Resenha | O Silmarillion – J.R.R. Tolkien
Chega a ser um exercício realmente doloroso imaginar ser possível outro compêndio de histórias fantásticas mais poderoso, instigante, hipnótico e fascinante que O Silmarillion. Engana-se quem um dia já considerou que o mais importante escritor de obras de fantasia do último século, Sir J.R.R. Tolkien, foi tirando da sua cartola de infindável criatividade toda a gama mitológica que permeia e ronda as tramas principais de O Hobbit, e O Senhor dos Anéis, enquanto os escrevia. Diferente de outros autores de outras populares obras que acontecem em mundos próprios, como a Terra-Média dos elfos, anões e entidades além de qualquer maniqueísmo, Tolkien mantinha consigo anotações que remontam a 1917, escalonando nelas toda a história por trás da icônica história central de Frodo, Gandalf, Gollum e companhia.
O escritor foi o verdadeiro Deus do universo que havia criado e montado, mas não a partir de improvisação, e sim a base de uma espetacular narrativa temporal crescente a serviço de algo muito maior, e mais ambicioso, ainda. Quatro anos após o falecimento de Tolkien, na década de setenta, todos esses contos foram reunidos num só volume, coletando tudo numa bíblia sobre o mais completo cosmos fictício que uma cabeça pensante sozinha já idealizou, e que se tem indícios a respeito. Contos esses que servem como um Antigo Testamento para tempos muito, mas muito antes da Sociedade do Anel se juntar, a chamada Primeira Era – a história que Peter Jackson adaptou para o cinema se passa só no final da Terceira, e pode-se ter certeza: muita coisa bem mais interessante já havia acontecido antes, desde que Eru, o Único, criou os Ainur para lhes fazer companhia antes de tudo, e antes de todos.
Os Ainur então se faziam como uma raça perfeita, musical e harmônica como nenhuma outra, no puro espectro de uma raça virginal sobre qualquer mal e que continha, entre seus poderosos e alegres irmãos, Melkor, com sua ambição e seu desejo de criar coisas por si mesmo. Ora, se Eru concedeu inúmeros dons a seus filhos, e Melkor era o mais poderoso e astuto entre eles, quem poderia pará-lo ou renegá-lo senão o próprio Pai supremo? De sua ambição, brotou uma ganância e um orgulho radicais, e logo Arda (nome aqui usado para chamar nosso Sistema Solar, ou o próprio Planeta Terra) se encheu de vida e das influências dos Ainur, daqueles seres iniciais de que todo o bem e suas entidades majestosas derivam, mas também das energias de Melkor, vulgo o temido Morgoth, o grande deus de todo o mal e corrupção e inveja (criando aliás os terríveis orcs, nas fossas da Terra), ao longo da chegada de novas raças, novas lendas, novos impérios e inúmeras ascensões e quedas a construir a história de Arda.
É impossível não traçar uma linha reta que une todos os capítulos de O Silmarillion de seu início, digamos, bíblico, no qual as raízes de uma imensa e impagável mitologia são expostas. Morgoth é uma clara alusão a Lúcifer, aquele que se deixou embriagar pelas possibilidade do Poder, e tramou sua própria e trágica queda. Mas as almas não são a principal obsessão de Morgoth, a entidade maligna e tão perversa que faz Sauron, um dos seus generais e o principal antagonista de O Senhor dos Anéis, parecer completamente inofensivo. Na verdade, Morgoth conspira para alcançar as silmarils, três gemas de infinitos poderes criadas por um poder celestial antes do sol, e da lua. Sendo ele o próprio Mal, astuto e ardiloso, Morgoth consegue roubar as jóias para si e forja uma coroa de ferro para usar as silmarils em seu trono e afundar tudo em trevas, algo paralelo a outros inúmeros eventos que se desenvolvem rumo ao cenário visto muito depois, nos filmes de Jackson.
Durante toda a Primeira Era de Arda, a história de múltiplos enredos e clímax gira em torno dos deuses e da origem e sobrevivência das linhagens de elfos, homens e anões, sempre à mercê de seus próprios ímpetos de glória (ou não), e a resistência de todos contra a confusão que vinha das sombras da simples existência de Morgoth, e dos confrontos dos exércitos dos quatro cantos do mundo para tentar recuperar as silmarils, deter a escuridão, e preservar toda a beleza e a riqueza ancestral de uma realidade sempre constituída e agraciada pelo icônico texto de Tolkien. Fica-nos claro, então, que O Silmarillion é, principalmente, sobre o caldo primordial dessa profunda mitologia modelada, diversas vezes, por batalhas quase sempre motivadas por ganância, e um espírito de conflito que parece permear os seres vivos pensantes guiados mais por instinto, que pela consciência.
Não deixa de ser uma crítica a irracionalidade dos seres humanos, a incapacidade de nos acertarmos, uma vez que podemos nos enxergar várias vezes nas ações dos personagens, aqui, mesmo vários sendo deuses ou monstros cabulosos. As inspirações de Tolkien com os idos dos cavaleiros da távola redonda, com as fábulas e as lendas do nosso mundo antigo sobre o abismo além-mar nos soam familiares na maior parte da leitura, mas o gosto oriundo da clássica imaginação do velho mestre é forte e latente o suficiente para nos afogar em um bálsamo criativo que todas as suas ideias exalam, muito maior que a dimensão das páginas que as contém. Como não se importar com as terras, os grandes amores e as entidades (mortais, ou não) que Morgoth tenta influenciar e subjugar, para alcançar o poder das jóias sagradas e, com elas, tentar permanecer? Eis uma leitura de ouro que vale por mil outras, e que desde seu lançamento póstumo a vida do autor, merece um lugar consagrado nas nossas prateleiras.
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