Publicado pela primeira vez em 1865, Alice no País das Maravilhas continua sendo até hoje um clássico da literatura infantil, tendo gerado inúmeras representações em diversas mídias, como cinema, televisão, quadrinhos e videogames. Escrito por Lewis Carroll e ilustrado por John Tenniel, a obra já está em domínio público há um bom tempo (tanto o texto original quanto as gravuras) e por esse motivo temos inúmeras traduções e adaptações por editoras diferentes disponíveis no mercado. Essa resenha leva em consideração a edição da L&PM Pocket, facilmente encontrada nas livrarias e com preço bastante acessível.
O livro conta a história de como Alice, em meio a devaneios de uma tarde de verão, acaba caindo em uma terra onde as leis da física e da lógica não funcionam como deveriam. Após seguir um ansioso e atrasado Coelho Branco por uma toca, Alice se vê em meio a animais falantes, objetos que aparecem e desaparecem do nada, comidas e bebidas que a fazem mudar de tamanho e os mais estranhos personagens que a literatura poderia conceber até então. O que ocorre no assim chamado País das Maravilhas é uma sucessão de cenas desconexas, que não formam um roteiro sólido ou previsível – ao contrário, tudo é caótico. Assim como o leitor, Alice tenta racionalizar o que está acontecendo, mas nem mesmo o pensamento racional faz sentido quando números e palavras mudam de significados. Alice busca respostas com os personagens que encontra pelo caminho, como a Lagarta, o Chapeleiro ou o Gato de Cheshire (em outras traduções, Gato Que Ri ou Gato Risonho). Talvez o único fio condutor da narrativa seja a busca pelo Coelho Branco, que a leva para o julgamento final com a malvada Rainha de Copas. E isso não é nem de longe um ponto fraco do livro, que se sustenta em suas cenas absurdas e diálogos improváveis, com o típico humor britânico. Infelizmente, muitas das piadas e trocadilhos se perdem na tradução, que na edição da L&PM não parecem bem adaptadas para o público brasileiro.
Se hoje em dia nada irrita mais um leitor do que o manjado final do tipo “foi tudo um sonho”, na história de Carroll esse artifício literário se encaixa muito bem. Desde o começo já está implícito que aquilo que Alice vivia não era real, seja logo no segundo parágrafo onde ela se sente “muito sonolenta e estúpida”, seja quando ela não consegue recitar um conhecido poema ou fazer uma simples operação matemática. A ideia que que tudo era um sonho também é aproveitada na sequência do livro, Alice no País do Espelho, que é praticamente a mesma história com outros personagens.
Alice no País das Maravilhas é um livro infantil, mas para melhor apreciá-lo devemos lembrar de seu contexto histórico: foi escrito para crianças inglesas do final do século 19. Uma criança brasileira da segunda década do século 21 jamais entenderá a maioria das referências e trocadilhos do livro, como por exemplo a corrida-caucus, a Tartaruga Falsa ou os poemas estranhos. Ainda assim, vale a leitura pelo carisma dos personagens e o absurdo das situações.
“Se você não sabe onde quer chegar, então qualquer caminho serve”, disse o Gato Que Ri à Alice, que conta suas aventuras pelo País das Maravilhas no livro de Lewis Caroll. E é exatamente esse conselho que a direção de Alice Através do Espelho, de James Bobin, parece seguir no longa. A obra original, Através do Espelho e o que Alice Encontrou por Lá, é uma espécie de sequência que simplesmente ignora a fonte, e embora possa ser “mais do mesmo” acaba por ser uma leitura agradável no fim das contas. Já o filme está bem longe disso. Do material original, apenas o título e a passagem pelo espelho se mantiveram. De resto, nada tem a ver com o livro, ignorando passagens memoráveis como o conto da Morsa e o Carpinteiro, ou a conversa com as flores no jardim.
A maioria das adaptações da obra não seguem-na ao pé da letra, é verdade, e muitos filmes misturam o primeiro livro com o segundo – como os próprios estúdios da Disney fizeram nas duas versões anteriores a essa – mas sempre guardam alguma semelhança. Dessa vez, apenas o título mesmo foi usado. Fica claro desde o começo que não passa de uma forma de ganhar dinheiro com um produto já conhecido do público, com um esforço mínimo de trazer personagens memoráveis ou sequer significantes para a trama. Revemos velhos conhecidos, como o Coelho Branco ou a Lebre de Março, que apenas desfilam pela tela sem qualquer relevância.
