Tag: filmes de guerra

  • Crítica | O Canhoneiro do Yang-Tsé

    Crítica | O Canhoneiro do Yang-Tsé

    Filmes como esse nos lembram porque os Estados Unidos investem tanto em Hollywood: propaganda política, ainda mais em 66. A intervenção da América na Ásia era maciça, para impedir que o comunismo se espalhasse cada vez mais, enfraquecendo o capitalismo do Tio Sam. Soldados invadiam o sul do Vietnã aos milhares, e a guerra no país dos bambus ainda iria demorar 10 anos para terminar. Como exportar a boa imagem de um imperialismo assim, se não pelo Cinema? Em uma determinada cena, chineses estão literalmente enjaulados, enquanto sorriem, como se essa fosse a condição natural deles: animais, em jaulas. Do outro lado da cerca, temos um Steve McQueen feliz com sua roupa limpa de marujo, conversando com uma loira, como se o mundo estivesse em perfeita harmonia. O Canhoneiro do Yang-Tsé é um dos mais puros e orgulhosos exageros patrióticos que a filmografia dos Estados Unidos já produziu (a Marvel disfarça muito melhor os ideais imperialistas do país, hoje em dia).

    O ano aqui é 1926, e o comunismo só cresce numa China muito dividida entre a soberania do PCC (Partido Comunista Chinês), e influências estrangeiras da época. Com missionários americanos presos e traidores do movimento nacionalista torturados pelo povo, em praça pública, a tensão no país está instalada (e estaria até 1949, com a proclamação da República Popular da China). Um ano antes da grande rebelião de Shanghai, visando unificar o país em torno de um sistema e uma moeda, apenas, o engenheiro Jake Holman (Steve McQueen) estaciona o canhoneiro de São Pablo, lotado de militares americanos, no lago de Yang-Tsé, prestes a encarar a grande missão coletiva da sua vida: libertar os missionários conterrâneos. A volta para os Estados Unidos é incerta, mas nem Holman nem ninguém pensa nisso: a tripulação não quer sujar as mãos de sangue, ainda mais ao perceberem o valor da população chinesa, tão humanos como eles, com a amizade e até o amor surgindo entre marujos, e nativos. Mas a pressão militar é clara, e o senso humanitário não pode desvirtuar nenhum senso de dever.

    Com um cenário político desses, e um conflito de interesses já estabelecido para Holman e seus colegas soldados, o cineasta Robert Wise, ao lado do roteirista Robert Anderson, adapta o livro de Richard McKenna de uma forma insegura, mas ambiciosa. Ambiciosa pela duração inexplicável (mais de 3 horas, esticando as cenas de propósito), e insegura pela visão conciliatória e hipócrita que o cineasta tenta transmitir nas relações dos personagens, contraditória na segunda parte do filme quando os americanos são expulsos da China, mas a missão não pode acabar, e uma violência de cunho racista explode sem pudores em bares, templos e no próprio barco cheio de armas. Parece que Wise tentou esconder ao máximo que seu filme era um panfleto político estadunidense, mas no final, não houve manobra para continuar a enganar o público e ele acabou optando pela incoerência, na trama. O Canhoneiro de Yang-Tsé foi indicado a 8 Oscars, perdeu todos, mas deveria ter ganho Melhor Fotografia pelo trabalho de Joseph MacDonald. Essa sim, o melhor aspecto do filme.

  • Crítica | O Inferno é para os Heróis

    Crítica | O Inferno é para os Heróis

    Se em 1962, os Estados Unidos ainda estavam na ressaca da Segunda Guerra, Hollywood não deixaria isso passar em branco. Na verdade, O Inferno é para os Heróis é uma propaganda das mais divertidas sobre os aparentes motivos que fizeram os EUA ganhar a guerra e virar o novo Império do mundo: a inteligência dos americanos – no caso, dos seus militares em combate. Aqui, o ano ainda é 1944, e entre os escombros da França na maior tragédia da humanidade, os nazistas ainda tocam o terror no seio do conflito, a Europa, e detêm o poder bélico com ampla vantagem a qualquer nação. O que poderia fazer um esquadrão de sobreviventes prestes a ir pra casa (“Arrumem suas coisas, vamos!”), quando de repente são frustrados a encarar os Krauts (apelido pejorativo dos americanos, aos alemães) nas trincheiras?

    Ao encarar a missão, ninguém esconde o cansaço de pegar em metralhadoras e correr das armadilhas nos campos de batalha. Até os mais veteranos, como no caso do sargento Pike (Fess Parker), ou do ex-sargento e misterioso Reese (Steve McQueen, um galã mesmo sujo e com os dentes cerrados), sabem que voltar em bando ao corre-corre das bombas pode ser o chamado definitivo da morte, tentando pegá-los uma última vez na calada da noite, para que nunca mais pisem em solo americano. Mas o dever chama, e entre eles e uma guarita cheia de resistentes nazistas no meio do nada, há um campo minado implacável. Com menos armas que os oponentes, o que eles poderiam fazer senão fingir ser aliados dos alemães, tentando uma emboscada? Por uma hora e meia, temos um filme que recusa clichês, representando a sensação de um homem que implora pela vida, enquanto aos trancos e barrancos, cumpre sua missão.

    O Inferno é para os Heróis esforça-se para ser uma espécie de “A Arte da Guerra” para o exército americano. Se por um lado é uma ode a estratégia, por outro não esconde como a guerra prejudica o psicológico dos soldados que servem ao país. Don Siegel já era um grande cineasta em 1962, prestes a entrar com sua ótima parceria com Clint Eastwood em 1968, mas antes reuniu um grande elenco no seu “filme de guerra” com mais cérebro e menos ação. Equilibra muito bem o drama e o suspense, com os momentos de aventura que as plateias amam. Através de uma fotografia exuberante e uma tensão forte, Siegel realmente mantém o campo de batalha mergulhado em um umbral de imprevisibilidades horríveis, bem escuro e traiçoeiro, com seus sobreviventes exaustos do conflito, revoltados por ainda estarem nele. A responsabilidade fala mais alto, cada minuto conta, e o nascer do sol é uma utopia. A guerra, como ela é.

  • Crítica | Fugindo do Inferno

    Crítica | Fugindo do Inferno

    Após o sucesso de Fuga de Alcatraz, soberba aventura com Clint Eastwood no auge de sua forma, todas as obras de fugas mirabolantes (ou não) ficaram eclipsadas pelo brilho desse clássico de Don Siegel. Sendo assim, talvez o filme mais esquecido deste subgênero que continua a encantar plateias, ao redor do mundo, seja Fugindo do Inferno, de John Sturges, que mesmo situado no auge da Segunda Guerra Mundial, passa longe de ser tão memorável como o filme de Siegel. Como se não bastasse, o grande elenco não se destaca como deveria, e sua estética é absolutamente normal aos padrões cinematográficos da década de 60 em Hollywood – bem menos ousados em sua linguagem que hoje. Mas o grande às do filme, ainda não foi esclarecido…

    Baseado numa história real (e homenageada no final do filme), a Gestapo está cansada de rebeliões, da rebeldia de seus capturados mais perigosos. Para evitar fuzilamentos, os transfere sob muito stress para um campo de segurança máxima, mas sem suspeitar que juntando o velho Danny (Charles Bronson), o esperto Hilts (Steve McQueen) e muitos outros, na mesma prisão, ninguém iria aceitar ser mantido na gaiola por muito tempo. Assim, um projeto quase suicida de escapatória começa a germinar, com a ajuda de infiltrados americanos entre os guardas. Mas mesmo com instrumentos para perfurar o chão, e chegarem até o outro lado da cerca, será que o orgulho individual deles não vai atrapalhar o plano? Jamais sufocado pelo peso do elenco, e visando um bom entretenimento acima de tudo, Fugindo do Inferno aposta 2/3 da história no desenrolar dessa fuga, tendo neles os melhores momentos do filme de Sturges.

    Uma ótima pedida para entediantes noites de inverno, a direção de Sturges (diretor de muitos faroestes) e o seu talento de extrair, precisamente, o que de melhor e mais dramático existe em cada cena, é um deleite para uma história de prisioneiros de guerra, e que só querem se ver livres de um regime autoritário, fora dos Estados Unidos. Seja nos campos de concentração alemães, seja em emocionantes perseguições de carro nas pradarias da Europa, John Sturges nos faz sentir uma angústia onipresente, como se o espectador estivesse junto de um bando de soldados capturados e que, às vezes, são loucos o bastante para planejar uma escapada subterrânea, com 0% de certeza se vai funcionar. Com um protagonismo coletivo, uma encenação quase teatral, e um equilíbrio bem orquestrado entre o tragicômico, e o suspense, esse Prison Break com nazistas não é tudo que poderia ser, mas não desaponta até os mais exigentes.

  • Crítica | Platoon

    Crítica | Platoon

    Uma década desde o fim azedo da Guerra do Vietnã, e a derrota difícil de engolir que se sucedeu aos Estados Unidos, a máquina de publicidade sobre o papel de “salvador da Terra” que o país queria passar, a todo custo, não podia parar. Em 79, Apocalypse Now estava ocupado demais simbolizando de forma única e megalomaníaca o caos e o amargo dessa guerra, e não perdeu muito tempo endeusando a bandeira azul e vermelha. Era preciso um produto mais controlado, moldado sob medida para ganhar o Oscar, e reforçar nacional e internacionalmente que eles sempre estão dispostos a levar a paz a todos os hemisférios, mesmo que tudo voe pelos ares no meio do caminho.

    Platoon foi o veículo perfeito para transmitir nos anos 80 essa mensagem do pós-guerra, e hoje, mesmo com essa alcunha de clássico que o filme ganhou, é impossível não perceber sua importância histórica e patriótica para com os explícitos interesses políticos que habitam o violento filme de Oliver Stone, repleto de clichês e exageros que ostenta ávido por tudo o que garante uma adoração soberba aos EUA, da plateia. Platoon é vulgarmente panfletário até não poder mais, e tem nos momentos de drama, e na boa direção de atores que Stone (quase) sempre consegue nos seus filmes uma maquiagem cênica e uma romantização cafona da guerra para esconder os seus verdadeiros fins de propaganda.

    Em 1967, uma divisão de infantaria expedicionária chega ao Vietnã, bem na fronteira com o Camboja. Armados até os dentes, os infantes americanos logo percebem que nas profundas florestas chuvosas do país, formigas pretas venenosas são o menor dos perigos. Em meio a emboscadas e perdas que não demoram a acontecer, o jovem recruta Chris Taylor passa a sofrer uma crise moral ao trilhar, na prática, toda a desumanidade em que consiste um conflito desses. Ao queimarem uma vila por buscarem retaliação pela morte de um deles, a barbárie é liderada pelo furioso sargento Bob Barnes, e quase explode em uma matança absoluta se não fosse pelo sargento Elias, ciente de que todos ali são seres humanos, incluindo idosos, crianças e animais.

