riley.

    J.K. Simmons como Vern Schillinger

    A quarta temporada é marcada por ser a mais longa da série com o dobro de episódios e foi dividida em duas partes. Na primeira, Emerald City é reaberta e Diane se muda para Londres, já que Edie Falco havia se comprometido com The Sopranos. O principal evento da primeira parte é a vinda de um novo diretor para Emerald City, Martin Querns, para o lugar de Tim McMannus, o que é bem visto aos olhos dos presos pois ele é negro. Querns quer baixar o nível de violência do local e para isso libera o tráfico de drogas.

    As novas políticas de Querns causam mudanças radicais nas relações com os guardas, pois o novo diretor transfere todos os não negros de Emerald City, transformando o local no reino de Adebisi. O final da primeira parte da temporada é coroada pela morte de Adebisi por Said, que tentava ajudar a controlar a situação e evitar uma nova rebelião.

    Na segunda parte, Querns é demitido e McMannus retorna. Um caso curioso é a droga experimental que faz com que alguns presos aceitem tomar em troca da pena reduzida e que causa a morte de alguns deles. A dinâmica entre Beacher e Vern fica ainda mais tensa quando eles tentam acertar as contas e um mata o filho do outro. Outra morte da temporada é a de Clayton Hughes, que perde a sanidade por completo e é esfaqueado por um colega de solitária quando tentava matar Glynn e morre em seus braços, assim como o pai.

    Um novo personagem é introduzido, Burr Reading, veterano da Guerra do Vietnã. Ele assume o tráfico de drogas ao liderar os negros e acaba alterando a relação com os italianos e os latinos para mais conflituosa. O Reverendo Jeremiah Cloutier também chega a OZ e altera o realismo da série, iniciado por Jara, ao influenciar os protestantes na sua jornada contra o catolicismo. Outro personagem curioso é o viciado Omar White, que é o elemento caótico que causa sérias alterações. Por último, o membro do IRA, o irlandês Padriac Connelly que coloca uma bomba em Emerald City no último episódio provocando a sua evacuação.

    Chris Keller e Tobias Beecher e a sua relação de amor e ódio

    A quinta temporada marca retornos e ironias à OZ. A mãe de Ryan começa a fazer trabalho voluntário na prisão, a ex-esposa de McMannus se transforma na nova assessora do governador em Oswald e Chris Keller, que havia sido transferido na temporada passada, volta para o corredor da morte. Um novo programa social se inicia, o treinamento de cão-guia para cegos, o que transforma a relação de Miguel Alvarez com Eugene Rivera.

    As ironias continuam. McMannus pede ajuda de Said para reabilitar Omar White, mas falha todas as vezes até que ele vai no show de variedades e passa a não usar mais drogas. O bilhete premiado da loteria de Rebadow, que havia pedido ao guarda Dave Brass comprar e ele some, fez com que o seu neto morresse devido a um tratamento caro. E a maior ironia de todas é a morte de Augustus, o narrador da série, após se livrar do vício das drogas ele vai defender Burr Reading do ataque dos italianos e é esfaqueado.

    A abertura da série que muda a cada temporada com as novas cenas

    A sexta temporada tem novos narradores, todos que morreram na própria prisão, como Jeferson Keane, Shirley Bellinger, os filhos de Schillinger, Antonio Nappa e até Dino Ortolani. Para salientar, McMannus coloca um labirinto da meditação na quadra de basquete, o que permite a diversos detentos refletir sobre os seus problemas. Para salientar, um novo personagem é introduzido, o pantera negra Jahfree Neema, que traz mais questionamentos do que soluções na nova dinâmica da prisão.

    Outro programa social permite a interação entre os presos, a encenação de MacBeth. Beecher consegue a condicional, mas volta à OZ traído por Keller, Ryan deixa de entrar com recursos no tribunal para Cyril morrer, pois não vê mais solução. Robson, um dos arianos mais fortes do grupo, tem a sua gengiva trocada pela de um negro, promovendo a sua expulsão da irmandade ariana e fazendo com que ele virasse a puta de outro detento.

    O alívio cômico de OZ através da dupla Busmalis e Rebadow

    E a sexta temporada promove uma série de mortes que visa a dar um final para cada personagem, algumas não tão satisfatórias. Pancamo mata Peter Schibetta, Said morre por conta de um repórter louco, este depois mata Omar também, o pai de Beecher é esfaqueado por uma puta de Schillinger que queria subir de hierarquia, Morales é morto pela enfermeira serial killer Carol, que deixa um rastro de outras mortes na enfermaria, Cyril é executado pelo estado, e na encenação de MacBeth, Beecher mata Vern após Keller trocar as facas, o próprio Keller mata diversos arianos com um pó químico entregue numa carta, depois Keller se suicida na frente de Beecher, e o próprio diretor Leo Glynn, que investigava a morte suspeita de um prefeito amigo do governador, é morto a mando do governador como queima de arquivo.

    E como não poderia ser diferente, OZ termina por causa de uma evacuação geral da prisão. Após a morte de Glynn, Querns volta como o novo diretor, e, alertado pela Dra Glória do pó químico usado para matar os arianos, todos vão embora e assim o ciclo se fecha pois a rotina daqueles presos terminou.

    Os irmãos Ryan e Cyril O’Reily

    Por se tratar de uma série de rotina, similar a The Sopranos e Mad Men, é difícil encontrar uma linearidade de tema em OZ. A partir da terceira temporada passa a existir temas marcantes, mas ainda não arcos centrais, os episódios iniciam e terminam em si, promovendo uma narrativa híbrida tanto episódica quanto contínua.

    A rotina da prisão opta por não mostrar a vida dos personagens principais fora da penitenciária, nem os poucos presos que conseguiram sair e depois voltaram. As cenas externas são sempre com algum filtro de cores aleatórias, geralmente usado em cinema para as cenas de sonhos, para mostrar os crimes cometidos por cada preso que os levaram para lá, elas servem também em sua maioria das vezes para introduzir novos personagens. O que importa na série é a visão daqueles presos, e, para eles, a sociedade é um sonho distante.

    Outra característica que reforça o aprisionamento ao espectador é a noção do tempo. Não existe o desenvolvimento narrativo linear de cenas encadeadas entre si ou até mesmo uma unidade temporal. Ao longo das seis temporadas quando há alguma conspiração sendo tramada na cena seguinte já acontece o fato que levaria alguns dias ou semanas, como por ex a morte do marido da Glória por Cyril O’Reily, planejada na cena anterior por seu irmão Ryan.

