Tag: cinema clássico

  • Crítica | O Preço de um Prazer

    Crítica | O Preço de um Prazer

    “Você não sabe quem eu sou, né?”

    Engravidou, casou. O músico Rocky Papasano não quer ser um cafajeste, e por isso, deixa se envolver pela jovem Angie Rossini que o procura numa festa, grávida do artista de jazz. Os dois estranhos, instáveis na vida, e assombrado agora pela iminência de ser pai, e mãe. Numa época que a liberação feminina ainda era revolucionária demais, Rocky e Angie mergulham de cabeça no mais polêmico dos dilemas: assumir, ou abortar? O Preço de um Prazer dilui essa polêmica num romance que nunca engata, e deixa o seu grande tema como pano de fundo para não chocar assim as plateias mais sensíveis, com foco sobretudo na luta emergente do feminismo – um tema extremamente forte no ano que Cleópatra, o épico da MGM com Elizabeth Taylor, estreou e arrebatou as bilheterias.

    Porque se no Cinema, a mulher era valorizada em diversos cenários possíveis, na América da vida real, as feministas ainda tinham de lutar por sua voz, fim da violência doméstica (rapidamente discutido no filme) e igualdade salarial em meio a tantos outros conflitos de gênero, raça, e classe. Valeria a pena privar um bebê desse mundo? Com referências essenciais a nouvelle vague francesa dos anos 60, principalmente ao famosos e libertários Acossado e Viver a Vida, de Godard, O Preço de um Prazer faz da jovem atriz Natalie Wood, com seus grandes olhos expressivos, a equivalente Anna Karina de Hollywood – sem o sex-appeal da francesa, mas transbordando um existencialismo marcante. Aqui, na pele da moça que só quer sair da casa dos pais e enfrentar uma gravidez indesejada na selva de Nova York, Wood mostra-se uma atriz monstruosa, capaz de nos emocionar em segundos com seu rosto que implora por um close, por uma capa de revista.

    Indicada ao Oscar pela sua doce e decidida Angie (com mérito), a estória é sobre ela e a sua libertação e amadurecimento enquanto mulher dos anos 60, mesmo tendo no elenco Steve McQueen. Mas é ela que precisa fugir de seus pais italianos que não lhe dão privacidade. Que precisa ter um filho sozinha, trabalhar, encarar o mundo. O Preço de um Prazer faz-se, assim, um bom estudo de personagem que só não é melhor pela direção de Robert Mulligan – é grande a saudade de um Mike Nichols, nessas horas. Recém-saído da fama que O Sol é Para Todos lhe rendeu, Mulligan não coloca esforço artístico algum nesta produção. Totalmente dependente da força e da química de seus astros principais, Mulligan parece entender o filme como uma peça de teatro de baixo apelo, e pouco prestígio a ser extraído de um conto sobre superação pessoal, e aborto.

    Dessa forma, qualquer encanto proveniente de O Preço de um Prazer cai na conta da dupla que torna o filme uma experiência dramática bacana, mas sem grandes momentos – exceto nas cenas familiares, com coadjuvantes a elevar o entretenimento e a árdua evolução da trama. Aos poucos, os dois estranhos percebem que jamais serão feitos um para o outro, mas agora há um elo entre eles – e de novo: vale a pena privar esse elo da vida, nesse mundo? Mulligan, escandalosamente sem inspiração um ano depois da grande obra da sua carreira, não desenvolve nosso interesse pela estória para muito além do óbvio, resultando então num filme tão sem fôlego ou expressão como um liveaction moderno da Disney, muito aquém do esperado dado pela polêmica dos temas da época, e claro, o poder do seu elenco.

  • Crítica | O Canhoneiro do Yang-Tsé

    Crítica | O Canhoneiro do Yang-Tsé

    Filmes como esse nos lembram porque os Estados Unidos investem tanto em Hollywood: propaganda política, ainda mais em 66. A intervenção da América na Ásia era maciça, para impedir que o comunismo se espalhasse cada vez mais, enfraquecendo o capitalismo do Tio Sam. Soldados invadiam o sul do Vietnã aos milhares, e a guerra no país dos bambus ainda iria demorar 10 anos para terminar. Como exportar a boa imagem de um imperialismo assim, se não pelo Cinema? Em uma determinada cena, chineses estão literalmente enjaulados, enquanto sorriem, como se essa fosse a condição natural deles: animais, em jaulas. Do outro lado da cerca, temos um Steve McQueen feliz com sua roupa limpa de marujo, conversando com uma loira, como se o mundo estivesse em perfeita harmonia. O Canhoneiro do Yang-Tsé é um dos mais puros e orgulhosos exageros patrióticos que a filmografia dos Estados Unidos já produziu (a Marvel disfarça muito melhor os ideais imperialistas do país, hoje em dia).

    O ano aqui é 1926, e o comunismo só cresce numa China muito dividida entre a soberania do PCC (Partido Comunista Chinês), e influências estrangeiras da época. Com missionários americanos presos e traidores do movimento nacionalista torturados pelo povo, em praça pública, a tensão no país está instalada (e estaria até 1949, com a proclamação da República Popular da China). Um ano antes da grande rebelião de Shanghai, visando unificar o país em torno de um sistema e uma moeda, apenas, o engenheiro Jake Holman (Steve McQueen) estaciona o canhoneiro de São Pablo, lotado de militares americanos, no lago de Yang-Tsé, prestes a encarar a grande missão coletiva da sua vida: libertar os missionários conterrâneos. A volta para os Estados Unidos é incerta, mas nem Holman nem ninguém pensa nisso: a tripulação não quer sujar as mãos de sangue, ainda mais ao perceberem o valor da população chinesa, tão humanos como eles, com a amizade e até o amor surgindo entre marujos, e nativos. Mas a pressão militar é clara, e o senso humanitário não pode desvirtuar nenhum senso de dever.

    Com um cenário político desses, e um conflito de interesses já estabelecido para Holman e seus colegas soldados, o cineasta Robert Wise, ao lado do roteirista Robert Anderson, adapta o livro de Richard McKenna de uma forma insegura, mas ambiciosa. Ambiciosa pela duração inexplicável (mais de 3 horas, esticando as cenas de propósito), e insegura pela visão conciliatória e hipócrita que o cineasta tenta transmitir nas relações dos personagens, contraditória na segunda parte do filme quando os americanos são expulsos da China, mas a missão não pode acabar, e uma violência de cunho racista explode sem pudores em bares, templos e no próprio barco cheio de armas. Parece que Wise tentou esconder ao máximo que seu filme era um panfleto político estadunidense, mas no final, não houve manobra para continuar a enganar o público e ele acabou optando pela incoerência, na trama. O Canhoneiro de Yang-Tsé foi indicado a 8 Oscars, perdeu todos, mas deveria ter ganho Melhor Fotografia pelo trabalho de Joseph MacDonald. Essa sim, o melhor aspecto do filme.

