Tag: Joseph Campbell

  • A Jornada do Leitor

    A Jornada do Leitor

    Todo herói tem um arco, uma jornada. Cada personagem – ao menos de escritores que sabem o que estão fazendo com as mãos num teclado – tem um papel dentro da trama principal. É o arco narrativo, sua jornada do início ao fim, sem importar quão frívolos sejam seus motivos ou abrupta sua morte. Ao analisar narrativas dos principais textos de diferentes religiões num brilhante estudo de mitologia comparada, Joseph Campbell notou avanços narrativos semelhantes, em que personagens diferentes preenchiam partes idênticas nos mecanismos internos dos contos, assim o próximo passo do protagonista invariavelmente seguia uma lógica. O Herói de Mil Faces, Campbell chamou seu livro, pois a trilha é seguida de novo e de novo e de novo.

    O autor desenvolve seus argumentos sobre o molde narrativo do qual partilham as mais diversas histórias, desde Pulp Fiction até a epopeia de Gilgamesh. Crucial, um dos pontos mais importantes dentro de uma história é a transformação dos personagens de um estado inicial até o ponto de chegada, quando retornam para uma normalidade, profundamente mudados pelo caminho, pelo percurso da Jornada. Harry Potter, Luke Skywalker e Rick Blaine atravessaram os mesmos passos: uma velha estrada de tijolos amarelos que já foi percorrido por Dorothy. Todos eles tinham um desejo, uma aspiração que dá o pontapé inicial de suas histórias. Na Jornada, é essencial que se deseje algo. Mesmo que seja um copo de água fresca, como disse Kurt Vonnegut. São nos passos identificados no “O Herói de Mil Faces” que as histórias se desenrolam, com ou sem variações, e a vontade de virar a página ganha contornos urgentes. Ao leitor desatento, pode parecer um tanto formulaico, mas a Jornada é algo sutil, uma trama em que mãos habilidosas podem bordar qualquer coisa maluca que se passa em sua mente.

    De forma resumida, cada personagem responde com hesitação antes de aceitar o Chamado da Aventura, o acontecimento surpreendente e muitas vezes surreal que inicia, de fato, o plot: Gandalf bate à porta de Bilbo Bolseiro logo no início de O Hobbit, e, anos mais tarde, Frodo herda um certo anel, dando os primeiros passos em uma das jornadas definidoras de todo um gênero, O Senhor dos Anéis. Tal Chamado gira todas as rodas dentadas que trabalham por trás das linhas e parágrafos que você deita os olhos, jogando os protagonistas num mundo desconhecido onde contam com um Mentor – palavra que vem do grego menos, que significa desde força, propósito, até mente, espírito ou lembrança -, em que o caminho até o próximo passo da Jornada, a Caverna Misteriosa, será permeado por aliados, inimigos e provações. No Hobbit, Bilbo encontra Gollum e Frodo chega até Mordor. O herói que perseverar no caminho, retornará ao velho mundo onde sua jornada começou e, com os tesouros e ensinamentos da estrada percorrida, faz o leitor respirar aliviado depois de Bilbo ter enfrentado os perigos de um dragão ganancioso e o fiel Sam empurrar seu amigo na direção certa, um dos momentos de maior carga emocional de “O Senhor dos Anéis”. Agora, o herói precisa enfrentar seu real perigo antes de prevalecer sobre o mal: a Batalha dos Cinco Exércitos e a Montanha da Perdição, para continuar com os exemplo de Tolkien.

    É a jornada do herói, com ou sem maiúsculas; o arco. Ainda me lembro de uma das cenas preferidas de Família Soprano, quando o jovem e explosivo Christopher Moltisanti pergunta ao mentor Paulie, um mafioso da velha guarda, onde estava o seu arco, pois nada de interessante acontecia em sua vida.

    “E daí,” Paulie responde, numa calma enervante, “eu estou vivo. Eu sobrevivo”.

    Christopher enterra os dedos no cabelo. Como ele pode não entender? “Não quero apenas sobreviver. Os manuais de roteiro dizem que cada personagem tem seu arco. Entende? Todo mundo começa em um lugar, e eles fazem algo. Algo acontece a eles. E isso muda suas vidas. Isso é um arco. Onde está o meu arco?”.

