Tag: Helena Bonham Carter

  • Crítica | Enola Holmes

    Crítica | Enola Holmes

    Parte da mitologia que Arthur Conan Doyle empregou no seu personagem mais famoso Sherlock Holmes mora na fraternidade dele com Mycroft, o talentoso e inteligente primogênito, que segundo teorias, trabalharia para o serviço e inteligência britânica. A curiosidade sobre a natureza deste irmão sempre causou furor nos leitores da Strand Magazine. Segundo o filme de Harry Bradbeer, os dois teriam uma irmã de dezesseis anos, a bela e jovem Enola Holmes, executada aqui pela atriz em ascensão Millie Bobby Brown, a mesma que brilhou em Stranger Things.

    Já nas primeiras falas há uma quebra da quarta parede, com a personagem-título narrando sua  história, diferente de Sherlock que tinha sempre John Watson para explicar os seus feitos em forma de literatura. Enola é uma menina esperta e audaz, desde cedo incentivada por sua mãe Eudoria (Helena Bonham Carter), buscava por aventuras e não conseguia se encaixar dentro do conservadorismo relegado as mulheres na Era Vitoriana.

    O mote da história é bem simples, a matriarca Holmes desaparece, e a menina é enviada para buscar seus irmãos, que se assustam com sua falta de modos e comportamento rebelde. Como bons filhos de seu tempo, eles decidem enviá-la a uma escola de etiqueta. De fato, a misoginia era uma característica muito vista no Detetive dentro dos contos e novelas de Doyle, e por mais que não se cite é natural imaginar que Mycroft também compartilhasse dessa ideia.

    A versão que Henry Cavill e Sam Caflin fazem são retratos tão próximos da realidade e pragmatismo que não há qualquer traço de heroísmo neles, Cavill mesmo lembra pouco o personagem, tanto na escrita quanto nas versões em carne e osso. O roteiro se baseia no livro de Nancy Springer, O Caso do Marquês Desaparecido e de fato no material original essa personalidade e o apreço pela irmã são melhor trabalhados, ainda assim se nota a frieza e crueza do personagem. Talvez fosse preciso um ator com mais capacidade dramática para lidar com um papel tão complexo.

    Bradbeer pega emprestado alguns elementos da série que dirigiu (Fleabag), como por exemplo, o modo mais incisivo de metalinguagem e a coincidência óbvia do protagonismo feminino. Os predicados positivos da direção param por aí. A trama de mistério envolvendo o personagem que Enola conhece no meio do filme é bem menos interessante que o jogo que sua mãe estabeleceu consigo, e a edição super moderna ajuda a deixar o filme como algo genérico, até em comparação com o estilístico Sherlock Holmes e sua continuação Sherlock Holmes: O Jogo das Sombras, ambos de Guy Ritchie.

    A jornada de emancipação de Enola ganha contornos épicos graças a Millie Bobby Brown, que se dedica bastante ao papel, e que apesar do forçado sotaque britânico, consegue representar uma jovem audaz e que não se encaixa no conservadorismo de seu tempo. Possivelmente, sua história renderia ainda mais elogios se não fosse atrelada a um ícone pop e literário como é Sherlock, mas dentre as combalidas adaptações recentes do personagem, essa não é tão problemática, mesmo com o pouco apego ao material original.

  • VortCast 62 | Tim Burton – Parte 1

    VortCast 62 | Tim Burton – Parte 1

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Filipe Pereira (@filipepereiral),  Bernardo Mazzei e Bruno Gaspar recebem o convidado Alexandre Luiz (@alexluizbr), do Cine Alerta, retornam para mais uma edição do VortCast, e dessa vez comentando sobre a filmografia de um dos cineastas mais originais da Hollywood nas últimas décadas, Tim Burton, criador de um universo próprio, marcado pelos tons imaginativos, soturnos e góticos, e repletos de personagens desajustados.

    Duração: 127 min.
    Edição: Julio Assano Junior
    Trilha Sonora: Julio Assano Junior e Flávio Vieira
    Arte do Banner:
     Bruno Gaspar

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  • Crítica | Oito Mulheres e Um Segredo

    Crítica | Oito Mulheres e Um Segredo

    Nos anos sessenta, Frank Sinatra ao lado de seus amigos, Dean Martin e Sammy Davis Junior, fizeram Onze Homens e Um Segredo, décadas mais tarde Steven Soderbergh revisitou a trama em uma série de três filmes e um elenco estelar. Oito Mulheres e Um Segredo segue na mesma esteira, se valendo do subgênero dos filmes de assalto, mas sem ter associado a si a moda que envolvia a versão do longa que tinha George Clooney, Brad Pitt e Matt Damon como seus chamarizes, esticando ainda mais a fórmula em um produto que tem gosto de bolo solado.

    A história começa com Debbie Ocean, a irmã de Danny (Clooney), vivida por Sandra Bullock. Essa relação é necessária, pois o nome original da franquia é Ocean’s Eleven (no caso desse, Ocean’s Eight), por mais bizarro que isso seja, já que em três longos filmes jamais se falou a respeito da irmão de Danny e de todas as suas habilidades. Após sair da prisão, ela planeja uma vingança contra o sujeito que a incriminou, e para isso, ela reata a relação que tinha com a bela Lou, vivida pela (também) oscarizada Cate Blanchett, que ao que tudo indica, é um antigo amor da protagonista.

    Os problemas e clichês do roteiro de Gary Ross (também diretor dessa versão) e Olivia Milch começam exatamente no dueto de Deb e Lou. As duas não são flagradas aos beijos ardentes, e não protagonizam cenas que possam servir de pretexto para que os espectadores machistas possam enxergar ali potencial para o onanismo, mas a total falta de química e de cenas que façam elas parecerem realmente próximas sentimentalmente torna Oito Mulheres e um Segredo um produto moralista, que não tem coragem sequer de assumir que suas protagonistas sejam bissexuais ou lésbicas.

