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  • Resenha | Contos Inacabados – J.R.R. Tolkien

    Resenha | Contos Inacabados – J.R.R. Tolkien

    Para J.R.R. Tolkien, a fantasia é tangível tal uma imaginação tão nobre, que merece ser palpável aqueles que nela mergulham. Peter Jackson entendeu isso, e fez da Terra-Média nos cinemas algo vivo, e pulsante. Ainda assim, sempre esteve em seus três grandes filmes passos atrás da força literária das experiências imersivas do mestre absoluto da fantasia moderna, tanto em narrativas acabadas e coerentes como as de O Senhor dos Anéis, O Hobbit e O Silmarillion, quanto em outros de seus tratados menos conhecidos. De posse de inúmeros contos incompletos que habitavam apenas a mente multicriativa do autor para servirem de rascunho a algo muito mais ambicioso, uma verdadeira colcha de retalhos sobre o mundo extremamente real que existia na cabeça (e nos dedos) de Tolkien, seu filho Christopher Tolkien tratou de reunir todos os manuscritos originais, sete anos após o falecimento do seu pai, em um único e honorável volume da editora WMF Martins Fontes, no Brasil.

    Assim, a fim de aprofundar o encantamento das obras do mestre, concebeu em quase seiscentas páginas um longo objeto de análise da impagável e inesgotável potência fantasiosa de Tolkien – ainda que não tão empolgante quanto suas outras inserções sem-par no gênero. Longe de transmitir um gosto de esgotamento ou abuso as ideias sem fim do pai, Christopher nos propõe imprimir uma coerência e uma fruição dinâmica entre narrativas inacabadas, apêndices discursivos e notas descritivas a respeito de inúmeros detalhes, e coisas não-ditas e não-escritas que sempre habitaram o pano de fundo de suas populares histórias. Isso nos faz imaginar quais notas enriquecedoras (e obscuras) podem existir, para sempre escondidas, acerca de Dom Quixote, Dom Casmurro e, porque não, as peças de William Shakespeare. O que seus grandes autores também não deixaram de fora dos seus escritos principais? Anotações oriundas de consciências naturalmente privilegiadas.

    Tarefa hercúlea como só, logo na introdução já atestamos as dificuldades da produção de Contos Inacabados, uma vez que cada conto demandou um tratamento diferente, combinando alguns relatos curtos do próprio Tolkien ao longo dos textos, e pedaços de outras citações que o autor foi dando ao longo da vida sobre aspectos complementares à sua gigantesca obra – sempre alimentando e sofisticando a mitologia de suas criações, lendas e entidades tão imortais, quanto as palavras que as descrevem. Aqui, tais “retalhos” são divididos entre a primeira era (que dá cabo de grande parte dos detalhes da fantasia principal de O Silmarillion), uma segunda era (reservada principalmente a exploração da geografia da Terra-Média, e a etimologia de vários nomes que já fazem parte do grande arco do O Senhor dos Anéis, como o sábio Gandalf e a magnífica Galadriel) e uma terceira era, estabelecendo nesta última faixa temporal recortes interessantes de muito do que foi lido (e visto) em A Sociedade do Anel – revelando inclusive que Gollum fugiu para Moria para escapar dos agentes de Sauron, atrás dele devido a certeza de que a criatura sabia onde estava escondido o Um anel.

    É certo que o magnetismo que Tolkien desperta não precisa de um grande acabamento a preencher tudo aquilo que não é descrito em suas narrativas fundamentais. Assim sendo, Contos Inacabados acaba sendo um complemento de luxo aos mais curiosos e ávidos pelos pormenores de uma história quase que interminável (através das gerações que (re)modelaram os destinos da Terra-Média) devido suas proporções realmente majestosas, e repletas de inspiração aos próximos mestres da fantasia – e não um mero escapismo, como muitas vezes é confundida, hoje em dia. Não se deve negar a oportunidade de conhecer o processo criativo dos grandes mestres, por mais tortuoso e nada glamoroso que este possa ser, mas não estar a par de suas minúcias não resume seus efeitos sobre os fãs do material. Se em Silmarillion nós conhecemos as fundações dessa dimensão de dragões e inúmeras formas de poder, Christopher Tolkien nos apresenta a reunião dos blocos de notas do seu pai – extensos o bastante para preencher um tijolo literário enriquecedor ao grande todo, mas um tanto desnecessário, no uso menos cruel possível da palavra.

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  • Resenha | O Silmarillion – J.R.R. Tolkien      

    Resenha | O Silmarillion – J.R.R. Tolkien      

    Chega a ser um exercício realmente doloroso imaginar ser possível outro compêndio de histórias fantásticas mais poderoso, instigante, hipnótico e fascinante que O Silmarillion. Engana-se quem um dia já considerou que o mais importante escritor de obras de fantasia do último século, Sir J.R.R. Tolkien, foi tirando da sua cartola de infindável criatividade toda a gama mitológica que permeia e ronda as tramas principais de O Hobbit, e O Senhor dos Anéis, enquanto os escrevia. Diferente de outros autores de outras populares obras que acontecem em mundos próprios, como a Terra-Média dos elfos, anões e entidades além de qualquer maniqueísmo, Tolkien mantinha consigo anotações que remontam a 1917, escalonando nelas toda a história por trás da icônica história central de Frodo, Gandalf, Gollum e companhia.

    O escritor foi o verdadeiro Deus do universo que havia criado e montado, mas não a partir de improvisação, e sim a base de uma espetacular narrativa temporal crescente a serviço de algo muito maior, e mais ambicioso, ainda. Quatro anos após o falecimento de Tolkien, na década de setenta, todos esses contos foram reunidos num só volume, coletando tudo numa bíblia sobre o mais completo cosmos fictício que uma cabeça pensante sozinha já idealizou, e que se tem indícios a respeito. Contos esses que servem como um Antigo Testamento para tempos muito, mas muito antes da Sociedade do Anel se juntar, a chamada Primeira Era – a história que Peter Jackson adaptou para o cinema se passa só no final da Terceira, e pode-se ter certeza: muita coisa bem mais interessante já havia acontecido antes, desde que Eru, o Único, criou os Ainur para lhes fazer companhia antes de tudo, e antes de todos.

    Os Ainur então se faziam como uma raça perfeita, musical e harmônica como nenhuma outra, no puro espectro de uma raça virginal sobre qualquer mal e que continha, entre seus poderosos e alegres irmãos, Melkor, com sua ambição e seu desejo de criar coisas por si mesmo. Ora, se Eru concedeu inúmeros dons a seus filhos, e Melkor era o mais poderoso e astuto entre eles, quem poderia pará-lo ou renegá-lo senão o próprio Pai supremo? De sua ambição, brotou uma ganância e um orgulho radicais, e logo Arda (nome aqui usado para chamar nosso Sistema Solar, ou o próprio Planeta Terra) se encheu de vida e das influências dos Ainur, daqueles seres iniciais de que todo o bem e suas entidades majestosas derivam, mas também das energias de Melkor, vulgo o temido Morgoth, o grande deus de todo o mal e corrupção e inveja (criando aliás os terríveis orcs, nas fossas da Terra), ao longo da chegada de novas raças, novas lendas, novos impérios e inúmeras ascensões e quedas a construir a história de Arda.