Logo no início, como de costume, vemos Alice (Mia Wasikowska) no “mundo real”, como capitã de um navio enfrentando perigos, e em seguida, resolvendo negócios de família e sendo ridicularizada por ser mulher. Se tivéssemos mais tempo com a Alice do mundo real, talvez poderíamos até mesmo ver uma história interessante. Infelizmente, esses problemas são tratados de forma superficiais e sequer arranham a superfície das questões que poderiam ser levantadas, mesmo que de forma anacrônica, por uma personagem feminina forte. Isso não ocorre, talvez pela falta de carisma da protagonista ou do raso desenvolvimento de sua personalidade. Temos que ser informados por sua mãe de que ela é “teimosa”, quebrando uma das regras fundamentais das artes cênicas de mostrar, não contar.
Alice ouve a voz da Lagarta, agora transformada em Borboleta, que a guia até um espelho. Ao atravessá-lo, Alice volta para o Mundo Subterrâneo (Underland no original, fazendo um trocadilho com Wonderland). Se algo se salva nessa cena é a voz da Borboleta, interpretada pelo finado Alan Rickman, o eterno Professor Snape de Harry Potter, em seu último papel. Essa cena, que deveria ser de extrema importância por estar no título do filme, é totalmente banalizada. Alice simplesmente atravessa o espelho e pronto! Não existe encantamento, deslumbre, motivação… nada! Talvez por puro fan service, vemos um tabuleiro de xadrez senciente e Humpty Dumpty (o homem-ovo da rima infantil inglesa), em uma breve aparição, fazendo a única coisa que ele sabe fazer.
Alice se encontra então com a “turma antiga” (seus amigos de Alice no País das Maravilhas), que estão todos tomando chá e se mostram felizes por vê-la. Assim, ela fica sabendo que o Chapeleiro Louco caiu em desgraça e precisa muito de sua ajuda. Ao conversar com o conturbado Chapeleiro (Johnny Depp, que parece querer reprisar mais uma vez o papel de Jack Sparrow) descobre que ele está abatido devido a um drama familiar. Alice, para ajudá-lo, vai até o Senhor do Tempo (Sacha Baron Cohen, ainda mais caricato que seu famoso personagem Borat) atrás de um artefato que a permita voltar no tempo. E é aí que a trama se torna genérica de uma vez!
A Rainha de Copas interpretada por Helena Bonhan Carter é a vilã novamente – e novamente é mesclada com a Rainha Vermelha do livro – e também quer o mesmo artefato, chamado cronosfera, e para isso isso envolve-se em um relacionamento com o Senhor do Tempo. O desenrolar da história é tão mal-feito que descobrimos que tudo que acontece é por causa de uma… torta! Sim, a torta que faz parte do julgamento no primeiro livro e é apenas um recurso narrativo para parodiar os absurdos e arbitrariedades do sistema de Justiça, aqui é um elemento principal da história. E mais uma vez vemos o recurso narrativo da “escolhida” sendo usado, pois Alice é a única que pode salvar o mundo e por aí vai…
O filme carece de uma lógica interna, o que torna seu desenvolvimento ainda mais sem sentido. Durante as viagens no tempo, ficou estabelecido que não se pode mudar o passado, mas mesmo assim, o passado é mudado! Os personagens são simplesmente desperdiçados e as piadas até tentam fazer rir, mas não funcionam. A melhor parte do filme é quando Alice volta ao mundo real pela primeira vez e quase temos um plot twist – bastante sombrio e que levantaria muitas questões a serem discutidas sobre a veracidade das viagens da personagem – mas que sequer é comentado no fim, quando ela volta de vez e resolve os problemas que havia deixado pra trás.
No fim das contas, o filme não parece ir para lugar nenhum. Além da parte estética e fotografia, que emulam muito bem o estilo que Tim Burton imprimiu no também sofrível primeiro filme, não há nada que justifique o tempo perdido com essa película. Se a ideia era realmente não ir a lugar nenhum, então todos os envolvidos na produção estão de parabéns por atingir o objetivo.
