Tag: Stellan Skarsgard

  • Crítica | Duna

    Crítica | Duna

    Minhas expectativas para Duna estavam em xeque, não li a série de livros do Frank Herbert, tampouco sou um admirador da adaptação cinematográfica de 1984. Não tenho qualquer valor afetivo pelo material, aliás, não tinha, pois o novo longa de Denis Villeneuve me deixou esfaimado por mais. Isso seria bom se o próximo filme já estivesse confirmado, mas é uma estratégia arriscada quando a progressão da história depende de seu sucesso financeiro. Duna (que começa com o subtítulo parte um) é maravilhoso, mas perde o sentido se não tivermos direito a uma continuação.

    Não vejo problema em dividir uma obra em duas ou três partes, mas é preciso uma cautela narrativa em relação à codependência das histórias, pois cada filme precisa funcionar individualmente. Peguemos como exemplo o final de Kill Bill: Volume 1. Todos sabemos que a jornada da personagem de Uma Thurman não acabou, ela quer matar Bill, e precisaremos de mais um filme para isso. Funciona porque a épica batalha contra os crazy 88, e o confronto com O-Ren Isshii dão ao espectador algum senso de desfecho, pelo menos a nível estrutural. A história vai continuar, mas o filme tem um ato final, e isso não acontece com Duna, que abruptamente acaba.

    Nosso protagonista é um jovem duque que vem lidando com sonhos premonitórios, super poderes de persuasão, e que pode ou não ser “o escolhido” de acordo a uma profecia. Ele acompanha seu pai até ao planeta Arrakis (Duna), que possui a cobiçada substância “spice” (funciona basicamente como magia), além de minhocas gigantes e areia. O que segue é um drama político sci-fi grandioso que me fez coçar a cabeça lá e cá. Muitos conceitos são tangencialmente abordados, gestos ou menções que presumem um conhecimento que pode desorientar a quem está explorando esse universo pela primeira vez. Da iconografia meticulosamente criada, às diretrizes culturais do figurino, à fantástica e plausível mitologia, há tanto para explorar aqui que me senti um pouco extraviado, mas não a ponto de perder o foco do conflito central que, como sempre, é motivado pela fortuna (invasão de um planeta para extração um recurso precioso, yada yada yada…).

    Villeneuve não gosta de economizar planos, é um diretor paciente, que exige o mesmo do seu público, e o recompensa com incansáveis ostentações composicionais. É como se ele competisse com ele mesmo a cada corte pelo melhor ângulo, pelo enquadramento perfeito, pela simetria sublime, e ele costuma vencer. Pra melhorar, ele tem Hans Zimmer fazendo a música, que cria um climão de guerra com a percussão (a cinematografia ajuda a compor essa atmosfera, e notam-se as homenagens a clássicos como Apocalypse Now e Lawrence da Arábia). Há uma ou outra batida onde a melodia quis me levar na marra, mas é uma trilha lamuriosa e ao mesmo tempo berrante. A gaita de fole não rolou pra mim, mas lembrei de Coração Valente, então ficou tudo bem.

    Tudo é desbundante em Duna, mesmo sendo todo cinza ou bege. Tecnicamente o filme é perfeito, mas a eutimia narrativa do diretor continua sendo um gosto adquirido. Se Blade Runner 2049 te pôs pra dormir, aqui provavelmente não será diferente. E não é um estilo que favorece as sequências de ação, que apesar de muito vistosas, precisavam de uma energia que quebrasse a melancolia subjacente. As minhoconas, por exemplo, prometem mais do que cumprem.

    Os efeitos visuais são perfeitamente integrados aos práticos, a criação de mundo é um barato (adorei os helicópteros insectóides), e eu preciso enaltecer o simples e eficiente uso do escudo com o contraste azul x vermelho, e como é satisfatório vê-lo no lugar daquela aberração de 84.

    Timothée Chalamet tem carisma de sobra. Ele se porta exatamente como um duque em construção, deixando transparecer a insegurança de quem carrega uma série de incertezas. E o diretor sabe que ele é um fofo, abusando dos close-ups do nosso herói contemplando sobre a vida com seu cabelo formidável. Rebecca Ferguson tem uma intensidade fortíssima nos olhos, o elemento de sua angústia materna é responsável pelas cenas mais emocionalmente carregadas do filme. A comunicação dela com o filho é bem trabalhada, e as camadas da dinâmica desse relacionamento estão apenas começando a cair. Oscar Isaac não atrapalha, mas não parece completamente confortável com o personagem. Ainda assim, uma de suas cenas certamente será lembrada. Jason Momoa tem uma das piadas do filme, é engraçadinha. Ele traz uma energia necessária ao ritmo remansoso, e sua ausência é frequentemente sentida. A outra piada é do Javier Bardem, ele não tem muito mais pra fazer, mas a cena é, de novo, engraçadinha. Há uma baixa dose de humor aqui, suficiente para pequenas descontrações sem afetar o tom austero predominante. A personagem de Sharon Duncan-Brewster é subdesenvolvida, Josh Brolin funciona (seus diálogos não ajudam), e Dave Bautista não. Ele não parece ter um lugar nesse universo, é apenas um bruto que é grandão porque sim, e a cena em que ele precisa demonstrar indignação é difícil de assistir. Stellan Skarsgård faz um vilão excepcionalmente grotesco e genuinamente ameaçador. Quero distância total desse cara, eca! Zendaya está no filme para soltar um trocadilho bem bolado e estimular o público com a possibilidade de mais tempo com sua presença celeste no filme seguinte.

    Duna pode parecer derivado, mas é justamente o contrário. O material fonte é tão influente que se tornou vítima das futuras criações que inspirou. Quando vi o elemento da Voz, lembrei imediatamente de Obi-Wan Kenobi usando a Força em 77, e não me pareceu justo. Mad Max, Alien, Blade Runner… muitos clássicos beberam alguma dose dessa fonte, preciso criar vergonha na cara e ler o primeiro livro.

    Nota: 8.9

  • Review | Chernobyl

    Review | Chernobyl

    A mensagem, aqui, é clara: testes nucleares são um perigo? Sim, exatamente como a disseminação de falsas verdades em tempos em que todos acreditam em qualquer coisa espalhada com força pela internet. Isso porque quando o poder está nas mãos erradas, seus efeitos são tão catastróficos quando a explosão de um reator nuclear, funcionando na antiga União Soviética, trinta anos atrás, sob a garantia de que nada de tão grave, poderia acontecer. Chernobyl se torna memorável não “apenas” por manter nosso interesse por cinco episódios extremamente bem escritos, ambientados e encenados, mas principalmente por associar esse acidente histórico com os acidentes também alarmantes que as mentiras, ou num termo mais contemporâneo, as fake news, podem acarretar no bem-estar da social de um país.