    É impossível não traçar uma linha reta que une todos os capítulos de O Silmarillion de seu início, digamos, bíblico, no qual as raízes de uma imensa e impagável mitologia são expostas. Morgoth é uma clara alusão a Lúcifer, aquele que se deixou embriagar pelas possibilidade do Poder, e tramou sua própria e trágica queda. Mas as almas não são a principal obsessão de Morgoth, a entidade maligna e tão perversa que faz Sauron, um dos seus generais e o principal antagonista de O Senhor dos Anéis, parecer completamente inofensivo. Na verdade, Morgoth conspira para alcançar as silmarils, três gemas de infinitos poderes criadas por um poder celestial antes do sol, e da lua. Sendo ele o próprio Mal, astuto e ardiloso, Morgoth consegue roubar as jóias para si e forja uma coroa de ferro para usar as silmarils em seu trono e afundar tudo em trevas, algo paralelo a outros inúmeros eventos que se desenvolvem rumo ao cenário visto muito depois, nos filmes de Jackson.

    Durante toda a Primeira Era de Arda, a história de múltiplos enredos e clímax gira em torno dos deuses e da origem e sobrevivência das linhagens de elfos, homens e anões, sempre à mercê de seus próprios ímpetos de glória (ou não), e a resistência de todos contra a confusão que vinha das sombras da simples existência de Morgoth, e dos confrontos dos exércitos dos quatro cantos do mundo para tentar recuperar as silmarils, deter a escuridão, e preservar toda a beleza e a riqueza ancestral de uma realidade sempre constituída e agraciada pelo icônico texto de Tolkien. Fica-nos claro, então, que O Silmarillion é, principalmente, sobre o caldo primordial dessa profunda mitologia modelada, diversas vezes, por batalhas quase sempre motivadas por ganância, e um espírito de conflito que parece permear os seres vivos pensantes guiados mais por instinto, que pela consciência.

    Não deixa de ser uma crítica a irracionalidade dos seres humanos, a incapacidade de nos acertarmos, uma vez que podemos nos enxergar várias vezes nas ações dos personagens, aqui, mesmo vários sendo deuses ou monstros cabulosos. As inspirações de Tolkien com os idos dos cavaleiros da távola redonda, com as fábulas e as lendas do nosso mundo antigo sobre o abismo além-mar nos soam familiares na maior parte da leitura, mas o gosto oriundo da clássica imaginação do velho mestre é forte e latente o suficiente para nos afogar em um bálsamo criativo que todas as suas ideias exalam, muito maior que a dimensão das páginas que as contém. Como não se importar com as terras, os grandes amores e as entidades (mortais, ou não) que Morgoth tenta influenciar e subjugar, para alcançar o poder das jóias sagradas e, com elas, tentar permanecer? Eis uma leitura de ouro que vale por mil outras, e que desde seu lançamento póstumo a vida do autor, merece um lugar consagrado nas nossas prateleiras.

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  • Crítica | Tolkien

    Crítica | Tolkien

    O início de Tolkien, filme biográfico dirigido por Dome Karukoski se dá com uma cena fantástica, de luta dentro do contexto mitológico que o autor de Senhor dos Anéis escreveria alguns anos depois. Não demora a ser mostrado J.R.R. Tolkien, de Nicholas Holt, deitado em uma cama de uma das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, ondeserve e tem até uma posição de prestígio. O filme da Fox Searchlight talvez seja uma das ultimas produções mais graúdas do estúdio, que está sob risco de acabar, graças as decisões comerciais da Disney, que comprou a Fox e  suas companhias secundarias.

    O filme não tem uma linha de tempo principal, varia muito entre o período adulto pré Guerra, durante o conflito e o pós, além de mostrar a infância do futuro escritor, que na época era conhecido com Ronald e era vivido por Harry Gilby, que aliás, tem um desempenho melhor e mais emocional que Hoult. É na fase infantil que o longa apresenta seus melhores momentos, pois a maior parte onde ele já é crescido, é envolto em alguns problemas narrativos sérios.

    A trilha é manipuladora e isso se percebe já nos primeiros momentos, pois há uma tentativa de encurtar o jogo de sentimentos em clichês muito gratuitos, e que irritam o espectador que tem qualquer senso crítico. A parte romântica piora a trama ainda mais, soando excessivamente melodramática. O casal formado por Holt e por Lily Collins também não tem funciona, não há química, fato que complica demais o espectador julgar bem a historia como um todo.

    A adaptação ganha ares de  uma cine biografia genérica, e que piora  por ter um início divertido e inventivo, misturando autor e obra em um som argumento. As idas e  voltas da narrativa, variando entre guerra, amor e infância cansam, não há um foco realmente certeiro em nenhum deles. O filme funciona fundamentalmente quando se permite ser onírico, nos sonhos do futuro autor, que se aventura por paisagens que lembram a Terra Média e o infortúnio de Frodo, em paralelo com a desolação de seu criador quando está no campo de batalha. Holt não segura bem o filme, é um protagonista com zero carisma. O final de Tolkien tenta evocar o lado escritor do protagonista, mas o faz de maneira tão piegas que boa parte do caráter épico de sua trajetória de vida e da sua obra são banalizadas. Karukoski tem uma mão pesada, e que não funciona na maior parte de seus longos 112 minutos.

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  • A Jornada do Leitor

    A Jornada do Leitor

    Todo herói tem um arco, uma jornada. Cada personagem – ao menos de escritores que sabem o que estão fazendo com as mãos num teclado – tem um papel dentro da trama principal. É o arco narrativo, sua jornada do início ao fim, sem importar quão frívolos sejam seus motivos ou abrupta sua morte. Ao analisar narrativas dos principais textos de diferentes religiões num brilhante estudo de mitologia comparada, Joseph Campbell notou avanços narrativos semelhantes, em que personagens diferentes preenchiam partes idênticas nos mecanismos internos dos contos, assim o próximo passo do protagonista invariavelmente seguia uma lógica. O Herói de Mil Faces, Campbell chamou seu livro, pois a trilha é seguida de novo e de novo e de novo.

    O autor desenvolve seus argumentos sobre o molde narrativo do qual partilham as mais diversas histórias, desde Pulp Fiction até a epopeia de Gilgamesh. Crucial, um dos pontos mais importantes dentro de uma história é a transformação dos personagens de um estado inicial até o ponto de chegada, quando retornam para uma normalidade, profundamente mudados pelo caminho, pelo percurso da Jornada. Harry Potter, Luke Skywalker e Rick Blaine atravessaram os mesmos passos: uma velha estrada de tijolos amarelos que já foi percorrido por Dorothy. Todos eles tinham um desejo, uma aspiração que dá o pontapé inicial de suas histórias. Na Jornada, é essencial que se deseje algo. Mesmo que seja um copo de água fresca, como disse Kurt Vonnegut. São nos passos identificados no “O Herói de Mil Faces” que as histórias se desenrolam, com ou sem variações, e a vontade de virar a página ganha contornos urgentes. Ao leitor desatento, pode parecer um tanto formulaico, mas a Jornada é algo sutil, uma trama em que mãos habilidosas podem bordar qualquer coisa maluca que se passa em sua mente.