    Nesse embate de temperamentos e valores éticos já beirando a loucura, o roteiro super esquemático de Platoon deixa claro que, por pior que seja o horror de um confronto militar entre os seus aliados ou diante de seus adversários, a nobreza do povo estadunidense não os deixa sucumbir. Tal uma águia no fundo do mar, a ave consegue se elevar independente de suas injúrias. Não importa quanto sangue tenham nas mãos: os soldados americanos merecem o paraíso, e na visão de Stone esse merecimento está na tentativa suicida de guerrear em solo inimigo, e só isso já basta. Claro que certos personagens são elementos óbvios para gerar empatia universal e ressaltar o lado nobre da nação McDonalds, mas isso fica difícil quando a imagem mais marcante de Platoon não é a de Willem Dafoe abrindo os braços antes de morrer, e sim de Tom Berenguer enterrando um revólver na cabeça de uma criança vietnamita.

    A democracia será garantia, nem que seja na marra. É o american way of life de diplomacia selvagem. Platoon contém atuações brilhantes, não apenas de Dafoe e Berenguer, num filme que Charlie Sheen entrega o melhor trabalho de sua carreira – os que estão acostumados a ver Sheen “preso” na série Dois Homens e Meio irão se impressionar com o grau de emoção e desespero que o soldado transmite, não apenas nas cenas explosivas de batalha na mata fechada. Stone tem o talento de extrair o melhor de seus atores quando realmente quer, e Platoon é o melhor exemplo disso junto de Nascido em Quatro de Julho. Um filme bruto afinal, mas que usa das suas imagens e sons chocantes como máscara sensorial para promover o puxa-saquismo estadunidense. Sinceramente, sobra pouca coisa além disso.

  • Crítica | Apocalypse Now

    Crítica | Apocalypse Now

    O filme de guerra definitivo, ou quase isso. Quase porque existe Vá e Veja, mas Francis Ford Coppola chegou muito perto em 1979 de roubar o trono desse filme soviético – essa sim, a mais delirante história de conflitos militares já feita no cinema. Veja: a perspectiva histórica aqui não poderia ser evitada, já que estamos pisando num panteão de lendas e falando sobre monumentos titânicos de uma arte engrandecida por tais façanhas. Apocalypse Now, por exemplo, é fenômeno único, um tour de force que jamais será repetido ou reproduzido pelos efeitos especiais de um James Cameron. Poucas vezes Hollywood foi tão longe com as suas imagens, tão verdadeira ao enquadrar o caos e o horror que leva um país a atacar o outro, e dentro dele, se desesperar. O diretor de O Poderoso Chefão, na década do seu mais famoso diamante, ainda estava com uma fome incontrolável de cinema, fome de contar a história mais ousada que ninguém mais seria louco de contar. E depois disso, não teve como não saciá-la.

    Baseado nos livros Despachos no Front e No Coração das Trevas, no auge da fracassada guerra do Vietnã, um coronel americano louco por poder se deserta do exército, e passa a comandar uma tropa de nativos para resistir a outros brancos invasores. O coronel Kurt (Marlon Brando) não é maluco por enxergar o imperialismo do seu povo e não aceitar sua manipulação, mas por reproduzi-lo nos vietnamitas por conta própria. Assim, uma missão saindo de Saigon visa localizar e exterminar Kurt nas profundezas das selvas de um país-manicômio, lar de um inferno na Terra devido à forte invasão “democrática” dos EUA. Helicópteros avançam ao som de Wagner numa cortina de fogo enquanto o Vietnã explode mas revida, não só com armas improvisadas nas mãos de civis, e sim com a loucura que volta como um bumerangue e atinge como um míssil a mentalidade cada vez mais fragilizada do capitão Willard (Martin Sheen) e seus recrutas. Se quem não fala inglês merecia morrer, a intolerância e a petulância dos americanos nunca sofreu por isso um carma e um trauma tão fortes igual aqui. Ninguém vai voltar pra casa, e se voltarem, nenhuma psicóloga vai lhes ajudar com os gritos daquelas crianças.

    Bem antes do coronel/ ditador Kurt finalmente expor sua face, num magnífico plano negro e alaranjado dentro de um purgatório conquistado por sua soberba de imperador, Coppola critica de forma visceral a política de invasão dos Estados Unidos através de suas consequências com os envolvidos, homens antes comuns e que perdem a moral e a sanidade servindo a pátria. Com toda a certeza pode-se averiguar que o Oscar de 1980 foi negado a Apocalypse Now por este ser dois dedos na ferida americana, potente demais na força de sua mensagem nada subliminar. Para atingir a experiência de uma catarse cinematográfica naturalista, Francis Ford Coppola quase se suicidou com as dificuldades no Vietnã, liderando uma tropa de atores e técnicos sob total pressão do governo local, com grana do próprio bolso financiando as filmagens, e um Marlon Brando impossível de se trabalhar junto (muito acima do peso, alcoólatra e relutante até o último segundo de viver na mata fechada para interpretar Kurt), além dos prejuízos financeiros pessoais e ao estúdio – o martírio nunca chegava ao fim, e os jornais já acusavam a aventura de O fracasso. O universo queria Coppola no sanatório, mas ele já estava dirigindo o seu.

    Hoje, quarenta anos depois e com várias versões do diretor, é um exagero aceitável afirmar que Apocalypse Now e Agonia e Glória, de Samuel Fuller, foram os últimos épicos de guerra vindos de Hollywood, cinemão em todos os aspectos, sujos e que nunca apelam a extravagâncias, com suas vaidades técnicas poderosamente bem aplicadas numa duração a qual nunca desejamos o fim. Steven Spielberg tentou em 1999 um feito parecido com o seu grande O Resgate do Soldado Ryan, e anos antes Oliver Stone tirou seu Platoon da manga, filme-propaganda americana e repleto de apologias irritantes que Spielberg romantizou até o talo com seu sentimentalismo divertido mas hipócrita (a bandeira americana dançando no vento ao som de fim de novela). A ironia mora, talvez, no fato de Trovão Tropical, a paródia meio esquecida de tudo isso feita por Ben Stiller, em 2008, ser bem mais interessante que toda essa panfletagem do Tio Sam. Coppola, se a fez, fez para subvertê-la sem medo. O mundo é um teatro regido por doidos que dormem mal, e esse foi aonde ninguém foi, ganhou Cannes e dinheiro nenhum, e quase se matou no carnaval pagão de criar a sua própria Monalisa de celuloide.

  • Crítica | Destacamento Blood

    Crítica | Destacamento Blood

    Uma nova Hollywood está nascendo. Na ânsia de fazer o seu próprio Apocalypse Now com atores negros, algo que Hollywood passou a aceitar muito recentemente depois dos fenômenos Pantera Negra e Corra!, Spike Lee conseguiu uma oportuna parceria com a Netflix em tempos de Covid-19, e sem precisar distribuir seus filmes nos cinemas para esperar lucro nenhum, e realizou o seu Destacamento Blood sem as expectativas de retorno financeiro que todo grande filme carrega. Algo semelhante fez Martin Scorsese com seu O Irlandês, ou seja, se apoiar numa produtora que precisa de prestígio e grandes nomes já consagrados trabalhando pra ela. O próximo a lançar algo diretamente na maior plataforma de conteúdo do mundo será David Fincher (Clube da Luta) e o seu vindouro Mank, acerca dos bastidores caóticos de Cidadão Kane. Ainda em 2020.

    Livre e com dinheiro (da Netflix) para trabalhar, vivendo o sonho de qualquer artista, o filme de guerra de Spike Lee (Faça a Coisa Certa) é uma assumida alegoria política sobre a natureza da culpa, e como ela pode ser um tumor que nos destrói aos longo dos anos sem dó, até que façamos algo com ela. Reunindo um elenco fantástico cuja raça difere-se do estereótipo branco que nos acostumamos a admirar em filmes e séries bélicos, já que todo soldado negro morre antes do final (o pior foi o pobre Bubba que nunca conseguiu vender seus camarões, em Forrest Gump, morrendo nos braços de Tom Hanks), agora a negritude protagoniza a sua própria missão de resgate, mas diferente de todas as outras: armados até os dentes e calejados pelos traumas do passado, quatro veteranos de guerra avançam nas matas do Vietnã para encontrarem os restos mortais de um velho amigo de combate, a fim de realizar um funeral decente ao corpo perdido e dar paz a esse espírito, morto em 1974 no maior fracasso que os Estados Unidos sofreram em conflito armado desde a Segunda Guerra Mundial.

    Não, os americanos não gostam de falar nisso – preferem assistir o Dr. Manhattan surgindo no horizonte e vencendo a batalha. Verdade seja dita: muito sangue americano (58 mil brancos e negros) foi derramado naquelas matas, e fazer as pazes com nossos fantasmas nunca é fácil. Paul, Melvin, Otis e Eddie sabiam que a parada ia ser braba, mas quando o presente é um eterno passado, algo precisa ser feito – e o filme já começa com eles no antigo território inimigo, prontos para começarem a caça que, provavelmente, será só de ida devido à idade deles, e os perigos que podem encarar. Destacamento Blood é um filme que evita a insanidade de uma guerra, e a sensação aqui é 100% pós-traumática, como se o pior já tivesse passado e estamos agora andando num cemitério. Para quebrar o gelo, o roteiro de Lee encontra na ação e no absurdo de alguns momentos a adrenalina (a cena do campo minado é ótima) e a sátira (não confie em homens brancos ricos) mais do que necessárias para que o filme não seja uma experiência maçante.

    A longa duração de Destacamento Blood nunca de fato se justifica, senão, para que os atores tenham tempo para brilhar nos seus papéis – principalmente Delroy Lindo, um monstro em tela. Seu Paul é um homem amargurado e cansado de tudo, mais que seus outros amigos, e que na busca pelo cadáver de Norman (o último papel de Chadwick Boseman, nosso eterno Pantera Negra) começa a questionar o que vale a pena na sua vida: nada. Um homem sem nada a perder é capaz de tudo, e soltos nas florestas vietnamitas por dias a fio, os quatro americanos e o filho de Paul, o jovem David, começam a se esforçar para que o lado animal de cada um não destrua essa “operação cata-osso”, ou ninguém vai se desculpar por terem abandonado o amigo Norman, quarenta anos atrás. Se o Amor e o Ódio andam juntos quando somos jogados no selvagem, qual o poder de Martin Luther King Jr. e Malcolm X num cenário de vale tudo? Spike Lee não quer responder nada: ele quer brincar com as imagens, e erra feio nisso.

    O segundo principal problema de Destacamento Blood é a edição de “filme de mensagem” versus “entretenimento escapista”: uma montagem tresloucada que remete muito aos vícios de linguagem que ele soube utilizar muito melhor em Infiltrado na Klan, ou seja, frenética e fragmentada em diferente arcos de personagem, e utilizando-se de imagens documentais para encorpar esse forte teor de registro histórico sobre as guerras, e o racismo velado presente nelas. O ritmo do filme da Netflix é absolutamente comprometido por isso, por essa ambição de Lee em abraçar todos os temas possíveis que podem ser debatidos, e a sensação é uma obra muito dispersa e até mesmo incoerente no seu Todo, cheio de “barriga” como nos filmes mais fracos de Scorsese. Rejeitar o foco especial em um tema solo, para enlaçar de uma vez uma dezena deles, é uma armadilha velha que Spike Lee jamais deveria cair – e caiu. Mas esse não é o maior pecado de Destacamento Blood: nem de longe.