    Não à toa a produção da HBO, o mesmo canal da Warner Bros responsável pelo frustrante término de Game of Thrones, vem sendo determinante para restaurar a fé do grande público com o melhor canal atualmente de séries adultas, em contraponto com a infantilização do público em larga escala que a Disney tanto promove. A minissérie consegue ser boa a ponto de acalmar os ânimos dos fãs furiosos com o desfecho televisivo da criação de George R.R. Martin, fazendo todos voltarem sua atenção a HBO mais uma vez, para uma trama dividida em cinco capítulos a prova de qualquer desilusão ou pessimismo por parte dos seus espectadores.

    Mas engana-se quem acha que Chernobyl é pura ação, ou suspense. A minissérie usa de artifícios da ficção para impulsionar e nos hipnotizar a respeito da assombrosa e tensa realidade antes, durante e após a catástrofe que mobilizou o mundo, e ainda hoje, mantém isolada uma gigantesca área do mundo banhada nos perigos de uma radioatividade intensa, e resistente. Se há ação e explosões, do jeito que a massa gosta de assistir, ela reserva-se apenas a grande explosão, quando os cientistas, angustiados na sala de comando de uma Usina Nuclear, em uma noite comum de 1986, cientes do desastre que já se adiantava, tentam salvar suas vidas e as de seus colegas de trabalho em meio a fumaça química, e mortal.

    A maioria morreu, é claro, e o restante se tornou herói aos olhos do mundo na proteção e desespero eternos dos seus familiares que, implacáveis, tentavam se manter juntos dos entes queridos, nas alas hospitalares. Até o fim, mesmo que a contaminação dos corpos dos físicos e bombeiros também envenenasse e apodrecesse os seus – como expõe algumas cenas bastante fortes, mas precisas quanto aos horrores decorrentes de uma enorme mentira: se as autoridades políticas tivessem reconhecido o erro dos seus cientistas e avisado a população, e não esperado 36 horas para isso, os danos seriam menos danosos aos milhares de seres humanos respirando doses cavalares de radiação. Para não divulgar sua incompetência, o governo preferiu desinformar, enquanto o estrago, além de interesses políticos, se propagava livre, pelo ar.

    Uma mistura bem-sucedida de drama e suspense que, nesta década, poucas produções cinematográficas alcançaram – O Espião que Sabia Demais salta à mente, a charmosa adaptação do livro detetivesco de John Le Carré. Se fosse um filme, cujo dever é sumariamente faturar nas bilheterias americanas e do mundo, Chernobyl iria se vender como uma produção barulhenta, cheia de clímax, talvez até inserindo zumbis ou as também icônicas máscaras de ar, para dar um clima de suspense hollywoodiano em que tudo pode acontecer. Nós somos os nossos próprios heróis na vida real, e não há porque esconder isso. Aqui, o caminho na televisão para a trágica e inesquecível história foi o de acentuar o drama humano e deixar os atores brilharem, em especial nas sessões intermináveis de tribunal nas quais os envolvidos tiveram de explicar as condições do grande desastre ao júri, ou nos momentos mais íntimos em que percebemos que, para aqueles que amamos, a morte já fez amizade. E tudo por conta de verdades seguradas nas mãos de poderosos, preocupados com sua reputação nacional, e internacional.

    Tal sensação mórbida que assolou a cidade pela situação que enfrentou é expressa na paleta de cores desse marco da HBO, evidenciando, assim, com tons leitosos de verde, branco e azul uma atmosfera pesada, como se as pessoas que ali viviam e trabalhavam estivessem cercadas, e condenadas, por um destino cruel à espreita. Quando Valery Legasov, um renomado químico soviético é preso, a mando do governo, após a violenta explosão nuclear ter a sua fumaça tóxica espalhada pelo vento, quilômetros além da cidade do norte da Ucrânia, a morbidez de uma futura cidade fantasma é ainda mais acentuada nas cores de sua cela, solitária e redutiva a figura do homem. A ambientação da minissérie impressiona, num louvável trabalho de reconstrução da época do regime socialista da URSS, a ponto dos cenários do acidente, por exemplo, serem tão realistas quanto suas inspirações verídicas. Um dos brilhantes fatores a nos lembrar que, quando a HBO quer fazer conteúdo de primeira magnitude aos que buscam menos espetáculo pirotécnico, e mais intelecto, ela continua imbatível.

    https://www.youtube.com/watch?v=fFfZppLFops

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  • Crítica | Borg vs McEnroe

    Crítica | Borg vs McEnroe

    A inveja é uma desgraça. Nenhum outro sentimento corrói outro com tamanha energia e êxito quanto a inveja. Uma peste desconstrutiva, ela testa qualquer laço e acaba com qualquer relação mundana que existia antes da sua perfídia invocação. Mais famoso exemplo disso no cinema recente, de uma década pra cá? A Rede Social, clássico de David Fincher eternamente injustiçado pelo Oscar (O Discurso do Rei, really?!) e recompensado pelo tempo, indo além de ser outra biografia de alguém famoso (como acabaram por ser os dois filmes acerca do Steve Jobs) para focar em especial na rivalidade histórica e digna de um romance nas telas dos criadores do Facebook, sinônimo das redes sociais que assolam o mundo digital ainda nesse começo de século.

    Fincher, o espertinho, mostrou uma amizade se deteriorando mais rápido que castelo de areia tocado pela maré, em decorrência da ganância histriônica que cerca uma dupla ideia universitária abarrotada de possibilidades ultra lucrativas, sendo que no caso do ótimo Borg Vs. McEnroe, o cineasta Janus Metz nunca precisou lidar com a destruição de laços afetivos que aqui simplesmente nunca existiram, e sim com a boa e saudável competição esportiva sendo substituída pela competitividade que atiça a invídia maligna, apossando mais e mais os dois grandes astros homônimos do tênis mundial.

