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  • Crítica | 8 Presidentes e 1 Juramento: A História de um Tempo Presente

    Crítica | 8 Presidentes e 1 Juramento: A História de um Tempo Presente

    Crítica 8 Presidentes e 1 Juramento

    8 Presidentes e 1 Juramento: A História de um Tempo Presente é um documentário em longa-metragem, conduzido pela veterana atriz Carla Camurati, conhecida por dirigir Carlota Joaquina: A Princesa do Brasil, filme marco zero da retomada do cinema nacional pós-queda da Ditadura Militar. O filme narra os eventos da recém-adquirida possibilidade de voto do povo brasileiro até Jair Bolsonaro.

    O ponto inicial do longa é a campanha das Diretas Já, seguido da posse de José Sarney após a morte de Tancredo. É curioso como não há narração, a produção optou pelas imagens contando a história, associando-as à recortes de jornais impressos de época e anúncios de rádio e televisão.

    O filme possui algumas cenas bastante raras e algumas curiosas. Nos tempos de Fernando Henrique Cardoso são mostrados índios protestando. Esse tom pode fazer o espectador acreditar que o tom do governo seria agressivo, mas não é, na verdade, é bastante respeitoso, ao contrário do que se vê ao falar de seu antecessor, Fernando Collor de Mello, flagrado aqui como um político que não conseguia tomar as rédeas da economia do Brasil.

    O filme não se furta em mostrar que o embrião do Bolsa Família foi originado por outros programas de distribuição de renda da época de FHC, assim como explana a mudança de postura que Luiz Inácio Lula da Silva fez para se tornar um candidato viável politicamente. O longa passa pelos escândalos do Mensalão e a participação do ex-deputado Roberto Jefferson, inclusive destacando momentos pitorescos, como a chegada dele com um olho roxo no Congresso. Não há concessões.

    Curiosamente, as partes que mostram a história do Partido dos Trabalhadores na presidência parecem mais breves, o que é até compreensível, visto que há tantos trabalhos em documentário sobre esses processos, como Entreatos, O Processo, Alvorada e tantos outros produtos que abordaram essa época. Há um belo acerto ao mostrar como as manifestações de 2013 influenciaram a queda de popularidade das figuras de Dilma Rousseff e Lula, assim como também é correta a fala de que tais atos não eram compostos exclusivamente pela direita. Ainda assim se fala bastante do crescimento econômico do país e dos escândalos de corrupção.

    A parte mais correta do filme é quando se destaca como a evolução da internet influenciou a democracia no continente americano e no Brasil. Redes sociais e memes são sabiamente apontados como o fiel da balança para os últimos resultados da política nacional, seja no golpe aplicado em Dilma, como também na popularização de Bolsonaro.

    8 Presidentes e 1 Juramento: A História de um Tempo Presente é uma boa forma de introduzir uma pessoa que nada saiba sobre como o caótico cenário sócio político do país chegou a esse 2021, mas ainda assim carece de um ritmo aceitável, suas mais de duas horas são extensas, e isso faz o documentário parecer um especial de TV de final de ano, trocando os últimos 365 dias para todos os anos pós-Constituição.

  • Crítica | 2021: O Ano que Não Começou

    Crítica | 2021: O Ano que Não Começou

    Luciano Huck é um apresentador bastante famoso por seus programas populares na TV aberta. Também tentou ser ator no clássico-trash Um Show de Verão e também dublador em Enrolados. Além disso, entre essas tentativas, cogitou uma carreira presidenciável, ainda que tenha (por enquanto) recuado dessa proposta. Em entrevistas recentes se declara participante ativo da esfera política e, em meio a isso, lança 2021: O Ano Que Não Começou. Dirigido por Fernando Acquarone e Guilherme Melles a produção se resume a visão do apresentador sobre o mundo.

    O especial da Globoplay é curto. Tem 43 minutos, possui um estilo moderninho, com elementos que tornam seu  consumo fácil. Desde o início a formula é pretensiosa, primeiro ao unir tanto celebridades quanto desconhecidos. Apela para um estilo aparentemente popular, ainda que toda sua ideologia seja claramente apoiada em pensamentos e teorias elitistas como a meritocracia e mercantilização da pobreza.

    Desde os tempos da Band, Luciano consegue conversar bem com a parcela popular brasileiro, de modo que não pareça um sujeito desonesto e explorador. Mas entre pessoas mais “estudadas”, o apresentador não tem essa mesma aderência ou popularidade. O documentário mira acertar esse nicho, dialogar com gente importante para fortificar a imagem tradicional de bom moço dentro dessa parcela de pessoas.

    Ao menos, o filme é explicativo e acerta em se fazer entender. Edição, fotografia, trilha sonora e o ritmo favorecem a mensagem. A fala pró ascensão das classes C e D não é tão diferente das provas do Caldeirão em que um miserável tenta equilibrar um ovo na colher enquanto resolve um problema matemático ao vivo em rede nacional. A busca por meritocracia é mais ou menos equivalente a esse tipo de humilhação.