    Foi a angústia de Christopher, um personagem com o qual pouco me identifico, que tomou conta de meus pensamentos quando li as últimas linhas da A Roda do Tempo, uma série composta de catorze tijolos – e um tijolinho de prefácio -, totalizando algo em torno de doze mil páginas. Doze mil páginas. Milhões de palavras. E mais arcos de personagens do que eu poderia contar de cabeça. Claro, em (quase) todos os livros da série o leitor pode encontrar começo, meio e fim para as diversas histórias que se desgarraram da linha narrativa principal e acompanhar o crescimento das personagens que mais cativam ou detestam. A Roda do tempo é uma longa jornada, talvez a maior que já percorri – com grande chance de ser a maior que jamais percorrerei -, uma estrada esburacada, com altos e baixos, longas tempestades e mais paradas que o ideal, uma viagem que talvez exija uma ou outra pausa a fim de trocar pneus carecas e reabastecer a água do radiador. É uma história épica que envolve até mesmo o Tempo em si, com T maiúsculo, onde Luz e Escuridão duelam em grande escala e a existência do mundo depende de quem sairá vitorioso. É o maniqueísmo de Tolkien em maior escala.

    A Roda do Tempo e o leitor

    Não vou perder nosso tempo com um resumo do mundo ou da história quando dezenas de análises e críticas estão aparecendo aqui e ali, enquanto a série começa a fazer sucesso na Terra Brasilis. Basta dizer que há altos e baixos, defeitos e virtudes, grandes lições de escrita; Vale lembrar que a última porção da história foi escrita por Brandon Sanderson por causa da morte do criador, Robert Jordan, afinal é difícil escrever depois de morto. Sanderson fez um ótimo trabalho e o último volume é um clímax de novecentas páginas – o maior capítulo, A Última Batalha, tem mais de 180 páginas.

    Levei seis anos para ler “A Roda do Tempo”. Partindo do meu Chamado de Aventura – inspirado por uma música da banda alemã Blind Guardian – até o Retorno com o tesouro, anos se passaram e centenas de outros livros, sem exagero, foram lidos, tanto para trabalho quanto lazer. Nesse meio tempo, comecei e terminei outras séries e trilogias, mas a Roda do Tempo sempre esteve no fundo de minha mente, ganhando novos contornos enquanto eu me reabastecia com outros autores, escritas e gêneros diferentes.

    Em paralelo a narrativa, analisava minha jornada de leitor, sobre como os dias podem girar em torno do livro em suas mãos, sobre nosso próprio crescimento, mudanças, derrotas e vitórias enquanto vivenciamos tantas outras jornadas. Da mesma forma que nosso herói tem mil faces, também as temos, cada um de nós. Desejamos, buscamos e nos transformamos em algo… bem, em algo diferente. Pergunte ao Kafka, se quiser.

    Quando li o primeiro livro, O Olho do Mundo, estava deitado no meu quarto, sozinho, febril e em Lisboa, morando numa casa cheia de gatos. Eu era um mestrando em História da Expansão e dos Descobrimentos, dissertando com a ajuda de mapas antigos sobre a formação do Japão na mentalidade ocidental entre os séculos XV e XVIII. O primeiro volume de “A Roda do Tempo” segue uma estrutura fixada por Tolkien, com um protagonista seguindo o estereótipo Luke Skywalker, o jovem e ingênuo fazendeiro que se descobre envolvido em acontecimentos maiores e perigosos.  E não foi O chamado de aventura, mas foi UM chamado. É como nos livros da série: não há começos ou fins em “A Roda do Tempo”, mas esse foi um começo. Ao menos isso.

    Eu morava sozinho e seguia uma rotina bem definida. Acordava, engolia meio litro de café e tomava banho para, depois, mergulhar no submundo metroviário de Lisboa e percorrer os corredores úmidos da Faculdade de Letras, onde ficava o centro de pesquisa em que trabalhava. Escrever, pesquisar e realizar enfadonhas tarefas administrativas tomava quase todo o meu dia, além de conversas e risos com pessoas que marcaram minha vida. Eu vivia um arco, afinal. Recém-formado, mergulhado em arquivos de fama internacional, lendo e observando mapas, cartas ânuas de jesuítas que foram ao Japão, além de manifestos de embarcações. Tudo no passado. Todos, viajantes e religiosos, europeu e japoneses, de volta ao pó, uma grande bacia de cinzas e poeira onde eu tinha me enterrado até os cotovelos na mais pura – elétrica – euforia.

    Já no segundo livro da série, vaguei por Londres, onde estava pesquisando a sessão de mapas da British Library. Foi no café do British Museum – onde fui ver a A Grande Onda  – que terminei o livro e já tirei o terceiro da mochila. Antes, pedi outro café. Saí de lá quando me expulsaram, mais de sessenta páginas depois. Voltei para a casa da minha irmã no escuro, a cabeça perdida no mundo criado por Robert Jordan. No meu arco, hoje enxergo que estava numa fase que podia me permitir vagar por mundos imaginários sem prestar muita atenção nos problemas do mundo real. Morando sozinho na Europa, com poucas aulas na semana e um trabalho com horário flexível que me permitia trabalhar em casa, um quando que permitia o luxo de focar nos estudos, conhecer melhor Portugal e afundar meu nariz nos livros. Ler até derrubar o livro no meu rosto, até esfregar olhos queimando e resolver fazer café às quatro da manhã, para tentar extrair mais um capítulo, quem sabe dois. Olhando para trás, eu deveria ter saído mais de casa, pergunte à Rosa.