    De forma resumida, cada personagem responde com hesitação antes de aceitar o Chamado da Aventura, o acontecimento surpreendente e muitas vezes surreal que inicia, de fato, o plot: Gandalf bate à porta de Bilbo Bolseiro logo no início de O Hobbit, e, anos mais tarde, Frodo herda um certo anel, dando os primeiros passos em uma das jornadas definidoras de todo um gênero, O Senhor dos Anéis. Tal Chamado gira todas as rodas dentadas que trabalham por trás das linhas e parágrafos que você deita os olhos, jogando os protagonistas num mundo desconhecido onde contam com um Mentor – palavra que vem do grego menos, que significa desde força, propósito, até mente, espírito ou lembrança -, em que o caminho até o próximo passo da Jornada, a Caverna Misteriosa, será permeado por aliados, inimigos e provações. No Hobbit, Bilbo encontra Gollum e Frodo chega até Mordor. O herói que perseverar no caminho, retornará ao velho mundo onde sua jornada começou e, com os tesouros e ensinamentos da estrada percorrida, faz o leitor respirar aliviado depois de Bilbo ter enfrentado os perigos de um dragão ganancioso e o fiel Sam empurrar seu amigo na direção certa, um dos momentos de maior carga emocional de “O Senhor dos Anéis”. Agora, o herói precisa enfrentar seu real perigo antes de prevalecer sobre o mal: a Batalha dos Cinco Exércitos e a Montanha da Perdição, para continuar com os exemplo de Tolkien.

    É a jornada do herói, com ou sem maiúsculas; o arco. Ainda me lembro de uma das cenas preferidas de Família Soprano, quando o jovem e explosivo Christopher Moltisanti pergunta ao mentor Paulie, um mafioso da velha guarda, onde estava o seu arco, pois nada de interessante acontecia em sua vida.

    “E daí,” Paulie responde, numa calma enervante, “eu estou vivo. Eu sobrevivo”.

    Christopher enterra os dedos no cabelo. Como ele pode não entender? “Não quero apenas sobreviver. Os manuais de roteiro dizem que cada personagem tem seu arco. Entende? Todo mundo começa em um lugar, e eles fazem algo. Algo acontece a eles. E isso muda suas vidas. Isso é um arco. Onde está o meu arco?”.

    Foi a angústia de Christopher, um personagem com o qual pouco me identifico, que tomou conta de meus pensamentos quando li as últimas linhas da A Roda do Tempo, uma série composta de catorze tijolos – e um tijolinho de prefácio -, totalizando algo em torno de doze mil páginas. Doze mil páginas. Milhões de palavras. E mais arcos de personagens do que eu poderia contar de cabeça. Claro, em (quase) todos os livros da série o leitor pode encontrar começo, meio e fim para as diversas histórias que se desgarraram da linha narrativa principal e acompanhar o crescimento das personagens que mais cativam ou detestam. A Roda do tempo é uma longa jornada, talvez a maior que já percorri – com grande chance de ser a maior que jamais percorrerei -, uma estrada esburacada, com altos e baixos, longas tempestades e mais paradas que o ideal, uma viagem que talvez exija uma ou outra pausa a fim de trocar pneus carecas e reabastecer a água do radiador. É uma história épica que envolve até mesmo o Tempo em si, com T maiúsculo, onde Luz e Escuridão duelam em grande escala e a existência do mundo depende de quem sairá vitorioso. É o maniqueísmo de Tolkien em maior escala.

    A Roda do Tempo e o leitor

    Não vou perder nosso tempo com um resumo do mundo ou da história quando dezenas de análises e críticas estão aparecendo aqui e ali, enquanto a série começa a fazer sucesso na Terra Brasilis. Basta dizer que há altos e baixos, defeitos e virtudes, grandes lições de escrita; Vale lembrar que a última porção da história foi escrita por Brandon Sanderson por causa da morte do criador, Robert Jordan, afinal é difícil escrever depois de morto. Sanderson fez um ótimo trabalho e o último volume é um clímax de novecentas páginas – o maior capítulo, A Última Batalha, tem mais de 180 páginas.

    Levei seis anos para ler “A Roda do Tempo”. Partindo do meu Chamado de Aventura – inspirado por uma música da banda alemã Blind Guardian – até o Retorno com o tesouro, anos se passaram e centenas de outros livros, sem exagero, foram lidos, tanto para trabalho quanto lazer. Nesse meio tempo, comecei e terminei outras séries e trilogias, mas a Roda do Tempo sempre esteve no fundo de minha mente, ganhando novos contornos enquanto eu me reabastecia com outros autores, escritas e gêneros diferentes.

    Em paralelo a narrativa, analisava minha jornada de leitor, sobre como os dias podem girar em torno do livro em suas mãos, sobre nosso próprio crescimento, mudanças, derrotas e vitórias enquanto vivenciamos tantas outras jornadas. Da mesma forma que nosso herói tem mil faces, também as temos, cada um de nós. Desejamos, buscamos e nos transformamos em algo… bem, em algo diferente. Pergunte ao Kafka, se quiser.

    Quando li o primeiro livro, O Olho do Mundo, estava deitado no meu quarto, sozinho, febril e em Lisboa, morando numa casa cheia de gatos. Eu era um mestrando em História da Expansão e dos Descobrimentos, dissertando com a ajuda de mapas antigos sobre a formação do Japão na mentalidade ocidental entre os séculos XV e XVIII. O primeiro volume de “A Roda do Tempo” segue uma estrutura fixada por Tolkien, com um protagonista seguindo o estereótipo Luke Skywalker, o jovem e ingênuo fazendeiro que se descobre envolvido em acontecimentos maiores e perigosos.  E não foi O chamado de aventura, mas foi UM chamado. É como nos livros da série: não há começos ou fins em “A Roda do Tempo”, mas esse foi um começo. Ao menos isso.

    Eu morava sozinho e seguia uma rotina bem definida. Acordava, engolia meio litro de café e tomava banho para, depois, mergulhar no submundo metroviário de Lisboa e percorrer os corredores úmidos da Faculdade de Letras, onde ficava o centro de pesquisa em que trabalhava. Escrever, pesquisar e realizar enfadonhas tarefas administrativas tomava quase todo o meu dia, além de conversas e risos com pessoas que marcaram minha vida. Eu vivia um arco, afinal. Recém-formado, mergulhado em arquivos de fama internacional, lendo e observando mapas, cartas ânuas de jesuítas que foram ao Japão, além de manifestos de embarcações. Tudo no passado. Todos, viajantes e religiosos, europeu e japoneses, de volta ao pó, uma grande bacia de cinzas e poeira onde eu tinha me enterrado até os cotovelos na mais pura – elétrica – euforia.

    Já no segundo livro da série, vaguei por Londres, onde estava pesquisando a sessão de mapas da British Library. Foi no café do British Museum – onde fui ver a A Grande Onda  – que terminei o livro e já tirei o terceiro da mochila. Antes, pedi outro café. Saí de lá quando me expulsaram, mais de sessenta páginas depois. Voltei para a casa da minha irmã no escuro, a cabeça perdida no mundo criado por Robert Jordan. No meu arco, hoje enxergo que estava numa fase que podia me permitir vagar por mundos imaginários sem prestar muita atenção nos problemas do mundo real. Morando sozinho na Europa, com poucas aulas na semana e um trabalho com horário flexível que me permitia trabalhar em casa, um quando que permitia o luxo de focar nos estudos, conhecer melhor Portugal e afundar meu nariz nos livros. Ler até derrubar o livro no meu rosto, até esfregar olhos queimando e resolver fazer café às quatro da manhã, para tentar extrair mais um capítulo, quem sabe dois. Olhando para trás, eu deveria ter saído mais de casa, pergunte à Rosa.

    Quando voltei ao Brasil e morei em Campinas, comecei a escrever ficção. Corria quase todos os dias. Li mais. Enrolei minha dissertação e fiquei noivo. O tempo passou e eu estraguei um dos joelhos, começando um lento caminho de volta ao sobrepeso, quando meus quilos perdidos na corrida voltaram com novos amigos e a ficção ganhou espaço no meu cotidiano e nas minhas ambições. Foi talvez no sexto livro de “A Roda do Tempo” que decidi – ou melhor, fui empurrado a aceitar o que estava diante do meu nariz – trocar de profissão. Adeus vida acadêmica, olá rotina de escrita e edição. E desespero, claro.