  • Crítica | A Mesa do Diabo

    Crítica | A Mesa do Diabo

    Tem filmes que começam muito bem, e nos enganam logo nos primeiros minutos. Esse é  o caso de A Mesa do Diabo (The Cincinnati Kid), título brasileiro apelativo que remete a algum filme de terror. Após um magnífico começo, contextualizando o perigo compulsivo e o drama de se apostar na sorte, acompanhamos um jovem jogador de pôquer, Eric Stoner, pelos caminhos tortuosos do vício, dos esquemas de mesa, da brincadeira com o azar na qual é muito popular entre os outros jogadores. Tudo nos primeiros 15 minutos. E o que promete ser um ótimo estudo de personagem (quase dirigido por Sam Peckinpah), perde-se de repente em subtramas rasas, sem estilo, e que apenas enfraquecem a ótima trama central, ou seja: a sobrevivência de um malandro de olhos azuis em um covil de lobos, alguém que só conhece a trapaça como único modo de vida.

    Curioso como o diretor Norman Jewison opta pelo drama multifacetado, cada vez mais desinteressante e descentralizado do personagem principal, aqui defendido por um Steve McQueen mais quieto do que nunca, quase sem presença – um grande carisma fingindo ser introvertido, mas devido ao talento do ator, sempre funciona em tela. Graças a sua fama nesse submundo de desafios inebriantes que os jogos clandestinos oferecem, o seu Eric Stoner é convidado a enfrentar uma lenda do pôquer (o igualmente lendário ator Edward Robinson, um monstro sagrado da era de ouro de Hollywood) em troca do tudo ou nada. O que poderia ser um poderosíssimo conto de ambições , torna-se um drama à beira do esquecível, ainda que com duas ótimas cenas que representam toda a tensão, a libido e a ganância que envolve uma mesa recheada de grandes ou terríveis possibilidades – a inteligência dita o jogo, apenas. E o karma, real, quase físico.

    Baseado no romance homônimo de Richard Jessup, eis aqui um retrato pouco ousado, cinematograficamente charmoso, e (semi)glamourizado deste submundo do carteado, em um cenário urbano decadente de uma América fria dos anos 30, em Nova Orleans, cheia de homens sem muito a perder (será mesmo?), já que poucos conservam a própria alma e os que ainda a tem esperam a chance de trocá-la por alguns milhares de dólares. Jewison comanda seus atores sem exigir muito, o que ajuda também a Mesa do Diabo a ser um dos filmes mais desnecessários da carreira de McQueen (Caçador Implacável) e do gigante Robinson (Pacto de Sangue) em seu penúltimo filme.

    Obra feita para jogadores de pôquer? Sim, até a medula, mas deve-se dialogar com todos os públicos através do bom gosto, do entretenimento, e/ou de uma possível sofisticação na linguagem. Ademais, se havia alguma intenção de seduzir não-jogadores a esse mundo, aqui essa ideia rapidamente escorregou para debaixo da mesa.

  • VortCast 100 | Steve McQueen: The King of Cool

    VortCast 100 | Steve McQueen: The King of Cool

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira | @flaviopvieira), Mario Abbade (@marioabbade) e Carlos Brito (@carlosbrito5925) se reúnem para comentar sobre a carreira de uma das maiores estrelas dos anos 1960 e 1970 de Hollywood e ícone da contracultura norte-americana: Steve McQueen. O astro falecido em 1980 transcendeu ao próprio tempo e segue sendo relembrado nos dias de hoje não apenas no cinema, mas na moda, música e literatura.

    Duração: 154 min.
    Edição:
     Flávio Vieira
    Trilha Sonora: Flávio Vieira
    Arte do Banner:
     Bruno Gaspar

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    Filmografia

    Marcado Pela Sarjeta (1956)
    Império de um Gangster (1958)
    A Bolha Assassina (1958)
    Wanted: Dead or Alive (1958/1961)
    Facínoras Mascarados (1959)
    Quando Explodem as Paixões (1959)
    Sete Homens e um Destino (1960)
    A Máquina do Amor (1961)
    O Inferno é para os Heróis (1962)
    O Amante da Morte (1962)
    Fugindo do Inferno (1963)
    Quanto Vale um Homem (1963)
    O Preço de um Prazer (1963)
    O Gênio do Mal (1964)
    A Mesa do Diabo (1965)
    Nevada Smith (1965)
    O Canhoneiro do Yang-Tsé (1966)
    Crown, O Magnífico (1968)
    Bullitt (1968)
    Os Rebeldes (1969)
    As 24 Horas de Le Mans (1971)
    Dez Segundos de Perigo (1972)
    Os Implacáveis (1972)
    Papillon (1973)
    Inferno na Torre (1974)
    O Inimigo do Povo (1978)
    Tom Horn (1980)
    Caçador Implacável (1980)

    Comentados na Edição

    Steve McQueen: O Homem e a Velocidade
    Steve McQueen: O Filme Perdido

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  • Crítica | Marcado Pela Sarjeta

    Crítica | Marcado Pela Sarjeta

    O título em inglês (‘Alguém Lá em Cima Gosta de Mim”), além de fazer mais sentido, glorifica ainda mais a poderosa atuação de Paul Newman, o “príncipe dos olhos azuis”, ainda moço em Hollywood. Na pele do boxeador Rocky Graziano, Newman não só impulsionou como definiu sua carreira, chegando ao máximo do estrelato – ainda nos anos 50! Mesmo alguns anos depois de Uma Rua Chamada Pecado, e com um Marlon Brando furioso rasgando sua camisa ainda muito fresco na memória do público, Newman transformou Graziano num símbolo de glória, queda e volta por cima de uma besta errante que não se encaixa no sistema, e só arruma confusão. Um moleque paupérrimo e criado na violência urbana dos subúrbios americanos, que adulto e perdido nas ruas sujas de Nova York, a sua resposta imediata para o mundo é roubo, morte, briga e cadeia – foge, e volta, foge, e volta.

    Um ciclo de penitência sem fim. Marcado pela Sarjeta é o verdadeiro Rocky: Um Lutador, mas sem o apelo comercial nem a popularidade do clássico de Sylvester Stallone. Além disso, é a segunda melhor obra de boxe de Robert Wise, perdendo apenas para o obrigatório Punhos de Campeão, de 1949 (Assistam!). Wise controla o drama aqui magistralmente, nos fazendo respirar a tensão que envolve o dia a dia de um sobrevivente, numa selva de pedra que o quer morto. Um gato selvagem saltando dos telhados, sem amigos nem futuro, que não acha lugar nem nas forças armadas dos Estados Unidos, e cuja mãe está cada vez mais cansada do filho rebelde que tem. Assim, o filme se prova dinâmico, e escalona os passos de Graziano como um purgatório infinito até metade da obra, quando este finalmente conhece uma mulher que, com um sorriso, ativa o lado civilizado desse “leão de quintal”.