    Para simbolizar dentro da narrativa o caos militar que foi a guerra do Vietnã, e a falta de vencedor ou perdedor quando tudo cessou, em 1975, Lee combate racismo com mais racismo, descontrole com mais descontrole (o que resulta em um filme descontrolado), reproduzindo toda a intolerância que Paul, Melvin e seus amigos receberam a vida toda, para com os nativos locais daquela mata, para brancos também, e o resultado é mais violência inadvertida ainda, sem propósito depois que o principal já foi alcançado. Em uma alegoria ingloriosa dessas, Lee quis explodir o caos que nunca abandonou esses veteranos, um caos que resulta, na vida real, na eleição de um Donald Trump que promove medo e preconceito em troca de uma soberania agressiva, porque o ódio vende, talvez até mais que o sexo. Destacamento Blood mira no filme denúncia e acerta em cheio no filme pipoca que se leva a sério demais, e acaba sendo um tropeço, ou seja, sem ter muito a dizer. Bem mais óbvio e problemático do que parece.

  • Crítica | Greyhound: Na Mira do Inimigo

    Crítica | Greyhound: Na Mira do Inimigo

    Podemos dizer que o astro Tom Hanks tem uma relação bastante próxima com a Segunda Guerra Mundial, afinal, o ator americano estrelou uma das maiores produções do gênero, O Resgate do Soldado Ryan, um dos filmes mais sensacionais, impactantes e realistas sobre o tema. Na época, o filme de Steven Spielberg faturou cinco estatuetas do Oscar, inclusive, com Spielberg vencendo como melhor diretor.

    Todos nós sabemos que Hanks é um ótimo ator e, ao longo de sua carreira, é possível mencionar pelo menos 30 filmes em que o ator estava presente e que foi marcante. Podemos dizer que sua participação em Greyhound: Na Mira do Inimigo certamente entrará nessa lista.

    Inicialmente, a produção teria seu lançamento no cinema no mês de junho desse ano, mas em virtude da pandemia causada pelo vírus COVID-19 a estreia foi adiada e, consequentemente, os direitos de distribuição foram repassados ao serviço de streaming da Apple, a Apple TV e o filme chegou na plataforma em 10 de julho.

    Hanks vive o religioso capitão Ernst Krause, que é designado para liderar o enorme destroier USS Keeling, mais conhecido como Greyhound, durante sua primeira escolta pelo Oceano Atlântico, juntamente com outros dois navios militares menores, protegendo diversas embarcações que levam diversos tipos de suprimentos para a Inglaterra, num dos momentos mais tensos da Segunda Guerra conhecido como Batalha do Atlântico, uma vez que os submarinos nazistas conhecidos como U-boat foram responsáveis por afundar milhares de embarcações por todo o oceano, causando a morte de milhares de pessoas. Durante a travessia, o comboio aliado fica sem nenhum tipo de apoio aéreo e precisa lidar sozinho com os mortais U-boats que surgem como moscas em cima de um animal morto.

    O diretor Aaron Scheider que possui pouquíssimos filmes em seu currículo na cadeira de direção e diversas outras produções como diretor de fotografia, conduz Hanks com maestria. No transcorrer da fita, podemos perceber as sutilezas na mudança da personalidade do Capitão Krause, à medida que as coisas vão acontecendo e a tensão toma conta da tela logo nos primeiros 15 minutos, só deixando aquele que assiste respirar em seus momentos finais. Por opção e por ter uma missão a cumprir, o capitão deixa de se alimentar, privando-se inclusive do sono, sendo que o terror promovido pelos nazistas, a falta de alimentação e a falta de descanso são fatores fundamentais para a mudança do personagem durante o filme. É possível perceber de maneira sutil a sua degradação. Méritos também de Hanks que, além de ter sido o protagonista, escreveu o roteiro, baseado no livro The Good Shepherd, escrito em 1955 por CS Forester.

    Outro destaque fica para o design de produção. Apesar do ambiente claustrofóbico (já que 95% do filme acontece dentro da embarcação), esse departamento dá show com a quantidade de detalhes de itens ou situações que são perceptíveis dentro do Greyhound. Aliás, o espectador sai com aquela sensação de que teve uma aula sobre como os navios eram operados durante a guerra e como seus tripulantes precisavam se portar, tanto em situações de tranquilidade, quanto em situações de risco ou em batalha. Inclusive é completamente entendível o porquê de certas pessoas terem sido condecoradas com atos de heroísmo. Além disso, que época complicada para ser soldado.

    Com isso, pelo fato de Greyhound: Na Mira do Inimigo estar sendo um sucesso, podemos dizer que a Apple TV deu uma cartada certeira em adquirir os direitos de distribuição, fato esse que poderá aumentar a coragem dos distribuidores e investidores de produções. Enquanto isso, quem ganha é o espectador que, a cada dia que passa, pode ver produções incríveis por um baixo custo. De qualquer forma, seria legal ver esse filme nos cinemas quando a pandemia acabar, mesmo as chances disso acontecer serem remotas.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Vá e Veja

    Crítica | Vá e Veja

    Há filme perturbadores, e há Vá e Veja. Provavelmente, sempre será assim. O convite do título não é à toa: o chamado não tem misericórdia, rumo ao nível mais baixo da alma humana – sem exageros nenhum, sobre isso. Cabe ao espectador ir até o inferno, e assisti-lo sem barreira nem blindagem alguma, mas de forma crua e objetiva aos horrores de uma guerra mundial, do ponto de vista de dois adolescentes que também assistem, despreparados assim como nós, e destroçados assim como nós, sua realidade na antiga União Soviética ser total, literal e irreversivelmente apodrecida. Muito já foi falado, negado e discutido sobre o terror que existe em Holocausto Canibal, Um Filme Sérvio e Necrofilia, alguns clássicos do gênero que chocam até o mais resistente dos homens. Mas nem um boleto bancário atrasado há um ano chega aos pés do horror psicodélico insuportavelmente real do clássico filme de Elem Klimov. Em uma palavra? Cruel. Noutra? Desumano. Choca por ser verossímil, impiedoso, e ao invés de tocar na ferida, a faz borbulhar enquanto produz um mal-estar inigualável.

    Eis um dos melhores filmes do mundo que precisa não apenas ser assistido, mas testemunhado por quem aguentar a sessão. Afinal de contas, nem todos aguentam um soco no estômago a cada um dos 130 minutos de exibição, nos quais a guerra se mostra exatamente como ela é, e potencializada por um encenação naturalista e acachapante, e sem igual na história do Cinema. Vá e Veja é tudo aquilo que os dez melhores filmes de guerra de Hollywood (faça sua lista) quiseram ser, mas os estúdios não permitiram. Klimov não quis chocar ninguém, mas sim expor, com todo o requinte cinematográfico que pode existir enquanto andamos por um pesadelo, a vida como ela é quando toda a animosidade do Homem recai sobre ela, e nela se infiltra, fazendo dela o inferno na Terra. A Terra, aqui, não vai além dos limites da Bielorrússia, quando uma pequena vila da região é invadida por soldados alemães, e o jovem garoto Florya é forçado a integrar um grupo de resistência, como era de se esperar. Está plantada a semente da loucura para termos a certeza de o umbral está vazio, e que os cavaleiros de Satã estão soltos por ali, loucos pela guerra e seus efeitos na raça humana.

    Tão bela, e tão destrutível quando quer ser. Florya então sobrevive, numa série de eventos que começam a remodelar sua personalidade (e que no final do filme, o deixarão mais envelhecido que um ancião centenário), e com a ajuda da forte e bela Glasha, ele conquista a oportunidade mais que custosa (a interminável cena da lama nunca pode ser esquecida) de regressar a vila que abandonou há pouco tempo, apenas para encontrar o massacre promovido por lá, e finalmente, quase na metade de Vá e Veja, começar a pagar seus pecados no seio de um conflito bélico diabólico, como se ele tivesse cem carmas de cem vidas diferentes para acertar as contas. Florya não encontrou fantasmas pelo caminho, mas algo muito pior: o fim da humanidade. Curioso como a zona em que tudo isso acontece tem um céu cinza sem fim, cobrindo a penitência de almas para sempre marcadas pela morte, o sacrifício, e a falta de esperanças por dias melhores. Nem mesmo para povos que nunca participaram ativamente de uma guerra arrasadora, como é o caso do Brasil, é impossível não sentir a dor e o lamento onipresentes aqui também apresentados na ausência do sol, e na predominância da noite, da neblina, e da absoluta falta (e silêncio) de Deus.

    Quanta emoção, quanta vibração cabe num filme? Em cada close arrebatador no menino Florya, temos em seu rosto, olhos, boca e rugas a certeza de que terror maior que uma guerra para a psicologia humana, não há. O poder de Vá e Veja não pode ser mensurado em nenhuma cena do filme, nem mesmo no seu todo, uma tarefa ainda mais impossível de ser feita na sua meia-hora final, quando a perturbação aqui é tão grande que chega a ser forte demais para a maioria dos espectadores. Temos como norteadora da narrativa a transformação de um garoto que absorve, em seus pobres e escuros olhos assustados, a insanidade de sua própria raça para consigo mesmo; metamorfose essa que nenhum outro filme jamais chegou perto de conceber, ao público, com tamanha potência, e ousadia para também nos transformar, quase que tanto quanto seus personagens danosos. Pessoas um dia livres, e sãs, mas que um dia foram trancadas todas juntas numa casa para queimarem junto dos seus parentes e vizinhos, e aos “sortudos” a quem a morte ainda não chegou, resta assistir a tudo, enterrados na podridão mundana, e com o mais soberbo dos terrores impedindo-os até de piscar devido a força das visões. A experiência aqui é por sua conta, e risco, e acredite: se nada aqui te impressionar, a vida já perdeu o sentido pra você há muito tempo.

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  • Crítica | Moloch

    Crítica | Moloch

    Moloch é um mergulho na intimidade da cúpula nazista, um filme que se passa em 1942 e mostra um pouco do que seriam os dias comuns dos destes homens em dias onde o esforço de guerra não era o principal mote. No início há uma cena estranha, de uma bela mulher andando nua pelos corredores de um castelo antigo. A loira pratica atos em uma tranquilidade que não combina nada com a ansiedade dos conflitos que ocorrem no restante da Europa.

    Entre fumaça e a névoa está o cenário do filme de Aleksandr Sokurov. Os Alpes da Bavária eram o refugio do ditador Adolf Hitler, meticulosamente escolhido como um esconderijo exatamente para não causar suspeitas e para ficar distante dos tiros e bombas que dilaceram corpos e almas de jovens soldados e de variados civis. Não fosse por um ou outro artefato utilizado pela atriz Elena Rufanova, com símbolos da suástica, mal se daria para notar suas inclinações políticas. Rufanova vive a amante do Fuhrer, Eva Braun, que aguarda ansiosamente a chegada do seu amado.