    Atravessando a narrativa

    Conforme riscava os títulos de minha lista de leitura, meu próprio arco avançou. Aniversários, discussões, risadas, bebedeiras e jogatinas, tudo envolvido em muita escrita, leitura e edição. Eu me casei. Terminei meu primeiro livro, com mais de quatrocentas páginas, muitas delas desnecessárias e cortadas com um coração em prantos. Percebi depois que um livro de quatrocentas páginas é um erro se você ainda é um escritor desconhecido. Criei histórias menores, deixei outras depois de duzentas páginas. Meu filho nasceu. Páginas escritas dividiram espaço com mamadeiras e fraldas pedindo atenção. E então, alcancei a Última Batalha e, depois dela, o final de “A Roda do Tempo”. Bem, não O final, mas UM final. “A Roda do Tempo” não tem começos nem fins. Foram seis anos. Foram catorze livros.

    Claro, há relatos, principalmente no Reddit, de monstros que leem uma série deste tamanho em seis meses; outros estão na quinta, sexta, décima sexta – não é mentira – leitura da série. São arcos, tenho certeza: ninguém lê tantos livros – mesmo que seja uma só história – e fecha a última capa sem mudar, sem passar por uma transformação. Mesmo que a transformação seja pela necessidade de livros com fontes maiores para olhos cansados, essa pessoa mudou. No meu caso, a mudança foi gigantesca. Seis anos se passaram. Porcaria. Eu mudei, e muito. Do quarto escuro, iluminado apenas por um abajur amarelado, doente e trancado para deixar os gatos de outra pessoa fora do alcance de minha alergia, para um sofá confortável em nosso apartamento, numa cidade do interior de São Paulo; de minhas pretensões de conseguir ingressar num bom doutorado e viver de aulas e pesquisas, para a perspectiva de pagar contas com as mentiras que saem de minha cabeça e encontram caminho às pontas dos dedos; de namoro à distância – altos e baixos, altos e baixos – para a feliz paternidade dentro de um casamento estável, carinhoso e sincero. Eu cresci e, como um camaleão, minhas cores se transformaram em resposta ao ambiente em que agora vivo. Firmei convicções políticas e agora faço oposição a um governo que não me parece correto, brigo com unhas e dentes contra o monopólio dos veículos midiáticos, contra ambos analfabetismos, científico e político. Não sou apenas um historiador em outro país, cheio de perguntas sobre o que acontecia no passado, em ondas que banhavam o Japão tantos séculos atrás, enquanto o cenário atual me alcançava apenas como murmurinhos incômodos. De um historiador um tanto egoísta e recluso, tornei-me um escritor um pouco menos egoísta e recluso. Um pai, com sono e um sorriso bobo no rosto.

    Encontrei o final de “A Roda do Tempo” e dele passei. Pode apostar que me senti decepcionado com o final e tenho perguntas que nunca serão respondidas, mas estou satisfeito com a clareira no final do caminho. Quando se termina uma série, a sensação que se tem é um misto da nostalgia precoce e liberdade literária. O homem que sou hoje é bem diferente do estudante que ouviu uma música inspiradora e sentiu arrepios nos braços. Os livros da série tiveram pouco impacto nas minhas mudanças – Haruki Murakami, Carl Sagan, Yuval Noah Harari, Eric Hobsbawm e outros tantos tiveram mais importância -, mas servem de perfeito exemplo para o meu arco de herói. Afinal, sou o herói de minha história, assim como você é o personagem principal da sua.

    Minha jornada não é (nada) épica. A sua também não, até que você me prove o contrário. Mas é uma jornada e, caramba, ela é muito importante para quem está preso em seus quilômetros. Desejamos um emprego melhor, perder peso, que amanhã seja feriado e que, pelo amor de Deus, essa chuva dos infernos pare antes do sábado. Desejamos e buscamos, adaptamo-nos ao nosso próprio arco, nosso plot. Oras, estudamos para concursos públicos, brigamos contra chefes gananciosos e discutimos política; dançamos para a chuva parar e, como é um assunto que foge de nossa alçada, traçamos um plano alternativo para o sábado chuvoso, com pizza e jogos de tabuleiro. Talvez pedir meia frango com catupiry e meia calabresa não tenha o mesmo impacto que recuperar a Excalibur ou descobrir que o caminho para casa estava em você esse tempo todo, mas – por Crom! – essa pizza é o seu Chamado da Aventura e, se você não pisar na bola, será o herói de muita gente. São arcos diferentes. Nossa jornada é tediosa. Enfadonha. O oposto de épica. Mas, você sabe, é real.

    Quando Christopher Montisanti pergunta a Paulie onde está o seu arco, ele com certeza enfrentava a terrível angústia de não ser o que idealizava em outros tempos. Naquele fascinante mundo de violência, drogas e incertezas existenciais, Chris tentava se agarrar em algo para continuar sendo ele mesmo. Sem perceber, o jovem mafioso percorria um arco em si mesmo: o bloqueio, a desorientação. Quando chegasse na outra ponta do labirinto, ele seria – fatalmente – um mafioso mais forte. Um homem mudado. E outro arco teria início.

    Mas estou divagando e você já está se perguntando se realmente sou um escritor, tamanha verborragia. Você está lendo um texto sobre a passagem do tempo. Sobre como a saga de Robert Jordan me acompanhou em parte do caminho. Talvez você tenha sua própria Roda do Tempo e possa se identificar com o que exponho aqui. Talvez tenha crescido com Harry Potter e seus terríveis professores, ou tenha acompanhado Roland Deschain em cada passo no difícil caminho até a Torre Negra. Provavelmente sentiu os sóis de Tatooine queimando na pele. Minhas mudanças são acompanhadas de livros marcantes justamente porque sou um leitor antes de ser escritor. Filmes, músicas, relacionamentos, empregos… talvez até casamentos. Com toda certeza, o seu arco também tem um pano de fundo com variáveis e constantes.

    Agora que terminei uma série, meu arco continua. Talvez encontrou outras aventuras e chamados no meio do caminho. Quem sabe precise ir para um Mundo Especial e dele retornar com o Elixir do qual falou Campbell.

    Terminei de ler “A Roda do Tempo” muito, muito tempo depois de ter começado. E agora? Eu não sei para onde meu arco me levará, mas o próximo livro já está presente, com o marca páginas entre o final de um capítulo e o começo do próximo.

    Os passos da Jornada do Herói

    A Jornada do Herói

    Ato 1

    Mundo comum
    Chamado à Aventura
    Recusa do Chamado
    Encontro com o Mentor
    Travessia do Primeiro Limiar

    Ato 2

    Provas, Aliados e Inimigos
    Aproximação da Caverna Secreta
    Provação
    Recompensa

    Ato 3

    O caminho de Volta
    Ressurreição
    Retorno com o Elixir

    Livros para levar na estrada

    Trilogia dos Espinhos – Mark Lawrence (Darkside)

    Série Os Cavalheiros Bastardos – Scott Lynch (Arqueiro)

    Os livros da Cosmere – Brandon Sanderson (Leya)

    A Roda do Tempo – Robert Jordan (Intrínseca)

    A Torre Negra – Stephen King (Suma de Letras)

    Livros da Terra Média – J. R. R. Tolkien (Martins Fontes)

    Crônicas de Gelo e Fogo – George R. R. Martin (Leya)

    Série A Companhia Negra – Glen Cook (Record) – Resenha

    Série O Livro Malazanos dos Caídos – Steven Erikson (Arqueiro)

    Discworld – Terry Pratchett (Conrad/Bertrand) – Resenha

    – The Dresden Files – Jim Butcher

    – Traitor Son Cycle – Miles Cameron

    Série Revelações de Riyria – Michael J. Sullivan (Record)

    Série Ciclo das Trevas – Peter V. Brett (Darkside)

    A Saga de Ender – Orson Scott Card

    A Guerra do Velho – Jon Scalzi (Aleph)

    Elric de Melniboné – Michael Moorcock (Generale)

    Crônica do Matador do Rei – Patrick Rothfuss (Arqueiro)

    – The Expanse – James S. A. Corey

    – The Rain Wild Chronicles – Robin Hobb

    Trilogia Oryx e Crake – Margaret Atwood (Rocco)

    Maurício Ieiri é um historiador que não faz História. Atualmente, tentando descobrir o que fazer com sua vida, partindo deste exato momento até o dia em que morrer. No meio tempo, escreve ficções. Participou do blog coletivo Os Caras do Clube.