    O restante do grupo de assalto é formado por Amita (Mindy Kaling), especialista em jóias; a contrabandista “aposentada” Tammy (Sarah Paulson); a ladra de mãos leves Constance (a rapper Awkwafina); a hacker Nine Ball (Rihanna); e a estilista decadente Rose Weil (Helena Bonham Carter). O plano envolve fazer com que a atriz e bela socialiate Daphne Kluger (Anne Hathaway) utilize um conjunto de jóias reais, guardado sobre segurança máxima por uma seguradora. O texto é tão óbvio que se percebe já no início que as personagens se juntariam, mesmo as que não estão no plano inicial, e essa obviedade é irritante principalmente porque esse filme não possui o mesmo carisma da trilogia de Soderbergh, e o trato entre as mulheres ocorre inclusive após uma demonstração de extrema carência de Daphne, que basicamente repete frases machistas que remetem a falsa afirmação de que amizade entre mulheres é pautada na falsidade.

    Ainda no quesito falácia, há uma cena constrangedora, que envolve a fuga das assaltantes, cada uma com uma roupa elegante, com sua parte dos espólios furtados. A cena é basicamente um pretexto para cada uma das intérpretes aparecer com vestido de gala e algum diamante, não faz sentido na continuidade do filme quanto na ideia pueril de “empoderar” as mulheres, já que o conceito desse poder é associado a posse de objetos que visam atrair os olhares masculinos.

    Oito Mulheres e Um Segredo parece ter sido feito sob demanda para um certo público, no entanto, sua abordagem é tão rasa quanto os argumentos liberais que precedem estes pedidos de representatividade a qualquer custo, pois não acrescenta nada ao gênero ou mesmo a série de filmes, além de ter em Ross uma direção muito mais frouxa que a de Soderbergh e deixar claro a falta de sintonia e camaradagem entre o elenco, muito diferente do que ocorreu no filme de Sinatra ou na série de Clooney.

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  • Crítica | Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 1

    Crítica | Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 1

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    São tempos sombrios, não há como negar.

    É com esta frase de cunho pessimista que se inicia Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte I, ou resumindo, HP 7.1, filme que deu início definitivo ao encerramento de uma das franquias mais rentáveis já concebidas. Durante exatos 10 anos, as aventuras de Harry e seus amigos, Rony e Hermione, levaram multidões aos cinemas, encantando platéias de todas as idades e gêneros. Como resultado, a franquia arrecadou mais do que outras famosas séries do cinema, como Star Wars e as missões do agente James Bond.

    Nesse volume temos a continuação da subtrama das Horcruxes, objetos que garantem a imortalidade de Lord Voldemort. Agora em uma jornada solitária, Harry (Daniel Radcliffe), Rony (Rupert Grint), e Hermione (Emma Wattson) precisam procurar as Horcruxes restantes e destruí-las. Nesse contexto, o mundo dos bruxos passa por uma imensa crise e fica cada vez mais difícil de confiar nas pessoas, onde essas acabam por sucumbir à pressão do desespero. Ainda temos a revelação das relíquias da morte, artefatos que podem garantir poder superior a quem possuí-las.

    A opção de dividir o último livro da série em duas películas, de primeira, nos garantiu a impressão de que tal escolha era unicamente a de encher ainda mais os cofres do estúdio, numa última tentativa de gerar um lucro maior com a série. Mas quando analisado, percebe-se que tanto esta primeira parte, quanto a próxima ganharam, e muito, com esta divisão. Diferente dos outros filmes, onde os inúmeros cortes prezavam pela menor duração possível, HP 7.1 aproveita a possibilidade para investir em um ritmo de compreensão sensorial, calcado principalmente no desenvolvimento dos fatos que nos ajudarão a entender todas as pontas soltas deixadas pelos filmes anteriores. Alguns ainda reclamam da letargia do filme após um tempo, o que não deixa de ser compreensivo, já que tais problemas realmente existem, mas é inegável o quanto 7.1 se beneficia de sua paciência, podendo trabalhar com mais clareza os arcos que cercam os personagens.

    E não apenas construindo a narrativa com maior cuidado, o roteirista Steve Kloves (que não participou somente do quinto filme, A Ordem da Fênix) aproveita para definir melhor os personagens, e como a relação entre eles se tornou mais conturbada e complexa. Harry, Rony e Hermione ganham um filme “isolado”, onde a atenção é voltada única e somente para eles, onde seus conflitos são aprofundados com um carinho não visto antes. O roteiro analisa muito bem as reações dos personagens diante das situações apresentadas, e é aqui que vemos, definitivamente o trio deixar qualquer vestígio de infantilidade para trás, assumindo responsabilidades ainda maiores. Harry é obrigado a encarar a difícil tarefa de destruir as Horcruxes, e assim, dar fim ao tão sonhado regime que Lord Voldemort deseja impor (algo que lembra a época do Nazismo, fato histórico onde J.K claramente se inspirou). Rony, apesar de ainda ser o principal veículo cômico do filme, desenvolve uma personalidade mais intensa, pontuada pela incerteza sobre a segurança de sua família, e este sentimento faz florescer desejos antes completamente desconhecidos pelo público (e talvez pelo próprio personagem). Hermione também é atingida pela incerteza, não por sua segurança, mas pelo risco de não poder rever seus pais novamente, já que a garota se viu obrigada a apagar a memória dos mesmos, a fim de que suas vidas não fossem prejudicadas pela atual situação do mundo bruxo. Assim como ocorreu em Ordem da Fênix e que teve seguimento em O Enigma do Príncipe, os personagens se tornam figuras mais completas e carregam consigo um peso parcamente explorado nos anteriores.

    E David Yates merece mais do que parabéns por conseguir traduzir todas estas diversas emoções com eficácia. O diretor sempre teve uma forte tendência em apostar nos conflitos dramáticos, e aqui não foi diferente, com Yates tomando liberdades para com a obra de Rowling, e apresentando uma notável audácia. Momentos como a dança envolvendo dois dos personagens principais, a tortura executada por Bellatrix Lestrange ou o ousado beijo entre outros dois personagens demonstram a coragem de Yates em tornar esta uma obra mais adulta, que beira um filme de horror.

    Também chama a atenção a apropriação que Yates faz dos cenários exóticos que surgem durante a projeção. Optando por tomadas abertas e longos momentos contemplativos, o diretor denuncia toda a beleza, mas também o vazio das paisagens, investindo em um clima pesado e depressivo. A sensação de que nenhum lugar é seguro pontua cada segundo da narrativa, trazendo um constante clima de tensão. Em contraponto, o diretor capricha nas cenas de ação, mais vigorosas e empolgantes do que nos capítulos anteriores.