    Quando voltei ao Brasil e morei em Campinas, comecei a escrever ficção. Corria quase todos os dias. Li mais. Enrolei minha dissertação e fiquei noivo. O tempo passou e eu estraguei um dos joelhos, começando um lento caminho de volta ao sobrepeso, quando meus quilos perdidos na corrida voltaram com novos amigos e a ficção ganhou espaço no meu cotidiano e nas minhas ambições. Foi talvez no sexto livro de “A Roda do Tempo” que decidi – ou melhor, fui empurrado a aceitar o que estava diante do meu nariz – trocar de profissão. Adeus vida acadêmica, olá rotina de escrita e edição. E desespero, claro.

    Atravessando a narrativa

    Conforme riscava os títulos de minha lista de leitura, meu próprio arco avançou. Aniversários, discussões, risadas, bebedeiras e jogatinas, tudo envolvido em muita escrita, leitura e edição. Eu me casei. Terminei meu primeiro livro, com mais de quatrocentas páginas, muitas delas desnecessárias e cortadas com um coração em prantos. Percebi depois que um livro de quatrocentas páginas é um erro se você ainda é um escritor desconhecido. Criei histórias menores, deixei outras depois de duzentas páginas. Meu filho nasceu. Páginas escritas dividiram espaço com mamadeiras e fraldas pedindo atenção. E então, alcancei a Última Batalha e, depois dela, o final de “A Roda do Tempo”. Bem, não O final, mas UM final. “A Roda do Tempo” não tem começos nem fins. Foram seis anos. Foram catorze livros.

    Claro, há relatos, principalmente no Reddit, de monstros que leem uma série deste tamanho em seis meses; outros estão na quinta, sexta, décima sexta – não é mentira – leitura da série. São arcos, tenho certeza: ninguém lê tantos livros – mesmo que seja uma só história – e fecha a última capa sem mudar, sem passar por uma transformação. Mesmo que a transformação seja pela necessidade de livros com fontes maiores para olhos cansados, essa pessoa mudou. No meu caso, a mudança foi gigantesca. Seis anos se passaram. Porcaria. Eu mudei, e muito. Do quarto escuro, iluminado apenas por um abajur amarelado, doente e trancado para deixar os gatos de outra pessoa fora do alcance de minha alergia, para um sofá confortável em nosso apartamento, numa cidade do interior de São Paulo; de minhas pretensões de conseguir ingressar num bom doutorado e viver de aulas e pesquisas, para a perspectiva de pagar contas com as mentiras que saem de minha cabeça e encontram caminho às pontas dos dedos; de namoro à distância – altos e baixos, altos e baixos – para a feliz paternidade dentro de um casamento estável, carinhoso e sincero. Eu cresci e, como um camaleão, minhas cores se transformaram em resposta ao ambiente em que agora vivo. Firmei convicções políticas e agora faço oposição a um governo que não me parece correto, brigo com unhas e dentes contra o monopólio dos veículos midiáticos, contra ambos analfabetismos, científico e político. Não sou apenas um historiador em outro país, cheio de perguntas sobre o que acontecia no passado, em ondas que banhavam o Japão tantos séculos atrás, enquanto o cenário atual me alcançava apenas como murmurinhos incômodos. De um historiador um tanto egoísta e recluso, tornei-me um escritor um pouco menos egoísta e recluso. Um pai, com sono e um sorriso bobo no rosto.

    Encontrei o final de “A Roda do Tempo” e dele passei. Pode apostar que me senti decepcionado com o final e tenho perguntas que nunca serão respondidas, mas estou satisfeito com a clareira no final do caminho. Quando se termina uma série, a sensação que se tem é um misto da nostalgia precoce e liberdade literária. O homem que sou hoje é bem diferente do estudante que ouviu uma música inspiradora e sentiu arrepios nos braços. Os livros da série tiveram pouco impacto nas minhas mudanças – Haruki Murakami, Carl Sagan, Yuval Noah Harari, Eric Hobsbawm e outros tantos tiveram mais importância -, mas servem de perfeito exemplo para o meu arco de herói. Afinal, sou o herói de minha história, assim como você é o personagem principal da sua.