  • Crítica | O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos

    Crítica | O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos

    A “beleza” da Cidade do Lago em chamas é a síntese do que funcionou na “nova” trilogia de Peter Jackson, cujos aspectos visuais superam, e muito, o conteúdo da adaptação. A Batalha dos Cinco Exércitos encerra, enfim, a enfadonha trajetória da prequência de Senhor do Anéis, começando pelo que deveria ter sido o encerramento: a morte do Dragão pelas mãos de Bard (Luke Evans), o herói resignado. Ainda neste início, a primeira das (muitas) cenas lamentáveis ocorre mostrando os cidadãos tentando se redimir pela honra do guerreiro, que combateu uma única vez e que é o único lúcido o suficiente para saber que não merece louros.

    A trama se divide em núcleos, como em uma novela. Da parte da Montanha, Thorin (Richard Armitage) se mostra entorpecido pelo ouro e pela Joia Real, a Pedra de Arken. O presságio da guerra inicia-se, mas a multiplicidade de  núcleos, que funcionou perfeitamente nos outros filmes, não repete seu êxito, sendo esta parte a menos interessante no início, especialmente pela proximidade da luta dos que protagonizam a alta classe dos personagens da outra trilogia.

    Apesar do ótimo começo, a batalha para salvar Gandalf (Ian McKellen) termina mal. Até o exagero de poder da parte de Galadriel (Cate Blanchett) e a boa luta de Elrond (Hugo Weaving) e Saruman (Christopher Lee) contra os fantasmas não têm qualquer conteúdo redentório se comparados ao desdobramento da aparição de Sauron, um acinte que já se mostrou errado em A Desolação de Smaug e que se repete desnecessariamente neste.

    O núcleo dos anões torna-se novamente interessante quando os elfos chegam, postados para a guerra. Como no livro, Thorin tem seus motivos justos para não querer dialogar com ninguém, mas sua postura voltada a um comportamento egoísta e maquiavélico empobrece o personagem, e especialmente a sua causa. O torpor do ouro causa uma febre no personagem, uma doença maligna mal apresentada e que facilmente convence os outros 12 anões a seguirem por tal caminho.

    O filme começa a mudar de caráter a partir da apresentação dos exércitos, em bravatas ditas pelo núcleo dos anões de Dain (Billy Connolly) e pelos elfos de Thranduil (Lee Pace), tão  logo esquecidas quando o ódio em comum pelos orcs de Azog se manifesta. Os efeitos especiais são postos à prova, não decepcionando quem os espera. A batalha é sanguinária, com mais figuras lutando entre si do que em um jogo de MMO RPG, fazendo com que os fanboys fiquem liberados a ter orgasmos múltiplos.

    O confronto ganha um caráter ainda mais épico ao finalmente apelar para o guerreiro mais esperado de toda a fita entrar em ação. Após uma reflexão do rei anão, Thorin finalmente vai à luta. Sua armada cavalga em cima de seus bodes montanheses, em busca do antigo rival.  Apesar de serem poucos, o apoio moral dado após a entrada do Rei e de seus próximos ao combate é incomensurável, e até empolgante.

    A postura que Legolas (Orlando Bloom) assume é vergonhosa. O romance não concebido de Tauriel (Evangeline Lily) e Kili (Aidan Turner) joga toda a parceria do arqueiro com Gimli em um tremendo mar de irrelevância. A comicidade excede seus limites na demonstração da velocidade de Legolas, tal como no combate mais esperado da minissaga, que se deu entre o rei anão e o Orc, que feriu seus antepassados.

    Mesmo com tantos defeitos, o embate é bastante épico. O engrossamento do caráter importante de batalhas, fodacidades pensadas por Jackson, finalmente logrou algum êxito, não o suficiente para justificar toda a embromação anterior, nem a banalização dos três maiores sucessos de sua carreira, que certamente não possuem qualquer semelhança com esta obra, graças à presunção, cafonice e ganância de seu feitor, é claro.

    A longa espera pelo velório do rei ao menos encerra a visita do cinema a Terra Média, levando-se em conta que, por enquanto, nem O Silmarillion, nem outras obras tolkienianas estão licenciadas para os estúdios. Aos fãs ardorosos, a despedida pode ser dolorosa, e o é, desde que se decidiu esticar aos montes uma história de 300 páginas, cujas lágrimas não são plenamente justificáveis; nem mesmo ante o aviso do Mago a Bilbo Bolseiro (Martin Freeman), com ciência da guerra que está prestes a ocorrer, diante de um futuro sequencial que já tem seu espaço nos anais do cinema. A porta da casa de Baggins se abrindo, para receber, enfim, seu morador, retorna, Lá e de volta outra vez.

  • Crítica | O Hobbit: A Desolação de Smaug

    Crítica | O Hobbit: A Desolação de Smaug

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    Depois de dois filmes da nova trilogia de filmes de Peter Jackson-  baseada no livro O Hobbit, de J.R.R. Tolkien – totaliza-se, até agora, 343 minutos de filme, sendo que mais 150 estão a caminho. Após o imenso sucesso da trilogia O Senhor dos Anéis, a expectativa para O Hobbit era grande, e após um filme mediano na estreia, a segunda parte consegue decepcionar ainda mais.

    Apesar de se chamar O Hobbit, o personagem principal, Bilbo, vivido novamente pelo ótimo Martin Freeman, aparece menos tempo na tela do que deveria. Em grande parte do filme fica alheio aos acontecimentos, o que se agrava ainda mais quando os elfos entram em cena. Seu grande momento é a boa cena de diálogo com o dragão Smaug.

    O sucesso do personagem Legolas (e também do ator Orlando Bloom) na trilogia anterior fez Jackson trazê-lo de volta para protagonizar boa parte das também excessivas cenas de ação, que, apesar de bem feitas, soam desnecessárias pois repetem à exaustão movimentos rápidos e certeiros, mostrando o que já está mais do que estabelecido: elfos são excelentes guerreiros. Uma personagem nova, Tauriel (Evangeline Lily), também pouco acrescenta ao se engajar em um triângulo amoroso mal explicado e praticamente servir ao papel que Liv Tyler ocupou na trilogia original.

    Apesar de tanto tempo, também não conseguimos aprender o nome de metade dos anões. São muitos personagens e quase nenhum tempo de projeção é gasto para estabelecê-los e dar a eles alguma importância e personificação. Tudo o que vemos são eles correndo e ficando dependentes de alguém para salvá-los. Até mesmo Thorin, mostrado como líder no primeiro filme, tem seu papel reduzido neste. Cenas como a fuga dos barris na correnteza, apesar de divertidas, só acrescentam ao filme mais ação, não contribuindo em nada ao desenvolvimento da história.