    Huck ainda faz questão de fazer autopropaganda, referenciando como auge econômico o seu próprio programa: a versão brasileira de Quem Quer Ser Um Milionário. Ainda chega ao cúmulo de colocar pessoas pobres para chorar no meio do filme, ou seja, se sua ideia era mostrar uma nova faceta de sua personalidade, a tentativa fracassa retumbantemente.

    O filme é vazio de conteúdo. Os aspectos técnicos são cosméticos e nada mais. Não disfarça nem um pouco o discurso liberal ao extremo e erra ao tentar separar a desigualdade do capitalismo, negando o mercado voraz como o causador das desigualdades que o próprio roteiro acha péssimo para a humanidade. O pensamento de uma nova política e nova filosofia é basicamente uma nova roupagem do que já vigora.

    O filme soa vazio e desonesto, pois a violência urbana e a perseguição a pobres e negros condenada em cena é oriunda do mesmo capitalismo que o apresentador defendeu em um programa recente do GNT. O resultado é quase um game show mas, diferente de A Vida Depois do Tombo que tenta repaginar uma cantora, esse  documentário é mais complicado, tenta disfarçar as intenções de um sujeito com um claro projeto político futuro. Em uma época de pandemia, defender liberalismo enquanto se fala sobre fortalecer políticas públicas como o SUS é contraditório e incoerente.

  • Review | A Corrida das Vacinas

    Review | A Corrida das Vacinas

    A Corrida das Vacinas é uma série produzida pela Globoplay que tenta mostrar como funciona a luta para chegar a vacinação universal contra a pandemia do novo corona vírus. O programa é dirigido e apresentado por Álvaro Pereira Júnior e tem seu conteúdo aberto para não assinantes, mirando, evidentemente, um consumo amplo. Foram 5 episódios e um extra, e no primeiro (Nós Vamos ter essa Vacina) há uma pressa por elucidar o quadro mundial e como o Brasil lida com isso.

    Já nas primeiras cenas, os corredores do poder do governo de São Paulo são mostrados. O político João Doria autorizou a equipe a filmar parte da apresentação antes da conversa com a equipe do comitê de negociações para discutir os detalhes de eficiência da CoronaVac. Nesse cenário, o áudio de uma reunião vazou acidentalmente no equipamento da Rede Globo, em um fio que captava o vídeo de uma apresentação do documentário, nele se ouve algumas falas contundentes do governador e até do diretor do Instituto Butantã, Dimas Covas, sobre as dificuldades de conseguir negociar os insumos junto à China.

    O roteiro é didático. Uma pessoa que não saiba nada a respeito do vírus, dos seus efeitos e da politica nacional envolvendo a pandemia será completamente contemplada. Há um bom detalhamento do episódio do paciente da CoronaVac utilizado pelo governo federal de Bolsonaro para servir de espantalho contra o governo de São Paulo e a “vacina do Dória”. Além disso, há destaque a grupos especializados como funcionários da Anvisa, Instituto Butantã, Oxford, além de imunologistas e cientistas de renome.

    A série conversa bem com outras produções do gênero, como Por Um Respiro, especialmente quando mostra o cotidiano de pessoas lamentosas, sem permissão sequer de abrir as portas de suas casas para pessoas mais próximas, sob risco de contágio e morte. O lado emocional é bem demonstrado, e não abusa do sentimentalismo. A questão mais flagrante é o personalismo de Pereira Júnior que se faz personagem frequente nas coletivas de imprensa em São Paulo, além de sua proximidade com as autoridades que estudam a eficácia da primeira vacina feita no Brasil, a CoronaVac. É curioso que, ao perguntar sobre a eficácia e seus resultados, ele se aproxima e faz um ato não recomendado, batendo no ombro de um dos responsáveis pela comunicação. Ainda assim, seus apontamentos e questionamentos são válidos e sua insatisfação com alguns discursos é justa.

    Pereira Júnior viaja para outros cenários, percebe aglomerações em Nova Delhi, na Índia, com o povo não tendo receio de contrair o vírus, fato que dá um tom profético ao documentário, pois a situação estava tranquila na época da gravação e pouco tempos depois o país sofreu com uma segunda onda. Já no que diz respeito a sua visita à Rússia, o apresentador parece bem impaciente, chega a verbalizar que se montam circos midiáticos para ludibriá-los ao lado de outros órgãos da imprensa mundial. A favor dessa desconfiança, há também a percepção popular das pessoas na Rússia com a Sputnik V, mas ainda assim, a postura do diretor é um pouco inexplicável, beirando até a xenofobia no caso de algumas possibilidades de vacinas.

