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  • Resenha | O Elefante Desaparece – Haruki Murakami

    Resenha | O Elefante Desaparece – Haruki Murakami

    Por definição, tempestades perfeitas são eventos raros e únicos, com vestígios duradouros para o bem ou para o mal. Chegam com imponência justamente quando se esquece o guarda-chuva em algum lugar. Se o maldito estivesse em suas mãos, gota alguma cairia do céu. Mas você está vulnerável: tênis novos, cabelos penteados, celular e livros caros em uma mochila que não, meu amigo, não é impermeável. Tempestades perfeitas, veja só, precisam chacoalhar o seu núcleo e arrastar com fúria as barricadas internas, promover enxurradas que destroem a letargia erguida por horas de televisão e discussões rasas. Do contrário, será um chuvisco.

    Meu primeiro Murakami foi uma tempestade perfeita. Chegou sem aviso logo nos primeiros capítulos de Norwegian Wood. Fui o primeiro a estranhar o impacto que o livro de Haruki Murakami causou na minha cabeça. Mas depois da primeira caneca de café na frente do livro, fiquei absorto nas páginas frias de um protagonista sem nome, distante e preso num triângulo amoroso abalado por um suicídio.

    Eu estava em Londres quando comecei o livro. sentado na mesa da cozinha na casa da minha irmã. Tinha um tempo limitado para terminar a pesquisa de mestrado, mas durante três ou quatro dias, tudo em que conseguia pensar era no livro de Murakami. Longe de casa há tempos, com cicatrizes emocionais tão recentes que voltavam a sangrar ao menor dos toques, vivia a maior parte do tempo sozinho, flutuando entre livros e escrita, quilômetros corridos e conversas passageiras, pesquisas e aulas, sempre com a cabeça em outro lugar, como se jamais fosse permitido pertencer ao presente.

    Caminhando nas ruas escuras e encharcadas de Londres, sentia os efeitos da minha tempestade perfeita exclusiva. E não podia ser diferente. Foram meses em que me fechei para quase todo contato humano e me concentrei em entender o que acontecia comigo. Vislumbrar algum tipo de caminho para me guiar. Norwegian Wood me pegou sem guarda-chuvas. Um livro com personagens de impressionante complexidade e diálogos rítmicos que fluem suavemente com facilidade, como dançarinos acostumados com o piso do salão.

    Do frio ao calor, anos mais tarde, tenho em mãos O Elefante Desaparece, conjunto de contos recém-lançado pela Alfaguara com tradução direto do japonês por Lica Hashimoto. Entre o garoto no meio da tempestade em Londres e o homem de volta ao seu país natal, as feridas foram bem cicatrizadas.

    Os 17 contos da coletânea representam o maior festival para os que jogam o Bingo Murakami. Contos que buscam a estranha beleza nos diálogos entre desconhecidos que se abrem numa decisão de último instante, derramando sobre pessoas aleatórias os mais profundos medos e reflexões. Ao mesmo tempo que evocam detalhes vívidos com a maestria de um texto bem composto. Histórias rápidas que cortam a gordura narrativa, porém, entregando ao leitor um texto que não se desperdiça com reflexões sobre o tempo.

    É como se cada pequena história fosse uma versão condensada e com menos impacto dos livros mais longos: obsessão por partes específicas do corpo. Gatos e mais gatos. Pensamentos sexuais estranhos. Discos de jazz e espaguete às dez da manhã. Telefones que tocam de forma peculiar enquanto o protagonista decide, à lá Shakespeare, se deve atender ou não. Desaparecidos sem deixar vestígios. Gatos desaparecidos com algum vestígio. Escritores que saem todos os dias para correr entre 5 a 7 quilômetros.

    Como a obra do autor é urbana, na maioria dos contos estão presentes contrastes entre a cacofonia do trânsito e do santuário doméstico, de apartamentos apertados aos grandes casarões dos ricaços. Tókio, populosa, apertada, confusa e alienante é um palco onde se procura, antes de tudo, silêncio e privacidade para reencontrar a identidade mais profunda. Uma busca que pode terminar na composição de outro indivíduo.

    O tema da identidade é um dos mais caros ao autor. Desde Norwegian Wood, passando pelos contos, até chegar ao Kafka à Beira Mar e o divisor 1Q84, há uma procura da segunda metade de um indivíduo. Uma busca que talvez termine na figura do outro. Uma análise profunda que nos faz navegar por águas estrondosas, mesmo quando o mar está tranquilo. Uma jornada que resulta em ruas estranhas e passagens subterrâneas que não são facilmente acessíveis. Não raro, a procura leva ao total desprendimento do indivíduo, uma quase alienação de si, de suas estruturas temporais e sociais. É quase irônico o quanto Murakami explora essa ideia, perder-se ao procurar a si mesmo. Assim, das ruínas, sabemos que o trabalho será árduo e tomará boa parte dos próximos anos, mas é quase uma resiliência derrotista que toma conta de algumas personagens: do fundo do poço, só há um caminho a seguir.