    E para manter essa evolução equilibrada, Radcliffe, Grint e Watson, enfim, nos entregam atuações dignas de grandes atores, com interpretações mais seguras e expressivas. Daniel Radcliffe sempre foi o mais criticado do trio, o que é verdade, já que seus tiques incomodavam nos filmes anteriores. Mas Radcliffe parece finalmente ter se livrado de tais tiques, interpretando Harry com mais naturalidade. Rupert Grint, assim como seu personagem, eleva Rony para um novo nível, apresentando muito bem a confusão emocional que toma conta do personagem. Mas Emma Watson continua sendo o destaque do trio, e as expressões fortes da garota revelam o potencial para uma futura grande atriz do cinema.

    Mas os verdadeiros mestres estão mesmo é no elenco de apoio. Enquanto que o frio e charmoso(!) vilão Lord Voldemort continua sendo brilhantemente interpretado por Ralph Fiennes, tenho cada vez mais vontade de levantar e aplaudir a performance de Helena Bonham Carter cada vez que a vejo como a lunática Bellatrix Lestrange, que aqui atinge o ápice da insanidade. Alan Rickman, apesar da curta aparição, ainda fascina com seu misterioso Severus Snape, e até outras participações menores, como Rhys Ifans e Bill Nighy possuem seu valor.

    Aliás, uma das maiores injustiças que a série sofreu em sua passagem pelos cinemas é o desprezo que as premiações deram ao departamento técnico dos filmes, tão digno de elogios quanto os outros méritos. Os efeitos especiais, apesar de simples, dão um interessante ar de realidade (como pode ser visto na original animação que narra o conto das relíquias da morte). Os efeitos sonoros também são muito bem trabalhados, e trazem um bom nível de impacto em certos momentos. A fotografia de Eduardo Serra, apesar de não ser tão sofisticada quanto a de Bruno Delbonnel para O Enigma do Príncipe, auxilia na construção do perfeito clima sombrio do filme, e a trilha de Alexandre Desplat, apesar de sutil, não passa despercebida, e configura-se com facilidade entre as melhores trilhas daquele ano, junto com outro maravilhoso trabalho de Desplat em O Escritor Fantasma, de Roman Polanski.

    HP 7.1 traça excepcionalmente bem o caminho para a batalha que há tempos era anunciada, e talvez seja o mais completo de todos os filmes da saga do bruxinho. É tenso, é divertido, é emocionante, é sombrio, faz rir e faz chorar. Um pacote completo. 

    Texto de autoria de Rafael W. Oliveira.

  • Crítica | As Sufragistas

    Crítica | As Sufragistas

    As Sufragistas - Poster

    Na história das civilizações, os domínios de poder sempre foram associados aos homens, fazendo da mulher um habitante de um universo paralelo, ambos unidos apenas na composição da sociedade. Diante destes papéis, a luta feminina por uma voz igualitária eclodiu em diversos momentos conforme o desejo da época: a procura de salários igualitários, presença na sociedade pelo voto e outros temas atuais comprovando a necessidade constante desta discussão.

    Dirigido por Sarah Gravon, As Sufragistas é lançado em momento oportuno aproveitando discussões em voga sobre o feminismo contemporâneo, para apresentar um movimento feminino no início do século XX, na Inglaterra, quando um grupo lutou pelos direitos de voto no Reino Unido. Focado na trabalhadora Maud Watts (Carey Mulligan), a trama apresenta o cotidiano da classe operária britânica e a pressão diária enfrentada pelas mulheres, tratadas socialmente como inferiores e cuja remuneração também era menor do que os homens no mesmo posto de trabalho. Mesmo sem formação política, diante de um cotidiano de violência, a moça assume uma postura ativa para combater tais desigualdades e passa a colaborar com o movimento sufragista, marcado por protestos a favor da mulher.

    A roteirista Abi Morgan (Shame, A Dama de Ferro) opta por uma personagem central para representar o contexto da época, tentando fugir de outros filmes históricos que apresentam grandes personagens e falham em sua execução. Porém, a trama não entrega uma personagem forte para representar este importante tema. Mesmo que se compreenda que Watts é uma mulher reprimida e se entenda suas motivações em, a princípio, não querer se envolver com o movimento, as demais personagens que surgem em cena parecem mais ricas dramaticamente, como a líder do movimento Emmeline Pankhurst, na época conhecida suficiente para aparecer pouco em público, evitando a polícia que tentava prendê-la. Ainda que esteja presente no pôster de divulgação, a personagem de Meryl Streep aparece pouco e tem somente uma cena como principal e nem mesmo forte suficiente para causar comoção. Uma participação que parece um chamariz de público – ainda mais considerando suas recentes declarações sobre feminismo e direitos iguais – e que nos deixa a impressão de que se a trama fosse focada nesta personagem histórica haveria maior intensidade narrativa.

    Com uma composição semelhante ao filme Pride, lançado ano passado, sobre os levantes trabalhistas da era Thatcher em simultâneo com a luta por direitos iguais do homossexual, a narrativa se destaca mais por abordar uma época importante do que como um bom filme a respeito. A dramatização de fatos históricos é primordial para o debate mas necessita também de apelo dramático para que se conecte com seu público além da vertente informativa. As Sufragistas funciona como obra que destaca um movimento importante da história mas não se sustenta ao representar este momento. À procura de um didatismo histórico, a trama perde fôlego e força quando deveria comover e ser um símbolo significativo de um período específico.

  • Crítica | Cinderela (2015)

    Crítica | Cinderela (2015)

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    E viveram felizes para sempre (Ninguém precisa saber o que vem depois, porque o depois existe tanto quanto Branca de Neve e Aladdin). Porque viver nas “delícias da incerteza” para sempre é o melhor ponto final que um filme poderia ter, sendo que, mesmo a um esquizofrênico, a vida não acolhe infinitos. Mas no cinema, num livro, na arte, querer saber o depois é demais, não interessa. Perde-se a elegância, e o sonho já começa a virar real. Perde-se a graça, indo embora o que faz do sonho um sonho – nada mais, nada menos. E sabe quando você assiste a um filme e dois minutos depois do início você sabe perfeitamente como tudo vai ser? Essa obviedade de sentidos é o grande trunfo de Cinderela, a melhor e mais serena releitura do filme que salvou os estúdios Disney em 1950, fato. Um bom exercício de interpretação é assistir a esse encantador manifesto de Kenneth Branagh e emendar com a versão Romero Britto de Alice, de Tim Burton. O que há de diferente e qual proposta (intenção) combina e enriquece mais a abordagem (realização)? É tudo apenas uma questão de estilo e gosto? Perguntas que convido o leitor a responder.