    Sempre um grande cineasta, o autor de A Noviça Rebelde e Desafio do Além não tinha medo de ser versátil, ou muito menos de usar o seu Cinema para expor as contradições, e dificuldades das relações humanas em um ambiente urbano, e de conflitos iminentes. Pode-se dizer que Marcado pela Sarjeta seja um dos seus principais expoentes neste sentido, principalmente na mudança do foco de Graziano: antes duelando com homens e suas leis, e agora, com uma mulher que vira o seu mundo de cabeça para baixo, com a esperança agora real de ser feliz, no seio de uma família normal, mas com um passado que irá assombrar o ex-fora da lei por seus crimes, e suas vítimas (só Deus perdoa). Mas o que fica para a eternidade, mesmo, são as cenas tempestuosas de total entrega emocional de Newman. Um triunfo de sua geração, num dos seus melhores trabalhos.

  • Crítica | Robin e Marian

    Crítica | Robin e Marian

    De Richard Lester, Robin e Marian adapta a fase mais velha da clássica história do príncipe dos ladrões que roubava dos ricos para dar aos pobres: Robin Hood. Seu começo se dá em meio a uma paisagem estranha onde ocorrem alguns eventos aparentemente desconexos que resultam numa conversa entre um Robin já cansado (Sean Connery) e um sujeito caolho. Nesse início, em forma de epílogo, se nota que o antigo contraventor mudou, envelheceu, sofreu e teve de se submeter ao rei Ricardo.

    Ricardo Coração de Leão é executado por Richard Harris em um performance bastante elogiada na época. Os momentos em que ele contracena com Connery são carregados de uma química notável e registram o quão frouxo e melancólico pode ser um reinado. Seja em seus últimos momentos com os súditos ou no cortejo fúnebre do monarca se percebe a tristeza tanto nos que fizeram parte da nobreza, quanto dos plebeus que viam à distância a decadência do governo.

    Lester apresenta uma face nada nobre dos personagens. Robin, como dito antes, não é mais o mesmo, seja pelos fios brancos de sua barba e ausência de cabelos em sua cabeça ou por seu espírito domado e divergente dos tempos em que saqueava a monarquia para alimentar a plebe. O retorno à floresta que antes chamava de lar se dá em um momento igualmente sem glórias, e ele é tão desencontrado com a realidade que mal percebe estar atacando seus antigos amigos. Boa parte dessa construção de tristes figuras se dá pelo esforço do elenco, que reúne Connery fazendo a figura de um homem de passado poderoso e que vê os anos tirando-lhe a força e pujança, como também por meio do restante do elenco, com a nova versão de Marian de Audrey Hepburn, a personagem mais bem explorada fora o famoso ladrão, ou com as participações de Robert Shaw, Ian Holm e Bill Maynard.

    A filmografia de Lester se divide em fases bem distintas, a primeira em musicais onde acompanhava os Beatles, posteriormente focado em dramas de época, e por fim, sua fase mais decadente, quando substituiu Richard Donner em Superman II e Superman III. Essa obra é de sua fase mais elogiada, e o que se vê é um cuidado acurado por trazer uma carga dramática correspondente ao teatro clássico britânico.

    Robin e Marian é uma obra tão dedicada a desconstrução da mitologia que a primeira flecha desferida se dá apenas com quase uma hora de exibição. A direção de arte de Gil Parrondo ajuda a trabalhar essa desmistificação. O resultado final é um filme melancólico que reflete sobre envelhecimento e a distância entre pessoas que se amam, ainda que características básicas como o orgulho e honra sigam intactos.

     

  • Crítica | Shalako

    Crítica | Shalako

    Shalako é um filme de 1968, protagonizado por Sean Connery e dirigido por Edward Dmytryk. O longa aborda a presença dos europeus no velho oeste ao mostrar um grupo de aristocratas europeus recém-chegados ao Novo México, com todo tipo de luxo comum a sua classe. Baseado no livro de Louis L’Amour, o ponto de partida da aventura é o tédio desses ricaços que vão até o novo mundo em busca de aventuras.

    Esse não é um western comum como a maioria dos que se colocam dentro desse subgênero. Seus momentos iniciais dão conta de monótonas e prolongadas conversas sobre os rumos que a tal viagem teria. Em meio a essas tratativas, o observador do exército dos Estados Unidos vivido por Connery se aproxima, e praticamente, só trava conversas sinceras com  a  Condessa Irina Lazaar, de Brigitte Bardot, que pouco tempo depois é raptada, sendo esse basicamente o primeiro evento diferenciado e com alguma urgência dentro da trama básica.

    O filme carece de ritmo, além de desperdiçar a persona de Connery num longa desse quilate. A origem escocesa do ator não garantiu tantas oportunidades de fazer westerns quanto outros atores de sua geração. Além disso, a figura de Bardot não ultrapassa a barreira de simples e bela figura de admiração. Shalako e Irina são os personagens mais complexos, mas não são exatamente tridimensionais, seus dramas, sentimentos e anseios são baseados quase inteiramente em arquétipos e nada mais. Com pouco menos de 70 minutos de exibição há um aprofundamento da relação dos dois, com um flerte que era mais do que óbvio que aconteceria antes mesmo de começar o filme, no entanto, nem a química deles é bem explorada.

    Há alguns momentos bem complicados do ponto de vista ético, em especial a forma como os nativos americanos são retratados. Se nos anos sessenta os western spaghetti costumavam valorizar as atitudes dos povos latinos, aqui o modo como se retrata esses povos originários é no mínimo equivocada.

    Shalako procura se tornar um épico, principalmente ao mostrar o combate entre o herói e o bravo nativo (Woody Strode), e esta parte é a que mais acerta ao colocar um pouco de camadas na forma como retrata os ameríndios, mas a história em si não possui grandes curvas ou arcos dramáticos, ao contrário, seus melhores pontos envolvem a exploração das suas figuras mais famosas, se resumindo basicamente a isso, e não na ação, violência e discussão a respeito do estilo de vida desses mesmos colonizadores.

     

  • Crítica | Na Rota do Inferno

    Crítica | Na Rota do Inferno

    Filme britânico de 1957, Na Rota do Inferno traz uma história sobre foras da lei, dirigido por Cy Endfield e filmado em preto-e-branco. Seu início se dá com uma cena simbólica e bastante inventiva, ao utilizar a câmera em primeira pessoa, emulando o olhar de alguém ao volante, acompanhada pela música de Huppert Clifford. O filme é conhecido também pelo seu nome original, Hell Drivers, além de ter sido um dos primeiros trabalhos de Sean Connery, na época com apenas 27 anos.