    No mais, é um filme tanto pra quem é fã do esporte, quanto pra quem não se considera interessado por ele, garimpando os porquês e as consequências pessoais, não apenas profissionais dessa rivalidade que acabou ficando famosa entre o sueco Björn Borg e o americano John McEnroe. As entrevistas e os flashbacks: São os depoimentos na mídia e as reconstituições do passado que melhor constroem na narrativa muito bem fluída por Metz, sempre equilibrando drama e entretenimento de forma exemplar, um verdadeiro quadro duplo sobre as circunstâncias que viviam e alimentavam a garra e a psicologia dessas duas figuras um tanto parecidas no foco e na insegurança que compartilhavam, mas díspares quanto aos seus papéis no mundo do tênis, em 1980. Solitários e ‘vítimas’ de auto estimas duvidosas, Borg e McEnroe parecem viver em conflito constante com eles mesmo, sempre se pressionando, sempre se testando, o que resume a motivação dos atletas que a história nos apresenta.

    Seja do tênis, do boxe ou futebol: Para o senso comum e a mídia que o infla, os profissionais sempre valem a última partida que jogam, ou quando muito as duas ou três últimas, e nisso a auto cobrança é sempre cruel – e fatal, quando não bem dosada. O filme encarna isso de uma forma verdadeiramente cinematográfica e elegante, elencando cenas e situações que demonstram verdades universais sobre o esporte ao invés de explicar ao espectador – algo muito, muito raro –, sem discutir nada, mas encarnando temas como relação com o treinador, as festas, a preparação ou o medo da derrota pré-partida de forma enérgica e verídica, jamais preferindo um tenista, ou outro. O que realmente importa aqui é entrar na mente de um jogador (dois, no caso), e interpretar a sua adrenalina, os seus impulsos e o seu percurso até ganhar ou perder o mitológico campeonato de Wimbledon, o mais antigo torneio de tênis do mundo.

    McEnroe não parecia entender e suportar mais o peso de ser um grande atleta que o rival americano – pelo contrário. Seu jeito antiesportivo de ser, não aceitando derrotas é o motor da rixa que se dá com Borg, muito mais maduro e observador. O tenista com pinta de mau perdedor cai como uma luva para Shia Labeouf, conhecido em Hollywood por ser um ator extremamente difícil de se trabalhar e personificando, aqui, com primor inesperado a grosseria quase infantil de McEnroe, a ponto de, quando eles se enfrentam pela primeira vez, nós já sabemos do que ambos são capazes e já podemos prever seus comportamentos separados por uma simples rede. O McEnroe de Labeouf merecia mais atenção da temporada de prêmios, é verdade, assim como a montagem do filme, sempre preocupada com a dinâmica rítmica de uma história dividida e amparada por dois complexos atletas, seja usando seus uniformes ou não.

    “Tudo o que eu fiz me trouxe a esse momento”, confessa Borg antes do clímax definitivo, aqui interpretado com sutileza e sensibilidade por Sverrir Gudnason, ator sueco que dá corpo e alma ao atleta. É aliás as cenas de vestiários que melhor interpretam esse lado confessional do lugar, onde atleta e treinador parecem se tornar amigos inseparáveis. Poucos são os momentos em Borg vs McEnroe que superam esses breves diálogos entre quem treina e é treinado, senão o silêncio final entre os dois rivais, sozinhos e lado a lado num banco, logo antes da partida decisiva e clássica em Wimbledon cuja final verdadeira pode-se assistir online.

    Nisso, um parece ter nascido para enfrentar o outro, fazendo o oponente dar o seu melhor cujo confronto entrou para a história de todos os esportes. Mas o principal triunfo do filme, mesmo? Nos fazer compreender que eles não estavam naquela arena apenas um contra o outro, mas sobretudo para provar a si mesmos que mereciam pisar naquele gramado para disputar o título, quem sabe até ganhar, ou ainda: Virar melhores amigos um dia, quando toda a competitividade já tenha ido para o ralo, depois da chegada dos próximos queridinhos que a grande mídia elege, e adota, para si. Nenhum atleta é invencível, pois nenhum homem tampouco o é. Moral da história.

    https://www.youtube.com/watch?v=Ij0w630GQ5A

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  • Crítica | Nosso Fiel Traidor

    Crítica | Nosso Fiel Traidor

    O início do filme se dá em terras gélidas de reações mortas. Mafiosos russos buscam eliminar alguém e sua família, há um tiroteio, há uma fuga; há exatamente isso, informação. Tal como um maquinário, o que se vê ocorrendo em tela é de forma automática e apática. Não houve algo que fizesse o público minimamente se importar além da estranha ideia: tem coisas acontecendo, então eu devo sentir algo. E infelizmente a ineficiência do desenvolvimento não se limita a esse trecho inicial; há muito mais pela frente.

    Nosso Fiel Traidor é um filme de Susanna White (Nanny McPhee e as Lições Mágicas) e roteiro de Hossein Amini (Drive, Branca de Neve e o Caçador) baseado na obra de John le Carré, o mesmo autor de O Espião Que Sabia Demais, cujo aclamado filme homônimo foi baseado. Nessa nova empreitada, o casal formado por Perry (Ewan McGregor) e Gail (Naomie Harris), um professor de literatura e advogada, tiram férias após problemas com seu casamento. Nessa escapada, Perry conhece, por coincidência (palavra-chave nessa história) Dima (Stellan Skarsgård), um russo que logo revela querer que Perry entregue informações sobre a máfia para a inteligência britânica em troca de segurança para ele e sua família.

    E esse, é claro, é o tema principal do filme: família. Desde a cena inicial, até Dima buscando proteger sua mulher e filhos e Perry e Gail lidando com seus laços matrimoniais, assim como Hector (Damian Lewis), o representante da inteligência britânica que apresenta um histórico familiar que administra com frieza para garantir a boa execução de seu trabalho. Lendo até que pode parecer que há chance de ser interessante, mas logo as oportunidades se esvaem em más escolhas. A construção do personagem de Perry, por exemplo, se faz como a de um cavaleiro de armadura brilhante. Ele está lá no momento certo, na hora certa; seja para impedir um estupro, agressão doméstica, ou ser o entregador de informações sigilosas. Os motivos? Nada realmente concreto. São essas atitudes, coincidências, que o roteiro busca para provar o valor do personagem e mover a história, que talvez pudessem até ter algum peso, fosse o roteiro bem trabalhado, ou alguém quisesse atuar além do funcional.

    Os personagens que mais se aproximam de alguma profundidade são os coadjuvantes Dima e Hector. Esse segundo busca cumprir seus objetivos, busca justiça, e para isso batalha contra as burocracias de um sistema que ele sabe não ser feito para dar certo. Skarsgård, por outro lado, apresenta uma forte ligação com sua família e personalidade caricata, mas presente. Também é o que apresenta arco narrativo mais completo, mas que ainda assim é, em conjunto com o resto do filme, estéril. Tal como a montagem que segue o básico de cortes rápidos para (teoricamente) garantir a atenção do público. A fotografia de tons frios e lens flares certifica o visual do blockbuster convencional, da mesma forma que a música genérica. E apesar de em alguns poucos momentos ocorrerem cenas por abordagens diferenciadas, o valor logo decai quando se observa o todo.