    Um manifesto a favor do que de melhor o Cinema pode oferecer a um material caído no colo da cultura popular – a jovem borralheira de madrasta má, blábláblá –, e que por isso não carece de cópia ou desconstrução da mitologia original. Um manifesto pelo direito de dar continuidade à magia sem vomitar regras, e principalmente, de seduzir o público pelo resgate dessa magia em tempos tão realistas quanto o nosso. Choram as rosas, poesia é o que não falta, e cor, clareza nas ideias e olhos nos olhos, dança e sorrisos, lágrimas e trilha sonora num filme-spoiler assumido e orgulhoso por ser assim: deliciosamente previsível. Um filme renascentista, no melhor uso do termo, em que a harmonia entre os conflitos é inquebrável, como nas peças de Shakespeare, e o luto do erudito é incabível como nos poemas de Florbela.

    Tudo parece tão frágil e tão quebradiço que o respeito e admiração ao universo da gata borralheira são inevitáveis. A própria construção do caráter amargo da madrasta gira em torno da magia: é simplesmente uma mulher enterrada numa realidade burguesa de aparências e que não pertence ao mundo de emoções puras de nossa princesa, num belíssimo jogo de figurinos que parecem disputar na tela, senão pelo ótimo equilíbrio presente entre os elementos visuais, a quem isso possa interessar, qual o mais belo. O cineasta e romântico Branagh (o professor Lockhart do segundo Harry Potter) faz de Cinderela uma alternativa dialética à celebração vazia do novo, e uma ovação declarada às glórias indiferentes às mudanças do tempo. A história é contada como se fosse da primeira vez, exaltando e promovendo mitologias na pegada mais deslumbrante e direta possível, com o gato da malvada perseguindo os ratos tratados com amor pelo coração inocente, por exemplo, numa clara metáfora dos abusos a ser cometidos ao longo do conto.

    Entre cenas criativas (a transformação da abóbora em carruagem e da carruagem em abóbora são extraordinárias) e a preservação da elegância da história refletida na fluidez dos planos, a Disney finalmente combina, aqui, a evolução do Cinema com a necessidade do espetáculo para assegurar uma bilheteria alta, sem esquecer-se do seu próprio estilo de criação épica. A vontade não era essa, mas a fábula humilha quaisquer outras versões recentes do lendário estúdio americano, entre juízos de fato e valores que mais remetem a Princesa Kaguya, animação sublime dos estúdios Ghibli, de Hayao Miyazaki.

    Era uma vez uma comparação válida, tamanho o esmero concedido e júbilos derivados, inclusive, de atores inspirados em condições que favorecem suas presenças. E assim como a antiga releitura francesa de Jean Cocteau para o clássico A Bela e a Fera de 1946, em 2015, com Cinderela a nos encantar, temos uma obra ciente do que pode ser e do que não precisa ser, e que por isso se compromete a honrar o passado sem deixar de conseguir novas opções, para que as visões e os vastos compromissos da arte possam ser, felizmente para sempre, recriados a partir de suas fundações.

  • Crítica | Alice no País das Maravilhas

    Crítica | Alice no País das Maravilhas

    O conceito de re-conto permeia toda a produção do filme da Disney encabeçado por Tim Burton, não só pelas dezenas de outras adaptações do romance de Lewis Carroll, mas também por apresentar a personagem-título vivendo outros paradigmas, que não só os de discutir os devaneios que teve ao ter contato com o mágico mundo visitado em sua infância. Aproximadamente dez anos após os eventos do livro, Alice (Mia Wasikowska) não se lembra da viagem ácida que fez no passado, sempre relegando estes eventos a lembranças de sonhos, destacando um ou outro elemento enquanto frequenta uma festa pomposa, repleta de socialites.

    Já próxima da fase adulta, Alice vê em si a responsabilidade de salvar sua família da crise financeira que a acometeu desde que sua mãe (Lindsay Duncan) ficou viúva, restando à garota um casamento forçado com uma figura efeminada, que certamente não supriria quaisquer de suas necessidades maritais, factoide este aplacado, claro, pelo fato desta obra ser uma fábula infantil.

    Para Alice, mais interessante é dar vazão à perseguição ao Coelho. A busca pela clarividência dos fatos esquecidos pela personagem principal ocorre em meio a um grotesco cenário, com uma paleta de cores que não tem identidade, nem ser clara o suficiente para remeter aos desenhos animados dos tempos áureos de Walt Disney, mas não tão escura o suficiente para reproduzir o barroco comum da filmografia de Burton. É curioso como a completa falta de espírito alastra-se na fita tanto quanto com a representação de sua heroína, fazendo se perguntar se o erro não é proposital, desconsiderando a costumeira incompetência do diretor em apresentar histórias simples.

    Os desencontros seguem com uma enorme gama de personagens descartáveis e sem carisma, praticamente proibindo qualquer rastro de empatia com a jornada. O script de Linda Woolverton é banguela, sem qualquer possibilidade de uma digestão saudável por parte do público. Tudo é motivado pelo péssimo e enorme conjunto de falhas e incongruências que fazem discutir a culpabilidade da ruim qualidade da obra, se da roteirista ou do diretor. Burton costuma transformar bons textos em apresentações demasiadamente incongruentes, fator que faz pesar a responsabilidade, uma vez que Woolverton coleciona muito menos pecados filmográficos que o cineasta.

     O Chapeleiro Louco de Johnny Depp nem é tão irritante se comparado ao pastiche do ator através dos anos com a saturação de Jack Sparrow, Tonto, seu personagem em Sombras da Noite – também de Burton –, e, claro, se confrontado com o porre causado pela Rainha de Copas de Helena Bonham Carter. O grotesco da maquiagem e as colocações verbais não conseguem ofuscar todo o equívoco que é sua performance dramática, certamente um dos mais lamentáveis aspectos do já combalido filme.

    Outra infeliz coincidência de erro dentro da trama é a aleatoriedade do tamanho de Alice, que em muitos momentos tomava algum tipo de poção que a fazia aumentar e diminuir de tamanho, uma tentativa óbvia de exibir que, para uma adulta, aquele mundo louco já não era cabível, tornando a inadequação o ponto máximo do incômodo que é terminar de assistir à película. Evidencia-se, assim, o quão banal é toda aquela caracterização grotesca e descabida, que serve quase que somente para desvirtuar os rumos dos personagens clássicos de Lewis Carroll. A falta de resolução de tamanhos também remete à dificuldade de propor uma identidade do filme, que demonstra problemas em demonstrar o variável entre pesado e/ou infantil, sendo enfadonho em ambos os aspectos.