    O Elefante Desaparece também segue os que fogem das pequenas facetas do mundo banal. O casamento, a vida acadêmica, horas intermináveis no escritório apertado, o que não deixa de ser uma fuga de si mesmo. No conto Sono, este resolve faltar a uma esposa de dentista, uma mulher que vive o máximo tédio, deixando-se levar pelas águas do tempo. É o tipo de casamento em que uma das partes divaga durante o sexo, cujo tesão há muito secou e apenas a rotina os mantém. Ela, então para de dormir. E na ausência do descanso, da restauração do sono, encontra vitalidade. Devora livros, move o corpo por mais tempo e pesquisa os motivos do sono. É uma escolha difícil, buscar uma cura para o que acontece – a incapacidade crônica de dormir – e viver uma  entediante vida em família, se ela pode viver ao máximo enquanto a falta de sono rapidamente clama o resto de seus dias.

    Em outra história encontramos no fundo da garrafa o escape das obrigações sociais. Na constante luta pela liberdade, há uma sutil crítica de que somos animais sociais de hábitos tão complexos e contraditórios, que nem mesmo percebemos a falta de nexo. O resultado? Escolhemos correr, mas nos prendemos sempre ao mesmo percurso, um quilômetro depois do outro, cada passo por vez. Uma fuga em círculos.

    Claro, poderia discorrer longamente sobre os contos do livro, mas procuro apontar ao leitor as nuvens no céu. Olhe para elas. Pesadas, não? E esse vento? Sinta a umidade carregada no ar, a estática que parece dançar ao nosso redor por toda nossa pele, o cheiro de ozônio de uma tempestade de raios. Vai chover.

    Ao menos é o que parecia.

    Sou escritor. Nos últimos anos, tudo que li se encaixa em fantasia, exceto por um ou outro título de não-ficção aqui e ali, sempre comprimidos entre títulos do A Roda do Tempo, Malazan ou qualquer coisa com sílabas demais para enumerar. Li para me entender e me educar no campo, mais a trabalho do que por lazer, apesar de meu amor por tudo que a Fantasia representa. Aos poucos, senti os efeitos da overdose de Balrogs e Dragões, dos clichês do herói bucólico que encontra o mentor e parte até a caverna secreta, e comecei a ansiar por outras áreas da ficção. Escolher um Murakami era o mais óbvio, uma velha luva para cobrir minhas mãos na fria escuridão. Sim, as nuvens ainda estão sobre nossas cabeças. Mas porque a chuva não veio?

    Foi com surpresa que encarei meu céu limpo, eternidade em azul, cada nuvem tão presente quanto o elefante desaparecido. Uma gota sequer para molhar o rosto. Um dos fatores que manteve o ar tão seco vem da brevidade dos contos. Por natureza, não há espaço para desenvolver todos os temas propostos, explícitos e implícitos. Não é por acaso que o primeiro conto do livro, O Pássaro de Corda e as Mulheres de Terça-feira, voltou na forma de romance, o Crônica do Pássaro de Corda – o mesmo aconteceu com Norwegian Wood, originalmente Firefly, que aparece em Blind Willow, Sleeping Woman, ainda inédito no Brasil.

    Por vezes, quando a história finalmente ganha impulso, encontramos um final abrupto. É uma falsa impressão de que o texto é raso, pois todo o conteúdo está lá, em cada página, em cada uma das linhas bem escritas. Talvez o problema venha do próprio Murakami, cujo estilo pede um pouco mais de volume para encontrar seu próprio ritmo. Eis o trompetista, que com maestria toca o Jazz, apresentando ao ouvinte uma coletânea de músicas pop. A verdadeira beleza de suas narrativas estão no prazer das longas e solitárias corridas. Não nos tiros explosivos que deixam os músculos das pernas queimando.

    Assim, a chuva é uma promessa no horizonte, nada mais. Como leitor, também sou diferente daquele rapaz afogado na tempestade perfeita. Marido, pai e escritor, não mais perdido em ruas de tom noir. Quando meu cérebro não desliga e o sono foge, é por conta de ansiedades diferentes daquelas, um tanto reais e assustadoras, distante das questões que outrora me consumiam quando Norwegian Wood me aguardava na cabeceira da cama.

    Todos mudamos, é o que criaturas vivas fazem. Adaptamo-nos ou não. Ganhamos e perdemos. Odiamos. Amamos. Tomamos partidos e escolhemos dentre religiões. Por vezes, decidimos não acreditar, fácil assim. O fato é que tempestades perfeitas podem chegar e nunca cair. Algo não estava perfeito, afinal.