    Nosso Field Traidor é composto por uma fórmula padrão e execução medíocre, e aqui é necessária uma clarificação: o termo medíocre anda sendo utilizado como algo pior do que “ruim”, mas não é esse o verdadeiro significado da palavra. Medíocre é o médio, o morno, o que tanto faz. O que deveria ser tenso, emocionante e triste não o é, apesar de que em teoria o que é mostrado em tela devesse ser. Isso se dá pela perceptível falta de compreensão em perceber por qual motivo sentimos o que sentimos em histórias. Quando não há a preparação e fundamentação de personagens e contexto para o que estamos prestes a ver, tudo não passa de informação. E informação por informação são mais algumas imagens e sons que logo serão esquecidos.

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

  • Crítica | O Cidadão do Ano

    Crítica | O Cidadão do Ano

    cidadão

    Vermelho é a cor mais quente. Cor que irriga os campos de neve de uma região inóspita, mas repleta daquela “sujeira debaixo do tapete” que, no Brasil, não temos vergonha de pendurar no varal. Aqui, e não só aqui, corrupção já é clichê, furar a fila também; a violência então é figurinha, se tornou banal (exportada e importada). Ontem mesmo, já cronicando, subi num ônibus e pedi licença pra sentar ao lado de uma senhora, o que fez algumas pessoas prestarem atenção em mim. Pedir licença é o que surpreende por aqui, fazer o que, mas num contexto social nórdico, onde cultural e teoricamente todos são mais educados, o sangue explode junto d’um choque incomparável ao vê-lo.

    É incomum, é gráfico e gritante, por lá e também em nível universal, já que todos ainda carregamos uma consciência de certo e errado ao presenciar certas cenas. Enquanto Cláudio de Assis filma A Febre do Rato com aquele “mais do mesmo” do Cinema nacional, tudo o que a neve esconde nas veredas do leste europeu tem impacto e mistério e atração triplicados. O Cidadão do Ano brinca com essa “ética” do impacto cultural diante do inesperado; do escândalo que depende da cultura da plateia para acontecer, lembrando a todos que a arte tem responsabilidades apenas consigo mesma.

    Um filme livre, absolvido de culpa e cujo vermelho e branco são cortados pelo azul da frieza emocional, num mundo gélido, glacial e deliciosamente contemporâneo, na essência otimista que a palavra carrega. A linhagem de Onde os Fracos Não Têm Vez e Drive se expande a cada ano, com um homem, por X razão (sem spoilers) decidindo ou precisando fazer justiça com mãos pesadas e ombros ainda mais! Se em Leviatã ou no ótimo Era Uma Vez em Anatólia é a injustiça que alimenta a barbárie moral entre os homens, O Cidadão do Ano atinge o nível de identificação global que o ambicioso Um Toque de Pecado alcança, indo além dos valores da região, tanto chinesa quanto sueca, e mostrando a vida como ela é: tempestuosa e competitiva à todos nós, hoje em dia.

    Uma história tratada como se baseada em fatos reais, na linha entre a ficção e seu primo pobre: O tal do real. Toda noite, quando o branco escurece e Nils, um simples trabalhador montanhês, levanta da sua cama e busca vingança pela morte de seu filho, o Cinema agradece pela bela forma que o filme retrata as emoções que o regem, e nos regem durante a projeção. Nós podemos sentir tudo que o injustiçado sente, seja deixando a esposa tranquila nos lençóis de madrugada, seja em seu rosto duro, ou melhor: Endurecido! Um principiante na arte do “olho por olho, filho por filho”, Nils não tem um mestre ninja pra lhe ensinar alguns truques, nem superpoderes ou a mira (e o charme) de Clint Eastwood. Ele tem mais. Muito mais.

    Nils tem a ira de um pai órfão de filho que, por onde passa, a mágoa se materializa em água. Água vermelha e, logo depois, água de cachoeira, nas cataratas que a natureza não congela, para que a natureza de um pai sinta o gosto puro de retaliação! Mas o diretor Hans Moland não faz questão de pesar seu filme na atuação de Stellan Skarsgard, talvez um dos melhores atores vivos; um monstro indiscutível em cena. O filme resiste a ser um western spaghetti na neve, apostando sua estrutura dinâmica de drama e suspense numa espiral de causas e registros culturais e regionais, até chegar ao clímax que a história merece, ainda que dominado por um homem e a violência imprevisível que ele acarretou.

    Mas vai dizer que não tem uma pitada dos Coen, aqui? O humor quase surreal e a ação parecem ser inerentes a trama, surgindo do absurdo moral de quem vive a violência e a encara como um negócio; no caso, a máfia. É tanto na crueza gélida, quanto na falta de cinismo, ou seja no apelo elegante pelo explícito onde tudo é banhado e ocorre, que o filme orgulhosamente mostra sua cara, ostentando equilíbrio e sem filtros para extrair a nossa satisfação até o último minuto. Porque, assim como Nils, o Cinema também chegou muito longe, só que ainda tem muito a perder. Felizmente, O Cidadão do Ano reintegra à arte a posse da realidade, como todo bom filme faz, resultando num universo próprio, ainda que real, onde a tríplice das cores que o permeiam ditam o que sentimos, e o que podemos discutir  depois dos créditos finais.

  • Crítica | Cinderela (2015)

    Crítica | Cinderela (2015)

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    E viveram felizes para sempre (Ninguém precisa saber o que vem depois, porque o depois existe tanto quanto Branca de Neve e Aladdin). Porque viver nas “delícias da incerteza” para sempre é o melhor ponto final que um filme poderia ter, sendo que, mesmo a um esquizofrênico, a vida não acolhe infinitos. Mas no cinema, num livro, na arte, querer saber o depois é demais, não interessa. Perde-se a elegância, e o sonho já começa a virar real. Perde-se a graça, indo embora o que faz do sonho um sonho – nada mais, nada menos. E sabe quando você assiste a um filme e dois minutos depois do início você sabe perfeitamente como tudo vai ser? Essa obviedade de sentidos é o grande trunfo de Cinderela, a melhor e mais serena releitura do filme que salvou os estúdios Disney em 1950, fato. Um bom exercício de interpretação é assistir a esse encantador manifesto de Kenneth Branagh e emendar com a versão Romero Britto de Alice, de Tim Burton. O que há de diferente e qual proposta (intenção) combina e enriquece mais a abordagem (realização)? É tudo apenas uma questão de estilo e gosto? Perguntas que convido o leitor a responder.