O conceito de re-conto permeia toda a produção do filme da Disney encabeçado por Tim Burton, não só pelas dezenas de outras adaptações do romance de Lewis Carroll, mas também por apresentar a personagem-título vivendo outros paradigmas, que não só os de discutir os devaneios que teve ao ter contato com o mágico mundo visitado em sua infância. Aproximadamente dez anos após os eventos do livro, Alice (Mia Wasikowska) não se lembra da viagem ácida que fez no passado, sempre relegando estes eventos a lembranças de sonhos, destacando um ou outro elemento enquanto frequenta uma festa pomposa, repleta de socialites.
Já próxima da fase adulta, Alice vê em si a responsabilidade de salvar sua família da crise financeira que a acometeu desde que sua mãe (Lindsay Duncan) ficou viúva, restando à garota um casamento forçado com uma figura efeminada, que certamente não supriria quaisquer de suas necessidades maritais, factoide este aplacado, claro, pelo fato desta obra ser uma fábula infantil.
Para Alice, mais interessante é dar vazão à perseguição ao Coelho. A busca pela clarividência dos fatos esquecidos pela personagem principal ocorre em meio a um grotesco cenário, com uma paleta de cores que não tem identidade, nem ser clara o suficiente para remeter aos desenhos animados dos tempos áureos de Walt Disney, mas não tão escura o suficiente para reproduzir o barroco comum da filmografia de Burton. É curioso como a completa falta de espírito alastra-se na fita tanto quanto com a representação de sua heroína, fazendo se perguntar se o erro não é proposital, desconsiderando a costumeira incompetência do diretor em apresentar histórias simples.
Os desencontros seguem com uma enorme gama de personagens descartáveis e sem carisma, praticamente proibindo qualquer rastro de empatia com a jornada. O script de Linda Woolverton é banguela, sem qualquer possibilidade de uma digestão saudável por parte do público. Tudo é motivado pelo péssimo e enorme conjunto de falhas e incongruências que fazem discutir a culpabilidade da ruim qualidade da obra, se da roteirista ou do diretor. Burton costuma transformar bons textos em apresentações demasiadamente incongruentes, fator que faz pesar a responsabilidade, uma vez que Woolverton coleciona muito menos pecados filmográficos que o cineasta.
O Chapeleiro Louco de Johnny Depp nem é tão irritante se comparado ao pastiche do ator através dos anos com a saturação de Jack Sparrow, Tonto, seu personagem em Sombras da Noite – também de Burton –, e, claro, se confrontado com o porre causado pela Rainha de Copas de Helena Bonham Carter. O grotesco da maquiagem e as colocações verbais não conseguem ofuscar todo o equívoco que é sua performance dramática, certamente um dos mais lamentáveis aspectos do já combalido filme.
Outra infeliz coincidência de erro dentro da trama é a aleatoriedade do tamanho de Alice, que em muitos momentos tomava algum tipo de poção que a fazia aumentar e diminuir de tamanho, uma tentativa óbvia de exibir que, para uma adulta, aquele mundo louco já não era cabível, tornando a inadequação o ponto máximo do incômodo que é terminar de assistir à película. Evidencia-se, assim, o quão banal é toda aquela caracterização grotesca e descabida, que serve quase que somente para desvirtuar os rumos dos personagens clássicos de Lewis Carroll. A falta de resolução de tamanhos também remete à dificuldade de propor uma identidade do filme, que demonstra problemas em demonstrar o variável entre pesado e/ou infantil, sendo enfadonho em ambos os aspectos.
O ponto de partida, onde o roteiro poderia finalmente ser maduro, é completamente ignorado, dando lugar a uma pífia batalha épica, que seria comum no futuro em outros filmes semelhantes – a lembrar-se de Branca de Neve e o Caçador – jogando por terra qualquer possibilidade de discussão minimamente interessante, tudo para apelar ao óbvio hype de Game of Thrones que tomava as noites da HBO.