    Simon Adebisi

    Mais uma particularidade da reclusão é o número limitado de locações. Todos os 56 episódios se passam em poucos locais, como Emerald City, Unidade B, Corredor da Morte, Solitária, Academia, Hospital e nas salas do diretor Leo Glynn, de Tim McMannus e da Irmã Pete Marie.

    Ao lado do roteiro denso e a direção que traz uma boa mise-en-scène, a atuação é o grande forte de OZ. Eamonn Walker interpreta Kareem Said, o líder dos muçulmanos e o melhor personagem da série; Lee Targersen dá vida ao ótimo Tobias Beecher; o excelente J.K. Simmons como o líder dos arianos Vern Schillinger; Christopher Meloni é o bom Chris Keller; Harold Perrineau é o cadeirante e narrador Augustus Hill; Adwale Akinnuoye-Agjabe é o imponente Simon Adebisi; o canastrão David Zayas como o novo líder dos latinos Enrique Morales; Michael Wright é o caótico viciado Omar White; Luna Lauren Velez como a Dra Gloria Nathan; Ernie Hudson como o diretor Leo Glynn; a sempre ótima Edie Falco na pele da guarda Diane Whittlesey; Rita Moreno interpreta a boa personagem Irmã Pete Marie; Terry Kinney é Tim McMannus; o limitado Chuck Zito é Chuck Pancamo; Scott William Winters como Cyril O’Riley; Kirk Acevedo é Miguel Alvarez; BD Wong é o Padre Mukada; Luke Perry como o pastor Jemeriah Cloutier; Anthony Chrisolm como o veterano Burr Reading; Peter Francis James é o pantera negra Jahfree Neema; R.E Rogers como o caótico ariano Robson; Craig MuMs Grant é o Poeta; Tony Musante o mafioso italiano Nino Schibetta; Luís Guzman como o líder latino El Cid; e George Morfogen e Tom Mardirosian dão vida à dupla hilária Bob Rebadow e Agamemnon Busmalis. A pior menção é Dean Winters, o ator mais limitado do elenco que interpreta um dos melhores personagens, Ryan O’Reiley.

    OZ merece ser vista pelo valor histórico, além de ser densa, trata de diversos temas sociais que pode vir a interessar diversos públicos adultos.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

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  • A Jornada do Leitor

    A Jornada do Leitor

    Todo herói tem um arco, uma jornada. Cada personagem – ao menos de escritores que sabem o que estão fazendo com as mãos num teclado – tem um papel dentro da trama principal. É o arco narrativo, sua jornada do início ao fim, sem importar quão frívolos sejam seus motivos ou abrupta sua morte. Ao analisar narrativas dos principais textos de diferentes religiões num brilhante estudo de mitologia comparada, Joseph Campbell notou avanços narrativos semelhantes, em que personagens diferentes preenchiam partes idênticas nos mecanismos internos dos contos, assim o próximo passo do protagonista invariavelmente seguia uma lógica. O Herói de Mil Faces, Campbell chamou seu livro, pois a trilha é seguida de novo e de novo e de novo.

    O autor desenvolve seus argumentos sobre o molde narrativo do qual partilham as mais diversas histórias, desde Pulp Fiction até a epopeia de Gilgamesh. Crucial, um dos pontos mais importantes dentro de uma história é a transformação dos personagens de um estado inicial até o ponto de chegada, quando retornam para uma normalidade, profundamente mudados pelo caminho, pelo percurso da Jornada. Harry Potter, Luke Skywalker e Rick Blaine atravessaram os mesmos passos: uma velha estrada de tijolos amarelos que já foi percorrido por Dorothy. Todos eles tinham um desejo, uma aspiração que dá o pontapé inicial de suas histórias. Na Jornada, é essencial que se deseje algo. Mesmo que seja um copo de água fresca, como disse Kurt Vonnegut. São nos passos identificados no “O Herói de Mil Faces” que as histórias se desenrolam, com ou sem variações, e a vontade de virar a página ganha contornos urgentes. Ao leitor desatento, pode parecer um tanto formulaico, mas a Jornada é algo sutil, uma trama em que mãos habilidosas podem bordar qualquer coisa maluca que se passa em sua mente.

    De forma resumida, cada personagem responde com hesitação antes de aceitar o Chamado da Aventura, o acontecimento surpreendente e muitas vezes surreal que inicia, de fato, o plot: Gandalf bate à porta de Bilbo Bolseiro logo no início de O Hobbit, e, anos mais tarde, Frodo herda um certo anel, dando os primeiros passos em uma das jornadas definidoras de todo um gênero, O Senhor dos Anéis. Tal Chamado gira todas as rodas dentadas que trabalham por trás das linhas e parágrafos que você deita os olhos, jogando os protagonistas num mundo desconhecido onde contam com um Mentor – palavra que vem do grego menos, que significa desde força, propósito, até mente, espírito ou lembrança -, em que o caminho até o próximo passo da Jornada, a Caverna Misteriosa, será permeado por aliados, inimigos e provações. No Hobbit, Bilbo encontra Gollum e Frodo chega até Mordor. O herói que perseverar no caminho, retornará ao velho mundo onde sua jornada começou e, com os tesouros e ensinamentos da estrada percorrida, faz o leitor respirar aliviado depois de Bilbo ter enfrentado os perigos de um dragão ganancioso e o fiel Sam empurrar seu amigo na direção certa, um dos momentos de maior carga emocional de “O Senhor dos Anéis”. Agora, o herói precisa enfrentar seu real perigo antes de prevalecer sobre o mal: a Batalha dos Cinco Exércitos e a Montanha da Perdição, para continuar com os exemplo de Tolkien.

    É a jornada do herói, com ou sem maiúsculas; o arco. Ainda me lembro de uma das cenas preferidas de Família Soprano, quando o jovem e explosivo Christopher Moltisanti pergunta ao mentor Paulie, um mafioso da velha guarda, onde estava o seu arco, pois nada de interessante acontecia em sua vida.

    “E daí,” Paulie responde, numa calma enervante, “eu estou vivo. Eu sobrevivo”.