    Minha jornada não é (nada) épica. A sua também não, até que você me prove o contrário. Mas é uma jornada e, caramba, ela é muito importante para quem está preso em seus quilômetros. Desejamos um emprego melhor, perder peso, que amanhã seja feriado e que, pelo amor de Deus, essa chuva dos infernos pare antes do sábado. Desejamos e buscamos, adaptamo-nos ao nosso próprio arco, nosso plot. Oras, estudamos para concursos públicos, brigamos contra chefes gananciosos e discutimos política; dançamos para a chuva parar e, como é um assunto que foge de nossa alçada, traçamos um plano alternativo para o sábado chuvoso, com pizza e jogos de tabuleiro. Talvez pedir meia frango com catupiry e meia calabresa não tenha o mesmo impacto que recuperar a Excalibur ou descobrir que o caminho para casa estava em você esse tempo todo, mas – por Crom! – essa pizza é o seu Chamado da Aventura e, se você não pisar na bola, será o herói de muita gente. São arcos diferentes. Nossa jornada é tediosa. Enfadonha. O oposto de épica. Mas, você sabe, é real.

    Quando Christopher Montisanti pergunta a Paulie onde está o seu arco, ele com certeza enfrentava a terrível angústia de não ser o que idealizava em outros tempos. Naquele fascinante mundo de violência, drogas e incertezas existenciais, Chris tentava se agarrar em algo para continuar sendo ele mesmo. Sem perceber, o jovem mafioso percorria um arco em si mesmo: o bloqueio, a desorientação. Quando chegasse na outra ponta do labirinto, ele seria – fatalmente – um mafioso mais forte. Um homem mudado. E outro arco teria início.

    Mas estou divagando e você já está se perguntando se realmente sou um escritor, tamanha verborragia. Você está lendo um texto sobre a passagem do tempo. Sobre como a saga de Robert Jordan me acompanhou em parte do caminho. Talvez você tenha sua própria Roda do Tempo e possa se identificar com o que exponho aqui. Talvez tenha crescido com Harry Potter e seus terríveis professores, ou tenha acompanhado Roland Deschain em cada passo no difícil caminho até a Torre Negra. Provavelmente sentiu os sóis de Tatooine queimando na pele. Minhas mudanças são acompanhadas de livros marcantes justamente porque sou um leitor antes de ser escritor. Filmes, músicas, relacionamentos, empregos… talvez até casamentos. Com toda certeza, o seu arco também tem um pano de fundo com variáveis e constantes.

    Agora que terminei uma série, meu arco continua. Talvez encontrou outras aventuras e chamados no meio do caminho. Quem sabe precise ir para um Mundo Especial e dele retornar com o Elixir do qual falou Campbell.

    Terminei de ler “A Roda do Tempo” muito, muito tempo depois de ter começado. E agora? Eu não sei para onde meu arco me levará, mas o próximo livro já está presente, com o marca páginas entre o final de um capítulo e o começo do próximo.

    Os passos da Jornada do Herói

    A Jornada do Herói

    Ato 1

    Mundo comum
    Chamado à Aventura
    Recusa do Chamado
    Encontro com o Mentor
    Travessia do Primeiro Limiar

    Ato 2

    Provas, Aliados e Inimigos
    Aproximação da Caverna Secreta
    Provação
    Recompensa

    Ato 3

    O caminho de Volta
    Ressurreição
    Retorno com o Elixir

    Livros para levar na estrada

    Trilogia dos Espinhos – Mark Lawrence (Darkside)

    Série Os Cavalheiros Bastardos – Scott Lynch (Arqueiro)

    Os livros da Cosmere – Brandon Sanderson (Leya)

    A Roda do Tempo – Robert Jordan (Intrínseca)

    A Torre Negra – Stephen King (Suma de Letras)

    Livros da Terra Média – J. R. R. Tolkien (Martins Fontes)

    Crônicas de Gelo e Fogo – George R. R. Martin (Leya)

    Série A Companhia Negra – Glen Cook (Record) – Resenha

    Série O Livro Malazanos dos Caídos – Steven Erikson (Arqueiro)

    Discworld – Terry Pratchett (Conrad/Bertrand) – Resenha

    – The Dresden Files – Jim Butcher

    – Traitor Son Cycle – Miles Cameron

    Série Revelações de Riyria – Michael J. Sullivan (Record)

    Série Ciclo das Trevas – Peter V. Brett (Darkside)

    A Saga de Ender – Orson Scott Card

    A Guerra do Velho – Jon Scalzi (Aleph)

    Elric de Melniboné – Michael Moorcock (Generale)

    Crônica do Matador do Rei – Patrick Rothfuss (Arqueiro)

    – The Expanse – James S. A. Corey

    – The Rain Wild Chronicles – Robin Hobb

    Trilogia Oryx e Crake – Margaret Atwood (Rocco)

    Maurício Ieiri é um historiador que não faz História. Atualmente, tentando descobrir o que fazer com sua vida, partindo deste exato momento até o dia em que morrer. No meio tempo, escreve ficções. Participou do blog coletivo Os Caras do Clube.