De todas as criaturas birutas que habitam aquele cenário, Absolem (voz de Alan Rickman), que, assim como Alice, também está em fase de maturação, tornando física – também igual à personagem-título – sua transformação em algo maior. A máscara de mentor lhe serve perfeitamente, pois é no drama que Alice perceberá que são necessários uma movimentação maior e um desprendimento das certezas pseudo-amadurecidas que tem, tendo no encontro com a forma em casulo do seu mestre a ciência de tudo que viveu quando ainda era muito jovem.
Basicamente, o roteiro demoniza os deformados, mostrando-os como seres ressentidos e amargurados, que têm sua dor causada pela rejeição, uma vez que a tirania é vazada a partir de um deles. O pretenso crescimento espiritual da protagonista é interrompida por dancinhas constrangedoras com a intenção de quebrar o decoro da forçada cordialidade dos nobres presentes no mundo real, mas que, em essência, só ridicularizam a nova postura da personagem. Mia Wasokwska, aliás, não parece inspiradora mesmo quando consegue vencer os preconceitos que a cercam. A versão de Burton acerta em poucos aspectos, tendo uma trilha sonora acertada, mas que nem incorre como deveria. A sensação da análise final é de que Alice no País das Maravilhas é um equívoco completo: bobo, patético e deslocado.
ATENÇÃO: O TEXTO ABAIXO CONTÉM SPOILERS. ESTÃO AVISADOS!
Assistir a um filme nada mais é do que uma atividade sensitiva que estimula nosso cérebro a raciocinar e a trabalhar em cima de todas as imagens que são transmitidas aos nossos olhos ao longo da película. É uma espécie de quebra-cabeça. As imagens funcionam como peças de informação, as quais devem ser montadas para poderem ser analisadas através de uma visão global, de modo a compreendermos uma possível mensagem que está tentando ser passada para os espectadores. Esse é o trabalho dos diretores. Transmitir uma ideia.
Hoje vou falar sobre um dos filmes que, na minha visão, melhor trabalham a questão do quebra-cabeça cinematográfico. Estou falando de Donnie Darko, dirigido por Richard Kelly e lançado em 2001. Um filme que não pode simplesmente ser considerado ordinariamente e abaixo tentarei explicar o porquê. Antes de mais nada, recomendo sinceramente que assistam ao filme, já que o texto com toda a certeza terá spoilers. Se você, mesmo sem ter assistido, quiser se aventurar, bom… a vida é uma longa e insana viagem.
Donnie Darko, interpretado por Jake Gyllenhaal, é um jovem problemático que possui indícios de esquizofrenia. Um dia, Donnie conhece Frank, um coelho gigante que o salva de um acidente que ocorre em sua casa. Frank profetiza o fim do mundo para Donnie, o qual passa a obedecer ordens do Coelho. Donnie se encontra inserido entre a realidade e suas alucinações, ao mesmo tempo em que questiona o sentido da vida e da morte.
A primeira cena do filme nos apresenta o clima em que adentraremos: Donnie amanhece no meio da rua, em uma estrada com um lindo visual nas montanhas. Ele levanta sem saber como chegou até lá e dá um sorriso, como se achasse graça da situação. É evidente que Donnie é um garoto diferente, solitário e sombrio. Na cena seguinte, pega sua bicicleta que estava deitada no acostamento (indicando como ele se locomoveu até aquele ponto tão distante da cidade) e volta para casa. Nesse caminho de volta, somos apresentados a uma pacata cidade, ambientada no final dos anos 80, com pessoas caminhando, o pai de Donnie cortando grama, sua irmã mais velha saindo para passear, sua irmãzinha pulando na cama elástica e sua mãe lendo um livro do Stephen King. Um típico exemplo de família modelo, em que Donnie seria a ovelha negra: ao entrar em casa depara-se com “Onde está o Donnie?” escrito na porta da geladeira. A figura do personagem no filme representa sua autenticidade no contexto geral da sociedade.
O mundo em que vivemos cria padrões de comportamento e modelos a serem seguidos por toda uma sociedade. Todas as pessoas e elementos indiretamente acabam sendo englobadas por essas “tendências” sociais. Os que não se enquadram no modelo acabam sendo moralmente coagidos, retaliados ou forçados a adentrarem. Fica evidente essa ideia quando descobrimos que Darko toma remédios psiquiátricos. Teria ele esquizofrenia como sua analista suspeitava ou seria apenas uma forma de a sociedade não aceitar a forma não convencional como nosso protagonista age? Donnie desaprova quando toma seus remédios; porém, mesmo assim, o faz.