    Christopher enterra os dedos no cabelo. Como ele pode não entender? “Não quero apenas sobreviver. Os manuais de roteiro dizem que cada personagem tem seu arco. Entende? Todo mundo começa em um lugar, e eles fazem algo. Algo acontece a eles. E isso muda suas vidas. Isso é um arco. Onde está o meu arco?”.

    Foi a angústia de Christopher, um personagem com o qual pouco me identifico, que tomou conta de meus pensamentos quando li as últimas linhas da A Roda do Tempo, uma série composta de catorze tijolos – e um tijolinho de prefácio -, totalizando algo em torno de doze mil páginas. Doze mil páginas. Milhões de palavras. E mais arcos de personagens do que eu poderia contar de cabeça. Claro, em (quase) todos os livros da série o leitor pode encontrar começo, meio e fim para as diversas histórias que se desgarraram da linha narrativa principal e acompanhar o crescimento das personagens que mais cativam ou detestam. A Roda do tempo é uma longa jornada, talvez a maior que já percorri – com grande chance de ser a maior que jamais percorrerei -, uma estrada esburacada, com altos e baixos, longas tempestades e mais paradas que o ideal, uma viagem que talvez exija uma ou outra pausa a fim de trocar pneus carecas e reabastecer a água do radiador. É uma história épica que envolve até mesmo o Tempo em si, com T maiúsculo, onde Luz e Escuridão duelam em grande escala e a existência do mundo depende de quem sairá vitorioso. É o maniqueísmo de Tolkien em maior escala.

    A Roda do Tempo e o leitor

    Não vou perder nosso tempo com um resumo do mundo ou da história quando dezenas de análises e críticas estão aparecendo aqui e ali, enquanto a série começa a fazer sucesso na Terra Brasilis. Basta dizer que há altos e baixos, defeitos e virtudes, grandes lições de escrita; Vale lembrar que a última porção da história foi escrita por Brandon Sanderson por causa da morte do criador, Robert Jordan, afinal é difícil escrever depois de morto. Sanderson fez um ótimo trabalho e o último volume é um clímax de novecentas páginas – o maior capítulo, A Última Batalha, tem mais de 180 páginas.

    Levei seis anos para ler “A Roda do Tempo”. Partindo do meu Chamado de Aventura – inspirado por uma música da banda alemã Blind Guardian – até o Retorno com o tesouro, anos se passaram e centenas de outros livros, sem exagero, foram lidos, tanto para trabalho quanto lazer. Nesse meio tempo, comecei e terminei outras séries e trilogias, mas a Roda do Tempo sempre esteve no fundo de minha mente, ganhando novos contornos enquanto eu me reabastecia com outros autores, escritas e gêneros diferentes.

    Em paralelo a narrativa, analisava minha jornada de leitor, sobre como os dias podem girar em torno do livro em suas mãos, sobre nosso próprio crescimento, mudanças, derrotas e vitórias enquanto vivenciamos tantas outras jornadas. Da mesma forma que nosso herói tem mil faces, também as temos, cada um de nós. Desejamos, buscamos e nos transformamos em algo… bem, em algo diferente. Pergunte ao Kafka, se quiser.

    Quando li o primeiro livro, O Olho do Mundo, estava deitado no meu quarto, sozinho, febril e em Lisboa, morando numa casa cheia de gatos. Eu era um mestrando em História da Expansão e dos Descobrimentos, dissertando com a ajuda de mapas antigos sobre a formação do Japão na mentalidade ocidental entre os séculos XV e XVIII. O primeiro volume de “A Roda do Tempo” segue uma estrutura fixada por Tolkien, com um protagonista seguindo o estereótipo Luke Skywalker, o jovem e ingênuo fazendeiro que se descobre envolvido em acontecimentos maiores e perigosos.  E não foi O chamado de aventura, mas foi UM chamado. É como nos livros da série: não há começos ou fins em “A Roda do Tempo”, mas esse foi um começo. Ao menos isso.

    Eu morava sozinho e seguia uma rotina bem definida. Acordava, engolia meio litro de café e tomava banho para, depois, mergulhar no submundo metroviário de Lisboa e percorrer os corredores úmidos da Faculdade de Letras, onde ficava o centro de pesquisa em que trabalhava. Escrever, pesquisar e realizar enfadonhas tarefas administrativas tomava quase todo o meu dia, além de conversas e risos com pessoas que marcaram minha vida. Eu vivia um arco, afinal. Recém-formado, mergulhado em arquivos de fama internacional, lendo e observando mapas, cartas ânuas de jesuítas que foram ao Japão, além de manifestos de embarcações. Tudo no passado. Todos, viajantes e religiosos, europeu e japoneses, de volta ao pó, uma grande bacia de cinzas e poeira onde eu tinha me enterrado até os cotovelos na mais pura – elétrica – euforia.

    Já no segundo livro da série, vaguei por Londres, onde estava pesquisando a sessão de mapas da British Library. Foi no café do British Museum – onde fui ver a A Grande Onda  – que terminei o livro e já tirei o terceiro da mochila. Antes, pedi outro café. Saí de lá quando me expulsaram, mais de sessenta páginas depois. Voltei para a casa da minha irmã no escuro, a cabeça perdida no mundo criado por Robert Jordan. No meu arco, hoje enxergo que estava numa fase que podia me permitir vagar por mundos imaginários sem prestar muita atenção nos problemas do mundo real. Morando sozinho na Europa, com poucas aulas na semana e um trabalho com horário flexível que me permitia trabalhar em casa, um quando que permitia o luxo de focar nos estudos, conhecer melhor Portugal e afundar meu nariz nos livros. Ler até derrubar o livro no meu rosto, até esfregar olhos queimando e resolver fazer café às quatro da manhã, para tentar extrair mais um capítulo, quem sabe dois. Olhando para trás, eu deveria ter saído mais de casa, pergunte à Rosa.

    Quando voltei ao Brasil e morei em Campinas, comecei a escrever ficção. Corria quase todos os dias. Li mais. Enrolei minha dissertação e fiquei noivo. O tempo passou e eu estraguei um dos joelhos, começando um lento caminho de volta ao sobrepeso, quando meus quilos perdidos na corrida voltaram com novos amigos e a ficção ganhou espaço no meu cotidiano e nas minhas ambições. Foi talvez no sexto livro de “A Roda do Tempo” que decidi – ou melhor, fui empurrado a aceitar o que estava diante do meu nariz – trocar de profissão. Adeus vida acadêmica, olá rotina de escrita e edição. E desespero, claro.