    O ponto de partida, onde o roteiro poderia finalmente ser maduro, é completamente ignorado, dando lugar a uma pífia batalha épica, que seria comum no futuro em outros filmes semelhantes – a lembrar-se de Branca de Neve e o Caçador – jogando por terra qualquer possibilidade de discussão minimamente interessante, tudo para apelar ao óbvio hype de Game of Thrones que tomava as noites da HBO.

    De todas as criaturas birutas que habitam aquele cenário, Absolem (voz de Alan Rickman), que, assim como Alice, também está em fase de maturação, tornando física – também igual à personagem-título – sua transformação em algo maior. A máscara de mentor lhe serve perfeitamente, pois é no drama que Alice perceberá que são necessários uma movimentação maior e um desprendimento das certezas pseudo-amadurecidas que tem, tendo no encontro com a forma em casulo do seu mestre a ciência de tudo que viveu quando ainda era muito jovem.

    Basicamente, o roteiro demoniza os deformados, mostrando-os como seres ressentidos e amargurados, que têm sua dor causada pela rejeição, uma vez que a tirania é vazada a partir de um deles. O pretenso crescimento espiritual da protagonista é interrompida por dancinhas constrangedoras com a intenção de quebrar o decoro da forçada cordialidade dos nobres presentes no mundo real, mas que, em essência, só ridicularizam a nova postura da personagem. Mia Wasokwska, aliás, não parece inspiradora mesmo quando consegue vencer os preconceitos que a cercam. A versão de Burton acerta em poucos aspectos, tendo uma trilha sonora acertada, mas que nem incorre como deveria. A sensação da análise final é de que Alice no País das Maravilhas é um equívoco completo: bobo, patético e deslocado.

  • Crítica | Uma Viagem Extraordinária

    Crítica | Uma Viagem Extraordinária

    O atual cinema francês não tem nada de atual, é de tradição e de comprometimento social como vem tentando ser desde os anos 60, com a resistência de grande parte da crítica e dos cinéfilos franceses, temerosos – no fundo – pelo tamanho das garras e presas da globalização prestes a engolir tudo e todos, muito além da terra do croissant e de outros clichês idiotas. Em termos de prestação de serviço ao registro da vida do público, de mistificar o que não cabe em jornais ou revistas, o cinema française mistifica e expande o sentido de seu microcosmo sócio-político como, hoje em dia, nenhuma outra filmografia de qualquer país consegue fazer, e esse é o principal de seus méritos: não apenas evitar ser uma televisão gigante com fatos não descartáveis, se atendo apenas a interesses públicos, como foi no século XXI o cinema inteiro da América Latina, mas ser mais teatro do que TV, muito mais nobre do que o horário nobre da telinha – como Alan Resnais tratou objetivamente de provar na ‘‘peça filmada”, ou no ‘‘filme encenado”, que é Amar, Beber e Comer, grande e rica obra de 2014.

    Mas nenhum filme desde a virada do milênio encantou tanto o mundo feito Amélie Poulain, de 2001, com um visual acachapante (e a beleza de Tautou) em prol do impacto que uma história simples e comum pode ter, se contada usando todo o poder absoluto da sétima-arte. Esse filme levou às grandes massas um cinema até então muito ligado à intelectualidade exagerada, digamos, algo arrogante e frio como ficou conhecido desde os tempos que Godard, Chabrol, Rivette e outros cineastas mandavam no jogo da exposição artística – de novo, com muito desdém pela turma mais antiga, acostumada só com Renoir e Carné, artistas de cinema em estado bruto. A Nouvelle Vague também já é passado, e, agora, Uma Viagem Extraordinária é a consolidação, o fruto do que começou no ano de 2001, quando o cinema do sotaque parisiense e do l’amour e da revolución ficou mais pop e livre do que nunca. E todo mundo, claro, amou e está amando o que não precisa mais ser rebelde – mas que não evita ser quando é preciso.

    A beleza e o encantamento como difusores de um conceito. Esse é a ideia, iniciativa e visão de Jean-Pierre Jeunet, o mais comportado dos surrealistas, justamente por ser mais expressionista que surreal, apesar de brincar de um jeito único com as duas vertentes. Para o artista, usar a lupa da graça ao analisar a vida neste mundo é básico, é uma obrigação a ser alcançada em cada facho de luz contra as sombras da desgraça. Com influência visual de grandes artistas do passado, franceses, americanos, e principalmente britânicos, poucos cineastas filmam o mundo de maneira mais viva e exuberante que Jeunet – Malick e o fotógrafo Roger Deakins podem entrar na lista. É burrice dizer que a estética de Amélie Poulain já não encanta mais, 10 anos depois, pois quem ainda não conhece o cinema de Jeunet vai se encantar do mesmo jeito ao assistir à obra, ao absorver a história francesa (em solo americano) de um jovem gênio, Spivet, um guri carismático que decide cair no mundo em busca de um prêmio conquistado por uma de suas invenções – que mais remete a um daqueles projetos de Da Vinci.

    O fantástico vem da extravagância que faz o filme ser o ícone de si mesmo. Tudo é visto pelo deslumbre que só uma criança vê o banal, o cotidiano, que não tem mais graça, visto da janela de um trem por um adulto, já integrado demais na vida real. O garoto Spivet é irmão do menino de Os Incompreendidos, cada um em uma realidade, mas unidos na curiosidade pelo proibido; ambos netos de Cabral e Colombo, todos sedentos pela promessa do além-abismo devido à sede pelo amanhã. Assim sendo, antes de ser um cientista, o moleque é descobridor da vida, e antes de ser um artista, Jeunet é adulto o bastante para expor sua criança interior na pele de outra, e sem medo de ser feliz. O resultado é o melhor e mais belo filme infantil desde O Garoto da Bicicleta, de 2011, na tradição do primeiro filme da história a se dedicar ao universo infanto-juvenil: O Ator Tokkan Kozo (1929), do mestre Yasujiro Ozu.