    Um manifesto a favor do que de melhor o Cinema pode oferecer a um material caído no colo da cultura popular – a jovem borralheira de madrasta má, blábláblá –, e que por isso não carece de cópia ou desconstrução da mitologia original. Um manifesto pelo direito de dar continuidade à magia sem vomitar regras, e principalmente, de seduzir o público pelo resgate dessa magia em tempos tão realistas quanto o nosso. Choram as rosas, poesia é o que não falta, e cor, clareza nas ideias e olhos nos olhos, dança e sorrisos, lágrimas e trilha sonora num filme-spoiler assumido e orgulhoso por ser assim: deliciosamente previsível. Um filme renascentista, no melhor uso do termo, em que a harmonia entre os conflitos é inquebrável, como nas peças de Shakespeare, e o luto do erudito é incabível como nos poemas de Florbela.

    Tudo parece tão frágil e tão quebradiço que o respeito e admiração ao universo da gata borralheira são inevitáveis. A própria construção do caráter amargo da madrasta gira em torno da magia: é simplesmente uma mulher enterrada numa realidade burguesa de aparências e que não pertence ao mundo de emoções puras de nossa princesa, num belíssimo jogo de figurinos que parecem disputar na tela, senão pelo ótimo equilíbrio presente entre os elementos visuais, a quem isso possa interessar, qual o mais belo. O cineasta e romântico Branagh (o professor Lockhart do segundo Harry Potter) faz de Cinderela uma alternativa dialética à celebração vazia do novo, e uma ovação declarada às glórias indiferentes às mudanças do tempo. A história é contada como se fosse da primeira vez, exaltando e promovendo mitologias na pegada mais deslumbrante e direta possível, com o gato da malvada perseguindo os ratos tratados com amor pelo coração inocente, por exemplo, numa clara metáfora dos abusos a ser cometidos ao longo do conto.

    Entre cenas criativas (a transformação da abóbora em carruagem e da carruagem em abóbora são extraordinárias) e a preservação da elegância da história refletida na fluidez dos planos, a Disney finalmente combina, aqui, a evolução do Cinema com a necessidade do espetáculo para assegurar uma bilheteria alta, sem esquecer-se do seu próprio estilo de criação épica. A vontade não era essa, mas a fábula humilha quaisquer outras versões recentes do lendário estúdio americano, entre juízos de fato e valores que mais remetem a Princesa Kaguya, animação sublime dos estúdios Ghibli, de Hayao Miyazaki.

    Era uma vez uma comparação válida, tamanho o esmero concedido e júbilos derivados, inclusive, de atores inspirados em condições que favorecem suas presenças. E assim como a antiga releitura francesa de Jean Cocteau para o clássico A Bela e a Fera de 1946, em 2015, com Cinderela a nos encantar, temos uma obra ciente do que pode ser e do que não precisa ser, e que por isso se compromete a honrar o passado sem deixar de conseguir novas opções, para que as visões e os vastos compromissos da arte possam ser, felizmente para sempre, recriados a partir de suas fundações.

  • Crítica | A Caçada ao Outubro Vermelho

    Crítica | A Caçada ao Outubro Vermelho

    Caçada ao Outubro Vermelho - Poster - dvd

    Ao longo de sua duração, a Guerra Fria rendeu histórias maravilhosas, seja sobre eventos reais que ocorreram durante seu período, seja sobre eventos ficcionais inspirados por ela. No ano de 1984, praticamente no fim da guerra, o historiador e novelista Tom Clancy nos apresentou ao livro A Caçada ao Outubro Vermelho, primeiro de uma série protagonizada pelo personagem Jack Ryan. Em 1990, o livro foi adaptado para as telas do cinema com direção de John McTiernan, protagonizado por Alec Baldwin e Sean Connery, e com ótimo elenco coadjuvante.

    A trama do filme nos apresenta Markus Ramius (Connery), lendário comandante soviético que recebe a missão de capitanear o Outubro Vermelho, moderno submarino que possui um sistema revolucionário de propulsão que o torna praticamente invisível para sonares. Porém, Ramius desobedece ordens diretas da marinha soviética, vira o submarino para os Estados Unidos e segue em viagem, fazendo com que todos pensem em um ataque nuclear ao solo estadunidense. Entretanto, o analista Jack Ryan (Alec Baldwin) não crê em um ataque, mas em deserção, o que o faz entrar numa luta contra o tempo para provar sua teoria para seus superiores e à tripulação do navio USS Dallas, embarcação que conseguiu rastrear o submarino soviético e planeja afundá-lo.

    O diretor John McTiernan estava em grande forma na época, principalmente por ter dirigido Duro de Matar, um dos maiores clássicos do cinema de ação. Porém, enquanto seu trabalho anterior primava por sequências eletrizantes de ação, o diretor aqui prioriza a construção de uma sufocante atmosfera de tensão, uma vez que o filme possui uma série de núcleos narrativos onde se passam diversas partes da ação, tais como o submarino Outubro Vermelho, o USS Dallas, a Casa Branca, o outro submarino soviético V.K. Konovalov e ainda Jack Ryan, pois o protagonista passeia por grande parte desses núcleos. Em nenhum momento o diretor deixa o ritmo do filme cair, contando com a ajuda de uma bem orquestrada edição ágil da dupla Dennis Virkler e John Wright. A fotografia de Jan De Bont também ajuda a construir a atmosfera do filme.

    O roteiro da dupla Larry Ferguson e Donald E. Stewart é bem amarrado e interessante. Novamente, é necessário ressaltar a quantidade de núcleos narrativos. Seria muito fácil que o roteiro se perdesse em algum ponto ou que viesse a negligenciar algum dos núcleos, mesmo todos sendo tão importantes e necessários para o desenvolvimento da história, ainda que o foco principal da narrativa seja Jack Ryan e Markus Ramius. Porém, todos têm a sua importância bem delineada no roteiro. Os diálogos dos personagens são bem claros e objetivos, ainda quando vêm carregados de alguma linguagem mais técnica que precise de esclarecimento para o espectador. Nada fica didático demais, ou mesmo gratuito. Talvez o grande problema do roteiro seja a questão do sabotador, que até é abordada pontualmente, mas acaba ganhando uma importância excessiva no final. Por falar em final, a reviravolta que ocorre e se relaciona ao submarino Outubro Vermelho é muito inventiva e crível.