    Atravessando a narrativa

    Conforme riscava os títulos de minha lista de leitura, meu próprio arco avançou. Aniversários, discussões, risadas, bebedeiras e jogatinas, tudo envolvido em muita escrita, leitura e edição. Eu me casei. Terminei meu primeiro livro, com mais de quatrocentas páginas, muitas delas desnecessárias e cortadas com um coração em prantos. Percebi depois que um livro de quatrocentas páginas é um erro se você ainda é um escritor desconhecido. Criei histórias menores, deixei outras depois de duzentas páginas. Meu filho nasceu. Páginas escritas dividiram espaço com mamadeiras e fraldas pedindo atenção. E então, alcancei a Última Batalha e, depois dela, o final de “A Roda do Tempo”. Bem, não O final, mas UM final. “A Roda do Tempo” não tem começos nem fins. Foram seis anos. Foram catorze livros.

    Claro, há relatos, principalmente no Reddit, de monstros que leem uma série deste tamanho em seis meses; outros estão na quinta, sexta, décima sexta – não é mentira – leitura da série. São arcos, tenho certeza: ninguém lê tantos livros – mesmo que seja uma só história – e fecha a última capa sem mudar, sem passar por uma transformação. Mesmo que a transformação seja pela necessidade de livros com fontes maiores para olhos cansados, essa pessoa mudou. No meu caso, a mudança foi gigantesca. Seis anos se passaram. Porcaria. Eu mudei, e muito. Do quarto escuro, iluminado apenas por um abajur amarelado, doente e trancado para deixar os gatos de outra pessoa fora do alcance de minha alergia, para um sofá confortável em nosso apartamento, numa cidade do interior de São Paulo; de minhas pretensões de conseguir ingressar num bom doutorado e viver de aulas e pesquisas, para a perspectiva de pagar contas com as mentiras que saem de minha cabeça e encontram caminho às pontas dos dedos; de namoro à distância – altos e baixos, altos e baixos – para a feliz paternidade dentro de um casamento estável, carinhoso e sincero. Eu cresci e, como um camaleão, minhas cores se transformaram em resposta ao ambiente em que agora vivo. Firmei convicções políticas e agora faço oposição a um governo que não me parece correto, brigo com unhas e dentes contra o monopólio dos veículos midiáticos, contra ambos analfabetismos, científico e político. Não sou apenas um historiador em outro país, cheio de perguntas sobre o que acontecia no passado, em ondas que banhavam o Japão tantos séculos atrás, enquanto o cenário atual me alcançava apenas como murmurinhos incômodos. De um historiador um tanto egoísta e recluso, tornei-me um escritor um pouco menos egoísta e recluso. Um pai, com sono e um sorriso bobo no rosto.

    Encontrei o final de “A Roda do Tempo” e dele passei. Pode apostar que me senti decepcionado com o final e tenho perguntas que nunca serão respondidas, mas estou satisfeito com a clareira no final do caminho. Quando se termina uma série, a sensação que se tem é um misto da nostalgia precoce e liberdade literária. O homem que sou hoje é bem diferente do estudante que ouviu uma música inspiradora e sentiu arrepios nos braços. Os livros da série tiveram pouco impacto nas minhas mudanças – Haruki Murakami, Carl Sagan, Yuval Noah Harari, Eric Hobsbawm e outros tantos tiveram mais importância -, mas servem de perfeito exemplo para o meu arco de herói. Afinal, sou o herói de minha história, assim como você é o personagem principal da sua.

    Minha jornada não é (nada) épica. A sua também não, até que você me prove o contrário. Mas é uma jornada e, caramba, ela é muito importante para quem está preso em seus quilômetros. Desejamos um emprego melhor, perder peso, que amanhã seja feriado e que, pelo amor de Deus, essa chuva dos infernos pare antes do sábado. Desejamos e buscamos, adaptamo-nos ao nosso próprio arco, nosso plot. Oras, estudamos para concursos públicos, brigamos contra chefes gananciosos e discutimos política; dançamos para a chuva parar e, como é um assunto que foge de nossa alçada, traçamos um plano alternativo para o sábado chuvoso, com pizza e jogos de tabuleiro. Talvez pedir meia frango com catupiry e meia calabresa não tenha o mesmo impacto que recuperar a Excalibur ou descobrir que o caminho para casa estava em você esse tempo todo, mas – por Crom! – essa pizza é o seu Chamado da Aventura e, se você não pisar na bola, será o herói de muita gente. São arcos diferentes. Nossa jornada é tediosa. Enfadonha. O oposto de épica. Mas, você sabe, é real.

    Quando Christopher Montisanti pergunta a Paulie onde está o seu arco, ele com certeza enfrentava a terrível angústia de não ser o que idealizava em outros tempos. Naquele fascinante mundo de violência, drogas e incertezas existenciais, Chris tentava se agarrar em algo para continuar sendo ele mesmo. Sem perceber, o jovem mafioso percorria um arco em si mesmo: o bloqueio, a desorientação. Quando chegasse na outra ponta do labirinto, ele seria – fatalmente – um mafioso mais forte. Um homem mudado. E outro arco teria início.

    Mas estou divagando e você já está se perguntando se realmente sou um escritor, tamanha verborragia. Você está lendo um texto sobre a passagem do tempo. Sobre como a saga de Robert Jordan me acompanhou em parte do caminho. Talvez você tenha sua própria Roda do Tempo e possa se identificar com o que exponho aqui. Talvez tenha crescido com Harry Potter e seus terríveis professores, ou tenha acompanhado Roland Deschain em cada passo no difícil caminho até a Torre Negra. Provavelmente sentiu os sóis de Tatooine queimando na pele. Minhas mudanças são acompanhadas de livros marcantes justamente porque sou um leitor antes de ser escritor. Filmes, músicas, relacionamentos, empregos… talvez até casamentos. Com toda certeza, o seu arco também tem um pano de fundo com variáveis e constantes.

    Agora que terminei uma série, meu arco continua. Talvez encontrou outras aventuras e chamados no meio do caminho. Quem sabe precise ir para um Mundo Especial e dele retornar com o Elixir do qual falou Campbell.

    Terminei de ler “A Roda do Tempo” muito, muito tempo depois de ter começado. E agora? Eu não sei para onde meu arco me levará, mas o próximo livro já está presente, com o marca páginas entre o final de um capítulo e o começo do próximo.