    A série é padrão Globo. Lembra os bons episódios do Profissão Repórter ou Globo Repórter, ainda que tenha uma abordagem mais incisiva, sensível e certeira. Os cinco episódios são boas introduções ao tema, especialmente para quem não lê tanto a respeito da procura pelas vacinas. De acordo com o sexto episódio (extra), possivelmente terão mais momentos. Ainda nesse episódio, temos a presença do imunologista Renato Kfouri, o professor Esper Kallás e a microbiologista Natalia Pasternak, fechando bem esse especial que certamente caberia em uma possível continuação visto os acontecimentos recentes da CPI da Covid.

    https://www.youtube.com/watch?v=nfXLpDusSuU

  • Crítica | MLK/FBI

    Crítica | MLK/FBI

    MLK/FBI é um documentário de Sam Pollard, diretor conhecido pelo elogiado The Talk: Race in America. Aborda a os arquivos do FBI sobre o reverendo e ativista Martin Luther King, indicando a abordagem completamente parcial e desonesta em cima dessa figura. O filme começa com falas do presidente republicano Ronald Reagan em um discurso bizarro, comentando a historia dos Estados Unidos e as manifestações populares, sobretudo as raciais, como se fossem iguais as batalhas entre bem e mal dos filmes de mocinho que protagonizava quando novo, relegando o papel de vilão aos grupos protestantes de maneira nada sutil.

    É estranho como discursos vindos de classes tradicionalmente tratadas como inferiores são necessariamente associadas a malignidade por parte de figuras de autoridade, mesmo quando o tom da fala é conciliatória como era no discurso de King. O pastor era considerado o negro mais perigoso do país, o homem visto com maior potencial destrutivo para o status quo e o regime de poderes que vigoravam na segunda metade do século XX.

    O filme possui um ritmo um pouco truncado, mas toda a investigação da produção a respeito da paranoia do país e da forma como J. Edgar Hoover lidava com a questão de Luther King ser subversivo é muito bem escrutinada. Na tela se expõem as estranhas de um país que não sabe lidar realmente com as liberdades individuais, embora todo o discurso, para dentro ou fora de suas fronteiras, dê conta dos Estados Unidos como uma pátria que valoriza suas origens democráticas e a liberdade de pensamento e expressão.

    Pollard não tem pudor em mostrar o quão irresponsáveis e injustas foram as autoridades, levantando mentiras contra o pregador, revelando supostas indiscrições, frutos de um reacionarismo tacanho de quem estava no poder em uma época de ebulição e luta de classes. O filme poderia ser mais enérgico, mas de modo algum aliena o espectador.

    Há uma espera, muito justa aliás, para que em 2027 sejam reveladas as fitas originais com os registros da agencia sobre Luther King. Em meio a tantos boatos e fofocas a respeito da vida pessoal de MLK, a obra de Pollard consegue levantar bons indícios de perseguição ao reverendo, que podem inclusive ter influenciado na brevidade de sua trajetória. MLK/FBI é elucidativo e não cai em armadilhas conspiratórias. Além de conversar muito bem com os recentes Judas e o Messias Negro e Os 7 de Chicago, também acrescenta bons temperos aos tempos atuais e as complicadas situações e batalhas travadas contra o reacionarismo que vigora.

  • Critica | Collective

    Critica | Collective

    Collective é um documentário sobre um incidente incendiário em Bucareste, na boate Colectiv, que matou 27 e feriu 180 pessoas. O longa-metragem de Alexander Nanau investiga as fraudes do sistema político da Romênia a partir do vazamento de informações que um médico fez a um grupo de jornalistas. Fraudes que assustaram a opinião pública local mas que são bastante comuns em outros cenários, como a política brasileira. O diretor teve acesso aos bastidores políticos e apresentou o seu panorama jornalístico e cinematográfico a respeito do incidente.

    O filme indicado ao Oscar na categoria Melhor Filme Estrangeiro e Documentário trata primeiro da tragédia em si,  do impacto que ela causou em quem estava no momento que o fogo tomou a casa e nas pessoas que cercam as vítimas. Depois, explora a historia periférica da politica romena e, em meio a isso, sem esquecer dos detalhes das historias dos sobreviventes. Aborda questões pesadas de quem teve a vida comprometida por conta do fogo, momentos que conseguem emocionar sem soar piegas.

    Os personagens são meticulosamente escolhidos. Há sutileza ao se tratar dessas tramas, as personagens não são tratadas com comiseração. Nanau traz uma estética que foge do simples clichê e da estrutura quadrada de documentários com entrevistas e voz em off. Há inclusive cenas do dia em que ocorreu o incidente, imagens de câmeras internas cuja resolução é bastante aprimorada e que mostram detalhes do horror ali presente. A cena que mostra o show de metal com o fogo correndo o teto e caindo sobre o tecido improvisado, logo após o termino de uma música, é dantesca. Mesmo nessas gravações se nota que a performance musical poderia ter tornado aquele momento em algo ainda mais trágico.