Na noite do mesmo dia somos apresentados à entrada de dois universos: o da mente de Donnie Darko e a realidade. Donnie é acordado por Frank, o coelho gigante, que profetiza o fim do mundo. “28 dias, 06 horas, 42 minutos e 12 segundos”, diz Frank. Podemos dizer que metaforicamente Donnie estaria adentrando nesse momento no País das Maravilhas: na fábula de Lewis Carroll, um coelho conduz Alice para uma outra dimensão. Tanto Donnie quanto Alice apenas existem; seus conhecimentos passam a ser adquiridos com os acontecimentos que vem a seguir. Na mesma noite acontece outro fato estranho: uma turbina de um avião cai em cima da casa de Donnie, mais especificamente em cima de seu quarto, porém nosso protagonista não estava lá, pois havia sido acordado por Frank. Ninguém sabe de onde veio a turbina e nem de que avião, o que torna as coisas ainda mais misteriosas até esse ponto do filme.
Inserido no meio de uma série de acontecimentos estranhos, uma pessoa “anormal”, por assim dizer, passaria a se encontrar na anormalidade das coisas que vão acontecendo. Uma nova realidade é criada, com a qual Donnie acaba se identificando. O filme apresenta uma forte discussão no que diz respeito ao sentido da vida e da morte. Em uma cena do filme, o pai de Donnie quase atropela uma velha senhora chamada de Roberta Sparrow. Ela chega no ouvido de Donnie e diz que “todos os seres vivos morrem sozinhos”. Essa fala, por si só, vai cair como um peso sobre os ombros do protagonista, pois é um pensamento terrível. Em um mundo onde as pessoas vivem socialmente e se apegam, a solidão é um pesadelo. Morrer ganha a figura desse pesadelo ao pensarmos que vivemos em vão, sem nenhum sentido, para atingirmos um fim indiferente, que é nossa morte.
A vida não é tão simples assim e, por isso, Donnie vai questionar a ordem da sociedade. Em seu colégio, uma de suas professoras passa a incitar os alunos a aceitar a filosofia de Jim Cunningham (interpretado por Patrick Swayze), o qual defende que a vida se baseia em amor e medo. Todos temos que nos afastar de atitudes que se enquadrariam na categoria “medo” e deveríamos assumir posturas coerentes com “amor”. Donnie não aceita essa visão e passa a se meter em problemas na escola por conta disso, como quando ele mandou sua professora enfiar a “linha do medo” na… é, deu para entender.
Frank incita Donnie a realizar uma série de atos “criminosos” contra sua cidade, buscando como único objetivo o de virar de cabeça para baixo o mundo em que vivem. Inundar a escola e queimar a casa de Cunningham, por exemplo. Tudo não passa de um movimento de criação. No contexto do filme temos a destruição como uma forma de criação e a busca da quebra de paradigmas.
Ao mesmo tempo entramos em uma discussão digna de Stephen Hawking, já que Frank diz: “Venha comigo para o futuro” e, a partir de então, entramos em uma discussão pesada em relação a viagens no tempo. Observamos que todas as atitudes que Frank manda Donnie fazer acabam influenciando de alguma forma o futuro do personagem. Até mesmo quando Darko conhece Gretchen (interpretada pela linda atriz Jena Malone), a qual virá a ser namorada de Donnie futuramente, foi justamente pelo fato de ter inundado a escola na noite anterior.
Nesse momento do filme percebemos que Donnie Darko já entendeu que ele é o responsável por determinar os resultados de seu futuro. Ele possui o poder de manipular os acontecimentos e é nisso que ele acredita. Queimar a casa de Cunningham, por exemplo, acabou por revelar que o mesmo possuía uma série de fotos, vídeos e objetos que o denunciavam como pedófilo. Através da atitude de Darko, Cunningham é desmascarado e por isso é preso.
A todo momento não sabemos até que ponto as coisas que vêm acontecendo, os encontros com Frank e as coisas que ele manda Donnie fazer são parte da realidade e o que faz parte de possíveis alucinações do nosso personagem principal. Será que as supostas viagens no tempo realmente seriam possíveis? Donnie está intrigado com essa possibilidade e passa inclusive a buscar ajuda de um dos seus professores para tentar entender os princípios físicos da viagem do tempo.