    O elenco do filme esbanja competência. Sean Connery entrega uma excelente interpretação para o comandante Markus Ramius. Sua imponência em cena reflete bem a importância da patente do personagem. Por ser um analista da CIA e não um agente de campo, Alec Baldwin cria um Jack Ryan meio deslocado e vulnerável, e isso acaba sendo uma escolha muita acertada do ator, afinal o personagem não se familiariza com o mundo em que acabou entrando quase que por imposição. Sam Neill interpreta o imediato do Outubro Vermelho e grande amigo do comandante Ramius com bastante competência, assim como Scott Glenn, que interpreta o implacável e inteligente comandante do USS Dallas. As breves aparições de James Earl Jones como o diretor da CIA a quem Jack Ryan é subordinado, e de John Gielgud como um diplomata soviético abrilhantam a fita. E um ainda desconhecido Stellan Skarsgard entrega ótima performance como o alucinado comandante do V.K. Konovalov, ainda que também tenha pouco tempo de cena.

    A Caçada ao Outubro Vermelho é um ótimo exemplar de thriller de espionagem e mostra que nem sempre os filmes do gênero precisam apelar para superespiões e sequências mirabolantes de ação.

  • Crítica | Uma Longa Viagem (2013)

    Crítica | Uma Longa Viagem (2013)

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    A Segunda Guerra Mundial é um dos temas mais férteis para produções cinematográficas, ainda que atualmente se lancem poucos filmes sobre o assunto em comparação com décadas passadas. Porém, há sempre espaço para mais uma narrativa sobre este momento histórico, seja como um panorama universal do período, seja através de histórias pessoais de homens que viveram sob domínio da guerra e guardam lembranças de traumas, batalhas e sentimentos.

    Uma Longa Viagem baseia-se na história real do soldado Eric Lomax (Jeremy Irvine/Colin Firth), um oficial britânico preso no fronte em Singapura e enviado a um campo de prisioneiros para trabalhar à força na construção de uma ferrovia. Hábil em eletrônica, constrói um rádio amador para ouvir notícias sobre a guerra e, ao ser descoberto, é detido e se transforma em alvo de tortura e maus tratos.

    A história começa nos dias atuais. No centro de veteranos, Lomax é um senhor conhecido pela fascinação por trens. Conhece itinerários, maquinários, e em uma destas viagens conhece Patti (Nicole Kidman), a mulher que será sua futura esposa. Após o casamento, a relação com a esposa permanece distante, em parte por seu incômodo em revelar a história de seu passado, motivo que lhe deixa apreensivo e com pesadelos diários. A trama entrecorta o presente com sua jornada de guerra.

    O soldado foi utilizado como um exemplo pelos inimigos para se manter a ordem local. Torturado diariamente, privado de alimentação e de um local adequado de sono, o jovem, e suas dores físicas e psicológicas, é acompanhado pelo público, atento em compreender o motivo da fragilidade do personagem quando adulto. Incapaz de superar este trauma, Lomax vê a estabilidade familiar e a convivência com a esposa se tornarem insustentáveis. Tentando evitar uma separação, o veterano realiza uma viagem de volta ao local onde foi preso para encontrar seus torturadores e obter alguma resposta que possa amenizar sua dor.

    A batalha de Lomax é a luta contra o passado e a incompreensão diante de fatos brutais vividos no período de guerra. Sua viagem é frutífera, e o ex-soldado encontra um homem que estava presente nas sessões de tortura, o intérprete de guerra Nagase Takashi. Defronte a seu antigo inimigo no confronto, o homem percebe que o outro também carrega fantasmas e traumas de batalha.

    A guerra vista de uma maneira abstrata e com afastamento histórico retira a percepção de que homens lutaram uns contra os outros e saíram flagelados destas lutas, muitas vezes questionando-se quanto à verdadeira intenção de uma batalha entre nações. A obra demonstra a inutilidade da guerra e faz uma ode ao perdão. Um reconhecimento difícil e catártico entre homens que, um dia, viveram em lados opostos. As cenas do encontro destes ex-soldados são bonitas e emotivas pela coragem em compreender o outro lado e absolvê-lo de erros passados.

    Colin Firth sustenta com qualidade a personagem, principalmente nos momentos emotivos. Nicole Kidman, por outro lado, parece demonstrar intenção de resgatar seu prestígio como atriz, mas sua personagem é fraca e funciona mais como um motivador para a mudança do marido do que como alguém importante na história. O romance dentro da vida de Lomax foi a justificativa maior para que ele, finalmente, compreenda as torturas que sofreu durante a guerra.

    Como a maioria das histórias, principalmente em tempos sombrios como o da Segunda Guerra, a trama apresenta elementos interessantes, demonstrando as facetas cruéis de conflitos bélicos e os traumas carregados durante boa parte da vida. Mas dentro de tantas narrativas retratando este período, a história parece uma repetição, e o drama sensível salva-se mais pela competência dos atores do que por um bom roteiro.

  • Crítica | Gênio Indomável

    Crítica | Gênio Indomável

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    A sensibilidade de Gus Van Sant já rodou o globo e faz tempo, mais de dez anos. O cara toca projetos com mãos de fada e satura o lado racional de cada um até não sobrar nada, senão o suprassumo de uma carga emocional plena e linear, território que conhece como poucos na tarefa de traduzir vibrações em narrativas. O âmbito da matemática, ciência exata, todavia, não é frio nem quente, mas indiferente a todo um mundo relativo e cheio de fatores que não podem ser expressos por números, e é justamente no abismo entre o exato e as reviravoltas da vida – que não podem ser pré-calculadas – que o diretor de Elefante encontrou um grande desafio para ser o que é. No caso, um coração forçado a usar uma régua para medir o que sente. Não é justo.

    Will Hunting é um geniosinho arrogante e irritante (“Smartass”, em inglês) na pele de Matt Damon, um Damon inspirado como nunca mais viria a ser, sob o manto, que incorpora com prazer, de um cara de 21 anos perdido na vida, nos desejos e no entorno do próprio umbigo. É quase um Mark Zuckerberg que curte falar besteira e dançar em balada, de postura descolada enquanto analítica na onisciência que presume ter. Mas Will é o corpo divisível de Gênio Indomável, uma estrutura que se move na direção de diálogos bem construídos e de situações insubstituíveis, na tentativa de criar uma realidade que Gênio ao menos consegue nos convencer sobre, mas jamais nos preencher com ela.