    O impacto do filme é amplificado por conta dos infelizes escândalos de corrupção ligados a pandemia que ocorreram no Brasil e no mundo, pois o caso da Colectiv também deveria causar nas autoridades certa solidariedade e não ganância desenfreada. A exemplo do que ocorreu em várias praças durante a pandemia do novo coronavírus, houve aproveitamento ilícito e inoportuno de autoridades desonesta. Mesmo que o longa tenha alguns problemas de ritmo, sendo bem arrastado em vários pontos, o seu apelo é real, trata de questões muito delicadas e importantes não só dentro do seu cenário nacional, mas também além fronteiras já que encontra eco em situações vistas no mundo inteiro.

  • Crítica | Os Comprometidos:  Actas de um processo de Descolonização

    Crítica | Os Comprometidos: Actas de um processo de Descolonização

    Os Comprometidos: Actas de um Processo de Descolonização, dirigido por Ruy Guerra em 1984, originalmente produzido para a Televisão Experimental de Moçambique e compilado no formato de um média metragem de apenas 48 minutos. Na prática ele é uma edição de seis dias de filmagem praticamente ininterruptos de Guerra, que visava exemplificar como era o sistema legal do país africano de língua portuguesa onde o cineasta nasceu.

    O assunto principal aqui é o julgamento de colaboradores do regime colonial. O país, independente desde a primeira metade dos anos setenta depois de uma longa guerra civil que variou entre 1964 e 74 – esse foi também o último ano do Estado Novo que dava prosseguimento a era Salazar em Portugal – colocou o presidente socialista Samora Machel no poder. Os órgãos jurídicos julgaram os antigos parceiros de forma contundente e bastante rígida. Era um revide, registrado de maneira crua e praticamente sem cortes pelo cineasta.

    Mesmo sem grandes variações de ângulos de câmera, Guerra mostra o autoritarismo do governo de Machel. O político é um personagem intervencionista no filme, conhecido como “Pai da Nação”, morreu em um acidente aéreo suspeito, quando regressava a Maputo, capital do país, onde nasceu o cineasta. Machel era personalista, agia de maneira caricatural, quase como um personagem de si mesmo, mas bastante carismático e gostava de trocar de figurinos nas sessões de direito, era de fato uma pessoa diferenciada e abraçada como um sujeito fora da curva.

    O diretor produziu 29 rolos de filme de 16 milímetros cada. Era uma quantidade enorme de material bruto, e esse documentário procura registrar uma resposta enérgica as forças contra a independência, afirmando de maneira categórica que não há como ser polido ou pacificador com o domínio fascista, e apesar da tentativa de “só registrar”, seu documentário justifica os atos dos biografados. Os Comprometidos: Actas de um Processo de Descolonização mostra uma alternativa agressiva e contundente contra o autoritarismo colonizador.

  • Crítica | Alvorada

    Crítica | Alvorada

    Em 2016, época do impeachment de Dilma Rousseff, parte da classe artística ligada ao cinema sentiu forte o Golpe. Cineastas como Petra Costa, Anna Muylaert, Douglas Duarte e tantos outros prometeram dedicar seus esforços a contar essa história. Eis que, Alvorada finalmente chega ao público, somente em 2021 na mostra do É Tudo Verdade 2021, se juntando a Democracia em Vertigem, Excelentíssimos, O Processo, Já Vimos Esse Filme e até Não Vai Ter Golpe, filme do MBL contando a narrativa dos opositores do PT. Muylaert retorna para o cinema documentário a fim de revelar mais uma vez a podridão dos bastidores do poder em Brasília, junto a codiretora Lô Politi, a mesma que conduziu o ficcional (e curioso) Jonas.

    As diretoras tentam  abordar o filme de  forma semelhante a que Eduardo Coutinho fez em Peões, mostrando os bastidores de baixo, os funcionários não endinheirados, assalariados baixos, que nem sequer estão com microfones. Até personagens celebres, como o ex-ministro José Eduardo Cardozo são mostrados muito de perto, chegando ao cúmulo dele ser mostrado com roupa de ciclista, já que ele pedalava até o planalto enquanto trabalhava em Brasília.

    O filme soa datado, o impeachment ocorreu em 2016. ainda há uma “desculpa” por parte de Muylaert de que o seu roteiro era profético e precisava dos fatos para se comprovar assim. Fato é que muita coisa aconteceu de 2016 até atualidade, ainda mais em tempos pandêmicos. A promessa de filme experiencial resulta em algo anacrônico.  Muylatert já foi mais inspirada, mesmo em suas  obras ficcionais ela conseguiu tocar em assuntos mais sensíveis, em Mãe Só Há Uma e Que Horas Ela Volta? se falou no papel da maternidade, também foram abordadas questões de identidade de gênero, abandono parental e ascensão da Classe C, temas caros a qualquer pensamento progressista, aqui, o que se assiste é apenas repetição. Alvorada até tenta tratar de alguns desses assuntos, e é muito bem vindo que sua câmera acompanhe os trabalhadores braçais e o proletariado, mas o intuito de entender o que o Brasil se tornou e como o povo foi iludido ao ponto de aderir a um discurso fascista não é sequer arranhado.