    A trama, bastante simples, possui uma premissa esquisitíssima. Uma empresa de transportes possui uma frota de caminhões e seus motoristas são escolhidos por ter nervos de aço, já que eles precisam correr muito com as suas cargas. Isso produz não só a cena inicial, mas também outras tantas cenas de corrida livre pelas estradas com os  caminhões correndo praticamente sem freio. A narrativa segue a vida de Tom Yately, (Stanley Baker) recém-chegado na cooperativa, e que se mostra ser um exímio piloto.

    A história também apela para a simplicidade textual ao associar o gosto pela vida radical a bandidos e marginais, como se apreciar alta velocidade fosse algo moralmente errado. O cenário é de foras da lei utilizando esse estilo de vida, e dada a época de 1957 quando foi lançado, ele possui alguma violência, ainda que bastante comedida.

    O roteiro lida com questões óbvias, Tom varia entre o anti-herói e o sujeito de bom coração, ainda que seja mal quisto por parte de sua família, cuja índole claramente não é perversa. Da parte de Connery, sua participação é pequena, ele aparece com pouco menos de trinta minutos, e por ter uma biotipo semelhante ao de Baker, boa parte dos materiais de divulgação usavam sua figura nos pôsteres, mudando inclusive a arte a fim de ludibriar possíveis espectadores e compradores, como se o ator escocês tivesse uma participação maior. Ainda assim, Na Rota do Inferno possui cenas de perseguição bem executadas e que serviriam de inspiração para filmes como Faster, Pussycat! Kill! Kill!, Bullit, 60 Segundos e tantos outros filmes sobre super velocidade.

    https://www.youtube.com/watch?v=X8qFD2s0Fwg

  • Crítica | A Felicidade Não Se Compra

    Crítica | A Felicidade Não Se Compra

    The Academy of Motion Picture Arts and Sciences will examine the technology behind "It's a Wonderful Life" at Los Angeles and New York City screenings on Friday, December 9, and Monday, December 12, respectively.

    Considerado um dos primeiros grandes diretores americanos, a trajetória de Frank Capra no cinema dialogava diretamente com sua época através de suas obras, que representavam a sociedade americana e apresentavam em seus roteiros uma mensagem explícita sobre o momento presente. O distanciamento temporal provou que o diretor, de origem italiana, não só compôs grandes produções para aquele momento como foi capaz de universalizá-las e fazer de sua trajetória parte da história cinematográfica.

    Localizado na fase final de sua filmografia, A Felicidade Não Se Compra se definiu como um de seus filmes mais reconhecidos, tanto pela mensagem universal quanto pelo destaque que já possuía em sua carreira devido a produções como Aconteceu Naquela Noite, A Mulher Faz o Homem, Do Mundo Não Se Leva Nada e O Galante Mr. Deeds. Na época de seu lançamento, o filme recebeu críticas mistas sem muito elogios. Críticos atribuíam uma queda em sua carreira devido a uma trama mais suave do que a das histórias anteriores. Interessante como o mesmo aspecto, a leveza narrativa, seria objeto de reverência em anos futuros e promoveria-o à lista de grandes filmes de todos os tempos.

    A produção foi o primeiro lançamento do estúdio do diretor, o Liberty Films, em parceira com Samuel J. Briskin, um dos grandes produtores da era de ouro do cinema americano. Baseado em um conto de Philip Van Doren Stern, lançado de maneira independente pelo autor, o filme se tornou um representante icônico de história natalina com uma mensagem inspiradora ao abordar um anjo que, para ganhar suas asas, tem a missão de ajudar um empresário deprimido com problemas financeiros. Como seu argumento é fabular, envolvendo uma trama que transita entre realidade e fantasia, é natural a comparação com outra história cuja base é semelhante: O Conto de Natal, de Charles Dickens. Em ambas as histórias, a data cristã do nascimento de Jesus é o ambiente no qual as personagens estão inseridas em sua trajetória modificadora.

    Lançado em 1946, o filme localiza-se após uma conturbada guerra mundial, época em que o cinema era um entretenimento de escapismo diante de uma sociedade desolada. Nesse cenário, as obras de Capra promoviam uma visão iluminada sobre a vida, projetando uma inspiração motivacional que tocava a sensibilidade do público em tempos árduos. No roteiro escrito por Frances Goodrich, Albert Hackett e Capra, mesmo que a obra utilize uma famosa data histórica ocidental, o símbolo da renovação é a vertente seguida, conseguindo levar o público a um contexto maior que toca no cerne da existência. Mesmo que a mensagem pareça moralista, ao retirar a personagem central, George Bailey, de sua própria vida, e colocá-lo como um personagem de não-existência, a reflexão sobre a importância da vida, bem como a dimensão de uma teia de contatos e influência, demonstra como o todo seria interligado por pequenas partes, demonstrando que cada um tem seu significado, como pequenas peças de um relógio invisível. Ainda que a história seja explicitamente clara ao propagar a necessidade de se fazer o bem.

    A maneira pela qual a trama cresce e conduz com eficiência e técnica a sensibilidade é de um talento sublime. A figura interpretada pelo excelente James Stewart esbanja carisma desde o início para, em momentos de conflito, o espectador compartilhar sua dor. Quando o fantástico quebra a realidade e o próprio personagem vê o vazio de uma vida sem sua existência, a narrativa vai atravessando suas relações do nível exterior rumo ao centro familiar. Neste aspecto, evidencia-se a importância de um núcleo ativo de relações. Um caminho que passa pelos conhecidos, amigos até chegar nos dois níveis da família: a genealogia anterior a Bailey com irmãos e mãe, para aquela criada a partir dele com a esposa e os filhos. É este núcleo o ponto agudo de emoção e agonia da personagem. Assim, o roteiro seleciona esta formação como a mais explícita revelação do bancário: a esposa que ele ama e a família pela qual deu a vida.

    Quando retorna para a vida real, é este mesmo núcleo familiar que se arquiteta como base. Embora Bailey seja um personagem querido por toda cidade, é a esposa que move sua teia de contatos e lhe ajuda em um momento de crise. A sensibilidade corre externa e internamente: é explícita quando demonstra o companheirismo de seus amigos e implícita pelo amor da esposa, fechando um circulo simbólico de influências, do macro ao micro.

    A frase que encerra o longa, nenhum homem é um fracasso quando se tem amigos, é a conclusão final de uma narrativa que explora de maneira eficiente as relações sensíveis de um microcosmos. Mesmo sendo um filme natalino, aproveitando-se deste momento reflexivo, A Felicidade Não Se Compra trabalha com perfeição os sentimentos do público a seu favor, explicitando o lado emotivo para arrebatá-lo, numa história universal sobre a condição humana.