    Na odisseia de um escravo do próprio intelecto acima da média, feito Ozymandias em seu habitat natural na gélida Antártida, Gus transmite-nos ideias através do amor de quem inventa uma nova teoria física, e nos incentiva a prestar atenção no que ocorre nos corredores de Harvard com esta mesma emoção. Van Sant faz até parecer que foi fácil, e isso é tão admirável quanto a implicância do bater de asas de um canário e uma tempestade, a léguas de distância.

    E é por isso que a amizade de Will com o analista Sean Maguire é peça-chave na trama, espécie de A Rede Social sem a visão técnica, mas com metade do raciocínio lógico de um David Fincher  o resto é inteligência emocional. Robin Williams, sendo em pessoa tudo o que o filme poderia ser, numa alusão aqui à composição de Milton Nascimento, faz o coração que completa o amigo, o qual só calcula perdas e danos, sendo a figura do analista a mais interessante e rica de reflexões, num filme de ótimas intenções e que se apega a nenhuma delas para decolar em suas verdades. Gus Van Sant esqueceu de levar seu filme a sério, pois este habita o campo minado da batalha particular de um artista, onde Lolita habitou em Stanley Kubrick um dia.

    Contradição: se Gênio Indomável consegue ser laçado apenas pela maturidade de um cineasta ainda em ascensão, na época, mesmo pontuado pelo veterano Williams, por onde então entra ar nesse pastel? Vencedor do Oscar de roteiro original, o filme perde claramente seu rumo na segunda metade, quando corações e mentes são subestimados no poder de integração, e a história perde grande parcela de seu fascínio na perda de suas harmonias. Se filmes são equações, a força do Cinema, então, não é proporcional aos efeitos que reproduz.

  • Crítica | Ninfomaníaca – Volume 2

    Crítica | Ninfomaníaca – Volume 2

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    Sem qualquer circunlóquio, Lars Von Trier continua a história de onde parou, mostrando a insatisfeita Joe (ainda interpretada por Stacy Martin) tendo o coito com seu objeto de desejo, mas ainda sem atingir o êxtase. Quando sua narração corta a trama, ela é mostrada em um flashback, com 12 anos, tendo um orgasmo espontâneo que a eleva a um transe e enxerga perto de si duas criaturas totêmicas relacionadas à religião. Logo, a questão do profano e do divino relacionados ao sexo é abordada novamente. Curiosamente, os último fatos narrados no capítulo anterior têm muito do lúdico e da coincidência, a qual é caracterizada como destino pela religião.

    A questão conflitante para a protagonista do épico é a completa ausência de sensações sexuais. Ela parece proibida de sentir prazeres após tanto buscá-los. Sua liberdade caíra graças à luxúria. Seligman (Stellan Skarsgård), como dito por ele mesmo, é assexuado e virgem, e por este motivo pode ser o melhor ouvinte para a história incomum e bizarra de Joe (Charlotte Gainsbourg). Os dois são lados opostos da mesma moeda, contrapartes um do outro, e por isso a química entre os dois funciona.

    Voltando às reminiscências, a mulher assume que este tempo foi um dos mais tranquilos, muito graças ao prazer negado a ela e a desobrigação de gozar. A vinda de um herdeiro parece reacender a chama da libido, mas logo a necessidade de mais e mais relações sexuais se agravava, a ponto de o casal tomar uma postura pouco ortodoxa. O pilar familiar que os personagens erguem para si é demasiado grotesco e pautado no sofrimento de tentar viver uma vida normal, mas distante demais das atitudes basicamente comuns, diante do que a sociedade julga normativo. Joe permanecia longe do orgasmo, mesmo com tal multiplicidade de parceiros.

    A tentativa de fazer um ménage à trois prova-se difícil de ser executada, ganhando ares de Babel, onde nem os que falam a mesma língua conseguem se entender. Tal confusão é exacerbada diante da simplicidade da ninfomaníaca em classificar os homens pelos nomes que secularmente possuem, não se preocupando com o politicamente correto. A discussão a respeito da abolição de alguns termos é valiosa, mas secundária diante do mundo de experiências que Joe está prestes a explorar, pois, na tentativa de reabilitar seu prazer, ela se submete aos cuidados de K, um homem que usa um método humilhante, violento e de pouca sensibilidade no tratamento. O impacto das agressões é tamanho que é difícil até identificar o que é mais impressionante, se é o barulho acarretado pelos golpes ou a vermelhidão da pele atingida, tingida pela dor do chicote. Sua curiosidade e incontrolável vontade superam até seus predicados maternos e a fazem pensar somente em suas necessidades físicas, ignorando o seu papel como mãe, desejando ardentemente o que lhe é proibido, o falo negado a ela. Quando finalmente encontra prazer na dor, o preço é alto: não poder ver o seu filho.

    O abuso físico que fazia de seu sexo teve consequências à saúde. O sangramento clitoriano serve, entre outras coisas, como uma tentativa da natureza do corpo de paralisar o esforço que ela insiste em ter. A obrigação de se unir ao grupo de apoio a faz tentar reprimir seus impulsos. Ao quase alcançar seu objetivo de “se limpar”, ela prepara o discurso, mas enxerga a contraparte mais nova, que, como o Superego, passa por cima do consciente e assume a postura de viciada em sexo. Sem medo do julgamento alheio e obsceno, porque gosta de ser obscena e porque ama a sua condição e desejo sexual, mesmo que toda a população a veja como uma condenada.

    As digressões de Seligman nem sempre funcionam, mas ajudam o espectador menos afeito ao tema da livre sexualidade entender o pervertido lado da mulher analisada, mostrando paralelos de vivências mais comuns para os episódicos acontecimentos do curioso cotidiano da protagonista. O rompimento com o contrato social é bem exemplificado, tanto pela explicação analógica do sujeito quanto pelo ofício que ela exerce, evidenciando, através de atitudes marginais, os mais recônditos segredos e perversões sexuais de seus alvos. Para grande surpresa, o roteiro ainda apresenta uma boa argumentação sobre tipos de sexualidades encaradas como monstruosidades pela humanidade, de até onde tais práticas devem ser proibidas.

    A interdição ao sexo faz o tabu do corpo finalmente se tornar algo palpável dentro de sua vida, logo no momento em que encontra P (Mia Goth), sua possível sucessora no ramo de inquirições, extorsões e torturas. A rejeição que Joe sofre dói e avassala a alma, sendo humilhada até por aqueles que colaboraram com os seus “pecados abomináveis”. Até os hábitos mais corriqueiros a traem; o final de sua trajetória é repleto de atos falhos.