    Não demora a comitiva do Terceiro Reich chegar, onde o personagem de Hitler, interpretado por Leonid Mosgovoy é um sujeito impertinente e inconveniente ao extremo, sendo um sujeito que incomoda até os seus. As interações dos personagens que compõem a cúpula de poder alemã não fazem muito além de se divertir e brincar, e o fato de serem comuns e tangíveis adiciona camadas a esses personagens que a historia recente normalmente retrata apenas como vilões malvados, maniqueístas e monstruosos e perder de vista que pessoas assim eram humanos comuns mas que corromperam seus corações e mentes é péssimo.

    Ainda sobre Hitler, sua composição é de um homem frágil e inseguro, isso ajuda a explicar sua mania de grandeza e obsessão em perseguir quem pensa ou é diferente do que ele egoisticamente considera ideal. O autoritarismo que pratica e suas bravatas são explicadas facilmente pelas imperfeições que ele mesmo assume que tem e por sua baixa auto estima. Isso conversa bastante com a nossa realidade atual, embora por parte dos mais lembrados projetos de autoritários de extrema direita não haja exatamente um sentimento de auto comiseração tão forte, mas sim uma mediocridade facilmente lida por terceiros, por quem cerca os governantes atuais e por quem é governado por eles. Neste ponto, o Adolf que Sokurov registra é mais imponente, pois ele só permite se mostrar fraco no quarto, na intimidade com sua mulher, e para um ou outro agente de confiança, ele não se super expõe, ao contrário dos chefes de estado da atualidade que através das redes sociais, derramam suas fraquezas, fragilidades de discurso e incongruências de pensamento.

    A rotina dos que interagem no castelo é bem desinteressante, entre jantares, provas de sopas de aparência asquerosa e apreciação de filmes da maquina nazista, mas para Eva e Adolf os momentos são bem diferentes, entre transas e brigas ambos demonstram o quanto são desequilibrados emocionalmente e o quanto cedem a paranoia e insanidade. Eles vão mais as vias de fato do que se entregam ao prazer e parecem estar sempre a beira de um ataque de nervos. Moloch carrega o nome de um figura mitológica que os amorreus veneravam perto de 1900 a.C, era chamada na versão brasileira da Bíblia de Moloque e aos seus pés eram praticados atos sexuais e sacrifício de crianças. Diante da carreira retratada no longa de Sokurov, o nome faz sentido, e o estudo a respeito da intimidade das pessoas históricas é complexo, profundo e cômico em muitos pontos, um deboche às figuras odiáveis da história.

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  • Review | The Pacific

    Review | The Pacific

    “E no momento em que o navio dissipava-se no horizonte, a cabeça desaparecia debaixo da água. Tudo acabou. Só restava o mar.”
    – Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo.

    “Eles vão arregalar aqueles olhos quando nossos aviões pousarem na pista deles.”
    – The Pacific.

    Poucas vezes a xenofobia e o etnocentrismo foram mostrados em campo de batalha de forma tão explícita, sendo oriundas e alimentando um conflito histórico envolvendo Estados Unidos e Japão na primeira metade do séc XX. Esqueça o contraponto saudável e esclarecedor que Clint Eastwood propôs com Cartas de Iwo Jima, e A Conquista da Honra: a própria forma como tal conflito é defendido em The Pacific é imparcialmente realista, e americana, por excelência, quase não encontrando no drama inerente à ação, até porque essa não foi a intenção aqui, uma redenção ética para os atos desse país invadindo o outro (como ainda faz) para manter sua supremacia política. Esta ainda em construção na época, logo após o ataque japonês a Pearl Harbor e que feriu, para sempre, o frágil ego do Tio Sam, com o país entrando de vez na Segunda Guerra Mundial. Uma retaliação (e dominação global) imposta pelo ar, por terra, e neste caso, pelo mar que presenciou a militarização das ‘inocentes’ caravelas de Cabral, e cia.

    Só que, enquanto o velho mestre Eastwood promoveu o debate por meio de dois filmes com posições políticas e nacionalistas naturalmente opostas, na produção televisiva de Tom Hanks, amplamente inspirado pelo amigo Steven Spielberg e seus épicos cinematográficos O Resgate do Soldado Ryan e Irmãos de Guerra (mesmo este último sendo produzido para a TV, seu formato e qualidade poderiam ser exibidas em quaisquer telas de Cinema), os dois lados da mesma guerra é objetivo e simplificado aqui, delimitado por quem está atrás de um fuzil e quem está na frente, numa narrativa unilateral dividida em dez episódios similares em ufanismo puro, cujo verdadeiro drama consiste em sentir pena pelos invasores mortos, boiando na maré do território inimigo ou feridos num ataque a um bunker.

    Filmando de maneira clássica e com trilha-sonora solene (Hans Zimmer imitando John Williams rende bons momentos, e outros enfadonhos ao cubo), é como assistir Além da Linha Vermelha com a ação de um Soldado Ryan, mas sem a maestria de um Spielberg. Isso porque, mesmo com praticamente todos os recursos usados por Spielberg em Irmãos de Guerra sendo explorados em The Pacific (o lado documentário em toda abertura de episódio, enfatizando os comentários de veteranos reais de guerra, o uso de camera footage antiga, com cenas reais mostrando a invasão americana na “impenetrável” ilha encharcada de Guadalcanal, e nas praias de Peleliu, cenário onde a batalha foi a mais complicada e traiçoeira para os soldados americanos, e a mais questionável até hoje quanto a inteligência militar que moveu tal operação), Hanks não é Spielberg, por mais admiração e apadrinhamento que o ator possa ter tido do veterano cineasta.

    Enquanto ele foca, tornando sua ação impecável numa espécie de bomba-relógio, Hanks expande e não concentra, tendo sua perspectiva tanto acionária quanto dramática mais pro estilo dinamite, ainda que sentimental na medida certa em diversos momentos chave, na história.O que guiava a Primeira Divisão de Fuzileiros Navais pelos arquipélagos asiáticos onde só encontravam miséria humana, nos quais a força invisível da guerra os levava a trilharem busca do inimigo, da vitória ou do óbito? Cada vez mais reconhecendo suas personagens como seres humanos enterrados num objetivo cada vez mais sufocante, eis uma minissérie alegórica aos sentidos mais primários de uma guerra, por mais ilógica que elas possam parecer ser para quem não as promove e fomenta o conflito sem precisar sujar as mãos; ao sentido dos lemas ‘fazer o que tem que ser feito’, e ‘custa o que custar’.

    Hanks não procura a honra e o orgulho nisso, e sim as consequências para o homem que mata em nome de um país; o seu. Deixa claro que a paranoia não cobre atos ruins, mas também é inevitável numa situação dessas, e que mesmo o coração de um soldado sendo o seu rifle, são os sentimentos coletivos e por vezes individuais de um homem exausto e ferido que o guiam, a maior parte do tempo, seja por onde for.Chamando-os de ratos, da mesma forma como Hollywood via os japoneses deliberadamente na época, e como os nazistas intitularam os judeus em sua perseguição doentia, os fuzileiros americanos e seus comandantes começaram a contar suas vítimas ao longo da guerra e ficaram incrédulos com o que estava acontecendo, chegando nisso ao ponto alto da minissérie.

    Sua narrativa ao longo dos episódios, em especial do (ótimo) sétimo em diante, e supervisionada pelos mesmos envolvidos em Irmãos de Guerra, mostra-se extremamente hábil em expor sinceramente as lacunas e as contradições de uma doutrinação militar agressiva, e que levava às vias da desumanização o indivíduo em prol da vitória, e do orgulho nacional. Mesmo com um ufanismo gotejante e que impregna a série do começo ao fim, sobra espaço em The Pacific para ser honesta quanto aos reconhecidos erros militares americanos, subestimando a inteligência japonesa em resistir aos ataques coordenados, a certa altura do conflito. Tom Hanks usa e abusa de uma simbologia contextual (capacetes, romances paralelos, granadas) para contar, em campo de batalha, o que sucedeu ao icônico ataque a Pearl Harbor. Faltou interesse em debates maiores e mais aprofundados, contudo, sobrou coração na reprodução dessa retaliação histórica.

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  • Crítica | Uma Questão Pessoal

    Crítica | Uma Questão Pessoal

    Desde que Guerra ao Terror ganhou o Oscar, e Clint Eastwood fez uma ode ao vício estadunidense por auto bajulação, com Sniper Americano (um dos 50 filmes mais lucrativos nas bilheterias americanas de todos os tempos), poucos filmes no mundo tentaram e de fato foram bem-sucedidos em mostrar conflitos de proporções bélicas alarmantes, em diversos cenários onde ainda explodem e devastam a pacificidade que pessoas, suas tribos e culturas precisam ter para resistir, sobreviver, e por fim, se isso é possível em lugares como Israel e Palestina, viver.

    Agindo como se todo tipo de visão já tenha sido destilada ao público de Cinema, os “filmes de guerra” hoje em dia (com exceção de Os Campos Voltarão em 2014, o último filme do mestre Ermanno Olmi antes da sua morte) focam mais nas consequências paralelas e/ou posteriores de se passar por uma situação dessas; como se o centro da problemática não fosse mais o foco nas bombas e seus dramas de campo de batalha, e sim as suas questões periféricas, familiares, suas marolas, seus efeitos no homem ou na sociedade que sempre o torna quem ele(a) é, e que colhe os frutos do conflito armado que soldados e seus comandantes presenciam a ferro, fogo e sangue.

    Essa manobra discursiva, algo simbolizado por Stanley Kubrick nos dois filmes que existem dentro de Nascido para Matar, abraçando tanto o lado dos fuzis e das explosões (a violência gráfica de uma guerra), quanto o stress psicológico resultante de uma constante tensão onipresente, e suas avaliações dentro de um quartel general norte-americano, essa abordagem desse último lado menos icônico mas com grande potencial de aprofundamento dramático, estudando o comportamento das pessoas vivendo dia após dia uma situação desumana, deve-se a incrível capacidade de toda obra de arte de nos impactar, na forma que for, e dialogar com as nossas experiências de vida – sejam elas quais forem.

    Uma Questão Pessoal é uma boa prova disso, conectando-nos em pleno solo italiano a uma segunda grande guerra mundial cujas lembranças latentes a fazem respirar eternamente, encontrando por isso fortes ecos hoje e amanhã num sem-número de produções culturais ao redor do nosso pequeno grande globo que, para a raça humana, poucas vezes foi tão complexo quanto no conturbado vigésimo século D.C. Tendo como contexto histórico a luta contra o nazifascismo em 1943, o filme da dupla Paolo e Vittorio Taviani, adaptando de modo deliciosamente visual uma das mais importantes obras da literatura italiana, o homônimo livro de Beppe Fenoglio, foca na luta interna do militar Milton, vagando pelas colinas e campos de Langhe no noroeste da Itália, dividido entre ajudar seu país e se prender de vez no amor que ele sabe ser a mulher da sua vida.