    Os passos da Jornada do Herói

    A Jornada do Herói

    Ato 1

    Mundo comum
    Chamado à Aventura
    Recusa do Chamado
    Encontro com o Mentor
    Travessia do Primeiro Limiar

    Ato 2

    Provas, Aliados e Inimigos
    Aproximação da Caverna Secreta
    Provação
    Recompensa

    Ato 3

    O caminho de Volta
    Ressurreição
    Retorno com o Elixir

    Livros para levar na estrada

    Trilogia dos Espinhos – Mark Lawrence (Darkside)

    Série Os Cavalheiros Bastardos – Scott Lynch (Arqueiro)

    Os livros da Cosmere – Brandon Sanderson (Leya)

    A Roda do Tempo – Robert Jordan (Intrínseca)

    A Torre Negra – Stephen King (Suma de Letras)

    Livros da Terra Média – J. R. R. Tolkien (Martins Fontes)

    Crônicas de Gelo e Fogo – George R. R. Martin (Leya)

    Série A Companhia Negra – Glen Cook (Record) – Resenha

    Série O Livro Malazanos dos Caídos – Steven Erikson (Arqueiro)

    Discworld – Terry Pratchett (Conrad/Bertrand) – Resenha

    – The Dresden Files – Jim Butcher

    – Traitor Son Cycle – Miles Cameron

    Série Revelações de Riyria – Michael J. Sullivan (Record)

    Série Ciclo das Trevas – Peter V. Brett (Darkside)

    A Saga de Ender – Orson Scott Card

    A Guerra do Velho – Jon Scalzi (Aleph)

    Elric de Melniboné – Michael Moorcock (Generale)

    Crônica do Matador do Rei – Patrick Rothfuss (Arqueiro)

    – The Expanse – James S. A. Corey

    – The Rain Wild Chronicles – Robin Hobb

    Trilogia Oryx e Crake – Margaret Atwood (Rocco)

    Maurício Ieiri é um historiador que não faz História. Atualmente, tentando descobrir o que fazer com sua vida, partindo deste exato momento até o dia em que morrer. No meio tempo, escreve ficções. Participou do blog coletivo Os Caras do Clube.

  • 15 Séries Imperdíveis de Todos os Tempos

    15 Séries Imperdíveis de Todos os Tempos

    15 Séries Imperdíveis de Todos os Tempos

    Em tempos de jornalismo de listinha, aí vai uma lista das minhas séries que, além de grande qualidade estética e/ou narrativa, trouxeram grande contribuição para a qualidade na TV. Também coloquei menções honrosas, desonrosas e aquelas sem muita importância, sempre de séries que acompanhei. Para esta lista excluí algumas séries mais famosas e já debatidas em demasiado, que apesar de terem sido influentes, sofreram problemas graves de produção que afetaram sua qualidade, como Arquivo X ou Twin Peaks.

    1. The Wire

    The Wire

    A considerada “série das séries” realista da forma mais ficcional possível. Ou ficcional da forma mais realista possível. O tráfico de drogas. Tensões raciais. O crime. A polícia e todo o caldo cultural americano envolvido em uma narrativa simples, direta, crua e não perfeita, mas sempre honesta.

    2. The Sopranos

    The Sopranos

    A máfia ítalo-americana de Nova Jersey em sua forma mais crua. Com personagens densos e com dilemas sempre interessantes, mesmo os mais simples até os mais esdrúxulos, nunca menospreza o espectador. É O Poderoso Chefão sem glamour, mas com toda sua força narrativa, que também apesar de simples, não perde em nada por isso.

    3. Six Feet Under (A Sete Palmos)

    A Sete Palmos

    Uma família normal do subúrbio da Califórnia, a não ser pelo fato de serem extremamente disfuncionais e serem donos de uma agencia funerária. O humor negro, as alucinações narrativas e os personagens mais inconsequentes possíveis fazem qualquer pessoa se apaixonar pela série. Se você não gostou é porque não estava no momento certo. Veja de novo.

    4. Seinfeld

    Seinfeld

    A sitcom das sitcoms. Larry David e Jerry Seinfeld mudaram a TV quando trouxeram para ela esse formato repaginado da comédia sobre situações mundanas e da relação entre quatro amigos problemáticos e com personalidades diferentes, mas que se complementavam. A ajuda de roteiristas malucos também fez a diferença. Inimaginável a TV sem eles, pois daí surgiu a fórmula que deu origem a Friends e todas as outras sitcoms da atualidade.

    5. Community

    Community

    Um grupo de estudantes de uma universidade comunitária nos EUA seria algo super normal, não fosse o local mais estranho e que juntasse as pessoas mais desajustadas da sociedade no mesmo lugar. Utilizando de referências a cultura pop mas sem se apoiar exclusivamente nela, Community oferece uma comédia de alto nível raramente visto na TV. Por causa de problemas de produção algumas temporadas foram ruins, mas seu legado permanece.

    6. The IT Crowd

    The IT Crowd

    O humor britânico em sua forma. Misturando situações esdrúxulas, tirando sarro de estereótipos de técnicos de TI e de todo o mundo corporativo, essa curta série britânica tem o maior índice de momentos memoráveis por episódios que já vi. São quatro temporadas de seis episódios. Curta demais para algo tão bom.

    7. Mad Men

    Mad Man

    Uma das melhores produções da TV. Mad Men retrata o mundo corporativo da publicidade do auge do american way of life nos EUA, e retrata cruelmente não só o mundo dos negócios, mas também a sociedade da época sem fazer concessões.

    8. Louie

    Louie

    Louis CK aqui deixa de lado seu humor mais escrachado e se volta a uma dramédia com toques surreais e situações inusitadas que divertem ao mesmo tempo que fazem o espectador se questionar porque está rindo daquilo. Também uma das melhores coisas em exibição hoje na TV.

    9. American Dad

    American Dad

    Ao estilo Family Guy, mas mais ácida, mais maluca e mais criativa, American Dad satiriza o estilo de vida americano de forma mais contundente e engraçada do que o principal produto de seu criador. Mesmo com vários problemas de produção, ainda se mantém como uma das melhores animações da TV.