  • Os Bastidores, Detalhes e As Mudanças de George Lucas em Star Wars

    Os Bastidores, Detalhes e As Mudanças de George Lucas em Star Wars

    SW George Lucas 1

    Desde 1997,  passados 20 anos da primeira vez em que a abertura da 20th Century Fox quase se mesclava com a música de John Williams e os letreiros amarelos prenunciando o intenso conflito entre rebeldes e o Império, há ainda o mesmo assombro do público com o Star Destroyer Cruzader invadindo o espaço atrás da nave Tative IV ao perceber novas mudanças em meio aos três filmes clássicos – e canônicos – de Mister George Lucas.

    O aspecto que talvez não esteja claro para o aficionado atual – ainda mais o alienado – era todo o cenário cinzento que ocorria nos anos 1970. Graças a fatores como Watergate, a Guerra do Vietnã e muitos outros eventos históricos, a maior parte do público americano consumia fitas protagonizadas por anti-heróis, homens talhados pela vida, que se valiam de drogas e bebidas para fazer aplacar a sua miséria existencial.

    Em meio a tantos outros expoentes do futuro cinema, com De Palma, Coppola, Scorsese e De Palma, Lucas surgia como um homem que apontava para outras vertentes, ainda que seu THX-1138 – tanto o curta, quanto o longa- fossem produtos da mesma depressão emocional que inspirava os seus contemporâneos, havia nele a vontade de resgatar tempos mais simples, o que o fez realizar seu American Grafitti – ou Loucuras de Verão, na tradução brasileira. No entanto, ainda faltava algo, já que o jovem diretor não gostava das interferências e intervenções que os produtores faziam em seus dois longas-metragens lançados.

    A descoberta de Joseph Campbell e seu livro O Herói de Mil Faces ajudou o contador de histórias a organizar sua epopeia, se valendo do monomito para tal, um conceito que resume a tradição retórica e oral no “contar histórias”, usando arquétipos que facilitariam o diálogo com o público, ainda que alguns desses detalhes fossem ligeiramente diferentes em Star Wars, especialmente em relação à “donzela em perigo” da Princesa Leia de Carrie Fischer, que, apesar de estar encarcerada, não era exatamente a figura feminina sem ação.

    SW George Lucas 2

    Mesmo os terríveis erros de direção, especialmente nas cenas de tiroteios, onde charmosamente se apresentavam dois droids praticamente invulneráveis – e que serviriam de alívio cômico durante três filmes e, claro, a pontaria sempre certeira da cônsul e princesa Leia Organa – traziam um extrema simpatia para a versão de 1977 de Uma Nova Esperança. Misturadas ao caráter dúbio da perseguição de Darth Vader aos resquícios da Aliança Rebelde (até então um rumor, aos olhos do poderoso governo totalitário), as coincidências convenientes se diluíram, não precisando ser desnecessariamente revistas e remontadas.

    Curioso é que George Lucas não mexeu nos erros mais crassos de seus roteiros, e sim no que poderia soar flagrante aos olhos do público mais conservador. A falta de coragem e dificuldade em seguir em frente acabaram por fazer o antes promissor cineasta se tornar um bilionário enfadado, entediado, sempre preocupado em agradar às plateias que o rejeitaram antes, em detrimento do público que sempre lhe foi fiel, e que se agigantou graças à popularidade.

    Lucas se tornaria o avesso de Luke: enquanto o jovem fazendeiro buscava a possibilidade de novas aventuras, lutando contra o status quo, seu criador faria basicamente o exercício de regurgitar o trabalho que o tornou famoso, não conseguindo sair da prisão em que ele próprio se impôs. As boas ideias de Star Wars teriam vindo de criadores mais inteligentes e experimentados, na concepção de alguns fãs ranzinzas, reunindo as intenções dignas de Kurosawa, Flash Gordon, Frank Herbert e afins.

    As dificuldades em gravar começaram pelos problemas com clima, com uma tempestade de areia terrível na Tunísia, que destruiu grande parte dos cenários de Tatooine. O caos se instaurou e por pouco a franquia não parou antes mesmo de começar, já que a maioria dos atores reclama o tempo inteiro, exceção feita a Alec Guinness, que apesar de não acreditar em nada na história, era o mais profissional e experiente do elenco.

    SW George Lucas 3

    A versão “desespecializada”, compilada a partir de rips dos Blu-rays da antiga trilogia executada por fãs inconformados com tantas mudanças em pós lançamento, faz lembrar o quão épica era a ideia inicial do jovem diretor e roteirista nascido em Modesto Califórnia. Desde a tragédia que acometeu os tios adotivos de Skywalker, até o encontro com Obi-Wan “Ben” Kenobi – que emula os grandes mestres dos samurais, ainda que seja muito mais ativo do que o costume dos homens sábios –, e, claro, o caminho até Alderaan, incluindo a recusa de Luke e aceitação de seu destino, algo já desejado antes, são elementos que deram forma aos escritos de Campbell, um manifesto que ainda não era tão banalizado quanto atualmente é.