    Em última instância, Joe é, de certa forma, uma continuação de um pedaço do corpo de She (de Anticristo); personagem de mesma intérprete, ela é o clitóris cortado pela mulher, o desejo e volúpia sem precedentes e sem barreiras, tentando viver plenamente o que acredita ser o melhor. O descanso e ausência de perturbação jamais a deixam, mesmo quando tudo parece ter mudado em sua vida. A decisão é difícil, a libertação que é viver pelo que se quer, mesmo quando tudo e todos apontam o contrário e a condenam.

  • Crítica | Ninfomaníaca – Volume 1

    Crítica | Ninfomaníaca – Volume 1

    Nymphomaniac

    Lars Von Trier usa a carreira de realizador de filmes para demonstrar algumas facetas bastante reais do ser humano, ainda que as que ele escolha sejam, na maioria das vezes, as mais inconvenientes segundo o ponto de vista de  parte esmagadora da população mundial alinhada com o conservadorismo e o ideal da moral e dos bons costumes. Restringindo o argumento a sua filmografia recente, pode-se exemplificar essa máxima com a discussão sobre o fim da humanidade de um ponto de vista inconveniente e deveras cínico em Melancolia; a problemática da inocência e complacência dos cidadãos comuns e simplórios diante do sofrimento alheio e do senso de justiça que movem essas pessoas no excelente Dogville; e a questão do papel do homem e da mulher no conjunto sexual da natureza. A dualidade de Ninfomaníaca não passa muito longe disso, e aborda outras tantas formas de enxergar a sexualidade e a necessidade de dar vazão a ela.

    Dividido em capítulos, o roteiro não tem medo ou receio de acarretar o choque no espectador, esfregando conceitos freudianos no rosto de quem assiste ao filme. As sensações sexuais de prazer não afloram somente na puberdade, mas vêm desde a infância para a pequena Joe, que, mesmo não se achando uma pessoa religiosa, auto intitula-se uma pecadora graças aos seus atos e à obsessão pelos limites do seu próprio corpo. A narração da protagonista já adulta, vivida por Charlotte Gainsbourg, dá a história biográfica um ar de confessionário, em que a mulher conta as suas memórias como se procurasse uma remissão por seus atos maus ou uma justificativa ao fazê-los – aparentemente.

    As primeiras experiências movidas pelo ato sexual, com Jerôme (Shia LaBeouf), deixam-na envergonhada por terem sido tão velozes e efêmeras, e, como uma super-correção, sua busca envolve uma contestação que visa chegar a uma satisfação por meio de uma grande quantidade de parceiros de coito. O prêmio do concurso, o saco de chocolates, faz referência à infância perdida, mas é uma clara distração para a sua real procura, que ainda aflora na forma de uma primitiva sexualidade. Mesmo com a inexperiência, ela encontra uma especialidade, uma arma final para atingir seu alvo.

    Diante da figura do mentor, Seligman (Stellan Skarsgård), ela implora pelo veredito de culpa, mas o sujeito, que a encontrou ao léu na rua, não a vê assim, não condena a sua feminilidade nem o seu poder sobre o falo: se um pássaro tem asas, por que não voar?. Nos relatos de sua juventude, vivida por Stacy Martin, em diversos estágios há uma união entre as mulheres contra o sentimento do amor, que seria somente um misto de luxúria e inveja, enquanto o sexo era algo “criminalizado”. A declaração delas visava a extinção do sentimento, o apego a figuras sentimentais, como namorados ou homens fixos.

    A questão de Joe não é uma parafilia, uma doença a qual ela refuta, ao menos não no início. Sua postura caracteriza-se pela decisão de dar vazão à libido e sensualidade, inclusive achando um avatar para o seu objeto de esforço bélico. Jerôme, antes chamado de J, seu primeiro homem e agora patrão, era o alvo de ódio e desprezo da protagonista. Mas, aos poucos, tal associação muda até que se perde de vez, tornando a mulher ainda mais desejosa daquele a quem ela primeiro rejeitou. Suas fantasias a seu respeito a envolvem, e não permitem outro alvo até o fim do segundo capítulo, em que ela declara seu fascínio por diferentes formas e tamanhos de falos, provando um pouco de cada um.

    O asco de Joe pelo sentimentalismo que acompanhava alguns de seus parceiros não invalida a situação constrangedora e tragicômica de ter de enfrentar a passiva esposa – vivida por Uma Thurman em uma atuação arrebatadora – de um de seus amantes, o qual decide viver com Joe. Em uma situação vergonhosa e doentia, as motivações da mulher abandonada são apresentadas na forma de uma conduta tão agressiva e insana que até os motivos de sua visita não são claros. A demolição do estandarte de uma família ainda não a faz sentir-se culpada. O vício não se assinalava na necessidade de se saciar, mas na luxúria, não conseguindo esconder seu eterno estado de solidão.

    A queda de sua figura de espelho causa nela uma sensação atroz de desespero e necessidade por uma fuga daquela realidade, mas nem seus escapes a livram do exaspero e do sofrer. Com o enfrentamento das figuras amedrontadoras e com a descoberta de que aquela condição viria para ficar, temor e tesão se fundem, e tal amálgama a faz sentir-se envergonhada.

    Curiosa é a forma como a câmera registra os “preferidos” de Joe, cada um à sua maneira, sendo tão singular que quase não há a necessidade de diálogos para descrever cada uma das distintas posturas. O dócil F (Nicolas Bro) é filmado em planos abertos, enquanto o dominador G (Christian Gade Bjerrum) é mostrado de maneira erotizada, cujas zonas do belo sexo são cortadas e não enquadradas. Mas é Jerôme quem desperta nela a real e mais plena forma de transar, elevando a frase dita ao pé de seu ouvido em uma máxima real: que o prazer maior do sexo é quando este é executado com amor, momento em que ela não consegue sequer alcançar o gozo, mostrando que sua caça, do ponto alto e idealizado do romance, não atingiu o ápice com o cavaleiro andante moderno. Não como na primeira vez.

    O fim abrupto está longe de ser algo perfeito, mas consegue desenvolver no espectador a vontade de assistir ao segundo volume. A sensação de interrupção no momento do orgasmo – simbolizado pela quebra de expectativa da revelação do segredo – é notória e muito difícil de evitar, especialmente para quem acompanha o trabalho de Von Trier. A avaliação da película em si precisa ser feita como a exploração de um arco, em uma história enorme que não pode ser contida em um único filme.