    E desta vez, a culpa também é minha. O Elefante Desaparece não deve nada ao leitor quando todos os contos foram lidos. Porém, eu mudei. Em muitos aspectos, ainda sou o mesmo. Gosto de matar monstros imaginários ao jogar dados de vinte lados; não gosto de funk ou livros da Ayn Rand. Ao mesmo tempo, não sou mais o mesmo. E isso é o que basta. Se hoje abrisse Norwegian Wood e mergulhasse no livro pela primeira, talvez não encontrasse uma tempestade perfeita. No fim, Murakami tinha razão: eu me perdi e assim, consegui me reencontrar.

    Talvez um dos contos tenha o jazz ideal de tempestade. E se não o tiver, tudo bem: tempestades perfeitas são raras.

    Maurício Ieiri é um historiador que não faz História. Atualmente, tentando descobrir o que fazer com sua vida, partindo deste exato momento até o dia em que morrer. No meio tempo, escreve ficções. Participou do blog coletivo Os Caras do Clube e recentemente lançou seu primeiro romance, Incursões. 

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  • VortCast 48 | O Que Estamos Lendo?

    VortCast 48 | O Que Estamos Lendo?

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Jackson Good (@jacksgood), Thiago Augusto Corrêa (@tdmundomente) e Rafael Moreira (@_rmc) se reúnem para mais uma série de indicações literárias que vão desde literatura fantástica a romances policiais, ficção científica a reportagens jornalísticas.

    Duração: 126 min.
    Edição: Thiago Augusto Corrêa e Flávio Vieira
    Trilha Sonora: Flávio Vieira
    Arte do Banner: 
    Bruno Gaspar

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  • A Jornada do Leitor

    A Jornada do Leitor

    Todo herói tem um arco, uma jornada. Cada personagem – ao menos de escritores que sabem o que estão fazendo com as mãos num teclado – tem um papel dentro da trama principal. É o arco narrativo, sua jornada do início ao fim, sem importar quão frívolos sejam seus motivos ou abrupta sua morte. Ao analisar narrativas dos principais textos de diferentes religiões num brilhante estudo de mitologia comparada, Joseph Campbell notou avanços narrativos semelhantes, em que personagens diferentes preenchiam partes idênticas nos mecanismos internos dos contos, assim o próximo passo do protagonista invariavelmente seguia uma lógica. O Herói de Mil Faces, Campbell chamou seu livro, pois a trilha é seguida de novo e de novo e de novo.

    O autor desenvolve seus argumentos sobre o molde narrativo do qual partilham as mais diversas histórias, desde Pulp Fiction até a epopeia de Gilgamesh. Crucial, um dos pontos mais importantes dentro de uma história é a transformação dos personagens de um estado inicial até o ponto de chegada, quando retornam para uma normalidade, profundamente mudados pelo caminho, pelo percurso da Jornada. Harry Potter, Luke Skywalker e Rick Blaine atravessaram os mesmos passos: uma velha estrada de tijolos amarelos que já foi percorrido por Dorothy. Todos eles tinham um desejo, uma aspiração que dá o pontapé inicial de suas histórias. Na Jornada, é essencial que se deseje algo. Mesmo que seja um copo de água fresca, como disse Kurt Vonnegut. São nos passos identificados no “O Herói de Mil Faces” que as histórias se desenrolam, com ou sem variações, e a vontade de virar a página ganha contornos urgentes. Ao leitor desatento, pode parecer um tanto formulaico, mas a Jornada é algo sutil, uma trama em que mãos habilidosas podem bordar qualquer coisa maluca que se passa em sua mente.

    De forma resumida, cada personagem responde com hesitação antes de aceitar o Chamado da Aventura, o acontecimento surpreendente e muitas vezes surreal que inicia, de fato, o plot: Gandalf bate à porta de Bilbo Bolseiro logo no início de O Hobbit, e, anos mais tarde, Frodo herda um certo anel, dando os primeiros passos em uma das jornadas definidoras de todo um gênero, O Senhor dos Anéis. Tal Chamado gira todas as rodas dentadas que trabalham por trás das linhas e parágrafos que você deita os olhos, jogando os protagonistas num mundo desconhecido onde contam com um Mentor – palavra que vem do grego menos, que significa desde força, propósito, até mente, espírito ou lembrança -, em que o caminho até o próximo passo da Jornada, a Caverna Misteriosa, será permeado por aliados, inimigos e provações. No Hobbit, Bilbo encontra Gollum e Frodo chega até Mordor. O herói que perseverar no caminho, retornará ao velho mundo onde sua jornada começou e, com os tesouros e ensinamentos da estrada percorrida, faz o leitor respirar aliviado depois de Bilbo ter enfrentado os perigos de um dragão ganancioso e o fiel Sam empurrar seu amigo na direção certa, um dos momentos de maior carga emocional de “O Senhor dos Anéis”. Agora, o herói precisa enfrentar seu real perigo antes de prevalecer sobre o mal: a Batalha dos Cinco Exércitos e a Montanha da Perdição, para continuar com os exemplo de Tolkien.