    De espírito benevolente, Milton vaga entre a danação do seu povo, e o resistir militar do mesmo, mas sem nunca conseguir colocar em segundo plano a história que viveu e ousa resgatar a quase todo momento com a doce e bela Fulvia, aquela que dança em tempos em que isso é proibido. Assim, o título de Uma Questão Pessoal ironiza o ótimo equilíbrio que tanto livro e filme conseguem atingir entre as esferas militares e particulares de um homem que se arrisca e se devota sem descanso a duas questões, uma nacionalista e muito mais ampla, e a outra invariavelmente emocional e pertinente só a si mesmo e mais ninguém (a cena na qual Milton encontra seus velhos pais, muito próximo de soldados inimigos, e os abraça como um raio, partindo em questão de segundos para não chamar a atenção, é dolorosamente maravilhosa).

    A narrativa imagética da adaptação do livro de Fenoglio merece um capítulo à parte, sendo que o filme faz uso aqui de um ótimo e contido trabalho de câmera, ainda que por vezes ousado e totalmente participativo de uma dramaticidade acionária que nunca descansa, nunca deixa de nos surpreender, principalmente nos minutos iniciais e que nos fazem submergir as forças reais que movem a história: Medo político, a expectativa de estar sempre passos à frente dos inimigos fascistas, os aliados à resistência, o mundo externo que chama para as incertezas da neblina e que não deixa Milton relembrar seu passado, mais simples e infinitamente mais feliz. Por essas e por outras, eis aqui uma história (e filme) muito maior que os seus rótulos, e que por mais que guarde semelhança com uma típica obra de conflitos armados, carregando todos os seus típicos elementos de gênero, consegue ir além dos limites do seu gênero, tal como o recente e magnífico Timbuktu. Outros cenários políticos, mesmos dilemas humanos.

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  • Crítica | Operação Overlord

    Crítica | Operação Overlord

    Operação Overlord começa em 1944, algumas horas antes do Dia D, que consolidaria ainda mais a vitória dos aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Na trama, uma equipe de paraquedistas norte-americanos invade a França ocupada pelos nazistas, com uma tarefa difícil de destruir uma torre transmissora de rádio em um ponto estratégico para os alemães. O que eles não imaginam é que ocorrem ali experiências encabeçadas por cientistas nazistas, baseadas de certa forma na realidade, mas com consequências mais exageradas.

    A companhia é formada por muitos soldados novatos. Os que mais se destacam são Boyce (Jovan Adepo) e o misterioso cabo Ford (Wyatt Russell), além de alguns personagens genéricos que servem apenas de alívio cômico, tentando evidentemente aplacar a tensão comum em filmes de guerra. No começo do filme de Julius Avery (Sangue Jovem), há um misto entre ansiedade e angústia, e essa boa sensação seria melhor aproveitada se os diálogos não fossem tão expositivos.

    Ao caírem em solo inimigo, Boyce quase sucumbe, aliás, há uma cena envolvendo o seu paraquedas e a queda na água, que faz uma referências óbvias demais a clichês de renascimento, em mais um exagero que ajuda a dar um charme de coisa irreal ao longa, e que junto à extrema violência e toda escatologia gore seja das dilerações e explosões, formam a atmosfera popular da produção de J. J. Abrams.

    Apesar de extremamente divertido, há também uma preocupação do roteiro de Billy Ray e Mark L. Smith em massificar a vilania dos nazistas, pondo eles como abusadores, malvados como o diabo e seus demônios. A figura de Wafner (Pilou Asbæk) é terrível em múltiplos sentidos, tão ruim que faz os momentos em que ele aparece soarem extremamente maniqueísta e beirando o sensacionalismo, mas nada que deponha contra o filme.

    Cada personagem tem um equivalente, uma pessoa a quem se afeiçoa ou se irrita, e isso soa bastante irritantes em alguns momentos, além disso, Boyce (que é o mais próximo da figura de protagonista) parece ter um super poder de ser imune a bombas e explosões, mas até esses super exageros ajudam a diferenciar esse de outras aventuras escapistas.

    De metade para o final o filme se assume como um trash de orçamento gigantesco. Avery parece ser muito fã da fase de terror da filmografia de Peter Jackson, pois pega emprestado algumas idéias de Trash: Náusea Total ou Fome Animal para criar a atmosfera da aventura de época. O fato da obra de Avery ser somente divertida e nada pretensiosa faz encaixa-la perfeitamente no panteão de histórias escapistas e mashups de estilos dissonantes, envolvendo filme de guerra e ficção cientifica de manipulação genética, fórmula essa que se estica mas não se torna cansativa, ao menos não nesse filme.

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  • Crítica | Aliados

    Crítica | Aliados

    A carreira do diretor Robert Zemeckis tem sido de altos e baixos, em especial nos últimos anos, onde tem colecionado críticas mornas sobre seus lançamentos, em especial O Voo e A Travessia. Seu novo filme, Aliados, tenciona misturar um romance proibido com uma trama de espionagem, levando em conta produtos canônicos do cinema hollywoodiano como referência, em especial Casablanca, inserindo alguns elementos de teoria da conspiração em sua fórmula.

    A história segue os passos de Max Vatan (Brad Pitt), um militar que é designado para ir em Casablanca, Marrocos, assassinar um embaixador nazista. Para isso, ele precisa fingir ser o esposo do disfarce de Marianne Beausejour (Marion Cotillard), uma bela mulher que já está no país africano há algum tempo. Após muito resistir, os espiões decidem– mesmo com as reprimendas do superior de Vatan, Frank Heslop (Jared Harris) – se casar, tendo uma filha pouco tempo depois, com o oficial se tornando então um funcionário burocrático do exército, num período bastante próximo à Segunda Guerra Mundial.

    Toda a sequência em meio a missão dada é na verdade um despiste, um mcguffin que serve para introduzir o espectador no amor embrionário dos protagonistas, contendo algumas poucas belas cenas, no deserto onde finalmente os dois se relacionam pela primeira vez, seguidas de uma cena de ação bem construída. A vida nova do casal só começa após mais de quarenta minutos, onde a história se desdobra como um entreatos de uma peça teatral. A partir daí a rotina dos apaixonados é entre uma missão e outra, em meio a processos ordinários da vida comum de um casal, incluindo uma cena de parto bastante criativa, que beira o inverossímil.

    A questão central é o drama desenrolado na segunda metade do filme, que inclui uma dúvida cruel para Vatan que o faz perseguir desesperadamente o que lhe incomoda. Nesse ponto, a qualidade do texto decai demais, baixando ainda mais o patamar de qualidade que não era tão alto até esse momento. A tentativa de criar um thriller eletrizante esbarra na incapacidade da direção em gerar suspense.

    O elenco vasto de grandes atores não ajuda no resultado final. A química entre Pitt e Cotillard é irregular, soando forçada de início e melhorando um pouco já próximo de seu desfecho. Ao menos o final consegue causar emoção em quem vê, aspecto esse não corriqueiro dentro dos 124 minutos de exibição. Aliados tinha um potencial para ser um bom romance/drama de guerra, mas esbarra em uma narrativa morna e incapaz de criar um bom suspense.

  • Crítica | Até O Último Homem

    Crítica | Até O Último Homem

    O drama de guerra dirigido por Mel Gibson não poderia começar por outra fala que não uma passagem bíblica do livro de Isaías, capítulo 40, que faz relembrar muito do ideal religioso no qual grande parte dos alistados se apegam, em especial da personagem principal e biografado Desmond T. Doss (Andrew Garfield). O épico Até O Último Homem desconstrói a própria ideia de gênero de guerra, ao centralizar na historia do soldado contrário à violência.

    Gibson é didático, como havia sido em Coração Valente e A Paixão de Cristo. A passagem que marca o ideal do jovem ocorre na infância, quando em uma inocente briga com seu irmão, o protagonista acaba por quase mata-lo, sob os olhos de seu velho e rígido pai (Hugo Weaving). Após refletir sobre seu passado, o rapaz se alista nas forças armadas, com a missão pessoal de resgate de sobreviventes e cura de feridos.

    Uma parte da jornada faz paralelos com outros tantos clássicos do gênero, em especial Nascido Para Matar, de Stanley Kubrick, no que diz respeito a não aceitação do grupo militar com Desmond, por conta de sua postura em relação a guerra. O filme possui alguns períodos complicados quanto ao ritmo, e especial na primeira hora de duração, onde se discute a desobediência da personagem e o julgamento em torno de seu comportamento. O ideal e a motivação acabam sendo justificados neste primeira metade.

    Já na metade final, o cineasta põe em prática a marca registrada de seu cinema, que é a violência mostrada de forma crua e visceral. As dilacerações de corpos, os cadáveres expostos e o uso da imagem para mostrar o lado sujo da guerra são impressionantes, em muito superiores ao visto em Apocalypto e Coração Valente. Esses momentos gráficos e viscerais corroboram com o discurso de Desmond trabalhado na metade inicial, dando razão ao texto da personagem por meio de imagens.

    O texto de Robert Schenkkan e Andrew Knight discorre sobre as faces cruéis da guerra, valorizando as ações do protagonista, mostrando neste plano tudo o que O Invencível, de Angelina Jolie tentou mas que não obteve êxito – quanto na demonstração da guerra em ambos os lados, com referencias a Cartas de Iwo Jima, de Clint Eastwood, envolvendo cenas com os inimigos asiáticos.

    Gibson está longe de acertar tudo o que tenta, mas apresenta um produto final simples, conciso e econômico, como os bons filmes de guerra de Eastwood, cuja direção pontual é menos grandiloquente   e mais preocupada em contar a história de um herói nacional do que apresentar um filme pretensioso, e tal apresentação só é tão bem sucedida graças as nuances que Garfield empresta a figura antiviolência de sua personagem. Segundo esses preceitos, Até O Último Homem é o típico filme inspirador que o público, a crítica e a academia costumam abraçar, sendo até mesmo surpreendente o quão baixa é a carga melodramática do longa-metragem.

  • Crítica | Sniper Americano

    Crítica | Sniper Americano

    Sniper Americano - poster internacional

    O chamado sonoro, anunciando a ação antes mesmo de qualquer personagem aparecer na tela, guarda as intenções de seu diretor em reprisar um tema que para ele é caro. Sem filmar dramas relacionados a conflitos armamentistas desde O Destemido Senhor da Guerra, Clint Eastwood apresenta uma nova versão da guerra ao terror – fazendo às vezes de Kathryn Bigelow – em Sniper Americano, utilizando uma figura masculina como ponto central de sua trama, diferente do que ocorreu com o recente A Hora Mais Escura.