    Possivelmente se o filme tivesse sido lançado antes, como era previsto, teria outra digestão, mas se torna quase uma piada em 2021 verificar isso, uma vez que ele é preso num pedaço do tempo completamente diferente de seu lançamento, e não faz questão nenhuma de aplacar essa sensação, ao contrário, soa pretensioso ao extremo.

  • Crítica | Os Arrependidos

    Crítica | Os Arrependidos

    Baseado no livro O Terror Renegado de Alessandra Gasparotto, Os Arrependidos é um filme da dupla Ricardo Calil e Armando Antenore que conta  a historia dos ex-guerrilheiros que quando jovens, sofreram tortura para se assumir como arrependidos, inclusive indo a imprensa afirmar que mudaram de ideia em relação a ideologia que antes professavam, classificando assim seus antigos atos como um “terrorismo” que pertence ao passado. O filme conversa com algumas dessas pessoas, Gustavo Guimarães Barbosa, Marcos Vinicios Fernandes, Celso Lungaretti, Marcos Alberto Martini, Rômulo Moreira Fontes. além de falar com alguns parentes desses ex-presos.

    O documentário não tem pressa, as entrevistas são francas e eles falam sobre como entraram nos grupos revolucionários, assumindo que não tinham muito como ocupar o tempo ocioso de sua juventude, que diversão era um artigo de luxo e raro na época, então o lugar contra o reacionarismo e a falta de liberdade eram um caminho óbvio, os movimentos secundaristas e estudantis eram a alternativa mais correta.

    Calil e Antenores variam entre os depoimentos recentes e as gravações antigas de qualidade visual ruim, condizente com os poucos registros de imprensa da época. O conteúdo dessas conversas impressiona, pela crueldade que foi imposta a eles. A curadoria da dupla de diretores é ótima, há cuidado em deixar legendas nas conversas para que o entendimento do público seja completo.

    Os tais “arrependidos” já estão na meia idade, mas nota-se que eles parecem mais velhos do que realmente são, como se a Ditadura roubasse deles os bons anos de sua vida. Chega ao cúmulo de uma irmã mais velha de um dos torturados parecer mais jovem, quase como se fosse ela uma filha de idade, cuidando do pai já bem idoso. Eles não se consideram traidores, cada um tem seus motivos para falar, e alguns, até seguem o pensamento ligado a esquerda, mas aceitavam falar sobre seus arrependimentos para ter liberdade, obviamente. Gustavo Barbosa por exemplo afirma que dentro dos seus limites, falava que a luta armada não era boa, mas não que concordava com o Regime.

    A edição é bem pensada, entre as falas dos entrevistados são colocados comerciais da época, fato que reforça a sensação de incômodo. Tanto a música dessas propaganda  quanto a falta de qualidade sonora das peças publicitárias, fica uma impressão de que os comerciais são curtas de terror.

    É de partir o coração quando se fala dos arrependidos já falecidos, ainda mais no que se fala a respeito dos arrependimentos, das mentiras e das torturas que passavam do físico e destruíam as pessoas em níveis de caráter, sentimentos e moral. Acompanhar toda essa historia, ainda mais atualmente quando ocorre um movimento político que defende práticas tão vis quantos essas é pesado. Um dos momentos mais chocantes do filme reside nas falas das parentes de um dos arrependidos já morto, Manuel Henrique Ferreira. Abaixo, um trecho da carta que Ferreira enviou, claro, resumido, já que a correspondência tinha 21 páginas:

    Ao final de Os Arrependidos, se dá o destino dos ex-militantes, alguns se tornaram jornalistas do veículo ligado a direita, A Folha da Tarde, alguns migraram para o movimento ultra direitista como O Integralismo , outros nem quiseram falar sobre seus arrependimentos porque as lembranças eram muito duras, e Massafumi Yoshinaga é tratado como uma das principais vítimas desse tempo, pois foi símbolo “positivo” para os milicos, por ter sido um dos mais notórios arrependidos, e depois, se suicidou. É uma historia dilacerante e uma vez publicado o filme, a obra ganha contornos de documento histórico, que brilha bastante por desvelar mais uma das muitas mentiras do Regime Militar brasileiro, que não foi nada brando com esses homens, que eram meninos a época.