    A burocracia tomou conta daquele universo e manifestou-se de forma brutal através do conselho que responde ao almirante Grand Moff Tarkin, de Peter Cushing, um dos homens fortes do governo tirânico e que acabou de dissolver o conselho de senadores, talvez o último bastião da antiga república. A derrubada deste era na verdade um ato simbólico, uma última desculpa que visava justificar os desmandos do autointitulado Imperador.

    Skywalker era um personagem com o caráter em formação, tão inseguro quanto seu intérprete Mark Hammil, propenso a fugas e desobediências, e até a não ceder a desaforos. Tal característica seria comum – e ainda mais exacerbada – no Han Solo de Harrison Ford, que não sequer pensa em não desferir o primeiro “golpe” em seu opositor, Greedo, ao se ver na mira da morte. A atitude mais enérgica era pouco sutil e representava a mudança mais esdrúxula e criticada por quase todos os fãs, fator que retiraria do caçador de recompensa (e cafajeste) toda a sua atitude de anti-herói arrependido. O Solo que “atira depois” seria incapaz de improvisar junto a Luke e Chewie uma invasão a uma estação espacial impenetrável, bem como planejaria raptar a senadora que já era refém. A trinca de protagonistas ganharia o acréscimo da ardilosa Leia, que, sem saída, encontra uma rota improvisada, uma atitude típica de uma inconformada política.

    A fuga da Estrela da Morte abre precedente para duas questões interrogativas, a primeira em relação ao legado de Kenobi e a segunda em relação ao grupo de rebeldes, que ao se despedir do esquadrão Rogue usa a famosa frase “que a força esteja com você”, como incentivo para os pilotos/atiradores. É sabido que a religião dos Jedi estava em desuso, praticamente sepultada após a extinção da ordem anos antes, tendo em Vader seu único remanescente, ao menos de modo oficial. Os membros da aeronáutica rebelde teriam dito aquilo como mais uma atitude de resistência, onde o apego ao Divino seria o maior ato de revolta possível, em comparação com a burocracia adotada pelos que restaram da República.

    SW George Lucas 4

    Paul Hirsch e Richard Chew seriam fundamentais para o sucesso da empreitada de Lucas em Star Wars. Depois de terminar suas filmagens, e após deixar a maioria dos atores decepcionados com sua direção frouxa, que basicamente pedia mais intensidade e velocidade, George Lucas se via com problemas de prazo e com um corte de filme terrível em mãos. A saída foi demitir seu então editor, que se recusava (por motivos certos) a fazer o que ele queria, e então a dupla começou a “salvá-lo”. O problema maior é que este mérito premiado no Oscar fez ele criar o hábito de agir como diretor dentro da sala de direção, e não no set, fato que se agravaria de 1999 em diante.

    O resultado das primeiras impressões da recém-criada Industrial Light and Magic era terrível, e as acusações iam desde desleixo puro e simples até o desperdício de tempo somente com substâncias ilícitas, dada a caracterização hippie da maioria dos operários. A pressão fez o cineasta acelerar ainda mais os processos, além de encontrar em Ben Burtt e sua edição de som primorosa um fator que garantisse a maior parte da alma da trilogia. O maior mérito de Lucas, aliado a persistência do produtor Alan Ladd Jr., que quase perdeu seu emprego pela Fox por causa do filme, certamente foi conseguir reunir todas essas mentes inteligentes em torno do mesmo propósito, conseguindo harmonizar tudo isso de modo que ficasse realmente lendário, tão escapista quanto ele queria no início.

    A vitória dos mambembes soldados revoltosos sobre os ditames dos poderosos e bem armados membros do reinado sombrio é simbólico, remete a uma época mais simples, de luta entre o bem e o mal, como era na época da Segunda Guerra Mundial, em que aliados e o eixo se digladiavam. O resgate a essa temática se via necessário, diante da grande depressão que os Estados Unidos passavam, fato que também fez da série Rocky um sucesso. A ressalva resulta na questão do simplismo que seria imposto ao recém criado gênero de “blockbuster”, tencionado por Tubarão de Steven Spielberg, e fundamentado neste pelo merchandising que Lucas garantiu a si antes do fechamento de contrato, expandindo o conceito que se iniciou em Planeta dos Macacos e tornando profissional a comercialização de “bonecos” e demais produtos.

    SW George Lucas 6

    Em 1978, George Lucas parecia ter um cuidado maior com exposição de sua marca, já que Star War Holiday Especial foi defenestrado e recolhido, execrado por ele e negado sempre que se levantava a possibilidade da obra ter existido. Para todos os efeitos de discussão a respeito do que é cânone e do que é universo expandido na franquia, uma vez que o especial continha o elenco do primeiro filme. Dois anos após, a trajetória de Luke, Leia, Han, Chewbacca e os droides prosseguiria, com o anúncio de novos personagens a serem explorados.