    10. Archer

    Archer

    Uma comédia adulta, só que nem tanto. Ao retratar como seria uma agencia de espionagem conduzida por pessoas com todos os distúrbios sociais e psicológicos possíveis, o resultado não poderia ser outro. É algo como uma mistura de Family Guy com 007, só que melhor que ambos.

    11. Band of Brothers

    Band of Brothers

    Uma das primeiras séries que vi, e uma das primeiras produções fechadas da HBO, que ainda não sabia estar produzindo a chamada “Era de Ouro” da TV. Uma série sobre um destacamento de soldados americanos na 2ª guerra, ao melhor estilo O Resgate do Soldado Ryan.

    12. Sherlock

    Sherlock

    O maior detetive de todos os tempos, mas modernizado. E feito por ingleses, garantindo uma atmosfera típica que só eles conseguem criar. Casos mirabolantes e cada vez mais inverossímeis não importam. A leveza com que os atores interpretam os excelentes roteiros e a química entre todos faz essa uma das melhores séries do gênero. FUJA da versão americana Elementary

    13. Wallander

    Wallander

    Livros policiais são moda na Suécia faz tempo, mas a série Wallander, também britânica, traz o veterano ator Kenneth Branagh como o também policial sueco Kurt Wallander, que além de resolver crimes com um faro policial aguçado, mas sem malabarismos, precisa cuidar dos problemas particulares com seus pais, filha e sempre na corda bamba para não ser vítima do próprio comportamento. Excelente para quem curte um bom drama policial.

    14. Rectify

    Rectify

    Daniel Holden fica preso numa solitária por 15 anos por um crime que não cometeu. É solto por evidencias de DNA e precisa reaprender a conviver em sociedade, mas em uma pequena cidade no interior dos EUA que ainda acha que ele cometeu o crime. Também um excelente drama.

    15. Breaking Bad

    Breaking Bad

    Ok, essa todo mundo viu e nem precisaria falar, mas apesar de todos os problemas narrativos e atalhos preguiçosos, a jornada de Walter White se mostra muito interessante (menos por ele, uma cópia mal feita de Tony Soprano) especialmente por conta de outros personagens como Mike, Saul e outros. Porém, o ponto positivo ainda é a espetacular cinematografia, que ajudava a contar visualmente uma história.

    Menções Honrosas

    Sons of Anarchy (história cafona, mas com personagens interessantes, vale a pena);
    Homeland (interessante história sobre terrorismo mas que as vezes se perde);
    Episodes (Muito boa série de comédia sobre bastidores de uma…série de comédia);
    Treme (do mesmo autor de The Wire, os mesmos elementos, mas dessa vez lidando com Nova Orleans pós-Katrina);
    The Knick (A NY do início do século XX é palco dessa série sobre médicos tentando expandir as fronteiras da cirurgia enquanto lidam com os mais diversos problemas e barreiras. Muito bem contextualizada social e culturalmente);
    – True Detective 1ª temporada (Excelente série policial sobre um culto no sul dos EUA, com um grande destaque para a atmosfera e música americanas da região. Não veja a 2ª);
    Fargo (Baseada no filme dos irmãos Coen, adotando o formato de antologia, possui uma 1ª temporada Ok e uma 2ª excelente);
    Flight of the Conchords (como seria se os hipsters fossem engraçados ou interessantes como pensam que são);
    Séries da Marvel na Netflix (Demolidor e Jessica Jones são boas, mas não perfeitas. Problemas especialmente na narrativa. Mas Luke Cage eu nem vi e já gostei);
    House of Cards (apesar de cansativa, é um interessante debate sobre bastidores da política institucional);
    Mr. Robot (interessante história sobre hackers e cyber ativismo no século XXI, mas o lado pessoal da trama deixa a desejar);
    Black Mirror (Antologia britânica de minicontos de ficção científica com debates muito interessantes sob os mais variados temas);
    Friends (Praticamente a primeira sitcom que veio na esteira do sucesso de Seinfeld, trouxe um humor mais diluído e açucarado, mas a boa química entre os atores e algumas temporadas de nível acima de média – especialmente a 4ª e a 5ª – garante uma boa diversão, mesmo que no final a série perca muito o fôlego).

    MENÇÕES “MEH”

    House M.D. (8 temporadas, OITO, da mesma coisa);
    Californication (7 temporadas, SETE, da mesma coisa);
    Game of Thrones (ok gente, 1ª temporada excelente, mas depois foi só ladeira abaixo, vamos agilizar esse novelão aí. Já, já encontra The Walking Dead na falta de coragem);
    Hannibal (Um clima muito bom, as vezes diálogos interessantes, mas derrapam demais na enrolação e condução da história);
    The Killing (Um clima muito bom, as vezes diálogos interessantes, mas derrapam demais na enrolação e condução da história);
    The Mentalist (Um protagonista interessante, mas só. Faltou desenvolver o lado crítico que começou forte contra os charlatães. A obsessão e consequente resolução desastrosa do vilão principal deixou muito a desejar);
    Boardwalk Empire (De uma 1ª temporada excelente a episódios cada vez mais comuns e uma trama mais diluída em conflitos menores e desinteressantes);
    Agents of Shield. (é tão ok que nem tem muito o que dizer. Não vale a pena nem para se manter por dentro do Marvel Cinematic Universe. Veja só caso não tenha absolutamente nada a ver. Ou caso goste do Phil Coulson e do ator que o interpreta);
    Narcos (era para todo mundo gostar, mas é um discurso sobre drogas tão raso, com vários elementos requentados de Tropa de Elite que… Veja The Wire. É melhor :P);
    Supernatural (Apesar de algumas temporadas muito boas no começo, a série definitivamente abandonou qualquer ambição em meados de sua 6ª temporada, onde os irmãos Winchester se viram morrendo, ressuscitando, visitando o céu, o inferno e no meio de um conflito celestial. Se mantém no ar pela grande audiência, mantida por um público cativo, especialmente de adolescentes).