    Uma Viagem Extraordinária pode investigar o papel da criança no mundo de hoje, diferente da época do filme de Truffaut, mais livre e inteligente do que as gerações passadas para se libertar de dogmas familiares e descobrir seu lugar no mundo, de forma prematura. Ou ainda, pode debater o autoconhecimento através das relações pessoais que uma viagem nos traz, a todos nós, independente de nossas idades, por que não? Acima de tudo, atrás da paleta de cores e da experiência audiovisual que nos convida a assistir várias vezes o filme, sempre descobrindo algum sentido novo, com certeza é indiscutivelmente gratificante quando o cinema americano brinca de ser francês, e brinca de maneira tão graciosa.

  • Crítica | Clube da Luta

    Crítica | Clube da Luta

    Clube da Luta 1

    Por vezes, a humanidade passa por períodos de conflitos. Do antigo com o novo, do espiritual com o material, do “certo” com o “errado”, dentre outros. Também nessas épocas, a humanidade tenta produzir obras para interpretar esses fenômenos e as angústias do homem. Atualmente, em uma sociedade pós-industrial e com gerações de jovens com cada vez mais recursos e cada vez menos perspectivas, o livro de Chuck Palahniuk oferece uma visão singular sobre nós. Adaptado para o cinema em 1999 por David Fincher, o filme Clube da Luta não fez sucesso em sua estreia, e foi muito mal falado por muitos dos principais críticos de cinema do planeta. Porém, hoje, é cultuado por jovens e adultos que identificam na obra a crítica ao vazio existencial de milhões de pessoas frente a uma cultura de consumo em massa, que propõe definir personalidades através da compra de produtos.

    A história gira em torno do narrador (Edward Norton), um funcionário de uma indústria automobilística nos EUA e que leva uma vida tediosa, enquanto descarrega suas frustrações consumindo itens para decorar sua casa, mesmo que não use nada disso. Ao conhecer o excêntrico Tyler Durden (Brad Pitt) em uma viagem de negócios, sua vida irá mudar completamente.

    Dividido em três atos, o primeiro se concentra em detalhar o vazio da vida do narrador (fazendo uma analogia com a vida moderna da humanidade em geral) e sua tentativa de vencer a insônia que lhe impede de dormir. Quando passa a frequentar os grupos de ajuda a pessoas com doenças graves, encontra um certo conforto na profundidade de emoções de pessoas perto do fim, até sua hipocrisia ser desmascarada por Marla Singer (Helena Bonham-Carter), uma mulher atormentada que também procura os grupos de ajuda, segundo ela, por ser mais barato que cinema e ter café de graça.

    O primeiro ato tem como maior mérito a direção de David Fincher, e a edição, com cortes rápidos e usando artifícios para exemplificar o vazio existencial do narrador. As luzes da máquina de xerox se relacionando com a passagem do tempo, e a correria do aeroporto para hotéis com a velocidade dos aviões fornecem um importante elemento de como sua vida está passando, e ele parece sempre estar correndo atrás dela.

    O segundo ato, quando o narrador conhece Durden em um avião, é focada em estabelecer a relação entre ambos. Enquanto o narrador, que já conhecemos, mantém se mostrando superficial e preocupado com bens materiais, Durden oferece outra perspectiva ao fazer uma série de críticas ao consumismo e a forma como somos programados para simplesmente fazer o que a propaganda manda.

    O ponto alto dessa sequência é quando Durden pede para que o narrador lhe dê um soco, o mais forte que conseguir, pois nenhum homem sabe muito sobre si até que tenha entrado numa briga. Tal ato desencadeia a principal linha narrativa do filme a partir de então: a de autodescoberta e autoconhecimento do homem enquanto atinge seus limites físicos e mentais no chamado Clube da Luta, que consiste em pessoas comuns lutando de forma crua e brutal, com as famosas 10 regras, replicadas à exaustão na cultura pop. Funcionando como válvula de escape do homem selvagem preso dentro do reprimido homem moderno, o clube funciona como um elo entre todas aquelas vidas sem sentido, e a camaradagem ali surgida, além da devoção a Durden, servirão também de elemento principal da construção do terceiro ato.

    Simplesmente a libertação individual através do clube da luta não adiantava mais. Era necessário levar essa etapa adiante com o Projeto Caos, onde atos de vandalismo e depois “terrorismo” eram cometidos seja para mandar mensagem, seja para realmente tentar mudar a lógica da sociedade moderna ao explodir os prédios e os centros de informação das empresas de cartão de crédito para zerar as dívidas de todas as pessoas do sistema.

    O terceiro ato, então, se dá exatamente na construção e clímax das ações do “Projeto Caos”, onde o narrador acorda assustado para uma realidade que foi construída sob seus olhos. Quando descobre o que está realmente acontecendo em sua volta (e consigo mesmo), é tarde demais.

    Um dos segredos do sucesso de Clube da Luta é se focar justamente em uma geração que tem todas as necessidades materiais satisfeitas, e como isso não consegue satisfazê-los por completo enquanto seres vivos, ao contrário de toda a propaganda do século XX. Cada vez mais doenças comportamentais como obesidade, associadas ao consumo de drogas prescritas (além de uma nova geração de doenças como depressão, TDHA, DDA, etc.) indicam que o homem moderno não está feliz onde se encontra. Utilizando-se fartamente de metalinguagem, a história tenta mostrar por um lado tragicômico esse quadro. A sequência criada unicamente para o filme, dos protagonistas levando sacos de gordura de lipoaspiração feitas em madames ricas para fazer sabão, que será revendido a elas, demonstra a genialidade agressiva e brutal de um círculo tão simples de acontecimentos.

    A narração, ferramenta tão criticada e tão comumente mal usada, é perfeita no objetivo de clarificar ao espectador o que se passa na cabeça do narrador, aflito por tantas questões no início, e depois nos acompanhando em sua descoberta de um novo mundo, apresentado por Tyler Durden.

    Também importante são os diálogos milimetricamente pensados. Nenhuma fala está desconexa junto ao contexto do filme, ou apresenta contradição. Cada personagem tem sua personalidade e funções definidas, e suas interações representam esse universo de forma crível, fortalecendo a história. Por vezes usando passagens literais do livro, às vezes alterando-as, e até mesmo criando outras totalmente novas, Fincher consegue criar novos elementos dentro deste universo que avança a discussão colocada pelo livro de Palahniuk, o que também é bem raro na indústria cinematográfica. As atuações de Pitt e Norton, talvez as melhores de suas carreiras, também contribuem para isso.