    É a jornada do herói, com ou sem maiúsculas; o arco. Ainda me lembro de uma das cenas preferidas de Família Soprano, quando o jovem e explosivo Christopher Moltisanti pergunta ao mentor Paulie, um mafioso da velha guarda, onde estava o seu arco, pois nada de interessante acontecia em sua vida.

    “E daí,” Paulie responde, numa calma enervante, “eu estou vivo. Eu sobrevivo”.

    Christopher enterra os dedos no cabelo. Como ele pode não entender? “Não quero apenas sobreviver. Os manuais de roteiro dizem que cada personagem tem seu arco. Entende? Todo mundo começa em um lugar, e eles fazem algo. Algo acontece a eles. E isso muda suas vidas. Isso é um arco. Onde está o meu arco?”.

    Foi a angústia de Christopher, um personagem com o qual pouco me identifico, que tomou conta de meus pensamentos quando li as últimas linhas da A Roda do Tempo, uma série composta de catorze tijolos – e um tijolinho de prefácio -, totalizando algo em torno de doze mil páginas. Doze mil páginas. Milhões de palavras. E mais arcos de personagens do que eu poderia contar de cabeça. Claro, em (quase) todos os livros da série o leitor pode encontrar começo, meio e fim para as diversas histórias que se desgarraram da linha narrativa principal e acompanhar o crescimento das personagens que mais cativam ou detestam. A Roda do tempo é uma longa jornada, talvez a maior que já percorri – com grande chance de ser a maior que jamais percorrerei -, uma estrada esburacada, com altos e baixos, longas tempestades e mais paradas que o ideal, uma viagem que talvez exija uma ou outra pausa a fim de trocar pneus carecas e reabastecer a água do radiador. É uma história épica que envolve até mesmo o Tempo em si, com T maiúsculo, onde Luz e Escuridão duelam em grande escala e a existência do mundo depende de quem sairá vitorioso. É o maniqueísmo de Tolkien em maior escala.

    A Roda do Tempo e o leitor

    Não vou perder nosso tempo com um resumo do mundo ou da história quando dezenas de análises e críticas estão aparecendo aqui e ali, enquanto a série começa a fazer sucesso na Terra Brasilis. Basta dizer que há altos e baixos, defeitos e virtudes, grandes lições de escrita; Vale lembrar que a última porção da história foi escrita por Brandon Sanderson por causa da morte do criador, Robert Jordan, afinal é difícil escrever depois de morto. Sanderson fez um ótimo trabalho e o último volume é um clímax de novecentas páginas – o maior capítulo, A Última Batalha, tem mais de 180 páginas.

    Levei seis anos para ler “A Roda do Tempo”. Partindo do meu Chamado de Aventura – inspirado por uma música da banda alemã Blind Guardian – até o Retorno com o tesouro, anos se passaram e centenas de outros livros, sem exagero, foram lidos, tanto para trabalho quanto lazer. Nesse meio tempo, comecei e terminei outras séries e trilogias, mas a Roda do Tempo sempre esteve no fundo de minha mente, ganhando novos contornos enquanto eu me reabastecia com outros autores, escritas e gêneros diferentes.

    Em paralelo a narrativa, analisava minha jornada de leitor, sobre como os dias podem girar em torno do livro em suas mãos, sobre nosso próprio crescimento, mudanças, derrotas e vitórias enquanto vivenciamos tantas outras jornadas. Da mesma forma que nosso herói tem mil faces, também as temos, cada um de nós. Desejamos, buscamos e nos transformamos em algo… bem, em algo diferente. Pergunte ao Kafka, se quiser.

    Quando li o primeiro livro, O Olho do Mundo, estava deitado no meu quarto, sozinho, febril e em Lisboa, morando numa casa cheia de gatos. Eu era um mestrando em História da Expansão e dos Descobrimentos, dissertando com a ajuda de mapas antigos sobre a formação do Japão na mentalidade ocidental entre os séculos XV e XVIII. O primeiro volume de “A Roda do Tempo” segue uma estrutura fixada por Tolkien, com um protagonista seguindo o estereótipo Luke Skywalker, o jovem e ingênuo fazendeiro que se descobre envolvido em acontecimentos maiores e perigosos.  E não foi O chamado de aventura, mas foi UM chamado. É como nos livros da série: não há começos ou fins em “A Roda do Tempo”, mas esse foi um começo. Ao menos isso.