  • Crítica | Acordes do Coração

    Crítica | Acordes do Coração

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    Kandinsky disse que o Artista que não exerce sua arte é um escravo preguiçoso. Repetir mecanicamente algo até esquecer que já está fazendo há horas é a vida de qualquer pessoa dedicada a seja lá o que for É essa dedicação que vemos desde a escolha do pequeno Paul Boray (John Garfield) ao violino ao invés de um taco de baseball nos primeiros minutos de Humoresque (Acordes do Coração, no Brasil). A peça de Antonín Dvořák dá título ao filme, dirigido por Jean Negulesco, e é o primeiro nome que me vem à lembrança quando penso em um romance clássico de Hollywood. Não só Joan Crawford e John Garfield estão em performances memoráveis, mas as marcantes passagens musicais conduzidas pela orquestra nem sequer são percebidas como um recurso individual: ela é uma personagem viva e forte que dá o tom e vida às relações humanas desse filme, percorrendo trechos de Tristão e Isolda de Wagner, CarmenTchaikovsky, entre outras obras interpretadas por Isaac Stern e conduzidas e compostas por Franz Waxman.

    Trata-se de uma história muito simples; o violinista Paul Boray, com o desejo de ajudar sua família, conhece a rica patrona das artes Helen Wright (Crawford), que lhe apresenta as pessoas certas e consegue a oportunidade que Paul precisava para provar ser um grande violinista. No meio de tantas coisas boas, o músico acaba se apaixonando pela forte personalidade e beleza de Helen, que é casada.

    Com diálogos afiados de ironia e cinismo, é difícil perceber que suas duas horas de duração passam como um sopro. O diretor pouco deixa a câmera passear entre as cenas ou se estender em longas tomadas em silêncio. Na verdade, Humoresque se atenta em estar dinâmico a todo momento fazendo uso de fade ins e fade outs para manter as passagens de tempo presentes na história, mas não lhes tirando o foco da mesma. Ele igualmente realça o dinamismo das cenas com certo preciosismo nas escolhas dos diálogos e gestos que cada um dos personagens mostram em suas interpretações.

    O trabalho de Oscar Levant como Sid, o pianista falastrão que possui as melhores sacadas do filme, e de todo o elenco de apoio só acrescenta na qualidade dos diálogos e na imersão que o filme produz. Paul Cavanagh, o marido de Helen, aparece em apenas três diálogos, e você compreende perfeitamente a condição de pessoa já amadurecida e sem rumo que ele transparece. O filme é todo fotografado desde seu início com certa sobriedade, que me lembra do cinema noir, principalmente pelos diálogos. Mas é na escuridão da maioria dos cenários que é possível absorver esse tipo de atmosfera, principalmente nas cenas em bares.

    Mas apesar de tudo isso, a tragédia é o maior tema desse romance impossível. Na verdade trata-se de um triângulo amoroso entre um homem, seu violino e uma mulher… e o violino vence. Artistas acabam dedicando suas vidas a fazer algo muito maior que o próprio viver, pelo simples desejo de fazer. Isso torna todas as coisas horrivelmente simples, com causa e efeito. E Joan Crawford é eternamente marcada como o mais doce sonho intocável que se esvai aos poucos, deixando suas pegadas na história do cinema com essa melodia em preto e branco.

    É certamente atemporal.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | O Mundo Perdido (1925)

    Crítica | O Mundo Perdido (1925)

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    Quase quinze anos antes dos filmes de Sherlock Holmes com Basil Rathbone, o autor Sir Arthur Conan Doyle já era adaptado para as grandes telas com um clássico do cinema mudo, em 1925. O Mundo Perdido conta a estranha história do desbravador Challenger (Wallace Beery), um professor que lidera uma expedição britânica até a “longínqua” América do Sul, atrás do lugar em que ele acreditava viver criaturas pré-históricas, em pleno mundo urbanizado.

    Os exploradores rumam em direção a um planalto amazônico, sem delongas, numa trama de arrogância e total desconhecimento por parte dos europeus poderosos que enxergam em tudo o que é “não branco” algo necessariamente primitivo. Mesmo deixando de lado a xenofobia que compunha o conhecimento popular da época, há pouco de pensamento substancial, mesmo em nome dos que se dizem defensores da ciência. Mesmo Challenger parece um devoto que não dedica a sua vida a crença religiosa, mas que faz de sua obsessão um artifício tão maniqueísta quanto.

    Um tempo demasiado é gasto na preparação da força-tarefa da viagem, estabelecendo-se que aquela era na verdade uma expedição de resgate, visto que já haviam incursionado àquelas terras distantes anteriormente. A formação dos bravos inclui caçadores, membros da imprensa e uma mulher apaixonada, conduzindo a equipe ao máximo de heterogeneidade possível, fator completamente irrelevante diante dos perigos que supostamente enfrentariam.

    A condução de Harry O. Hoyt é amadora se comparada às produções de hoje, mas consegue equilibrar de modo não assustador as cenas com atores reais e as criaturas digitais, inserindo pela primeira vez em larga escala a tecnologia de stop motion. A primeira criatura do filme é um pterodáctilo, dinossauro voador que se assemelha a uma ave e que alimenta seus filhotes em um ninho. Fora a aparição do animal, ainda surge um símio, cuja caracterização não passa de um homem fantasiado, o que se faz perguntar se ele corresponde a um macaco ou um elo perdido entre os seres pré-históricos e o homo sapiens.

    É curioso notar como a exploração da atmosfera da Terra mudou. Ao exibir uma luta, que deveria ser emocionante, entre um tiranossauro e um alossauro – ambos carnívoros gigantescos –, não há mudança na trilha sonora, que faz menção ao otimismo ao invés de focar os acordes na temível batalha a qual os pobres homens assistem. O conceito de usar a música como elemento narrativo de suspense ainda não era tão claro, apesar das óbvias exceções vistas no Nosferatu de F.W. Murnau e em seus pares do expressionismo alemão e do movimento Kammerspiel.

    Os erros e indiscrições provenientes da louca batalha pela cadeia alimentar são passíveis de perdão pela obra se passar em uma época que a paleontologia passava longe de ser uma ciência acessível – piorando e muito na época que Conan Doyle escreveu sua novela. O Mundo Perdido consegue, apesar de muitos pesares, manter um clima de escapismo ímpar, típico do cinema de sua época, sobrevivendo ao tempo, sendo apreciado por muitos e servindo de inspiração para obras posteriores, como os filmes de King Kong, suas continuações (e remakes), além de alimentar o imaginário de Steven Spielberg rumo ao clássico Jurassic Park – O Parque dos Dinossauros.