    A música dos Dust Brothers, com toques eletrônicos e industriais (que lembra um pouco o que Fincher iria buscar depois na parceria com Trent Reznor), também contribui para criar o clima seco e caótico do filme, também construído pelas cores de tom alaranjado, azul e cinza usadas, cada um com seu propósito.

    Além da parte técnica, os méritos do filme vão para as citações, iconizadas e reproduzidas por fãs no mundo todo. Frases como “As coisas que você possui acabam te possuindo”, “É somente após perder tudo que você está livre para fazer qualquer coisa” e outras simbolizam essa dicotomia entre uma humanidade que consome para preencher um vazio, mas que nunca consegue. A atração por ideias tão radicais também se dá pela necessidade do espectador procurar um contato com sua natureza interna, ao mesmo tempo em que nega a propaganda a que foi submetido por toda a sua vida. A ação direta contra o sistema, passando longe dos gabinetes políticos e discursos oficiais vazios soa como música para uma geração intermediária, que não construiu nada, não lutou contra nenhuma ameaça real, e aproveitou todos os frutos dessas conquistas. Como o próprio Tyler diz, a falta de desafios reais torna essas vidas uma grande depressão. O próprio conceito de luta de classes é ressignificado não só como interpretação teórica da realidade, mas na ação direta, no puro caos criado pela classe trabalhadora na vida dos ricos através de ações como urinar em sua sopa ou colocar cenas de filmes pornográficos em filmes infantis.

    Clube da Luta funciona, então, como um retrato não só de como as atuais gerações jovens se sentem, mas como elas gostariam de se sentir, e experiências que gostariam de viver. Os clubes da luta e a violência física funcionando como um abandono a toda a sofisticação da vida moderna, e a busca pelo contato com o lado selvagem perdido da humanidade. Talvez o filme não fale para todos. Para aqueles poucos que se sentem confortáveis frente a imensidão do planeta, soe tudo bobo, inocente e negativo demais. Porém, análises profundas da realidade social soam negativas e atraem antipatia ou indiferença de quem não compreende, não se importa ou ainda não se viu em contato com essas questões. Mesmo nestes casos, Clube da Luta pode ser muita coisa, mas não é “simplista”. Nem perto disso. Sua mensagem, produzida nos anos 90, ainda menos “moderno” do que hoje, continua atual e profunda, atraindo novos fãs que também sentem em si esse eterno desconforto com a sociedade. E a tendência deste desconforto é a de só aumentar.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | O Cavaleiro Solitário (2013)

    Crítica | O Cavaleiro Solitário (2013)

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    Mais um dos produtos Disney encabeçado por Gore Verbinski e acompanhado de Johnny Depp, este O Cavaleiro Solitário traz uma nova visão do clássico justiceiro mascarado do Velho Oeste. A história é contada por um índio ancião a uma criança fantasiada de Lone Ranger. Os fatos são contados por meio de flashbacks, recurso que parece estar cada vez mais em moda no cinema contemporâneo.

    Ao menos os cenários e figurinos condizem com o gênero Western, a Direção de Arte têm poucos erros e a atmosfera contribui para a imersão dentro da história, mesmo com a ausência de sangue nos tiroteios e execuções. O roteiro contém muitas gags hilárias e piadinhas físicas que, aos poucos, vão minando a paciência do espectador mais ranzinza.

    Depp está com todos os trejeitos típicos de seus filmes com Tim Burton e do próprio Verbinski, o que torna sua caracterização em algo completamente genérico, visto em quase todas as suas bombas recentes – quase sempre de cara pintada,  com atuações tresloucadas e caricatas. O próprio ator parece se incomodar com a repetição de estereótipos que vem fazendo, tanto que seu contrato não prevê sua participação numa possível continuação. O estilo canastra permanece irritante, principalmente quando este interage diretamente com o público, mas o fato deste filme ser voltado para o público infantil, faz relevar alguns de seus muitos defeitos de concepção.

    Armie Hammer também não acerta como Lone Rider, e é ainda mais canastrão que Tonto. Seu personagem e o índio revezam-se nos arquétipos de Mentor e Pupilo, mas a relação é tão mal construída e jogada, que não há como se importar com os percalços deles. Para colaborar ainda mais com a mediocridade da obra, é apresentada Helena Bonham Carter num papel de uma cafetina perneta, com uma prótese de marfim – objeto que gera uma cena fetichista totalmente descabida, que não é pesada, mas também não se encaixa num produto cinematográfico para crianças – não é sequer engraçada, é só de mal gosto.

    A ação empregada em Cavaleiro Solitário é muito semelhante a da série Piratas do Caribe: lotada de pirotecnias, com brigas “pouco violentas”, coisas explodindo pelo cenário,  e sem personalidade nenhuma, mais do mesmo. Verbinski se repete demais e aposta suas fichas no que sempre deu certo em sua filmografia, até nos erros o realizador tem a obsessão em se autorreferenciar, pois o romance entre John Ready e sua cunhada Rebeca Ready (Ruth Wilson) é muito fraco, e tem o desfecho parecido com o do casal de Piratas do Caribe: Fim do Mundo, onde Orlando Bloom e Keira Knightley também são impedidos por “forças maiores” de ficarem juntos. Neste, ao menos, havia um pouco de química, ao contrário da relação semi-incestuosa apresentada em Lone Ranger. Esta versão do O Cavaleiro Solitário carece de conteúdo, substância e relevância, e só não é absolutamente descartável graças a sua fotografia e direção de arte.

  • Crítica | Os Miseráveis (2012)

    Crítica | Os Miseráveis (2012)

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    Em 2001, com Moulin Rouge – Amor em Vermelho, os musicais ganhavam novamente destaque nas produções Hollywoodianas, com uma história amorosa que inovava no estilo cinematográfico e ainda era repleto de referências ao pop. Talvez não seja exagero afirmar que, ao lado do Western, é o gênero que mantém suas características próprias, sem diluir-se em uma mistura de gêneros que normalmente situam-se as produções contemporâneas que sempre dão espaço para o humor, ao drama, a ação, perdendo parte dos referenciais de outrora.

    Embora muitos não apreciem o gênero, parte da Era de Ouro do cinema americana foi fundamentada em torno de musicais. O Mágico de Oz, primeiro filme colorido, é uma aventura musical, um exemplo entre tantos outros filmes que transformaram suas canções em sucessos, ganhando força além deles.