  • Crítica | Presidente

    Crítica | Presidente

    De herói a vilão, Robert Mugabe esteve no comando do Zimbábue por 37 anos. Seu governo foi interrompido após um golpe militar encabeçado pelo então vice-presidente Emmerson Mnangagwa. A nova gestão assumia o controle do país em 2017 com a promessa de garantir já no ano seguinte um pleito presidencial democrático e transparente.

    Presidente, da dinamarquesa Camilla Nielsson, acompanha a realização dessa eleição pelo ponto de vista do partido de oposição, a Aliança da Mudança Democrática (MDC). O filme vê o surgimento do jovem advogado Nelson Chamisa como candidato da chapa após a morte de Morgan Tsvangirai, líder do partido e amplo favorito segundo apoio popular. Cabe a Chamisa, a poucos meses da eleição, conquistar o eleitorado órfão e ansioso por reformas políticas e sociais no país.

    O longa opta desde o início em moldar sua narrativa em torno de uma estrutura típica de thriller político. As reuniões por trás de portas fechadas, os comícios com ampla adesão popular, as estratégias para a campanha de Chamisa. Tudo é disposto num ritmo que privilegia a tensão da trama num embate entre os personagens que são colocados como verdadeiros defensores do pleito justo e o governo vigente que parece preocupado demais com a extensão de mecanismos autoritários que garantam sua continuidade no poder.

    A lógica é simples, mas eficiente. As pretensões do filme são focadas no desenrolar das situações que acompanham a disputa eleitoral, culminando na contestação judicial do pleito por parte do MDC. Menos preocupado em ser uma análise da situação geral do país africano ou algo mais amplo que o mero cotidiano do comitê opositor, o documentário se propõe a investigar conflitos de ordem político-social sob a ótica de um grupo menor, mas que obviamente transbordam ao tecido da combalida sociedade zimbabuana.

    Embora favoreça a documentação dos fatos ao lado do MDC, o filme não se exime de acompanhar Chamisa até mesmo em momentos que o pragmatismo político e eleitoreiro do candidato se sobrepõe a um possível idealismo. É na figura do jovem político que Presidente carrega o espectador por boa parte da projeção, usando seu carisma como um movimento contínuo de sequência a sequência.

    Quando o candidato sai de cena, a produção aposta o tempo de tela em outros nomes do partido que antes somente orbitavam Chamisa. Mesmo sem a força do dito protagonista, os outros personagens são capazes de levar a história adiante pela própria gravidade das circunstâncias que se apresentam. Em certos momentos, a direção parece desacreditar dessa competência e passa a enfatizar o contexto em demasia, valendo-se de chamadas jornalísticas da época, narrações em off de comentaristas de TV e pequenos interlúdios com textos que fazem a transição ao longo da trama.

    O didatismo da informação chega a dar espaço ao didatismo de sentimentos. Em diversas ocasiões, o filme apela a elementos de catarse e comoção, como a trilha sonora que embala momentos supostamente trágicos, tal qual as passagens que enclausuram as expressões dos personagens em intensos close-ups. Os artifícios pouco funcionam no escopo geral do filme, uma vez que o próprio ritmo do longa encerra rapidamente tais mergulhos melancólicos.

    Ainda assim, o documentário tem mérito ao captar a atmosfera tensa e turbulenta do período, fazendo de Presidente um poderoso registro em tempo real das usurpações repressivas num Estado democrático de direito.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | Gorbachev.céu

    Crítica | Gorbachev.céu

    Gorbachev.Céu é um documentário curioso. Além de dar voz a uma figura política controversa do passado, o ex-secretário geral do Partido Comunista e ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbachev, também se permite ser silencioso e contemplativo. Vitaly Mansky mergulha na identidade e intimidade do homem a quem se atribui o fim do sonho socialista, com ele já limitado fisicamente, embora bastante lúcido.

    Gorbachev fala a respeito do desprezo que parte dos russos tem por sua figura, especialmente da imprensa, ainda que encare o momento político atual do país como continuação do seu trabalho. Ele se sente um herói da política e da democracia, vê Vladimir Lenin como um deus, mantém um postura serena e calma na maior parte dos momentos e se diz, reiteradamente, que foi mal compreendido ao longo de seu mandato.

    O filme tem um ritmo lento, acompanhando as falas e pensamentos de seu biografado, os poucos momentos enérgicos resultam dos resumos que ele faz a respeito de figuras notáveis do regime soviético, especialmente as óbvias como Lenin e Josef Stalin, e outros menos lembrados como Yuri Andropov e Fyodor Kulakov. Suas opiniões são contundentes e curiosas, é possível enxergar em suas falas semelhanças com políticos brasileiros, incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que além de não gostar de ser associado à direita é escorregadio ao falar dos seus erros como governante.