    Menções Desonrosas feat NÃO VEJA ou PARE DE VER

    The Big Bang Theory (Dez anos de atores repetindo falas, bordões e comportamentos são legais apenas porque fazem referencia a quadrinhos? Zorra Total é mais eficiente que isso);
    The Walking Dead (George Romero já disse que a série é ruim. E é. Drama arrastado, com personagens chatos, e que se baseia apenas em cliffhangers para manter a audiência. Desonesta e mal produzida até o osso);
    Lost (Um dos começos mais promissores com um dos piores finais que já foram exibidos na TV. Não perca seu tempo);
    Dexter (Um dos começos mais promissores com um dos piores finais que já foram exibidos na TV. Não perca seu tempo)²;
    Séries de heróis da DC. Não veja.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Resenha | Homens Difíceis – Brett Martin

    Resenha | Homens Difíceis – Brett Martin

    homens dificeis - brett martinEntre o final do século XX e o início do XXI, um seleto grupo de séries televisivas dramáticas revolucionou não só o meio, mas mudou completamente a forma como assistimos à televisão nos dias de hoje. Brett Martin, colaborador de diversas revistas e jornais, conseguiu entrevistar os criadores das séries, roteiristas, elenco, equipes de filmagem e executivos, e conseguiu documentar este momento único no livro Difficult Men: Behind the Scenes of a Creative Revolution, From The Sopranos and The Wire to Mad Men and Breaking Bad – traduzido e lançado no Brasil pela editora Aleph sob o título Homens Difíceis – Os Bastidores do Processo Criativo de Breaking Bad, Família Soprano, Mad Men e Outras Séries Revolucionárias.

    Começando por The Sopranos (1999), Six Feet Under (2001 – review aqui), The Wire (2002 – review aqui) e Deadwood (2004 – review aqui) da HBO, passando por The Shield (2002) do FX e terminando em Mad Men (2007) e Breaking Bad (2008) da AMC, Difficult Men analisa os bastidores destas séries para tentar entender como ocorreu a revolução que mudou a forma como apreciamos um programa televisivo atualmente.

    Não é preciso dizer que existem spoilers das séries durante a análise do livro, por isso recomenda-se assisti-las antes, inclusive para acompanhar melhor o raciocínio do autor. Segundo Brett Martin, estamos vivendo uma terceira Era de Ouro dentro da história da televisão moderna. O livro começa analisando as outras duas eras de ouro da televisão, uma logo no seu início, nos anos 50, quando os roteiristas tiveram mais liberdade para criar, pois estavam explorando os primeiros anos do novo meio, e a segunda no início dos anos 80, com a explosão do videocassete, fazendo com que a demanda de programas e telefilmes aumentasse não só em quantidade, mas em qualidade. Já a terceira era de ouro, segundo Martin, vai desde The Sopranos, 1999 até 2013, ano do lançamento do livro, e termina como uma junção dessas duas: a explosão dos DVDs no final dos anos 90 e o streaming no meio dos anos 2000, permitindo que as histórias seriadas, feitas por roteiristas com liberdade criativa, pudessem ser acompanhadas com mais facilidade.

    HBO Premiere Of "The Sopranos" - After PartyOs dois desbravadores: James Gandolfini, o falecido ator que deu vida a Tony Soprano, e David Chase

    DavidSimonOmar2David Simon, criador de The Wire, e Michael K. Williams, que interpretou o personagem mais famoso, Omar Little

    Por que homens e por que tão difíceis? Segundo Martin, os EUA estavam divididos por causa da eleição americana em que George Bush venceu de maneira controversa, permitindo o avanço da direita radical através das guerras do Afeganistão e Iraque. Agora, quem comanda o país não está mais interessado em dialogar, mas em impor; e não quer ajudar os mais pobres, caso do desastre causado pelo furacão Katrina. O país foi comandado por homens difíceis, eleitos graças a um desejo que vinha aflorando desde os anos 90 por boa parte da população.

    Para definir o que entraria ou não em sua análise, o autor decidiu escolher séries dramáticas da TV a cabo com uma história contínua (ao invés das episódicas – onde toda a trama inicia e termina no mesmo episódio) e temporadas menores, de 10 a 13 episódios de uma hora. O que importa agora são séries que têm feito sucesso há mais de 15 anos por centrarem-se em figuras masculinas tão controversas quanto improváveis: um chefe de máfia que sofre de depressão; uma funerária administrada por uma família de malucos; um detetive de polícia narcisista e um bandido que rouba outros bandidos; o dono de bar mais politicamente incorreto de todo o Velho Oeste; um chefe de esquadrão de polícia assassino; um diretor de criação de agência que finge ser quem não é; e um professor de química que passa a ser traficante. Ou, como diz o título do livro, os Homens Difíceis.

    SixFeetUnder_11_SF_380-scaledNo set de Six Feet Under, onde o criador da série Allan Ball passa instruções a Peter Krause, que interpretou Nate Fisher

    20080616090158_milchDavid Milch, criador de Deadwood, conversa com um dos atores do show

    Nunca estes tipos de personagens seriam protagonistas ou teriam espaço maior nas séries tradicionais da televisão aberta norte-americana, com suas longas e desnecessárias temporadas de 22 a 24 episódios e personagens pouco complexos e desenvolvidos. Agora, o que importa são histórias que possuam algum diferencial, em que a personalidade e atitude destes Homens Difíceis imperem e personagens importantes para a trama morram; em um momento que não exista mais a catarse representada pela curva dramática, pois não existe mais final. A realidade havia chegado à dramaturgia televisiva, e o que importa agora é atingir qualidade com o máximo de verossimilhança possível para o espectador.

    Porém, para que houvesse esta ascensão, não se pode esquecer da época que antecedeu estas grandes séries. O autor da obra consegue contextualizar bem a época pré-The Sopranos através dos sucessos de crítica e público da HBO, como OZ (1997) e Sex And The City (1998), e o início de uma noção sobre televisão autoral. Enquanto isso, analisa a história de David Chase, tido como o líder e desbravador de todos os autores de TV, e como ele conseguiu se impor perante os executivos do canal ao ter completo controle sobre a primeira temporada de The SopranosMartin explica que ele negava a rede televisiva, mas acabou aceitando o meio do qual tanto se esforçou em fugir, porém sendo como suas inspirações, os cineastas franceses dos anos 60 e os americanos dos 70. Desta forma, os roteiristas viraram autores, ou showrunners. Brett também analisa a história da HBO e como os executivos da época conseguiram mudar a ideologia da emissora e passar a produzir conteúdo inédito de qualidade.