    Gandalf também é imensamente diminuído na trama. O mago inicia uma investigação que destoa da proposta original do filme – de acompanhar Bilbo e os anões, os quais fazem questão de lembrarem a todo instante o quão incompetentes são sem a presença do mago, que acaba preso por Sauron em outra ponta solta para se resolver no terceiro filme. Aliás, outra explicação necessária é a de como Gandalf descobriu tudo sobre Sauron 60 anos antes dos eventos contados em Senhor dos Anéis e não fez absolutamente nada durante esse tempo.

    A sequência da cidade do lago conta com o maior excesso. Não havia motivos para entrarem escondidos no povoado. Não havia motivos para se esconderem. Não havia motivos para tentarem roubar armas. Ou seja, não havia motivo para essa parte do filme ser longa e ocupar tanto espaço na história. A população e seu governante ficam a favor dos anões desde o início, o que desmonta totalmente o fraco suspense construído anteriormente. Remetendo também à trilogia original, mais especificamente Theoden e Grima, se estabelece na relação entre o Mestre (Stephen Fry) e Alfrid (Ryan Gage) um pastiche da pior espécie.

    Jackson é um grande fã do universo criado por Tolkien, mas parece não dominar o básico em contar histórias. Suas tentativas de criar suspense raramente surgem efeito, e em momento algum conseguimos acreditar no risco que os personagens estão passando. Exemplo disso é quando os anões passam mais de um ano viajando e mostram desistir de tudo ao não conseguirem abrir o portão secreto após 5 minutos de tentativas, o que Bilbo consegue ridiculamente de forma fácil, rápida e conveniente.

    Ao entrar no castelo, Bilbo é encarregado de roubar a pedra, e uma boa sequência é mostrada com Smaug, caracterizado de forma tão imponente que sentimos o seu peso e tamanho a cada passo em um CGI que em poucas vezes é tão bem feito, mas que esconde através de efeitos a voz do excelente Benedict Cumberbatch. E mesmo assim, após toda essa meticulosa continuidade, tudo é transformado em outra cena de ação com os anões fugindo miraculosamente de Smaug sem nenhum arranhão e com um plano que soa ridículo: o de afogar em ouro um enorme dragão voador de pele grossa. Tudo isso para o filme acabar abruptamente e esperarmos mais um ano pelo final da história.

    Ao final da exibição, o que sobra, além do cansaço físico e mental, é uma sensação de que, apesar da longa duração, não entendemos muito bem por que Bilbo saiu em viagem, quem é cada anão, suas particularidades, sem entender muito bem o papel de cada um. Sobra também uma sensação incômoda de um amontoado de histórias e personagens aglutinados de forma artificial em algo que parece uma história, mas que na verdade é uma desesperada tentativa de um diretor voltar a ser falado no circuito comercial e no nicho de fãs que o lançou ao estrelato e que também o fez ganhar muito, mas muito dinheiro.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | O Hobbit: Uma Jornada Inesperada

    Crítica | O Hobbit: Uma Jornada Inesperada

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    Aproximadamente 9 anos atrás, saíamos da projeção de O Retorno do Rei emocionados tanto pela história, adaptada de maneira irretocável para o cinema, quanto por ter acabado aquela épica aventura para salvar a Terra Média. O questionamento de quando viria a adaptação para o cinema de O Hobbit era constante, e problemas dos mais diversos com a produção tornaram o hiato entre os filmes ainda maior. Mas, depois de uma longa e conturbada espera, podemos finalmente apreciar no cinema mais essa aventura baseada em uma obra de J.R.R. Tolkien, dirigida novamente por Peter Jackson, com roteiro de Peter Jackson, Guilhermo del Toro,  Philippa Boyens e Fran Walsh.

    Para os não familiarizados com a história, O Hobbit: Uma Jornada Inesperada se trata de uma aventura vivida por Bilbo Bolseiro (Martin Freeman/Ian Holm), em que ele se une ao mago Gandalf (Ian McKellen) e a um grupo de 13 anões, liderados por Thorin Escudo de Carvalho (Richard Armitage). O objetivo da comitiva é retomar o Reino Anão de Erebor e o tesouro dos anões do dragão Smaug. Nessa jornada pela Terra Média, enfrentarão os mais diversos inimigos e contratempos, desde orcs, lobos, armadilhas na floresta e tudo mais que uma boa aventura pode lhes proporcionar.

    A primeira coisa a se notar é que, assim como a trilogia Senhor dos Anéis não permitia uma análise final sobre cada um dos filmes individualmente, O Hobbit: Uma Jornada Inesperada também não pode ser pensado apenas como um filme único. Seu roteiro, planejamento e montagem foram para 3 filmes. Portanto, o arco dramático da história também fica à mercê de suas continuações, apesar de também ter que se comportar e funcionar de alguma forma como um filme sozinho.

    Outro ponto importante, ainda sobre a adaptação, é que com O Hobbit uma lógica comum do cinema foi invertida. Como se trata de apenas um livro de aproximadamente 300 páginas, dividido em 3 filmes, nesse caso foram adicionadas personagens, passagens ou elementos, quando o natural seria que fossem retiradas ou aglutinadas. Alguns desses elementos foram resgatados de O Senhor dos Anéis, outros repensados de Silmarillion. Essas inserções, ao mesmo tempo em que podem enriquecer ainda mais esse universo de criaturas fantásticas, podem também levar ao excesso, com situações jogadas apenas pelo intento de se criar algo ainda maior do que o original. Infelizmente, é o caso desse filme.

    O maior problema de O Hobbit: Uma Jornada Inesperada reside justamente na extensão de tramas, subtramas e flashbacks adicionados ou transcritos de maneira quase literal das páginas para o cinema. É nítido que os 169 minutos de exibição são muito mais extensos do que deveriam, e já suficientes para questionar a necessidade de 3 filmes para contar essa história. Apesar de contar com bons trechos cômicos, adaptados de maneira fiel ao livro – por exemplo, a chegada dos anões à toca de Bilbo -, a primeira metade do longa é um convite ao bocejo constante. Muitos são os momentos em que a trama gira em torno de si mesma sem levar a lugar algum e, para os que conhecem a obra, fica a constante expectativa para que chegue logo algum momento chave do livro, sem se importar realmente com esses elos da narrativa. Já para os que não conhecem, não posso entrar na mente de alguém nessa situação para saber exatamente, mas acredito que a experiência deve ser algo próximo à primeira leitura dos capítulos de A Sociedade do Anel em que Tom Bombadil dá o ar da graça. Ou seja, tedioso e andando em círculos.

    Entretanto, se a primeira metade é em grande parte desinteressante e sonolenta, do trecho final não se pode dizer o mesmo. Todas as batalhas – que acontecem com grande frequência – são muito bem elaboradas e trazem de volta a atenção do espectador. Um dos trechos icônicos, a briga dos gigantes de pedra, nada menos do que sensacional pode definir, e o aguardado trecho mais interessante dessa parte da história, as “Charadas no Escuro”, foi brilhantemente adaptado para as telas. Vemos um Gollum (Andy Serkis) ainda mais perturbado e ambíguo. Méritos aqui tanto para a atuação de Serkis, que se mostra ainda melhor e focada na construção desse personagem. E méritos também para os efeitos visuais, que deram ainda mais brilho e vivacidade para ele, confirmando o posto como uma das melhores composições entre CG por cima de uma atuação.