    As influências, tanto no filme de Merian Caldwell Cooper Ernest B. Schoedsack quanto no segundo volume de Jurassic Park, O Mundo Perdido: Jurassic Park, são vistas através da tentativa de trazer uma das criaturas monstruosas para o convívio urbano, transportando um braquiossauro (chamado de brontossauro, à época) para a capital inglesa, o que obviamente deu errado e fez causar um sem número de problemas à metrópole londrina. O alvoroço fez com que as pessoas corressem para os subterrâneos, agindo como manada e fazendo se perguntar qual dos seres possuía comportamento animalesco. Ao final, abate-se o animal irracional, deixando a questão de quem seria a fera ainda mais viva do que o óbvio diálogo ao final de King Kong de 1933. O argumento abre um precedente para uma discussão maior, fazendo de Mundo Perdido uma pérola não tão valorizada quanto deveria ser.

  • Crítica | Tempos Modernos

    Crítica | Tempos Modernos

    Lançado em 1936, após três anos de produção, Tempos Modernos é uma das grandes obras de Charlie Chaplin, densa como arte e significativa como retrato de uma época, sobre a potência do capitalismo e as forças opostas entre trabalhadores e donos dos meios de produção. Estruturas criticadas pela narrativa que ainda reflete movimentos vividos no presente.

    Antes do lançamento de O Artista, a produção era considerada o último filme mudo americano. Uma escolha narrativa proposital de Chaplin, que utiliza habilmente a voz somente através de objetos eletrônicos, representando o avanço tecnológico. Seria também o último filme com a marcante personagem de Carlitos, o vagabundo mambembe que, de maneira bem-humorada, representava um tipo marginalizado que sobrevivia por suas peripécias. Um ícone que se confunde com o seu criador, sendo uma das maiores figuras do cinema, sem dúvida. Reconhecendo que a personagem era uma clássica representação do humor físico, o vagabundo perderia a eloquência dos gestos apurados pela interpretação física do ator. Assim, o vagabundo sai de cena em um grande retrato crítico.

    O tema de Tempos Modernos é introduzido por uma frase exibida em cena, configurando a relação analítica entre a sociedade e a indústria, e estabelecendo a análise da importância do indivíduo diante do mundo capitalista. Um mote representando a história que seria apresentada e bem justificada na primeira cena do longa, com ovelhas correndo por um corredor estreito para, em seguida, um corte de cena mostrar um grande grupo de trabalhadores saindo de um metrô. Em ambas a cenas, é possível notar, além do simbolismo óbvio, um único personagem destoante: uma ovelha negra e um homem trajando chapéu preto, respectivamente. Uma primeira provocação de Chaplin sobre o individualismo na sociedade que, em ambas cenas, não parece ter nenhum significado diante da multidão coletiva.

    A obra é uma das mais poéticas e críticas do autor, e se vale da narrativa pela imagem do cinema mudo como ênfase para retratar acontecimentos envolvendo o vagabundo. Atos que podem ser vistos como episódios, desenvolvidos em pequenas partes, que poderiam figurar em curtas-metragens mas que, formatados sob um mesmo tema, estabelecem uma crítica contra a Revolução Industrial e a Grande Depressão americana.

    A habilidade narrativa de Chaplin, responsável pela direção e roteiro, é impressionante. O domínio da técnica gera uma multiplicidade narrativa para diversas cenas, mantendo o cômico como toante ao mesmo tempo em que a crítica é interpretada pelo público. A imagem mais icônica desta obra, o homem sendo engolido pela máquina, é um exemplo de sua genialidade. De maneira quase infantil, mantendo a vertente do riso, o público compreende a crítica sobre a modificação estrutural da sociedade, na qual o homem não é maior do que o império do capitalismo industrial.

    O vagabundo é um personagem de humor inserido em um difícil contexto da história da América. Chaplin equilibra com perfeição a marginalidade dramática e mantém a comédia em cenas bem delineadas e simples, e com significado. A imagem era a única – ou maior – forma de mensagem dos filmes mudos. Em comparação a filmes contemporâneos – principalmente os lançamentos de verão –, há muito mais uso de cenas simbólicas e interpretativas, que evitam o óbvio mas retratam com eficiência como o trabalho era visto na época.
    Os excessos da jornada de trabalho geram uma das primeiras cenas cômicas. Trabalhando na linha de produção em um trabalho de repetição contínua de movimentos, o vagabundo se condiciona ao esforço manual e enlouquece, vendo em qualquer lugar parafusos para apertar. A comédia adquire o ar crítico sem precisar ser agressiva. A mensagem é recebida claramente pelo público, e o riso se estabelece de maneira fácil.

    Em seus longas-metragens envolvendo a personagem, Chaplin sempre narrava uma história múltipla, dando vazão ao elemento dramático sem perder o cômico. Além disso, explorava personagens femininos que estabeleciam uma jornada em paralelo a do vagabundo para, posteriormente, instaurar um caminho mútuo. Como a vendedora de flores em Luzes da Cidade, uma órfã representa outro tipo marginalizado pela sociedade, a menor cujo pai está desempregado e vaga pela cidade à procura de alimento. O pai da garota se torna uma baixa em um protesto por melhores salários. Mesmo que esta morte não seja explícita, reconhecemos dois tipos em cena: o grupo que luta por maiores direitos e outro que reprime com violência este grupo.

    Como engrenagens de uma máquina, o roteiro se articula com perfeição entre ambas protagonistas e suas peripécias para continuar vivendo. O vagabundo como operário, a órfã como ladra; cada um sobrevivendo como pode. Chaplin produz candura no encontro das personagens, que reconhecem sua marginalidade, sem retirar as gags cômicas, mantendo a firmeza nos dois frontes: drama e comédia, sem perder força em nenhum dos dois, mesmo após 79 anos.

    Além do retrato urbano, o filme é lembrado por sua canções também compostas por Chaplin, um talento múltiplo do artista que se dedicava também às trilhas de suas produções. A Canção Sem Sentido, cantada pelo personagem em seu trabalho como garçom, é o momento mais cênico da produção e, novamente, varia drama e comédia. O público sabe que é necessário para o vagabundo cantar em seu emprego, uma exigência para ser contratado. Diante da necessidade, a personagem realiza uma apresentação quase circense, como um palhaço em frente às câmeras apresentando um número. Mesmo sem compreendermos a canção inteligível feita com partes em italiano e francês, o gestual de Chaplin narra uma história e, novamente, sua precisão de humor físico e pantomima transformam a cena em um dos grandes momentos da película.

    A canção Smile, inicialmente concebida como instrumental e, décadas depois, acrescida de uma bonita letra, é um dos temas que se apresentam no decorrer do longa, e resume melodiosamente a mensagem de esperança por detrás de toda frieza mecânica da sociedade. Mesmo com todas as peripécias vistas em cena, as personagens voltam ao ponto de partida como dois vagabundos desempregados, mas reconfigurados em outra situação: estão unidos. Chaplin deixa uma mensagem poética simples e precisa sobre a necessidade de enfrentar as adversidades de frente e, mesmo em momentos ruins, sorrir. Ao lado da garota, sai de cena rumo a lugar algum, um momento presente em obras anteriores mas, dessa vez, carregado de poesia e melancolia: a despedida de um grande personagem em um grande filme crítico.