    O musical é o gênero mais teatral. Quebra a ideia da verossimilhança a favor da arte. A procura de uma maneira de se expressar com maior intensidade, além da interpretação física e da modulação da fala prosódica. Ao utilizar a música como representação, o público reconhece o distanciamento da vida real, mas, por sua força, aproxima-o pelo elemento emotivo.

    Dirigido por Tom Hooper, do vencedor do Oscar de Melhor Filme Discurso do Rei, Os Miseráveis traz ao cinema a versão do musical da Broadway do romance do francês Victor Hugo. Um dos maiores sucesso do famoso teatro trouxe um conceito inédito ao se filmar o gênero. É o primeiro em que as canções foram realizadas direto da cena, sem a gravação prévia em um estúdio. As interpretações das canções mantem-se a favor da emoção das personagens e do desejo dos atores, mas falham se o ator não possui um bom gogó para conseguir refletir o que sente.

    Na trama, acompanhamos o ladrão Jean Valjean, que após roubar um pão e ser preso, decide redimir os erros de sua vida. Mas aos olhos da lei e do inspetor Javert, nenhuma mudança transformaria sua marginalidade. O que faz o inspetor persegui-lo durante a vida toda. Mesmo tornando-se um homem melhor, Valjean não reconhece o sofrimento de uma de suas trabalhadoras que cai em desgraça após ser demitida. É um novo sinal para recuperar sua crença e prometer que cuidará de sua filha, Cosette.

    A história trabalha, em toda sua magnitude que abrange o século XIX como um todo, o viés do tempo e das mudanças históricas. Acompanhando a vida de personagens que foram marginalizados tanto pelas misérias da vida como pela situação da França como país, aqui situado entre a grande batalha de Waterloo e a Revolução.

    Críticas mencionaram o exagero dramático da produção, mas é necessário pontuar desde já que um musical potencializa as ações representadas com maior intensidade e o próprio romance de Victor Hugo é uma narrativa romântica por sua construção sensível e representação crítica da sociedade.

    O grande pecado do filme é não saber diferenciar que o teatro tem formato diferente do cinema. No espetáculo da Broadway, pode ser funcional uma história de 160 minutos em que quase todas as falas são ditas de maneira cantada. No filme, o efeito soa artificial como se as personagens estivessem obrigadas a dizer suas falas somente dessa maneira. Até os musicais mais antigos se pautavam de maneira equilibrada entre números de dança ou voz e partes faladas que dão sequência a ação. Em uma história que permanece demais sequenciando canção após canção, a força das mesmas se perde. Ainda mais quando a gravação foi feita no decorrer da cena, evidenciando quem tem talento e quem fez aulas específicas para as filmagens.

    O astro da produção é seu protagonista, Hugh Jackman, que expõe seu talento vindo da tradição do teatro e, portanto, familiarizado com o estilo. O algoz da personagem, Russell Crowe, parece desconfortável em cantar, ainda que realize uma boa canção solo. O Oscar dado a Anne Hathaway é uma das premiações que se valeu de sua intensa cena solo, da canção mais famosa da trama, I Dream a Dream. Nas outras personagens coadjuvantes, Sacha Baron Cohen, em seu segundo filme musical, demonstra segurança tanto na interpretação como na voz e parece diferenciar sua carreira entre as produções próprias com personagens excêntricos  e aquelas mais tradicionalista que realiza com outros diretores.

    Tentando manter a fidelidade com o musical da Broadway, mesmo não sendo um espetáculo filmado, Os Miseráveis perde parte de sua alma como uma produção cinematográfica. A inovação de cantar do próprio estúdio não salva excessos que poderiam ser evitados se a adaptação não se apoiasse somente no espetáculo teatral, esquecendo que a sétima arte tem um formato diferente.

  • Crítica | Sombras da Noite

    Crítica | Sombras da Noite

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    A cada nova produção, Tim Burton divide seu público cativo. Grande parcela reconhece que as refilmagens feitas pelo diretor mais mancharam sua imagem do que deram vazão a sua criatividade. O que antigamente era visto como um excepcional estilo com uma parceria consagrada com um ator famoso, hoje pode ser motivo de riso pelo uso constante de Johnny Depp e da esposa Helena Bonham Carter como uma fórmula desgastada.

    Torna-se difícil avaliar mais uma de suas produções sem questionar-se o que aconteceu com Burton, que teve fase excelente na década de noventa e, desde a regravação de Planetas dos Macacos, começou a tropeçar tanto nessas adaptações, tidas como obras contratuais, como naquelas de cunho mais autoral.

    Após o imperdoável Alice No País das Maravilhas, carregado por seu estilo, retorcendo a história original, Sombras da Noite parecia ser uma história de retorno a sua origem gótica e ainda parodiando a demanda atual de filmes vampirescos. Baseada em uma série da década de sessenta, a trama nos apresenta Barnabás Collins, um sedutor que se transforma em vampiro devido a maldição de uma bruxa. Preso em seu caixão por duzentos anos, a personagem desperta e vive as transformações do mundo moderno, reencontrando sua cidade e o legado da família perto da falência, tentando reascendê-la na sociedade.

    Se o ambiente parece uma retomada daquele primordial, o mesmo não pode se dizer da história. Mesmo com liberdade, o diretor teve que caminhar por uma trilha já fundamentada pela série televisiva, o que serve de impedimento para maior escopo criativo. A adaptação cinematográfica não justifica-se pela falta de uma trama interessante que se divide entre o amor e ódio do vampiro e da bruxa que o transformou.

    Estranhamente, Johnny Depp está bem em seu papel de vampiro deslocado, deixando de lado a afetação que, desde o Capitão Jack Sparrow, surgiu em suas interpretações, compondo um personagem excêntrico, mas realista. Quem permanece sem atrativo é a esposa Bonham Carter. É inexplicável compreender, além dos laços familiares, porque o diretor insiste em usá-la sempre para o mesmo tipo de papel, inserindo-a mais como um dever do que como espaço, para que a atriz demonstre seu talento.

    Torna-se impossível não pressupor que Depp, Burton e Bonham Carter reconheçam o declínio desta parceria. Porém, permanece a impressão de que, uma vez definidos, não há nenhuma vontade de inovação, já que este formato foi funcional diversas vezes. Talentosos todos são, mas parece que estão mais preguiçosos do que nunca.