    Mansky considera Gorbachev um pária, e de fato, ele é. Contudo, o lado que ele escolhe defender em seu filme é que Mikhail foi injustiçado, a visão apresentado pelo documentário era que a URSS era nefasta e que a classe trabalhadora não teve tantos avanços. Isso não impede que entre cineasta e entrevistado haja atritos ou mitificações, Gorbachev responde de maneira atravessada a indagação de que a Rússia não é um país de democracia longeva, e de que seus tempos não fugiam do autoritarismo, e mesmo sem ter a mesma força de quando era jovem, ele se mostra vaidoso e resoluto, embora na maior parte do tempo seja cortês.

    Parece um castigo que o presidente que estava no poder na dissolução da potência soviética esteja vivo e consciente, beirando um século de vida, possivelmente podendo acompanhar as duras críticas feitas sobre sua pessoa. Apesar da mornidão e do viés liberal existente no filme, Gorbachev.céu retrata um importante ator político do século XX, e ajuda a visualizar o mapa socioeconômico de hoje e ontem.

  • Crítica | Mil Cortes

    Crítica | Mil Cortes

    O desmanche das democracias atuais tem nas Filipinas seu maior representante. É o que aponta o longa-metragem Mil Cortes de Ramona Diz, participante da mostra internacional do festival É tudo verdade deste ano. O filme acompanha os esforços da jornalista e editora-chefe do portal filipino Rappler, Maria Ressa, em publicar críticas ao governo do presidente Rodrigo Duterte e lidar com os ataques e as censuras institucionalizadas.

    As últimas cordas que, em teoria, sustentam o modelo democrático das Filipinas são coniventes com as ações de Duterte que giram em torno de assunção de homicídios, apologia à violência, estupro e toda barbárie observável nos discursos de líderes de diferentes nações. O cenário não é atípico, especialmente ao espectador brasileiro, e o filme chega a fazer discretos acenos ao governo de Donald Trump, vigente nos Estados Unidos durante o período de gravação do documentário.

    Nesse panorama, a narrativa dilui-se em diversas frentes que tentam contextualizar a crise de estado social no país asiático. Essas subtramas tratam de milícias digitais, propagação de fake news, os discursos odiosos do presidente, duas jornalistas do Rappler e de três postulantes às eleições legislativas em 2019: o chefe da polícia nacional e voz ressoante de Duterte, uma dançarina e blogueira alinhada ao presidente e uma candidata defensora da causa feminista, de oposição ao governo.

    O fio principal que entrelaça as histórias é o drama enfrentado por Maria. Desde o início, a atenção dada a jornalista indica a preferência da cobertura, que se justifica por boa parte do filme pelo motivo de sintetizar na protagonista esses diferentes lados abordados nos demais personagens. É por meio de Maria que os filipinos tomam conhecimento da divulgação de desinformação promovida pelo governo. É Maria o alvo da maior parcela de ataques direcionados à imprensa no país. É Maria que expõe os discursos de Duterte e sua base. É Maria que observa o agonizar da democracia em seu país como um possível sopro de esperança para o futuro.

    A trama logo torna-se repetitiva e sobrecarregada. O que poderia soar como um aprofundamento no estado de espírito da jornalista, confrontada por todos os lados e por diferentes causas, numa enxurrada espiralar de situações, revela-se uma confusão desequilibrada. Uma porção das questões levantadas nas quase duas horas de filme é rasa e pouco faz frente à principal história que conduz o documentário. São chances de dimensionar em maior escala os dilemas éticos e políticos das Filipinas, mas que se perdem em exposições simplórias do que já é vociferado pelo presidente.

    O filme também põe em pauta a importância do jornalismo como prestador de contas e de informação à população, na ideia de quarto poder. Numa das passagens, Maria parafraseia o poema do pastor luterano Martin Niemöller. “Primeiro eles vieram buscar os jornalistas”, diz. “Nós não sabemos o que aconteceu depois.”

    A paráfrase condensa muito do idealismo da editora. Em determinado trecho, ela se diz pronta para o que der e vier, nem que isso seja a prisão. É o que acontece e que voltaria a se repetir no mesmo ano. Maria carrega consigo a crença de que a principal arma ante o ódio é o amor.

    Do mesmo princípio parece partir o longa, uma vez que martiriza a figura da jornalista diante dos abomináveis antagonistas da liberdade de imprensa e dos direitos humanos no país. Não que a sentença não seja cabível aos algozes, mas o filme tem pouco a dizer num jogo tão simples entre claro e escuro. Os Mil cortes referidos por Maria em relação à democracia filipina cabem ao próprio filme, composto por dilacerações em todo seu roteiro e que no final se apresenta como um cambaleante corpo de boas ideias e sem firmeza em nenhuma delas.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | Sob Total Controle

    Crítica | Sob Total Controle

    Sob Total Controle é um dos filmes da mostra internacional do É Tudo Verdade. O documentário ficou conhecido mundialmente por expor os podres do governo de Donald Trump ao lidar com a pandemia de Covid-19. Dirigido pelo trio Alex Gibney, Ophelia Harutyunyan e Suzanne Hillinger, a produção, além de informar sobre a cobertura de uma pandemia, também serve de comentário metalinguístico, mostrando as dificuldades de uma equipe de filmagem em fazer um filme com o isolamento social dos entrevistados e de pessoas ligadas aos fatos.