    O Império Contra-Ataca começa nas planícies geladas de Hoth, provando que no universo Star Wars os planetas têm normalmente um só clima. A arenosa e calorenta Tatooine fora gravada na Tunísia, enquanto o planeta gelado que servia de base para os rebeldes, localizava-se em Finse, Noruega.

    SW George Lucas 7

    Dois fatores ajudaram a fundamentar mudanças na franquia, primeiro, o acidente que vitimou Hammil, deformando seu rosto, e outro dentro da própria trama, com o tema Marcha Imperial estreando, no que é possivelmente o maior marco musical de toda a saga. A entrega do roteiro nas mãos de Leigh Brackett e Lawrence Kasdan foi uma saída excelente, bem como a direção de Irvin Kershner, que suplanta muito bem os defeitos de George Lucas em ambos os aspectos. É na abordagem do trio que acontecem as cenas com maior tensão sexual da saga, entre Solo e Organa, além da lendária figura do mentor, vista na diminuta criatura que se apresenta para Luke.

    Dagobah serve de avatar da caverna de preparação do herói, o lugar para onde o protagonista recorre a fim de acumular conhecimento e se preparar para a grande batalha. Luke é um aluno arredio, complicado e incrédulo; possui vícios como a teimosia e arrogância, que não ficavam tão gritantes antes, mas que em ambiente isolado pioram demais. Com Yoda, Skywalker percebe que seu pior inimigo é ele mesmo, e ainda assim se deixa levar pela pressa e pela aproximação do perigo. A imprudência o faz agir instintivamente, indo atrás de seus amigos emboscados.

    A figura criada por Stuart Freeborn teria que ser mais convincente do que qualquer ator humano, e a liga de plástico só fez sentido graças ao ótimo manuseio de Frank Oz, que trazia sua experiência em Muppets para orquestrar um mestre zen esverdeado, diferente de tudo o que já existia. As lições de Yoda ecoariam pela eternidade, no personagem mais inspirado pensado por Lucas – ao menos no lado do Bem.

    SW George Lucas 8

    Grande parte dos méritos do segundo filme se dá pela distância de seu criador, que procurava outras locações. A bifurcação da trama, dividindo as ações em duas frentes, se assemelhava à divisão da Sociedade do Anel, no livro As Duas Torres, de J. R. R. Tolkien. Toda a parte passada em Bespin faz discutir as intenções de Han Solo, especialmente por compará-lo com o caráter de seu antigo amigo e aliado, Lando Calrissian (Billy Dee Williams), um antigo apostador que, por ter se “endireitado”, teme perder seus feitos.

    O roteiro de Empire Strikes Back é formado por sucessivos movimentos de traição, primeiro de Lando com Solo, depois, Lando com os lacaios de Vader – evidentemente por arrependimento, dada a quebra do acordo entre ambos – depois, no discurso do Darth junto ao seu filho, tencionando juntar as forças familiares contra o Imperador. A motivação dos personagens é carregada de duplicidade de pensamento e incertezas, gerando uma carga de ambiguidade até então desconhecida pelo maniqueísta projeto inicial. Além disso, o suspense e a tragédia são muito presentes nos momentos finais, deixando em aberto a sensação de que as forças malignas venceram, sem mais espaço para o otimismo desenfreado da encarnação anterior.

    Apesar da relação antiga entre Kershner e Lucas ser baseada no mesmo mote visto entre Obi-Wan e Luke, a cisão ocorreu, com acusações de “ruína do filme”, atrelada às mudanças que Kershner havia feito dentro da trama. Envolvido com outros aspectos da produção, o cineasta decidiu por seguir na descentralização de funções. A saída obrigatória do nome de Lucas do quadro do sindicato de roteiristas e diretores, se fez como represália à realização de seu filme de modo independente. O ressentimento por ter a audácia retribuída com isso fez com que Lucas se isolasse ainda mais, tendo de abrir mão de ter Spielberg como diretor, optando então por Richard Marquand, o mesmo de O Buraco da Agulha, baseado no livro de Ken Follet.

    SW George Lucas 9

    O Retorno de Jedi se inicia com o anúncio de que o Imperador visitará as instalações da nova Estrela da Morte – ainda em construção – e claro, o retorno da aventura a Tatooine, para encontrar Jabba the Hutt, que tem em seu poder o Capitão Solo, preso em carbonita, argumento utilizado no filme anterior para o caso de Ford não aceitar renovar seu contrato.