    Chris Kyle, vivido por Bradley Cooper, representa um soldado fiel aos preceitos de sua pátria e à bandeira das forças armadas. Atrás da compleição resoluta, esconde-se uma psiquê frágil de um homem que se tornou bruto pela rígida criação conservadora e religiosa de seus pais. Desde cedo, o personagem é doutrinado a pensar que o mundo é habitado por criaturas maldosas. Na infância, os avatares desta perversidade eram prioritariamente os bullyers, às vezes alcunhados de “lobos”, revelando uma concepção baseada em um engodo que escondia o prejuízo que a superproteção do pai tinha pelo garoto.

    A personalidade de Kyle é baseada na fragilidade de espírito, que causa nele dificuldades de expressar seus sentimentos. O modo econômico com que Clint filma tais factoides talvez faça o analista desatento não perceber que o recurso não é inferido por pobreza de narrativa, mas sim por apego ao material original,  o livro Sniper Americano: O Atirador Mais Letal da História dos EUA, autobiografia que baseia a obra. A narrativa acompanha o protagonista enfatizando a simplicidade de espírito de sua personagem, emulando a frugalidade de sua alma.

    Os cortes rápidos, variando entre os dias que Chris passa nos alojamentos e as lembranças que tem com sua amada, Taya (Sienna Miller), fazem lembrar os melhores momentos de Billy Wilder. No desértico campo de batalha, ou nas estalagens verdejantes onde o treinamento ocorre, Chris recorda-se das doces memórias, daquilo que poderia motivá-lo a voltar vivo, além do patriotismo exacerbado e o medo fomentado pelo modo de governo do Partido Republicano diante das tragédias de setembro de 2001, artimanha essa que justiçaria qualquer barbarismo em terras estrangeiras, validando o revide àqueles que impingiram o mal à nação, independentemente de serem alvos fracos na visão dos machistas e xenófobos que inspiram e delegam ordem aos alistados.

    O decorrer das operações revela uma confusão visual causada pela caça aos inimigos islâmicos, visualmente agravada pelo efeito do breu da noite, e emocionalmente piorada pela discussão moral a respeito dos vitimados pelas ações dos fuzileiros. Apesar de algumas (raras) exceções, a maior parte do modus operandi militar é registrado de modo contemplativo, como se direcionado a um espectador desconfiado.

    A situação emocional se complica para Chris, que muito antes do desfecho já é considerado um herói de guerra, idolatrado por alguns veteranos, cujas vidas foram radicalmente modificadas pelo tempo em que permaneceram em combate. Ser agraciado por estes se torna um incômodo visível, ampliado pela forçada ausência em seu recentemente formado núcleo familiar. Assistir de longe ao crescimento dos filhos faz com que ele discuta internamente a validade de seu modo de vida.

    É curioso que um filão antes muitíssimo utilizado pela dupla Menahem Golan e Yoram Globus e sua Cannon Films esteja atualmente recebendo tanta atenção por parte do cinema de alto orçamento americano, quase sempre com um caráter revisionista, de forte crítica ao expansionismo imperial imposto pelos Estados Unidos nos últimos anos. Talvez a questão a ser mais discutida é o alvo desse tipo de reprimenda, já que Comando Delta, Desejo de Matar e Invasão U.S.A são filmes feitos quase que exclusivamente para transferir o ódio, antes dados aos nazistas e comunistas, para os islâmicos e árabes, filhos de Ismael, portanto “usurpadores da promessa a Abraão”. Proveitoso seria se os filmes norte-americanos refletissem sobre isto, ao menos como mea culpa.

    A filmografia de Eastwood visa discutir lados diametralmente opostos do belicismo, a exemplo de A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima. Em Sniper Americano, o diretor utiliza o símbolo da caveira do herói da Marvel, o Justiceiro (Punisher, no original), personagem cujo passado inclui um trauma na Guerra do Vietnã, com pecados morais bastante semelhantes aos de Chris, ainda que a abordagem que Cooper apresenta em seu papel possua mais nuances, mais detalhes e mais humanidade, muito bem mostrados no quarto final do filme.

    Apesar do exagerado ensejo presente no meio da fita, visando enfatizar os espectros familiares do biografado, é o minimalismo do realizador que predomina em meio à análise do material final. As cenas de ação são bem coreografadas, imitando um número de balé, ode dada ao deus da morte, uma divindade idealizada e distante do pragmatismo de quem analisa o panorama político de um ponto longínquo.

    Sniper Americano se propõe a ser um relato sobre os que se entregaram de corpo e alma a um ideal, a defesa da nação, mesmo que os motivos para tal sejam amplamente discutíveis, e ainda que tais situações espinhosas não sejam contestadas, como se esses assuntos complicados orbitassem um nível acima do pensamento rasteiro dos soldados.

    Passadas duas horas de filme, é revelado o destino do protagonista, cuja aura de conspiração envolve-o até a subida dos créditos do filme, não sem antes mostrar a bandeira norte-americana tremulando vorazmente, mais uma vez louvando a bravura dos soldados. Pesa contra o fato de o clímax ocorrer aproximadamente 30 minutos antes do filme se encerrar, fazendo com que todo o restante da película mostre o deslocamento social do soldado e um acontecimento fatídico cerceando sua vida sem qualquer possibilidade de ápice. O heroísmo do sniper até tenta ser resgatado nas cenas em que ocorrem as homenagens aos seus feitos pelas ruas dos EUA, o que por si só é muito pouco diante de toda a pompa anterior.

  • Crítica | Corações de Ferro

    Crítica | Corações de Ferro

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    Produzir épicos de guerra sempre foi uma especialidade de Hollywood. O gênero possui uma grande quantidade de filmes, tanto os mais clássicos que tentam retratar o lado heroico daqueles soldados que enfrentaram os campos de batalha, quanto os mais recentes, que enfocam os horrores aos quais esses seres humanos foram expostos e também os que estes cometeram.

    A cada nova tentativa de produzir um épico sobre a Segunda Guerra Mundial, tema tão batido, a indústria tenta trazer ao menos uma nova visão sobre algum detalhe, seja de uma história particular ou de um evento específico do conflito, afinal, poucos temas da história são tão conhecidos quanto este, e o risco de cair na vala comum é enorme.

    A produção dirigida por David Ayer, Corações de Ferro opta por seguir este caminho e traz para as telonas como era a vida da divisão de tanques nos campos de batalha. O filme conta a história de Don ‘Wardaddy’ Collier (Brad Pitt), um sargento que comanda um tanque americano M4 Sherman com o restante de sua tropa, Boyd ‘Bible’ Swan (Shia LaBeouf), Trini ‘Gordo’ Garcia (Michael Peña), Grady ‘Coon-Ass’ Travis (Jon Bernthal) e o novato Norman Ellison (Logan Lerman).

    O filme consegue produzir uma imersão dentro da batalha de forma eficiente, e em diversos momentos conseguimos captar como era a vida dentro de um tanque de guerra, em uma época em que tudo era rústico e feito manualmente, a habilidade humana era essencial para a vitória e, portanto, cada erro, fatal. A agressividade e intensidade da batalha são reais. A edição de som, com o metal a toda hora rangendo e gritando em razão dos movimentos e dos projéteis que os atingiam, garante uma excelente experiência de batalha sob um ângulo totalmente novo.

    Porém, quando se afasta disso, a obra enfraquece de forma considerável, pois cai nos diversos clichês de filme de guerra. O novato, por exemplo, mal tratado pelos veteranos por não ser capaz de realizar as duras tarefas que a guerra exige, ao mesmo tempo aprende em alguns minutos a lidar com as perdas que o conflito impõe. Também são mal desenvolvidos e mal explorados os aspectos psicológicos dos outros integrantes do tanque, e aqui o filme assemelha-se cada vez mais ao cultuado O Resgate do Soldado Ryan.

    O personagem religioso que justifica suas ações para Deus; o personagem fisicamente imponente que usa esse fato para se aproveitar do novato que tinha a função de escritório mas que foi destacado para o campo de batalha; além do comandante que, ao mesmo tempo que é rígido com seus subordinados, dá a eles a autonomia necessária às vezes para liberar a pressão que o conflito acumula a fim de não perder seu comando. Tudo isso se torna ainda mais claro na batalha final, quando os integrantes do tanque, isolados do restante do exército, se veem na obrigação de enfrentar um contingente inimigo muito maior, e quando as chances de sobrevivência são escassas. Além, claro, da tonalidade cinza-escura e suja que o filme de Steven Spielberg também trouxe para o cinema de guerra.

    Dessa forma, David Ayer não consegue dar ao seu longa a profundidade necessária a um épico de guerra ao qual nos faça conectar, com personagens que façam envolver-nos a ponto de entender quem são e por que agem daquele jeito, ou mesmo nos importar com as perdas infligidas à equipe. As resoluções e discursos são rasteiros e ao final o que sobram são as excelentes cenas de batalha. E a vontade de rever O Resgate do Soldado Ryan.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | O Jogo da Imitação

    Crítica | O Jogo da Imitação

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    Morten Tyldum tenta fazer jus à biografia de um homem notável e peça fundamental para a computação, evolução tecnológica humana responsável pela quebra de paradigmas em vários campos. O Jogo da Imitação emula a invenção da máquina moderna, analisando delicadamente a trajetória do criptoanalista, matemático e pai da ciência computacional Alan Turing.

    Num primeiro momento, mostra-se um memorando de 1951, com um Turing – vivido por seu debochado intérprete, Benedict Cumberbatch – já resignado. A esta altura, o cientista já havia ajudado muito o seu país, realizando préstimos durante o confronto aos nazistas. Logo, o roteiro leva o protagonista para o crivo dos mandatários do exército britânico, com dificuldades em destravar um código dos inimigos, tendo no obstáculo em decifrar o Enigma um enorme problema. A persona problemática de Turing faz dele uma pessoa supostamente pouco indicada para o ofício, mas a pressa de frear a quantidade exorbitante de baixas de guerra faz o cientista e seu superior Stewart Menzies (Mark Strong) se alinharem com o mesmo propósito.

    Logo, a misantropia latente do pensador se manifesta, desagradando a cada um dos outros membros do laboratório para o qual trabalha. A equipe que estava em pé de igualdade com o cientista logo sofreu com um duplo infortúnio, sendo ambos incômodos, o cientista ao grupo e vice-versa. Alan vê na criação de sua máquina o único modo de lidar com as mensagens criptografadas, enquanto os outros tentam, em vão, distinguir o que é pronunciado em alemão. Após idas e vindas, os membros do grupo finalmente se unem em torno de um bem maior e da cooperação em completude, formando, então, a Equipe Ultra.

    Apesar de haver um problema no ritmo do filme, que algumas vezes recorre a uma monotonia latente, são os diálogos o principal aspecto positivo do roteiro de Graham Moore. O retrato da genialidade do biografado é muito bem feito, em alguns momentos muito mais inspirado que seu primo estilístico, também concorrente à premiação da Academia, A Teoria de Tudo. O Jogo da Imitação também ganha melhores ares por não ser tão preocupado em apresentar uma história chapa branca, protegendo bem menos os personagens que orbitam o herói da jornada, certamente pela distância muito maior de tempo entre a história que Tyldum narra e a atualidade.