  • Crítica | O Selvagem

    Crítica | O Selvagem

    Antes até do advento da Harley Davidson, nos primórdios do exploitation dos motorcycle movies, a fita da Stanley Kramer Production começa sensacional, com uma música que sobe seu tom dramaticamente, seguida de uma mensagem alarmista, de que a tragédia que seria mostrada poderia acontecer em qualquer lugar. O eco dos anos cinquenta ainda não permitia uma abordagem que não fosse calcada no extremo moralismo. A narração de Marlon Brando, ainda muito jovem, representava o alerta que o sujeito americano deveria tomar para si. É deste modo ultra conservador que começa o filme de Laslo Benedek, usando o conto anárquico para exemplificar o quão selvagens são os adeptos daquele estilo de vida em duas rodas.

    Baseado num conto de Frank Rooney, chamado The Cyclists’ Raid, o filme com roteiro de John Paxton e Ben Maddow – que não é creditado – é focado nas ações de bando de desordenados, que cortam a pequena cidade de Wrightsville trajados em suas jaquetas de couro, de postura arredia e regada a antítese do bom mocismo. Eles estão a margem da sociedade, e são liderados pela imponente e sexy figura de Johnny Strabler (Brando), responsável pela alcunha do grupo, Black Rebels Motorcycle Club.

    Analisar todo esse comportamento anacronicamente é um esforço de futilidade sem tamanho, uma vez que em tempos mais modernos a postura dos rapazes possa ser considerada como leve e até saudável. O modo como toda a população enxerga o moto-clube é de um pavor sem limites, sentem-se amedrontados por aquele pastiche de boêmia, caricatural em sua essência por ser planejada para uma plateia excessivamente burguesa.

    O dito popular de que o homem teme o desconhecido ganha um bom capítulo em seu registro cinematográfico com esse espécime, mesmo que a partir de uma análise bem observada a maior parte das ações de Johnny sejam completamente inofensivas. Na maioria dos casos é como um adulto se municiar de armas de fogo para combater a malcriação infantil, oprimindo-a ao ponto dela não querer mais se expressar por nenhum meio que não seja a vontade de seus parentes mais vividos.

    Mas o estado de suposta paz logo é interrompido, com a chegada de Chino (Lee Marvin), um antigo desafeto de Johnny, que o procurava em todos os cantos imundos possíveis. Não demora muito para os dois darem início a um embate, aos olhos dos cidadãos da pacata Wrightsville e da donzela por quem o protagonista se afeiçoou – uma vez que um coração valente necessita repousar em um lugar tranquilo – a bela Kathie Bleeker (Mary Murphy), que assiste a tudo atônita.

    As buzininhas estridentes dos adversários representam o chamado à aventura do anti-herói, um som agudo e incômodo, originado da audácia de um adversário sem honra, que não respeita nada nem ninguém e que tem o atrevimento de envolver seres inocentes, que nada têm a ver com a peleja entre motoqueiros. Apesar da capa de pretensa vilania que é sugerida a Johnny e seus asseclas, aos seus pares ainda é guardado um comportamento honroso, que a despeito até da abordagem simplista de seus reclames, é grafada de modo notório pela câmera de Benedek.

    A Triumph Thunderbird 6T pilotada pelo personagem principal simboliza uma biga romana, as mesmas que eram usadas nos embates de gladiadores, cuja memória popular remete ao clássico Ben Hur, com Charlton Heston. O estranho senso de honra de Johnny também tem muito a ver com o comportamento dos tais combatentes, que carregavam um escudo de virtude mesmo sendo páreas sociais. O paralelo do motociclista com os “duelistas” é maior se analisado pelo viés da escravidão, ainda que em Roma os grilhões fossem de metal e os vistos em The Wild One sejam as amarras morais e sociais de uma coletividade que os torna bandidos, baseados somente em sua aparência.

    A velha questão paradoxal da origem do mal é elevada, discutindo se os rebeldes são assim por serem tratados como uma mazela social ou se a comunidade os trata desta forma por suas arruaças, claro, com a película pendendo para a segunda opção, exceto pela conduta de Strabler, que a despeito do couro e da boina, é um perfeito cavalheiro, ao menos, até a metade do filme. Seu personagem é o único dimensional da fita – novamente é preciso apelar para a cronicidade do filme e de sua época, já que este é um retrato. A relação de Johnny e Kathie passa por estágios de aceitação e rejeição, muito presentes em qualquer romance clássico, mas claro, com situações de altos e baixos muito mais agressivos do que o normal, mas que em sua intensidade, remetem até ao conto shakesperiano de Romeu e Julieta, cujas partes também não podem conviver em paz graças ao entorno caótico.

    A realidade por trás da emblemática figura de bad boy que Johnny tomou para si não passa de uma carapaça, um despiste para uma alma que na verdade é aflita, cujo discurso contestatório é na verdade um pedido de socorro, para um sujeito carente e imaturo, que faz da atitude malcriada seu modo de expressar demasiado infantil perto do ideário de cavaleiro andante que ele tenta ser. Mas a horda de enfurecidos cidadãos, que decide deflagar ao “infante” a sua fúria vê o terrível acaso agir, jogando sobre seus ombros uma tragédia, que obviamente sofre a tentativa de culpar o elo mais fraco daquela corrente, mas que não logra êxito.

    Ao final, mesmo provada a inocência do líder do clube, a sensação de culpa parece ter acometido ele, mesmo que sua fala não vá de encontro com o ato de assumir para si a autoria do delito. Em seus ombros pesa o olhar condenatório da moça, que em meio as investigações, declara que não poderia sentir-se apaixonada por aquela figura, ainda que a questão guarde em si muita ambiguidade. A despedida solitária do condado exemplifica qual seria o futuro do jovem, solitário, possivelmente remetendo até aos dizeres no começo do filme de que “história chocante cujo desafio público é não deixar acontecer de novo”. É incrível como mesmo dentro do ultra-moralismo da obra ainda é possível arrancar uma dura crítica a hipocrisia da época e da sociedade. São filmes como este que merecem um revisionismo mais atento por parte da crítica e público.

  • Crítica | A Balada de Narayama (1958)

    Crítica | A Balada de Narayama (1958)

    “Os olhos são cegos: É preciso buscar com o coração.” – O Pequeno Príncipe.