    73727829Os dois carecas de The Shield: Michael Chiklis, que viveu o detetive Vic Mackey, e o criador Shawn Ryan

    Mesmo tendo controle de sua produção, Chase se deparou com um desafio que pôs em xeque a sua visão de autor, logo antes da metade da primeira temporada, no 5º episódio, College. Durante uma viagem com a sua filha, Tony mata um dedo-duro depois de avistá-lo, impondo algo inédito na televisão até então: a morte de um personagem, que não vilão, a sangue frio pelo protagonista. Confrontado pelos executivos do canal, David Chase aceitou mudar a caracterização do delator, transformando-o em traficante, além de inserir uma cena em que o mostra contratando assassinos para matar Tony, deixando a morte do inimigo mais “aceitável” para o espectador. A importância do episódio em específico, segundo Martin, foi ter se tornado o principal pilar de toda a Terceira Era de Ouro: nunca mais deixar que os executivos interfiram na visão do autor para a história.

    Em algumas partes do livro, o autor descreve como eram as salas dos roteiristas (ou writer’s room – sala dos escritores) de todas as séries citadas. A sala sempre existiu na televisão americanas, mas a de The Sopranos foi diferente, pois mostrou como a imposição de David Chase perante os demais roteiristas e executivos foi importante para passar a sua visão. Ao analisar as salas de roteiristas de The Wire, The Shield e Deadwood, o pesquisador mostrou a diferença entre todas elas, e principalmente as dos escritores que se inspiraram nos pioneiros e acabaram virando autores: Matthew Weiner, criador de Mad Men, era um dos roteiristas de The Sopranos, assim como Terrence Winter, criador de Boardwalk Empire; já Kurt Sutter, criador de Sons of Anarchy, foi roteirista de The Shield.

    Por fim, é necessário ressaltar a importância de cada uma das séries citadas na revolução da Era de Ouro: The Sopranos por ter dado início a este grande momento, mas principalmente por representar a essência de uma série autoral; Six Feet Under, que desconstruiu todo o sonho americano com uma família disfuncional; The Wire pelo realismo; The Shield por mostrar como a polícia pode ser maquiavélica; Deadwood pela reconstituição histórica; Mad Men por explicar como a fantasia é vendida; e Breaking Bad pela direção e fotografia.

    tumblr_luth5sYEzm1qfhewmJon Hamm, intérprete de Don Drapper em Mad Men, conversa com Matthew Weiner, criador da série

    10bad_span-articleLargeO criador de Breaking Bad, Vince Gilligan, dando instruções para os dois astros do programa, Bryan Cranston e Aaron Paul

    O livro foi bem editado, e o tamanho dele está de acordo com a análise do autor. Esta resenha foi realizada a partir da edição em inglês, portanto não há como avaliar a tradução do livro em português que a editora Aleph lançou em 2014.

    Homens Difíceis vale a pena ser lido por quem gosta de séries e entende que elas não estão mais no patamar abaixo do cinema. Hoje em dia, elas se equivalem ao cinema e podem ser consideradas obras de arte, semelhantes aos melhores filmes do ano ou da década, graças a esses pioneiros que conseguiram impor a sua visão na indústria.

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    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Review | Boardwalk Empire – 1ª Temporada

    Review | Boardwalk Empire – 1ª Temporada

    boardwalk-empireImaginem a expectativa para uma série que conta com o roteiro de Terence Winter, conhecido pelo seu trabalho em Família Soprano; Steve Buscemi como um dos grandes protagonistas e ninguém menos que Martin Scorsese como produtor; tudo isso a cargo de uma das grandes emissoras de canal pago, a HBO. Isso é motivo de sobra para deixar qualquer telespectador ansiosíssimo para conferir de perto o que Boardwalk Empire tem à oferecer.

    A história se passa em Atlantic City, em plena década de 20, logo após a chamada Lei Seca (1920-1933) entrar em vigor. Na época, o governo norte-americano julgou que os principais males vividos pela sociedade tinham como fator gerador o consumo do álcool, com isso, a Lei Seca passou a vigorar proibindo a fabricação, comércio, exportação, importação e transporte de bebidas. Logicamente, isso é o que foi vendido na época para os americanos.

    Durante a série conhecemos os bastidores por trás disso tudo e vamos descobrindo que há uma série de motivações políticas e econômicas para a proibição da venda de bebidas alcoólicas. Enoch Johnson (Buscemi), ou simplesmente Nucky, como é conhecido na cidade, é uma figura importante em Atlantic City e usa toda sua influência política para comandar o contrabando de bebida, além de suas casas de jogos e bordéis, tudo isso aprovado pelas principais figuras políticas e administrativas da época, é claro.

    A trama foi adaptada com base no livro Boardwalk Empire: The Birth, High Times e Corruption of Atlantic City (sem tradução brasileira), de Nelson Johnson. A adaptação encabeçada por Winter, faz questão de repetir alguns conceitos trazidos já em Sopranos, como a desconstrução do mafioso inabalável e impetuoso. Se em Família Soprano temos Anthony (James Gandolfini) expressando todo o seu descontentamento no divã de Jennifer Melfi (Lorraine Bracco), em Boardwalk Empire, décadas atrás, temos Nucky representando nós homens, acuados pelo papel que nos é imposto pela sociedade.

    A crise de identidade masculina tornou-se mais constante após a revolução sexual que ocorreu nos anos 1960, contudo, é um assunto muito pouco abordado, mesmo nos dias de hoje. O roteiro de Winter, mesmo sendo ambientando na década de 20 é extremamente atual, mostrando registros fiéis do homem contemporâneo e jogando por terra a figura do macho alfa, seguro e independente, e expondo sua insegurança e busca por quem é de verdade.

    Além disso, Boardwalk Empire faz uma reconstituição de época primorosa, destacando eventos importantes como a votação feminina, o preconceito racial, a ascensão de Al Capone, a eleição do próximo presidente americano, tudo isso de forma natural e competente. Esses detalhes de roteiro e direção de arte só enriquecem a trama.

    Falar da qualidade das atuações é bobagem, afinal um elenco que conta com Buscemi, Michael Pitt, Michael Shannon, Kelly Macdonald, entre tantos outros, não poderia dar errado. As personagens fazem questão de focar em todos os nuances de suas personalidades, dando credibilidade e enriquecendo toda a estória que nos é apresentada.

    Com uma primeira temporada impecável, Boardwalk Empire está muito acima de tudo o que vem sendo exibido na televisão no momento. Essa é uma daquelas séries que dá um passo à frente para estabelecer a televisão muito além de entretenimento barato. Que venha a segunda temporada!