    Mesmo contando com um elenco recheado de nomes conhecidos, nenhuma das atuações serve de comparação com a personalidade representada por Cumberbatch. Keira Knightley exibe uma performance apaixonada com sua Joan Clarke, mas nem de longe tão inspirada quanto no recente Mesmo Se Nada Der Certo. O mesmo pode ser dito de Mathew Goode, que faz o cientista Hugh Alexander, ainda que seja bastante plausível a sua face apagada, já que é uma bela escada para o trabalho do protagonista.

    O maior inconveniente da fita são os resgates ao passado, com cenas da infância de Turing, tendo de conviver com a genialidade que batia à porta e a dificuldade que tinha de ter relações com outros garotos. Tais partes da obra pouco servem ao enredo, sobrecarregando-o na maioria das vezes, visto que toda a mensagem de ódio de si do personagem principal é revelada na sua fase adulta. O molde e o costume de contar todos os meandros da vida do protagonista biografado são uma muleta desnecessária para tão rica apresentação.

    A corda bamba emocional a qual o herói se submete, convivendo com a sua cada vez mais indisfarçável condição sexual, atormenta-o por interferir diretamente em sua identidade pessoal, além de atrapalhar qualquer possibilidade de crescimento dentro dos desígnios militares. O flagrante da homoafetividade do protagonista não é feito de modo sensacionalista, pelo contrário, é usado como uma boa artimanha do roteiro para assinalar a paranoia que era parte da função dos matemáticos durante a Grande Guerra, e também o quanto sua personalidade é absolutamente solitária, fechada em si, não tanto por ódio ao outro, mas sim pela impossibilidade de se relacionar de modo minimamente saudável, dada a falta de sociabilidade tão entranhada em sua vida.

    A proximidade do gênio da computação com Winston Churchill, ainda que não seja mostrada em tela, é utilizada como modo de discutir a necessidade da guerra, porém de um modo nada óbvio. Apesar de não tratar os agressores de Turing como objetos de vilania, O Jogo da Imitação usa os aspectos da vida do matemático para ressaltar seus dotes científicos e a tristeza e miséria existencial, muito bem fundamentadas em Alan Turing: The Enigma, de Andrew Hodges. Apesar da grande quantidade de problemas na obra, o que fica na mente do público é a belíssima contribuição de Cumberbatch ao mito, assim como a generosa direção de Tyldum, que permite ao artista desenvolver seu papel sem limites, sobrepujando o formato do filme.

  • Crítica | Invencível

    Crítica | Invencível

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    Invencível, novo filme dirigido por Angelina Jolie, adaptado do livro Invencível – Uma História de Sobrevivência, Resistência e Redenção, conta com os irmão Coen no roteiro para dar corpo à vida e à memória do atleta olímpico Louis Zamperini (Jack O’Connor), que após sobreviver 47 dias no mar é feito refém pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial.

    A literalidade da obra não fica apenas no título, porém. Invencível é um drama clássico, ao menos em teoria, feito aos moldes da Poética de Aristóteles: é a síntese da busca pela catarse através da dor e sofrimento, com o objetivo de nos provocar medo e compaixão, para, em seguida, entregar uma breve purificação como fruto do sofrimento compartilhado.

    Apesar de seguir à risca o caminho canônico da tragédia dramática, falta a Jolie e ao roteiro dos Cohen o compartilhamento sobre o real estágio humano de seu protagonista, que em nenhum momento parece saber por que sobreviver. Falta comunicação com o espectador e um fio condutor melhor resolvido do que a frase “se puder suportá-los, pode vencê-los”, a qual Zamperini leva consigo como mantra.

    Datado como obra, Invencível não só é aristotélico como também platônico. Ao trabalhar diversos combates e situações em um plano quase etéreo, eleva seu protagonista aos céus, enquanto seus companheiros – tão sofridos quanto – mantêm-se no plano mundano. Jolie idealiza seu protagonista a ponto de achar que não precisamos de suas motivações, e que sua sobrevivência fala por si. Fora das convenções do cinema, sua fibra moral é óbvia, mas em determinado momento Zamperini deixa de reagir às privações, o que é problemático em termos de dramaturgia.

    Isso influencia no trato dos coadjuvantes, subaproveitados, que poderiam ter dado um pouco mais de sustância ao roteiro se houvesse nisso a tentativa de decodificar Zamperini ao público. A idealização faz sentido, já que o veterano foi vizinho e amigo pessoal de Angelina Jolie, chegando a participar ativamente da produção. Mas ao espectador falta justamente a catarse, da qual temos apenas vislumbres, como na belíssima composição da batalha ideológica do personagem principal e seu algoz, o sargento Watanabe, que perde seu potencial de conquistar até mesmo o mais blasé dos espectadores ao reafirmar a santidade do atleta olímpico e fazendo da cena um bem filmado exercício de futilidade. O resultado são 162 minutos do que seria uma bela história de resiliência filmada como se fosse apenas teimosia da parte de Louis.

    A crítica especializada (sic) diz que, quando uma crítica começa a análise falando bem sobre a fotografia do filme, é porque este não é tão bom, mas sim simpático. Simpático, mas nada empático; bonito, mas carece de poder cinematográfico, pois logo nas primeiras cenas a mão pesada da montagem enfeia todas as incríveis composições da direção de fotografia idealizada por Roger Deakins (Onde os Fracos Não Têm Vez, 007 – Operação Skyfall), e consegue tornar o filme mais insensível do que seu roteiro ao simplesmente não nos permitir contemplar cena alguma por carecer de ritmo. Não há suspiro quando deveria haver, nem tensão quando deveria haver. A tentativa de tensão é feita sem sutileza na transposição das cenas, levando o espectador a perder-se geograficamente mesmo em ações simples.

    Não faltará nem mesmo a tradicional explanação sobre o destino de seus personagens, apenas burocraticamente colocada para arremate. Um trabalho visualmente muito bonito e inspirado que funcionaria melhor em mãos mais delicadas e focadas.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Uma Longa Viagem (2013)

    Crítica | Uma Longa Viagem (2013)

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    A Segunda Guerra Mundial é um dos temas mais férteis para produções cinematográficas, ainda que atualmente se lancem poucos filmes sobre o assunto em comparação com décadas passadas. Porém, há sempre espaço para mais uma narrativa sobre este momento histórico, seja como um panorama universal do período, seja através de histórias pessoais de homens que viveram sob domínio da guerra e guardam lembranças de traumas, batalhas e sentimentos.

    Uma Longa Viagem baseia-se na história real do soldado Eric Lomax (Jeremy Irvine/Colin Firth), um oficial britânico preso no fronte em Singapura e enviado a um campo de prisioneiros para trabalhar à força na construção de uma ferrovia. Hábil em eletrônica, constrói um rádio amador para ouvir notícias sobre a guerra e, ao ser descoberto, é detido e se transforma em alvo de tortura e maus tratos.

    A história começa nos dias atuais. No centro de veteranos, Lomax é um senhor conhecido pela fascinação por trens. Conhece itinerários, maquinários, e em uma destas viagens conhece Patti (Nicole Kidman), a mulher que será sua futura esposa. Após o casamento, a relação com a esposa permanece distante, em parte por seu incômodo em revelar a história de seu passado, motivo que lhe deixa apreensivo e com pesadelos diários. A trama entrecorta o presente com sua jornada de guerra.

    O soldado foi utilizado como um exemplo pelos inimigos para se manter a ordem local. Torturado diariamente, privado de alimentação e de um local adequado de sono, o jovem, e suas dores físicas e psicológicas, é acompanhado pelo público, atento em compreender o motivo da fragilidade do personagem quando adulto. Incapaz de superar este trauma, Lomax vê a estabilidade familiar e a convivência com a esposa se tornarem insustentáveis. Tentando evitar uma separação, o veterano realiza uma viagem de volta ao local onde foi preso para encontrar seus torturadores e obter alguma resposta que possa amenizar sua dor.

    A batalha de Lomax é a luta contra o passado e a incompreensão diante de fatos brutais vividos no período de guerra. Sua viagem é frutífera, e o ex-soldado encontra um homem que estava presente nas sessões de tortura, o intérprete de guerra Nagase Takashi. Defronte a seu antigo inimigo no confronto, o homem percebe que o outro também carrega fantasmas e traumas de batalha.

    A guerra vista de uma maneira abstrata e com afastamento histórico retira a percepção de que homens lutaram uns contra os outros e saíram flagelados destas lutas, muitas vezes questionando-se quanto à verdadeira intenção de uma batalha entre nações. A obra demonstra a inutilidade da guerra e faz uma ode ao perdão. Um reconhecimento difícil e catártico entre homens que, um dia, viveram em lados opostos. As cenas do encontro destes ex-soldados são bonitas e emotivas pela coragem em compreender o outro lado e absolvê-lo de erros passados.

    Colin Firth sustenta com qualidade a personagem, principalmente nos momentos emotivos. Nicole Kidman, por outro lado, parece demonstrar intenção de resgatar seu prestígio como atriz, mas sua personagem é fraca e funciona mais como um motivador para a mudança do marido do que como alguém importante na história. O romance dentro da vida de Lomax foi a justificativa maior para que ele, finalmente, compreenda as torturas que sofreu durante a guerra.

    Como a maioria das histórias, principalmente em tempos sombrios como o da Segunda Guerra, a trama apresenta elementos interessantes, demonstrando as facetas cruéis de conflitos bélicos e os traumas carregados durante boa parte da vida. Mas dentro de tantas narrativas retratando este período, a história parece uma repetição, e o drama sensível salva-se mais pela competência dos atores do que por um bom roteiro.

  • Crítica | Guerras Sujas

    Crítica | Guerras Sujas

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    Não é novidade que os EUA são a maior máquina militar que a humanidade já produziu, além de ser um império que põe e tira governantes em países ao redor do globo a seu bel-prazer. Portanto, mexer no tema do militarismo americano sem cair no lugar comum se mostra atualmente uma tarefa relativamente complicada, mas que o documentário Guerras Sujas, baseado no livro homônimo de Jeremy Scahill, indicado ao Oscar em 2014, consegue fazer bem.

    Jeremy Scahill é um repórter investigativo da revista Nation, especializado em cobrir conflitos ao redor do planeta, passando por lugares como a Nigéria e o Kosovo. Seu livro anterior, sobre os mercenários da Blackwater, empresa militar que prestou serviços ao exército americano durante a guerra do Iraque, denunciou vários crimes cometidos por seus soldados dentro do país. Um verdadeiro escândalo seguiu a publicação do livro, com entrevistas de jornais e audiências no senado americano, onde o repórter tentou fazer com que os autores de tais crimes fossem condenados, mas não conseguiu, ao enfrentar o pesado establishment militar americano, com aliados poderosos na mídia. O máximo que conseguiu fazer foi a Blackwater trocar de nome, chamando agora Academi.