    O Cinema quis ser pintor a partir de O Gabinete do Dr. Caligari, mas não se achou bom o bastante. Voltou correndo para casa, para o quarto, e lá se trancou até a realização de um de seus melhores ensejos: A Balada de Narayama. Já não era mais um desejo, mas uma necessidade. A retina dos que veem o mundo das cores e enxerga as cores do mundo agradece o esforço, ímpeto dos inconformados com o poder do preto e branco incomparável no ilimitado sensorial além-tela, palco, picadeiro ou vibração; no caso, moldura. Narayama é a paleta do Éden. No filme, apenas uma montanha é imprescindível para a história e a trama coexistirem em paz rumo ao clímax. Uma das poucas obras que é inerente à peneira dos valores qualitativos conjugados ao tempo, cuja saturação visual é a mesma que garante o espetáculo a olhos nus e extasiados em absoluto. Sobretudo, promove a garantia do que lhe é antônimo, ou seja, a rigidez da narrativa e a confiança que essa nos transmite, tamanho é o caráter irrevogável da alegoria apresentada. Torna-nos reféns da estética-da-ética ímpar da produção; de seus personagens complexos enquanto seres humanos normais; dos cenários externos, filmados como internos tal é a precisão cirúrgica dos planos cênicos. A intimidade obrigatória do olhar com as províncias japonesas caracteriza-se pela profundidade do foco imagético. Van Gogh gostaria de estar vivo para conferir esse filme – Yimou Zhang teve essa sorte.

    O filme foi realizado por Keisuke Kinoshita, mestre de poucas incursões, contudo, suficientes. Pelo visto, o menos ainda era mais em 1958, quando o artista deixou de ser um ensaísta empolgado, não pela alma ou sequer pela mente humana, mas pelos impulsos e instintos que fazem a comunicação entre os dois polos, passando da maestria mencionada para a sabedoria e a segurança dignas das vidas que tratou de eternizar. É possível se pegar divagando o porquê, na mais pura filosofia de bar ou acadêmica. Não importa: ama-se e odeia a outra no limite da razão.

    Pois há, lá fora, cérebros bem ordenados que se confundem nas vias do coração, e vice-versa. Na arte, no que pode ser chamado disso, é quase sempre memorável tal desequilíbrio de intenções, espécie de transa sem compasso. Tais como a Literatura tingida de Bosch; os sonetos Musicais contemporâneos de Bob Dylan; a interação total da Escultura corporal dos artistas de rua, as artes cooperam entre si em prol de um bem maior. Notável em Narayama é a simbiose delirante entre o Cinema e o Teatro.

    Uma aliança acima do bem e do mal, do belo e do feio, do devido e do evitável, tal o perfeito casamento das forças de ambas as artes, tão opostas que sempre se atraem em vários alcances, mas raramente com os adjetivos “perfeito” e “duradouro” para consumar a união. Em A Balada de Narayama vidas são eternizadas, uma glória perpétua numa trama acerca da aceitação da morte, graças ao gatilho que dispara o mais nobre fazer artístico. Pleno, sóbrio e seguro.
    Filmes que dispõem de singularidade própria são um fenômeno curioso, escasso no quarteirão do que é produzido ao longo do caminho, e principalmente, são um adendo de qualidade no cinema em geral e na filmografia (pouco conhecida) de Kinoshita, cineasta cuja estética de uso único da cor em seus filmes sofreu batalhas e redenções no decorrer de seu legado crítico. E então, quando as tonalidades das explosões dramáticas não mais fazem justiça, nem servem tampouco para conter a potência utópica que A Balada de Narayama merece ostentar, o poder policromático da obra audiovisual alcança uma atmosfera sobrenatural. No instante que voa além do cênico, do visual, do audível, do uso quase excessivo, extra diegético, de conteúdo emocional, ou de qualquer outra tentativa complementar, a obra se completa em si. Afinal, é uma obra de arte.

  • Crítica | Os 300 de Esparta

    Crítica | Os 300 de Esparta

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    Em 1962 chegava às telas de cinema a película de Rudolph Maté sobre a batalha das Termópilas entre helenos e persas. Como era de praxe, a trama não tem quase nenhuma fidelidade histórica, mas a fidedignidade e veracidade não são os maiores problemas desse 300, a ambientação não é diferente de seus contemporâneos, seja nos figurinos espalhafatosos e em seus defeitos maiores.

    O filme é lento, o protagonista demora a aparecer até para dar certa importância ao vilão e a pseudo-união entre os estados gregos. Os espartanos no discurso são retratados como guerreiros bravos, honrados e cheios de frases de efeito, mas com o decorrer da trama essa imagem é desconstruída.

    Há uma forte carga moral, completamente incompatível com a época da batalha, e mais ligada ao momento dos anos 60. Um casal grego estabelecendo voto de castidade até o casamento seria um contra-argumento ao estouro da liberdade sexual, associada a movimentos ultra-culturais, mas as mensagens não param por aí. As alegorias passam também pelo confronto ideológico EUA x URSS na Guerra Fria. Espartanos são puritanos, corretos, se valem da força física para demonstrar sua superioridade ao resto mundo e acima de tudo, só se manifestam belicosamente após serem confrontados. Seus soldados são convictos da vitória, chegando a citar que uma vez que quando um “espartano entra na guerra” não há como perdê-la, essa arrogância é típica também do pensamento norte-americano, que se julga superior a tudo e todos.

    A trama da possível traição também serve a questão da paranoia estadunidense, que via em muitos o ideal vermelho. O exército persa lembra em alguns momentos os selvagens índios que antagonizavam os Westerns clássicos. Há até um regimento no esquete grego que está lá unicamente para tocar flauta. As lanças jogadas parecem retiradas do jogo infantil pega-varetas.

    Os discursos de união entre os estados proferidos por Leonidas (Richard Egan) são infantis e ufanistas. Os personagens são mal construídos, o drama apresentado por Ellas (Diane Baker) é bipolar, uma hora ela quer que seu futuro marido seja um guerreiro espartano na linha de frente e na outra quer uma vida tranquila no campo.

    A redenção do suposto traidor serve unicamente para justificar o clichê do roteiro, de que todo espartano é um bravo. A esperança grega é toda pautada em fé, religião e visões inspiradas pelos deuses – semelhantes ao conhecido conservadorismo republicano.

    A batalha final apesar de ser a mais bem filmada, ainda é mal feita. O maior erro do filme é não exprimir em tela a vantagem do desfiladeiro, claro, devido aos escassos recursos da época. O lendário batalhão não possui qualquer imponência, a força intransponível só foi demonstrado nas falas do “Rei Nicolau”.

    A única demonstração de coragem real, foi a recusa em entregar o cadáver do nobre Leonidas aos persas. O rei é pueril, mas pode ser encarado como patriótico e inspirador. Os erros da produção são honestas, por isso não são tão gritantes. The 300 Spartans inspirou Frank Miller a escrever a Graphic Novel 300 de Esparta, e vale ser assistida para ter noção do que movia o cinema popular dos anos 60, antes da era dos blockbusters.