    Sobre o visual do filme – e nesse ponto é bom ressaltar que a versão a que assisti foi 2D normal, já que o filme tem 4 diferentes: 2D, 3D 24 FPS, 3D 48FPS e 3D Imax. Nessa versão, como já era de se esperar, todo o aspecto visual do filme é ótimo, desde a belíssima fotografia – capturando tanto os belos campos abertos da Nova Zelândia, que servem como palco para o filme, quanto cenas internas, com cenários trabalhados nos mínimos detalhes e que funcionam não só visualmente, para compor a perfeita ambientação e imersão na história, mas também dando vida à Terra Média, tornando-a novamente um personagem, talvez até o maior e mais importante personagem das histórias de Tolkien. Por mais fantasiosa que seja a história, com o bom trabalho executado em sua composição ela se torna crível.

    Outro aspecto interessante é a mudança de tom das histórias. Enquanto Senhor dos Anéis é uma jornada para salvar a existência das raças da Terra Média, uma jornada dura e temerosa para seus participantes, O Hobbit, como livro, já é uma aventura mais leve, com espaço para trapalhadas, comilança e um tom infantil – tanto é que o livro de 1937 era destinado aos filhos do Tolkien. Já na adaptação, algumas trapalhadas e situações engraçadas continuam presentes, mas um tom sombrio, mais sério, foi adicionado à história. Os anões já não são tão desajeitados e dão mais importância a recuperar suas terras do que o tesouro, em contraponto ao livro. Talvez isso seja uma tentativa de aproximar O Hobbit ainda mais à Trilogia do Anel, o que não é necessariamente bom nem ruim, principalmente ao vermos apenas a primeira parte da história. Talvez a versão para o cinema exija esse tipo de mudança e isso se mostre uma decisão acertada, mas essa diferença de rumos é algo que só poderá ser avaliado com clareza no encerramento do terceiro filme. Por enquanto, o máximo que podemos fazer é relacioná-la às nossas expectativas.

    No mais, O Hobbit: Uma Jornada Inesperada é um bom filme, bem apresentado como introdução à aventura de Bilbo Bolseiro, que deve agradar tanto aos mais fanáticos pela obra de Tolkien quanto aos recém iniciados nesse universo, mas ávidos por boas histórias de fantasia de capa e espada. Todavia, sua longa e desnecessária duração, aliada à falta de um encantamento subjetivo, quase “mágico”, fruto talvez do inesperado (que se faz presente nos filmes de O Senhor dos Anéis, mas no momento não desencantou em O Hobbit) faz com que essa nova trilogia comece a pelo menos um degrau abaixo da sua antecessora, algo que pode muito bem ser revertido nos próximos filmes. Mas esse é um assunto para dezembro do ano que vem.

  • Crítica | Donnie Darko

    Crítica | Donnie Darko

    ATENÇÃO: O TEXTO ABAIXO CONTÉM SPOILERS. ESTÃO AVISADOS!

    Assistir a um filme nada mais é do que uma atividade sensitiva que estimula nosso cérebro a raciocinar e a trabalhar em cima de todas as imagens que são transmitidas aos nossos olhos ao longo da película. É uma espécie de quebra-cabeça. As imagens funcionam como peças de informação, as quais devem ser montadas para poderem ser analisadas através de uma visão global, de modo a compreendermos uma possível mensagem que está tentando ser passada para os espectadores. Esse é o trabalho dos diretores. Transmitir uma ideia.

    Hoje vou falar sobre um dos filmes que, na minha visão, melhor trabalham a questão do quebra-cabeça cinematográfico. Estou falando de Donnie Darko, dirigido por Richard Kelly e lançado em 2001. Um filme que não pode simplesmente ser considerado ordinariamente e abaixo tentarei explicar o porquê. Antes de mais nada, recomendo sinceramente que assistam ao filme, já que o texto com toda a certeza terá spoilers. Se você, mesmo sem ter assistido, quiser se aventurar, bom… a vida é uma longa e insana viagem.

    Donnie Darko, interpretado por Jake Gyllenhaal, é um jovem problemático que possui indícios de esquizofrenia. Um dia, Donnie conhece Frank, um coelho gigante que o salva de um acidente que  ocorre em sua casa. Frank profetiza o fim do mundo para Donnie, o qual passa a obedecer ordens do Coelho. Donnie se encontra inserido entre a realidade e suas alucinações, ao mesmo tempo em que questiona o sentido da vida e da morte.

    A primeira cena do filme nos apresenta o clima em que adentraremos: Donnie amanhece no meio da rua, em uma estrada com um lindo visual nas montanhas. Ele levanta sem saber como chegou até lá e dá um sorriso, como se achasse graça da situação. É evidente que Donnie é um garoto diferente, solitário e sombrio. Na cena seguinte, pega sua bicicleta que estava deitada no acostamento (indicando como ele se locomoveu até aquele ponto tão distante da cidade) e volta para casa. Nesse caminho de volta, somos apresentados a uma pacata cidade, ambientada no final dos anos 80, com pessoas caminhando, o pai de Donnie cortando grama, sua irmã mais velha saindo para passear, sua irmãzinha pulando na cama elástica e sua mãe lendo um livro do Stephen King. Um típico exemplo de família modelo, em que Donnie seria a ovelha negra: ao entrar em casa depara-se com “Onde está o Donnie?” escrito na porta da geladeira. A figura do personagem no filme representa sua autenticidade no contexto geral da sociedade.

    O mundo em que vivemos cria padrões de comportamento e modelos a serem seguidos por toda uma sociedade. Todas as pessoas e elementos indiretamente acabam sendo englobadas por essas “tendências” sociais. Os que não se enquadram no modelo  acabam sendo moralmente coagidos, retaliados ou forçados a adentrarem. Fica evidente essa ideia quando descobrimos que Darko toma remédios psiquiátricos. Teria ele esquizofrenia como sua analista suspeitava ou seria apenas uma forma de a sociedade não aceitar a forma não convencional como nosso protagonista age? Donnie desaprova quando toma seus remédios; porém, mesmo assim, o faz.

    Na noite do mesmo dia somos apresentados à entrada de dois universos: o da mente de Donnie Darko e a realidade. Donnie é acordado por Frank, o coelho gigante, que profetiza o fim do mundo. “28 dias, 06 horas, 42 minutos e 12 segundos”, diz Frank. Podemos dizer que metaforicamente Donnie estaria adentrando nesse momento no País das Maravilhas: na fábula de Lewis Carroll, um coelho conduz Alice para uma outra dimensão. Tanto Donnie quanto Alice apenas existem; seus conhecimentos passam a ser adquiridos com os acontecimentos que vem a seguir. Na mesma noite acontece outro fato estranho: uma turbina de um avião cai em cima da casa de Donnie, mais especificamente em cima de seu quarto, porém nosso protagonista não estava lá, pois havia sido acordado por Frank. Ninguém sabe de onde veio a turbina e nem de que avião, o que torna as coisas ainda mais misteriosas até esse ponto do filme.

    Inserido no meio de uma série de acontecimentos estranhos, uma pessoa “anormal”, por assim dizer, passaria a se encontrar na anormalidade das coisas que vão acontecendo. Uma nova realidade é criada, com a qual Donnie acaba se identificando. O filme apresenta uma forte discussão no que diz respeito ao sentido da vida e da morte. Em uma cena do filme, o pai de Donnie quase atropela uma velha senhora chamada de Roberta Sparrow. Ela chega no ouvido de Donnie e diz que “todos os seres vivos morrem sozinhos”. Essa fala, por si só,  vai cair como um peso sobre os ombros do protagonista, pois é um pensamento terrível. Em um mundo onde as pessoas vivem socialmente e se apegam, a solidão é um pesadelo. Morrer ganha a figura desse pesadelo ao pensarmos que vivemos em vão, sem nenhum sentido, para atingirmos um fim indiferente, que é nossa morte.