    Eu morava sozinho e seguia uma rotina bem definida. Acordava, engolia meio litro de café e tomava banho para, depois, mergulhar no submundo metroviário de Lisboa e percorrer os corredores úmidos da Faculdade de Letras, onde ficava o centro de pesquisa em que trabalhava. Escrever, pesquisar e realizar enfadonhas tarefas administrativas tomava quase todo o meu dia, além de conversas e risos com pessoas que marcaram minha vida. Eu vivia um arco, afinal. Recém-formado, mergulhado em arquivos de fama internacional, lendo e observando mapas, cartas ânuas de jesuítas que foram ao Japão, além de manifestos de embarcações. Tudo no passado. Todos, viajantes e religiosos, europeu e japoneses, de volta ao pó, uma grande bacia de cinzas e poeira onde eu tinha me enterrado até os cotovelos na mais pura – elétrica – euforia.

    Já no segundo livro da série, vaguei por Londres, onde estava pesquisando a sessão de mapas da British Library. Foi no café do British Museum – onde fui ver a A Grande Onda  – que terminei o livro e já tirei o terceiro da mochila. Antes, pedi outro café. Saí de lá quando me expulsaram, mais de sessenta páginas depois. Voltei para a casa da minha irmã no escuro, a cabeça perdida no mundo criado por Robert Jordan. No meu arco, hoje enxergo que estava numa fase que podia me permitir vagar por mundos imaginários sem prestar muita atenção nos problemas do mundo real. Morando sozinho na Europa, com poucas aulas na semana e um trabalho com horário flexível que me permitia trabalhar em casa, um quando que permitia o luxo de focar nos estudos, conhecer melhor Portugal e afundar meu nariz nos livros. Ler até derrubar o livro no meu rosto, até esfregar olhos queimando e resolver fazer café às quatro da manhã, para tentar extrair mais um capítulo, quem sabe dois. Olhando para trás, eu deveria ter saído mais de casa, pergunte à Rosa.

    Quando voltei ao Brasil e morei em Campinas, comecei a escrever ficção. Corria quase todos os dias. Li mais. Enrolei minha dissertação e fiquei noivo. O tempo passou e eu estraguei um dos joelhos, começando um lento caminho de volta ao sobrepeso, quando meus quilos perdidos na corrida voltaram com novos amigos e a ficção ganhou espaço no meu cotidiano e nas minhas ambições. Foi talvez no sexto livro de “A Roda do Tempo” que decidi – ou melhor, fui empurrado a aceitar o que estava diante do meu nariz – trocar de profissão. Adeus vida acadêmica, olá rotina de escrita e edição. E desespero, claro.

    Atravessando a narrativa

    Conforme riscava os títulos de minha lista de leitura, meu próprio arco avançou. Aniversários, discussões, risadas, bebedeiras e jogatinas, tudo envolvido em muita escrita, leitura e edição. Eu me casei. Terminei meu primeiro livro, com mais de quatrocentas páginas, muitas delas desnecessárias e cortadas com um coração em prantos. Percebi depois que um livro de quatrocentas páginas é um erro se você ainda é um escritor desconhecido. Criei histórias menores, deixei outras depois de duzentas páginas. Meu filho nasceu. Páginas escritas dividiram espaço com mamadeiras e fraldas pedindo atenção. E então, alcancei a Última Batalha e, depois dela, o final de “A Roda do Tempo”. Bem, não O final, mas UM final. “A Roda do Tempo” não tem começos nem fins. Foram seis anos. Foram catorze livros.

    Claro, há relatos, principalmente no Reddit, de monstros que leem uma série deste tamanho em seis meses; outros estão na quinta, sexta, décima sexta – não é mentira – leitura da série. São arcos, tenho certeza: ninguém lê tantos livros – mesmo que seja uma só história – e fecha a última capa sem mudar, sem passar por uma transformação. Mesmo que a transformação seja pela necessidade de livros com fontes maiores para olhos cansados, essa pessoa mudou. No meu caso, a mudança foi gigantesca. Seis anos se passaram. Porcaria. Eu mudei, e muito. Do quarto escuro, iluminado apenas por um abajur amarelado, doente e trancado para deixar os gatos de outra pessoa fora do alcance de minha alergia, para um sofá confortável em nosso apartamento, numa cidade do interior de São Paulo; de minhas pretensões de conseguir ingressar num bom doutorado e viver de aulas e pesquisas, para a perspectiva de pagar contas com as mentiras que saem de minha cabeça e encontram caminho às pontas dos dedos; de namoro à distância – altos e baixos, altos e baixos – para a feliz paternidade dentro de um casamento estável, carinhoso e sincero. Eu cresci e, como um camaleão, minhas cores se transformaram em resposta ao ambiente em que agora vivo. Firmei convicções políticas e agora faço oposição a um governo que não me parece correto, brigo com unhas e dentes contra o monopólio dos veículos midiáticos, contra ambos analfabetismos, científico e político. Não sou apenas um historiador em outro país, cheio de perguntas sobre o que acontecia no passado, em ondas que banhavam o Japão tantos séculos atrás, enquanto o cenário atual me alcançava apenas como murmurinhos incômodos. De um historiador um tanto egoísta e recluso, tornei-me um escritor um pouco menos egoísta e recluso. Um pai, com sono e um sorriso bobo no rosto.