Algumas cenas que se passam na escola ajudam a desenvolver ainda mais os mistérios apresentados ao longo do filme. Quando a professora Karen Pomeroy (interpretada por ninguém menos que Drew Barrymore) é demitida, ela diz a Donnie “cellar door” (porta de adega, em tradução livre), citando Edgar Alan Poe e J.R.R. Tolkien, que a consideravam a frase mais bela da língua inglesa, sonoramente falando. Essa “porta de adega”, posteriormente, se apresenta como um possível portal para viajar no tempo.
No dia de Halloween, a irmã mais velha de Donnie resolve fazer uma festa em comemoração ao fato de que foi chamada para estudar em Harvard. Esse seria o último dia do mundo, segundo a previsão de Frank. Uma fatalidade acontece e as coisas passam a ganhar outra direção. Gretchen é atropelada por um carro e, quando percebemos, um garoto com a fantasia de Frank sai de dentro do mesmo. Somos apresentados ao presente, que representava o futuro por toda a extensão do filme até então.
Frank é o namorado da irmã de Donnie e lá estava ele com sua fantasia de coelho. Todos os acontecimentos convergiram para o momento em que Donnie puxa a arma que havia pego do quarto de seu pai e atira em Frank. Sua namorada estava morta e ele se encontrava mais uma vez desolado, sem entender o porquê de as coisas terem tido aquele resultado. Donnie pega o corpo de Gretchen e o leva para o local onde o filme se inicia, na estrada em que nosso protagonista havia amanhecido. Uma espécie de renascimento acontece, uma epifania atinge nosso personagem e em um momento percebemos que ele atingiu o autoconhecimento.
Ao mesmo tempo em que isso acontece, a cena muda para o avião da mãe de Donnie, que está voltando com Samantha (irmã mais nova) de um campeonato de dança. Repentinamente, o avião entra em um estranho turbilhão que mais parece um portal (ou um wormhole, que nas teorizações de Stephen Hawking abriria portais para viajar no tempo) e sua turbina quebra. Todos os acontecimentos passam pelos olhos de Donnie Darko e mais uma vez voltamos para a noite em que ele havia entrado no País das Maravilhas. Dessa vez, Donnie sorri e deita na sua cama, com um ar de alívio, como se estivesse aceitando o que deveria acontecer desde o começo. Ele entende o que significaria a sua vida dali para frente tendo um outro resultado. Donnie sorri. A turbina cai em cima do seu quarto e ele morre.
O filme deixa uma margem gigantesca para diversas interpretações. O final não junta todos os pedaços, porém nos oferece uma direção de raciocínio. Pra encerrar com direito a nos arrepiar completamente, Mad World começa a tocar, ao passo que nos são mostrados todos os personagens que fizeram parte dessa história, como se a escolha que Donnie fez tivesse influído de alguma forma para um autoconhecimento de todos. Temos o autossacrifício, baseado no Cristianismo e nos ensinamentos do Budismo (neste, o Coelho é um símbolo de autossacrifício, pois o animal teria se atirado ao fogo com o objetivo de alimentar Buddha, que estava faminto. Como recompensa, ele ganhou uma nova casa na lua). O mundo de fato havia acabado, na vida de Donnie Darko. Atingiu uma nova forma de criação através de sua morte.
Para finalizar este longo estudo sobre o filme de Richard Kelly, deixo um poema escrito pelo próprio Donnie Darko, e que foi disponibilizado nos extras do DVD:
“Uma tempestade está a caminho, diz Frank. Uma tempestade que irá engolir as crianças, e eu vou devolvê-las do mundo da dor. Vou devolvê-las de volta para suas portas; Mandarei os monstros de volta para o subterrâneo. Vou mandá-los de volta para um lugar onde ninguém poderá vê-los, exceto por mim porque sou Donnie Darko.“
Se uma ideia foi transmitida eu não sei. Donnie Darko é um quebra cabeças que possui milhares de peças, que, por incrível que pareça, formam desenhos diferentes. Com certeza uma excelente obra pra ser apreciada pelos amantes da sétima arte.