    A exploração do submundo de crimes de Tatooine é interessante, mostrando uma nova gama de personagens e criaturas, com um conjunto estranhíssimo de alienígenas, fato que deixa ainda mais claro o intenso racismo do Império, visto que quase não há criaturas não-humanas nas fileiras do exército dos poderosos, somente nas bordas da galáxias, nos subúrbios do universo.

    Outro ponto curioso é notar a evolução postural de Luke, tão convincente que se faz perguntar se ele não retornou ao planeta pantanoso nesse meio tempo. Fator destacável é a fraqueza de mente dos subalternos de Jabba, quase todos facilmente manipuláveis, exceção feita ao próprio chefão do crime e ao caçador de recompensas de visual interessante Boba Fett. A fragilidade é tanta dentro da instituição que a maioria dos personagens se infiltra sem quase dificuldade nenhuma,

    O decréscimo de qualidade é bastante notado, desde a descida de Skywalker a Dagobah, onde o antigo “mestre zen” está convalescendo, se despedindo melancolicamente do seu aluno, até a conclusão de que o treinamento que jamais foi findado, não o será graças a esta saída – metalinguagem para a decadência cinematográfico do tomo anterior para este. A aura de Retorno é muito mais sombria, não no aspecto fotografia, mas sim dos figurinos. O traje de Luke é negro, sua nova espada reluzente é esverdeada, e quase todos os cenários onde está são repletos de lodo e escuridão, mesmo quando está na lua de Endor.

    A problemática ocorre graças a gravidade das circunstâncias, algo que claramente poderia ser maior, tendo seu teor banalizado pelas aventuras semi-infantis com o ewoks, os “ursinhos irracionais” capazes de preparar armadilhas para os generais rebeldes e as tropas imperiais. É neste filme também que as cenas de amor constrangedoras começam a ocorrer, ainda que sejam muito menos incômodas do que nos filmes dos anos 2000.

    Outro fator complicado é a desnecessário sexualização de Carrie Fischer de sua personagem. Leia era uma personagem forte, feminina e operante no espectro político, tinha argumentos e justificativas corretas em relação à revolução e no debate da democracia. Se algo funcionava no confuso cenário de Star Wars, transformá-la em um bibelô, vestido em um biquíni dourado, faria ser lembrada mais por isso do que, por exemplo, ter sido ideia dela a fuga bem-sucedida da Estrela da Morte, e ainda seria motivo de piada em filmes B como Mortal Kombat. A diminuição da personagem é de uma covardia sem escrúpulos, fruto de uma ação provavelmente mal pensada da parte dos roteiristas, que não percebiam o sexismo bobo em que enfiavam a personagem, mesmo que tal ato tenha vindo de uma figura nojenta com Jabba.

     SW George Lucas 10

    Para compensar tal problema, há a construção da batalha espacial, entre a resistência e o poderoso governo tirânico. Um dos argumentos que justifica a construção tosca do ideário dos rebeldes é a tentativa de fortalecer a figura do Imperador interpretado por Ian McDiarmid, fortificando a teoria de que o Império só poderia perder para ele mesmo, e que o acerto dos “mocinhos” só ocorreu pela arrogância dos opositores, factoide que teoriza um dos motes principais de O Despertar da Força, e que serviu de base para inúmeras aventuras no Universo Expandido posterior à trilogia clássica.

    Star Wars é uma saga familiar, trata dos dramas caros a Anakin e Luke Skywalker, ao contrário do que foi vendido pela “nova” trilogia, de que seria a trajetória trôpega de um jedi que passou por ambos os lados da Força. A vitória final é em conjunto, entre Vader e seu filho, com o Darth derrotando seu antigo mestre, dando finalmente a chance aos revoltosos de acertar o âmago do seu inimigo. Mesmo os finais adocicados e cafonas, reunindo os aventureiros em torno da lua, não fazem o sacrifício dos personagens perder a força simbólica que ostentam. O fechamento da saga merecia um final melhor, o que motivou claramente Lucas a rever tudo, modificar o que achava equivocado, montando  equívocos ainda maiores para criar prequels tão fracassadas quanto os spin-offs focados nos ewoks. A força da trilogia original é tão grande que suplanta mesmo esses delitos e transgressões por parte de seu criador, que claramente tem problemas em perceber que sua história não pertence mas a si, e sim ao público que o fez rico, que trata de forma cara seu objeto de idolatria, e que segue mantendo carinho em um objeto que maltratou demais seus apreciadores, mas que prossegue vivo, claro, graças ao selvagem capitalismo visto nos produtos derivados. A obra se mantém ainda viva graças à magia da fábula que Campbell previu.

    A Força sobrevive, apesar de midi-chlorians, corridas de pods e piadas, além do Universo Expandido, subsistindo, há muito tempo, em uma galáxia distante e no ideário de seus devotos.

    Leia nosso especial sobre Star Wars.