    Encontrei o final de “A Roda do Tempo” e dele passei. Pode apostar que me senti decepcionado com o final e tenho perguntas que nunca serão respondidas, mas estou satisfeito com a clareira no final do caminho. Quando se termina uma série, a sensação que se tem é um misto da nostalgia precoce e liberdade literária. O homem que sou hoje é bem diferente do estudante que ouviu uma música inspiradora e sentiu arrepios nos braços. Os livros da série tiveram pouco impacto nas minhas mudanças – Haruki Murakami, Carl Sagan, Yuval Noah Harari, Eric Hobsbawm e outros tantos tiveram mais importância -, mas servem de perfeito exemplo para o meu arco de herói. Afinal, sou o herói de minha história, assim como você é o personagem principal da sua.

    Minha jornada não é (nada) épica. A sua também não, até que você me prove o contrário. Mas é uma jornada e, caramba, ela é muito importante para quem está preso em seus quilômetros. Desejamos um emprego melhor, perder peso, que amanhã seja feriado e que, pelo amor de Deus, essa chuva dos infernos pare antes do sábado. Desejamos e buscamos, adaptamo-nos ao nosso próprio arco, nosso plot. Oras, estudamos para concursos públicos, brigamos contra chefes gananciosos e discutimos política; dançamos para a chuva parar e, como é um assunto que foge de nossa alçada, traçamos um plano alternativo para o sábado chuvoso, com pizza e jogos de tabuleiro. Talvez pedir meia frango com catupiry e meia calabresa não tenha o mesmo impacto que recuperar a Excalibur ou descobrir que o caminho para casa estava em você esse tempo todo, mas – por Crom! – essa pizza é o seu Chamado da Aventura e, se você não pisar na bola, será o herói de muita gente. São arcos diferentes. Nossa jornada é tediosa. Enfadonha. O oposto de épica. Mas, você sabe, é real.

    Quando Christopher Montisanti pergunta a Paulie onde está o seu arco, ele com certeza enfrentava a terrível angústia de não ser o que idealizava em outros tempos. Naquele fascinante mundo de violência, drogas e incertezas existenciais, Chris tentava se agarrar em algo para continuar sendo ele mesmo. Sem perceber, o jovem mafioso percorria um arco em si mesmo: o bloqueio, a desorientação. Quando chegasse na outra ponta do labirinto, ele seria – fatalmente – um mafioso mais forte. Um homem mudado. E outro arco teria início.

    Mas estou divagando e você já está se perguntando se realmente sou um escritor, tamanha verborragia. Você está lendo um texto sobre a passagem do tempo. Sobre como a saga de Robert Jordan me acompanhou em parte do caminho. Talvez você tenha sua própria Roda do Tempo e possa se identificar com o que exponho aqui. Talvez tenha crescido com Harry Potter e seus terríveis professores, ou tenha acompanhado Roland Deschain em cada passo no difícil caminho até a Torre Negra. Provavelmente sentiu os sóis de Tatooine queimando na pele. Minhas mudanças são acompanhadas de livros marcantes justamente porque sou um leitor antes de ser escritor. Filmes, músicas, relacionamentos, empregos… talvez até casamentos. Com toda certeza, o seu arco também tem um pano de fundo com variáveis e constantes.

    Agora que terminei uma série, meu arco continua. Talvez encontrou outras aventuras e chamados no meio do caminho. Quem sabe precise ir para um Mundo Especial e dele retornar com o Elixir do qual falou Campbell.

    Terminei de ler “A Roda do Tempo” muito, muito tempo depois de ter começado. E agora? Eu não sei para onde meu arco me levará, mas o próximo livro já está presente, com o marca páginas entre o final de um capítulo e o começo do próximo.