    Tamanha desilusão com o fruto de seu trabalho quase fez Scahill desistir de cobrir conflitos e voltar à sua pacata vida em Nova Iorque, mas logo ele estava de volta, cobrindo a guerra no Afeganistão. Lá se depara com o tema de sua nova produção, o novo modelo de guerra travada pelos EUA. O filme é dividido em quatro partes, contando diferentes formas de ação dos EUA pelo mundo: no Afeganistão, Iêmen, Somália, e um ataque de drones que resultou na morte de dois americanos.

    Ao entrevistar uma família que mora em Gardez, uma região do Afeganistão dominada pelo Taleban, Scahill se depara com evidências de que vários membros familiares, inclusive mulheres grávidas, foram executados por americanos em uma noite. Através de depoimentos e outras fontes alternativas, ele toma ciência de uma equipe tática chamada J-SOC (Joint Special Operations Command), que teria feito o ataque a essa família afegã. Ao se deparar com esse caso, Scahill tenta torná-lo público e denunciá-lo, mas novamente é barrado em todas as tentativas. Somente a exposição de um vídeo de celular, em que vozes americanas são ouvidas e é possível ver pessoas mexendo nos corpos da família executada, é que garante ao caso certa notoriedade.

    Após sair do Afeganistão, Scahill vai ao Iêmen investigar também um caso estranho de um suposto ataque americano a uma vila. Estranho, porque o Iêmen não se encontra em guerra com os EUA, ou tampouco consta em qualquer lista de países hostis. No entanto, ao chegar lá, ele se depara com evidências da destruição de uma vila inteira feita por um míssil Cruiser. Novamente, mulheres e crianças entre os feridos e os restos do míssil nem sequer haviam sido removidos.

    Na Somália, Scahill tem contato com verdadeiros “Senhores da Guerra” que, financiados e treinados pelos EUA, promovem o terror oficial na região em lutas intermináveis, responsáveis pela completa destruição do país. Trocando constantemente de lado, de acordo com o interesse da época, os EUA equilibram a balança ao, em cada hora, apoiar um comandante diferente, mantendo a instabilidade e o conflito eternos na região.

    A última parte do filme fala sobre Anwar Awlaki, um cidadão americano e muçulmano que foi mudando de posição com o passar dos tempos. De um moderado, condenando de forma enfática o terrorismo após o 11/9, a um incentivador do terrorismo nos dias atuais. Scahill investiga a fundo o que causou essa mudança em Anwar Awlaki e observa que a causa disso está na mesma razão pela qual o terrorismo não pode e nem será vencido com uma guerra. A cada ataque militar ou de drones com baixas civis, o ódio aos EUA aumenta e as fileiras das organizações terroristas crescem de voluntários. Após a morte de Bin Laden, Anwar Awlaki é alçado ao posto de novo inimigo público número 1, até ser morto por um ataque de drones em 2011. O que causa ainda mais espanto é a revelação de que o filho de 16 anos de Anwar Awlaki, também americano, Abdulrahman Anwar al-Awlaki é morto de maneira semelhante, para evitar uma possível retaliação do filho pela morte do pai, revelando a lógica doentia do militarismo americano. Aqui talvez resida a maior falha do filme, ao tentar tornar a morte de crianças algo ainda mais sensível do que já é, através de recursos, como câmera lenta e imagens de rostos em preto e branco.

    Por fim, ainda temos a revelação de que o uso de tais mecanismos, como de mercenários e drones, não só foi mantida, como incentivada pela administração Obama, mostrando que não há muita diferença entre republicanos e democratas no manejo da chamada Guerra ao Terror. Scahill inclusive faz uma contundente crítica a esse modelo privatista, desumano e especialmente contraproducente de guerra, pois esta se auto alimenta, sendo, portanto, sem fim. Gerando mais morte e destruição, fora e dentro dos EUA. Também há uma interessante crítica ao fato de os americanos terem comemorado a morte de Osama Bin Laden, como se ela representasse algo na política externa dos EUA, quando na verdade não alterou em nada o jogo. Também há uma crítica ao fato das J-SOC terem alcançado o status de popstars após terem executado o líder da Al Qaeda.

    Apesar de o filme não trazer muitas informações novas para quem acompanha o noticiário internacional, ele nos ajuda a amarrar algumas pontas soltas e relacionar conceitos que esclarecem a verdadeira intenção e ação dos EUA atualmente. Dessa forma, a crítica desta produção se direciona a esse novo modelo de guerra utilizado pelos EUA. Uma guerra total, onde o planeta Terra é um campo de batalha e todos os seus moradores são possíveis inimigos, e a menor suspeita, por mais fraca que seja, é o suficiente para alguém ser morto sem justificativa ou prestação de contas. É uma visão assustadora para o futuro, que ganha cada vez mais adeptos, onde qualquer pessoa é um potencial inimigo e isto lhes dá direito suficiente para tirar uma vida. Onde a tecnologia é usada não para a libertação humana, mas sim para promover o terror oficial, que por sua vez promove o terror de grupos fundamentalistas. Se retroalimentando ao custo das liberdades, e pior, vidas humanas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

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  • Crítica | O Grande Herói

    Crítica | O Grande Herói

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    A intenção do filme de Peter Berg é notada logo em seu título, tanto na versão original – com Lone Survivor – mostrando um sobrevivente solitário, como em toda a pompa do nome brasileiro: O Grande Herói. A história real de um combatente que foi ao Afeganistão atrás de um dos principais asseclas de Osama Bin Laden, tenta pegar carona nos sucessos de bilheteria recentes, que focam a caça aos inimigos mundiais, realizados por Kathryn Bigelow, como Guerra Ao Terror e A Hora Mais Escura. A mesma superação do indivíduo está presente na fita que tem como protagonista o produtor executivo Mark Wahlberg, além de ser claramente uma tentativa de um suspiro por dias melhores por parte do diretor de “sucessos” como Hancock e Battleship: A Batalha dos Mares, tentando emular os melhores momentos do gênero, com uma clara influência de Três Reis, Falcão Negro em Perigo e um ânimo que remete a Platoon.

    Filmes militares edificantes são um sub-gênero clichê e com uma enorme propensão a repetir lugares-comum. O cotidiano dos combatentes residentes no Oriente Médio é muito parecido com o dos filmes que influenciaram Berg. Nas instalações militares prevalece a companhia exclusivamente masculina, o isolamento dos acontecimentos da terra natal dos alistados, armamento de primeira linha, e, obviamente, muitíssimo prolífico e claro, como se todos fossem fiéis ao deus islâmico, barbas bem cultivadas.

    A câmera de Peter Berg registra de forma assaz curiosa a rotina da caça ao terrorista subversivo, mostrando uma evolução visual muito grande por parte do realizador. As partes que mostram a espera pelo melhor momento para o grupo armado dar o bote são muito equilibradas em mostrar o tédio sonolento dos soldados enquanto aguardam a hora H, como também mostra o suspense amedrontador ao menor sinal de que algo pode ou não dar errado para eles, mostrando a tocaia tanto sob os olhos dos orientais possivelmente ligados ao Talibã como dos yankees camuflados na mata. A espera pela solução da questão referente a perseguição do alvo primário é muitíssimo sufocante e agorafóbica e piora quando surge a dúvida entre a libertação ou não dos reféns que aparentavam não ser hostis. O resultado final da discussão deixa em aberto outro debate, o da diferenciação de como identificar quais tipos de civis fazem parte do esforço de guerra inimigo.

    A atmosfera de caça toma conta do filme e a fotografia de Tobias A. Schliessler (que já havia trabalhado antes com Berg e também em Dreamgirls: Em Busca de um Sonho) é excelente pois consegue capturar a essência das trocas de tiros entre os lados distintos. Quase dá para sentir a areia voando após os projéteis acertarem o chão. A mixagem de som, por conta de Andy Koyama, Beau Borders e David Brownlow não foi indicada ao Oscar à toa. Também é um esforço descomunal de execução que beira a perfeição, aumentando a sensação de perigo do espectador junto aos aventureiros da jornada, aliada, é claro, a edição de som de Wylie Stateman.

    A edição de vídeo também é um primor. As escolhas de plano sequência são pontuais e constituem no melhor aspecto da película, sem dúvida, pois o apuro visual nas cenas próximas ao fim do conflito são de tirar o fôlego e qualquer traço de discordância entre o público e os personagens cai por terra, o observador mais atento pode até discutir os motivos dos militares de alta patente, mas não duvidam da motivação dos que sofrem no campo de batalha, pois a empatia é automática e impossível de ignorar.

    O pós-combate é ainda mais impressionante graficamente do que o entrave em si, graças a maquiagem e direção de arte. Os hematomas e feridas abertas desfiguram todos os atores fazendo-os irreconhecíveis até mesmo para as suas mães. A sucessão de infortúnios que invadem a vivência dos sobreviventes ganha proporções homéricas e os combatentes sofrem o diabo. No desespero da troca de chumbo, a técnica dos fuzileiros não faz tanto efeito quanto o esperado e os melhores resultados dos seus esforços são por meio das atitudes movidas pela bravura que pouco calcula riscos e que se vale muito mais de ações voluntariosas do que por escolhas mais sábias e mais pensadas. É até curioso que o socorro por parte dos militares fora de combate somente vem através de um protocolo e de um movimento absolutamente burocrático de informação de coordenadas, composta por um número de dez dígitos. Em que mundo perfeito haveria um desesperado oficial do exército sendo baleado e conseguindo falar de cor a sua localização entre latitude e longitude? Somente em um mundo utópico.

    Uma cena em particular mostra toda a excelência e grandiosidade visual de O Grande Herói, a vista interna do helicóptero atingido pelo míssil RPG sendo destroçado no ar e explodindo no impacto com a superfície é uma das cenas mais impressionantes do cinema de guerra mundial, e presa muito pelo realismo de todos os elementos que a envolvem.

    Quando o personagem principal Marcus Luthrell  se vê voando sozinho e é encarado pelos possíveis inimigos, o ator Mark Wahlberg  passa a apresentar uma atuação lúcida e verídica como há muito não fazia. Seu esforço talvez só iguale à sua participação em Infiltrados. Os sacrifícios físicos mostram um sofrimento sem igual e a dor que ele sente ao ter de se ferir para conseguir sobreviver é gráfica e calamitosa.

    A sua postura à la Rambo nos vinte minutos finais faz perguntar o quanto de toda esta história é de fato algo real, mas até os exageros narrativos são passíveis de perdão graças a todo o esforço em contar a história de Marcus Luthrell por meio de imagens e com pouquíssimo discurso político imperialista, mesmo com a fala final valorizando o esforço dos fuzileiros. Antes dos créditos finais, são mostrados fotos dos militares executados em serviço, algumas vezes acompanhando a sua vida civil. Involuntariamente o guião discute a necessidade belicista dos EUA mostrando grande parte do seu esforço militar perecer tão longe de casa, claro, com pouco pedantismo perto do que poderia ser e ainda contém referências ao Pashtunwali, prática corajosa do povo afegão em proteger um sujeito indefeso mesmo quando isto vai contra os interesses do regime Talibã.