    A vida não é tão simples assim e, por isso, Donnie vai questionar a ordem da sociedade. Em seu colégio, uma de suas professoras passa a incitar os alunos a aceitar a filosofia de Jim Cunningham (interpretado por Patrick Swayze), o qual defende que a vida se baseia em amor e medo. Todos temos que nos afastar de atitudes que se enquadrariam na categoria “medo” e deveríamos assumir posturas coerentes com “amor”. Donnie não aceita essa visão e passa a se meter em problemas na escola por conta disso, como quando ele mandou sua professora enfiar a “linha do medo” na… é, deu para entender.

    Frank incita Donnie a realizar uma série de atos “criminosos” contra sua cidade, buscando como único objetivo o de virar de cabeça para baixo o mundo em que vivem. Inundar a escola e queimar a casa de Cunningham, por exemplo. Tudo não passa de um movimento de criação. No contexto do filme temos a destruição como uma forma de criação e a busca da quebra de paradigmas.

    Ao mesmo tempo entramos em uma discussão digna de Stephen Hawking, já que Frank diz: “Venha comigo para o futuro” e, a partir de então, entramos em uma discussão pesada em relação a viagens no tempo. Observamos que todas as atitudes que Frank manda Donnie fazer acabam influenciando de alguma forma o futuro do personagem. Até mesmo quando Darko conhece Gretchen (interpretada pela linda atriz Jena Malone), a qual virá a ser namorada de Donnie futuramente, foi justamente pelo fato de ter inundado a escola na noite anterior.

    Nesse momento do filme percebemos que Donnie Darko já entendeu que ele é o responsável por determinar os resultados de seu futuro. Ele possui o poder de manipular os acontecimentos e é nisso que ele acredita. Queimar a casa de Cunningham, por exemplo, acabou por revelar que o mesmo possuía uma série de fotos, vídeos e objetos que o denunciavam como pedófilo. Através da atitude de Darko, Cunningham é desmascarado e por isso é preso.

    A todo momento não sabemos até que ponto as coisas que vêm acontecendo, os encontros com Frank e as coisas que ele manda Donnie fazer são parte da realidade e o que faz parte de possíveis alucinações do nosso personagem principal. Será que as supostas viagens no tempo realmente seriam possíveis? Donnie está intrigado com essa possibilidade e passa inclusive a buscar ajuda de um dos seus professores para tentar entender os princípios físicos da viagem do tempo.

    Algumas cenas que se passam na escola ajudam a desenvolver ainda mais os mistérios apresentados ao longo do filme. Quando a professora Karen Pomeroy (interpretada por ninguém menos que Drew Barrymore) é demitida, ela diz a Donnie “cellar door” (porta de adega, em tradução livre), citando Edgar Alan Poe e J.R.R. Tolkien, que a consideravam a frase mais bela da língua inglesa, sonoramente falando. Essa “porta de adega”, posteriormente, se apresenta como um possível portal para viajar no tempo.

    No dia de Halloween, a irmã mais velha de Donnie resolve fazer uma festa em comemoração ao fato de que foi chamada para estudar em Harvard. Esse seria o último dia do mundo, segundo a previsão de Frank. Uma fatalidade acontece e as coisas passam a ganhar outra direção. Gretchen é atropelada por um carro e, quando percebemos, um garoto com a fantasia de Frank sai de dentro do mesmo. Somos apresentados ao presente, que representava o futuro por toda a extensão do filme até então.

    Frank é o namorado da irmã de Donnie e lá estava ele com sua fantasia de coelho. Todos os acontecimentos convergiram para o momento em que Donnie puxa a arma que havia pego do quarto de seu pai e atira em Frank. Sua namorada estava morta e ele se encontrava mais uma vez desolado, sem entender o porquê de as coisas terem tido aquele resultado. Donnie pega o corpo de Gretchen e o leva para o local onde o filme se inicia, na estrada em que nosso protagonista havia amanhecido. Uma espécie de renascimento acontece, uma epifania atinge nosso personagem e em um momento percebemos que ele atingiu o autoconhecimento.

    Ao mesmo tempo em que isso acontece, a cena muda para o avião da mãe de Donnie, que está voltando com Samantha (irmã mais nova) de um campeonato de dança. Repentinamente, o avião entra em um estranho turbilhão que mais parece um portal (ou um wormhole, que nas teorizações de Stephen Hawking abriria portais para viajar no tempo) e sua turbina quebra. Todos os acontecimentos passam pelos olhos de Donnie Darko e mais uma vez voltamos para a noite em que ele havia entrado no País das Maravilhas. Dessa vez, Donnie sorri e deita na sua cama, com um ar de alívio, como se estivesse aceitando o que deveria acontecer desde o começo. Ele entende o que significaria a sua vida dali para frente tendo um outro resultado. Donnie sorri. A turbina cai em cima do seu quarto e ele morre.

    O filme deixa uma margem gigantesca para diversas interpretações. O final não junta todos os pedaços, porém nos oferece uma direção de raciocínio. Pra encerrar com direito a nos arrepiar completamente, Mad World começa a tocar, ao passo que nos são mostrados todos os personagens que fizeram parte dessa história, como se a escolha que Donnie fez tivesse influído de alguma forma para um autoconhecimento de todos. Temos o autossacrifício, baseado no Cristianismo e nos ensinamentos do Budismo (neste, o Coelho é um símbolo de autossacrifício, pois o animal teria se atirado ao fogo com o objetivo de alimentar Buddha, que estava faminto. Como recompensa, ele ganhou uma nova casa na lua). O mundo de fato havia acabado, na vida de Donnie Darko. Atingiu uma nova forma de criação através de sua morte.

    Para finalizar este longo estudo sobre o filme de Richard Kelly, deixo um poema escrito pelo próprio Donnie Darko, e que foi disponibilizado nos extras do DVD:

    “Uma tempestade está a caminho, diz Frank.
    Uma tempestade que irá engolir as crianças,
    e eu vou devolvê-las do mundo da dor.
    Vou devolvê-las de volta para suas portas;
    Mandarei os monstros de volta para o subterrâneo.
    Vou mandá-los de volta para um lugar onde ninguém poderá vê-los,
    exceto por mim
    porque sou Donnie Darko.

    Se uma ideia foi transmitida eu não sei. Donnie Darko é um quebra cabeças que possui milhares de peças, que, por incrível que pareça, formam desenhos diferentes. Com certeza uma excelente obra pra ser apreciada pelos amantes da sétima arte.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.

  • Agenda Cultural 21 | O Retorno do Rei, A Canção dos Bardos e a Volta do Coronel

    Agenda Cultural 21 | O Retorno do Rei, A Canção dos Bardos e a Volta do Coronel

    Sincronizem suas Agendas. Nesta edição Flávio Vieira (@flaviopvieira), Amilton Brandão (@amiltonsena) e Mario Abbade (@fanaticc) se reúnem para comentar sobre Medievos X Alienígenas, a desgraceira envolvendo o último romance de Tolkien e um pouco sobre o cineasta, José Padilha e seus homens de preto. Idade Média, Terra Média e a banalização da classe média.

    Para informações detalhadas sobre a cobertura do Festival de Montreal, acessem: www.almanaquevirtual.com.br.

    Duração: 83 min.
    Edição: Flávio Vieira
    Trilha Sonora: Flávio Vieira

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