    Os passos da Jornada do Herói

    A Jornada do Herói

    Ato 1

    Mundo comum
    Chamado à Aventura
    Recusa do Chamado
    Encontro com o Mentor
    Travessia do Primeiro Limiar

    Ato 2

    Provas, Aliados e Inimigos
    Aproximação da Caverna Secreta
    Provação
    Recompensa

    Ato 3

    O caminho de Volta
    Ressurreição
    Retorno com o Elixir

    Livros para levar na estrada

    Trilogia dos Espinhos – Mark Lawrence (Darkside)

    Série Os Cavalheiros Bastardos – Scott Lynch (Arqueiro)

    Os livros da Cosmere – Brandon Sanderson (Leya)

    A Roda do Tempo – Robert Jordan (Intrínseca)

    A Torre Negra – Stephen King (Suma de Letras)

    Livros da Terra Média – J. R. R. Tolkien (Martins Fontes)

    Crônicas de Gelo e Fogo – George R. R. Martin (Leya)

    Série A Companhia Negra – Glen Cook (Record) – Resenha

    Série O Livro Malazanos dos Caídos – Steven Erikson (Arqueiro)

    Discworld – Terry Pratchett (Conrad/Bertrand) – Resenha

    – The Dresden Files – Jim Butcher

    – Traitor Son Cycle – Miles Cameron

    Série Revelações de Riyria – Michael J. Sullivan (Record)

    Série Ciclo das Trevas – Peter V. Brett (Darkside)

    A Saga de Ender – Orson Scott Card

    A Guerra do Velho – Jon Scalzi (Aleph)

    Elric de Melniboné – Michael Moorcock (Generale)

    Crônica do Matador do Rei – Patrick Rothfuss (Arqueiro)

    – The Expanse – James S. A. Corey

    – The Rain Wild Chronicles – Robin Hobb

    Trilogia Oryx e Crake – Margaret Atwood (Rocco)

    Maurício Ieiri é um historiador que não faz História. Atualmente, tentando descobrir o que fazer com sua vida, partindo deste exato momento até o dia em que morrer. No meio tempo, escreve ficções. Participou do blog coletivo Os Caras do Clube.

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    Crítica | Como Na Canção dos Beatles

    Como Na Canção 1

    Baseado na obra Norwegian Wood, de Haruki Murakami, Como na Canção dos Beatles exibe uma história que mistura melancolia existencial com viés revolucionário político. A base da experiência é a solidão sentimental de Toru Watanabe (Keniche Matsuyama), cuja confusão mental começa por sua dedicação à moça que é seu primeiro amor, Naoko (Rinko Kikuchi), uma bela menina, com dificuldades sérias de socialização, cuja introspecção faz Toru afundar-se ainda mais no desolamento e exílio.

    O principal fator que mantém o casal unido é um segredo do passado, que envolve a dor da perda de um amigo próximo, cujo trauma jamais foi superado por nenhuma das partes. Mais do que amor carnal e dependência sentimental, há uma relação de divisão do luto, um compartilhamento da dor que não deveria ser quebrado.

    A modernidade da vida adulta exerce em Toru seu domínio, inserindo-o no mercado de trabalho e na vida acadêmica, o que o faz ter contato com mais pessoas, se abrir para maiores experiências e provar de vieses que antes nem imaginava existirem. O mundo de possibilidades que se abre a ele faz nascer a amizade com Midori (Kiko Mizuhara), cujo comportamento absolutamente sociável difere, e muito, de seu par amoroso.

    O apoio que a nova amiga de Toru exerce é tão grande que ela até o acompanha às visitas que faz a Naoko, sendo uma presença constante no relacionamento de ambos, reforçando a ideia de ambiguidade, pavimentando a bifurcação da estrada da dúvida, que insiste em se apresentar ao coração do rapaz.

    As planícies geladas cobertas de neve resgatam ao cenário uma sensação de extrema solidão, que remete ao estado de espírito de cada uma das partes da equação. Um isolamento que não é quebrado mesmo nos momentos de interação carnal entre o casal. A depressão evade a mente de Naoko, se alastra como uma doença contagiosa, tomando a alma dos que a querem bem, fazendo da estima própria de seu parceiro algo cada vez mais baixo.

    A trilha sonora muda de tom ao se aproximar da meia-hora final. Os tons ditados pelo conjunto de cordas prenunciam o destino trágico, fazendo até dos movimentos de câmera de Anh Hung Tran algo acessório, apenas. O choro derramado sob as pedras, que ilham o personagem principal, é resultado de toda a trajetória que ele fez, com a dramaticidade elevando-se a cada segundo de fita. O amor corre ao lado da calamidade.

    As lágrimas de Naoko e Toru insistem em aparecer, mesmo com a chuva lavando a face dos amedrontados românticos. A angústia é a sensação constante para Toru, que vê na impossibilidade de se aprofundar em uma relação com Midori um avatar para sua tristeza, ainda que o movimento final seja o de sinalizar uma possibilidade de mudança, em uma atitude de pouco alento. Como na canção dos Beatles, uma histórica romântica repleta de pesar, em que a culpa e o trauma norteiam o destino mostrado na película, sem chances claras de redenção para nenhuma das partes.

  • Resenha | Kafka à Beira-Mar – Haruki Murakami

    Resenha | Kafka à Beira-Mar – Haruki Murakami

    Não foram poucas as opiniões favoráveis que ouvi sobre Haruki Murakami, e, tendo em vista que ele é um dos nomes mais conhecidos da literatura contemporânea, resolvi encarar um livro dele. Por que não começar com um que leva no título outro nome de peso?

    Foi assim que cheguei a Kafka à Beira Mar.

    É difícil situar o autor dentro de uma “tradição” mais ampla, visto que não conheço praticamente nada sobre literatura nipônica, mas o que é possível perceber é que existe um diálogo bastante interessante dele com outros elementos da cultura japonesa que gozam de bastante difusão no ocidente, digamos assim, como, por exemplo, os animes, o ritmo frenético de Tóquio, algumas lendas e mitologias, a alta-tecnologia etc. Existem determinados momentos do livro em que você nitidamente enxerga ambientes, lugares e até mesmo personagens de animes que você já assistiu ou histórias que já ouviu sobre o Japão, visto que essa é, em grande parte, a “imagem”  relativamente disseminada do oriente.

    O livro é contado sob duas perspectivas: a do jovem Kafka Tamura e a do velho Satoru Nakata. O primeiro é um jovem que resolveu sair de casa por conta do relacionamento atribulado que mantinha com o pai, e, de alguma forma, buscando sua mãe e irmã, que ele desconhece. O segundo, é um velho com problemas de retardamento que conversa com gatos e tem estranhos hábitos e concepções acerca da realidade cuja busca não está clara até o momento em que ele a veja, ou seja, ele não tem um norte definido.

    Murakami consegue criar personagens carismáticos, de modo que a alternância de histórias sendo contadas (os capítulos vão alternando as histórias de um e outro) deixe a narrativa sempre com alguma coisa acontecendo, uma tensão ou aventura por ser deslindada. Em um capítulo você está andando sem rumo com o jovem Kafka Tamura e sua rotina austera de exercícios, autocontrole e racionamento de recursos, e no outro está às voltas com o velho Nakata e suas extravagâncias um tanto non-sense (aliás, o diálogo dele com os gatos é uma das melhores partes do livro).

    O non-sense, aliás, permeia todo o Kafka à Beira Mar. Se várias situações podem ser localizadas e amarradas dentro de uma lógica, diversas outras ficam esperando seu lugar nessa cadeia, sem que, contudo, ganhem relação mais clara ou direta com o corpo da obra. As duas tramas parecem querer se entrelaçar ou se tocar a todo o instante, mas, no final das contas, encontrar analogia entre as situações fica mais por conta do leitor mesmo.

    Algo que deve ser ressaltado (e que eu espero que seja recorrente nos outros livros de Murakami) são os comentários que ele vai fazendo ao longo da obra a respeito de arte, música, literatura, cinema etc. São formas de despertar a curiosidade para quem não conhece e proporcionar o contato com opiniões do autor para quem já conhece o que ele analisa. Assim, em Kafka à Beira Mar, temos opiniões sobre Na Colônia Penal, The Archiduque Trio, The 400 Blows, literatura japonesa e assim por diante.

    Apesar do contato das duas tramas não ser tão longo ou tão direto, ambas se relacionam com jornadas pessoais, e versam sobre a necessidade de deixar “zonas de conforto” (para usar essa expressão tão disseminada) e fazer algo fora do comum, fugir dos padrões, apelar para o imprevisível e deixar um pouco de lado a sisudez e a frieza do mundo “confortável, porém tediosamente padronizado”. É assim, por exemplo, que Hoshino, um caminhoneiro que deixa de lado sua vida para seguir Nakata em sua busca amalucada, percebe um novo sentido para sua existência, concebe novos objetivos e se sente mais vivo e feliz do que quando somente dirigia seu caminhão e obedecia a rotinas e procedimentos repetitivos e previsíveis.

    Murakami usa ainda de porções de fantasia para dar expressão a essa ânsia por algo além do ordinário. Parece haver algo sobrenatural borbulhando por baixo da realidade natural, algo fantasioso, meio místico, com raízes mitológicas antigas, épicas, esperando por serem desenredadas por aqueles que ousarem deixar o comum e embarcar no incomum. Como o Wilson disse lá no fórum, Murakami está interessado na criação de mitos modernos, ou ao menos ambientados no mundo contemporâneo. Isso pode ser percebido tanto nas passagens dignas de realismo mágico (ou ‘absurdo mágico’, como o Tiago e o Luciano sugeriram) quanto nas “entidades” que vagam pela história, como Johnnie Walker em pessoa (sim, o da bebida mesmo) e o Colonel Sanders, o velho bigodudo da rede de fast foods, por exemplo.

    Parece haver um quê de “mágico”, de incomum ou de transcendental no que nos cerca, Murakami quis tornar isso mais visível do que estamos acostumados a enxergar.

    Texto de autoria de Lucas Deschain.