    Dois elementos saltam aos olhos do espectador logo de cara: a primeira é a narração que poderia causar incomodo mas, dado o modo lunático como os EUA lidaram com a pandemia em seu início, se faz necessária. Pois as imagens sozinhas talvez pudessem elucidar o suficiente, sendo necessária a exposição. A outra questão curiosa são as cenas de negacionistas ignorando ou agredindo pessoas comuns em mercados, lojas e afins. Agindo de maneira covarde e perigosa do ponto de vista sanitário, cenas que não nos chocam tanto por sabermos que em nosso país a ações ainda piores.

    Para as futuras gerações, especialmente para alguém que não sabe pouco respeito desses tempos de pandemia em 2020-21, o documentário será um bom ponto de partida sobre o impacto mundial da Covid. Pois detalhe bem os acontecimentos, incluindo o primeiro surto em Wujan na China, com direito a entrevistas com o até então presidente americano. Uma das problemáticas que o diretor lida nessa obra é sobre o futuro, a evolução da doença, suas mutações e demais aspectos impossíveis de prever, determinando como ainda é incerto o futuro após o impacto dessa doença.

    Além disso, o documentário também mostra como o estado norte americano surpreendeu a comunidade mundial negativamente, colocando Robert Redfield, um virologista controverso, a frente de organizações como o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças). As frases polêmicas do virologista são anteriores a pandemia. No primeiro surto de HIV sugeriu uma medida religiosa de celibato para evitar a propagação da AIDS. Demonstrando como fundamentalismos são tão perigosos como doenças. Outro exemplo negativo é a entrevista com Vladimir Zelenko, o sujeito que descobriu a hidroxicloroquina como forma de lidar com a doença nos Estados Unidos. O mesmo medicamento que não tem qualquer comprovação contra o vírus e que ainda é defendido pelo governo brasileiro como parte do fajuto tratamento precoce para coronavírus.

    Assistir Sob Total Controle causa um pouco de agonia, ainda mais em plateias mais sensíveis. A série de eventos que poderiam ajudar a evitar a catástrofe são inúmeras, e ver como as autoridades foram ou passivas ou deliberadamente mesquinhas e desonestas em nome de qualquer ideologia irrealista é desolador. As coletivas de imprensa, então, são um show a parte. Enquanto o imunologista Dr. Anthony Fauci falava para as pessoas não irem para lugares de fácil aglomeração, a equipe econômica de Trump o contradizia na mesma entrevista. É tragicômico, e incomodamente semelhante ao que ocorreu no começo da pandemia no governo brasileiro e nos choques entre Henrique Mandetta, o ministro da Saúde, e o presidente do Brasil Jair Bolsonaro. A imitação é barata e triste.

    O documentário tão intenso que chega a ser tragicômico. A adjetivação poderia soar como pejorativa, mas não é. Para qualquer analista que vive em um cenário ainda tão assolado por essas questões certamente se sensibilizará com o olhar desesperado dos entrevistados. Olhares honestos de pessoas da indústria médica ou farmacêutica que falam a respeito dos esforços para driblar o governo a fim de dar alguma segurança ao povo.

  • Crítica | Arquitetura da Destruição (2)

    Crítica | Arquitetura da Destruição (2)

    Documentário do sueco Peter Cohen, narrado por Rolf Arsenius na versão original, depois em alemão por Bruno Ganz (o mesmo que encarnou Hitler anos mais tarde em A Queda) e Sam Gray em inglês, Arquitetura da Destruição começa falando sobre uma aldeia alemã dos anos 30, onde nasceu o Nacional Socialismo, uma ideologia de espectro direitista extremo, pautada na característica da rejeição sexual. Sobrevoando vilas de casas suburbanas, que povoam um ambiente florestal 3m sua maioria, que evoca o isolamento deles. O narrador fala do mundo prestes a ruir.

    O governo do Terceiro Reich, segundo o estudo que Cohen propõe, os alemães faziam  oposição ao racionalismo, apostava em uma arte rebuscada, que os mesmos seriam incapazes de idealizar, exatamente para confundir o povo, deixando eles estupefatos, sem perceber o engodo em que caiam e as injustiças que ocorriam simultaneamente as exibições artísticas e aberturas de museus. Hoje, candidatos e governos extremos escancaram seus preconceitos, e apelam para o lugar comum e para a crueldades que a classe média compartilhava em segredo, fazendo com que esse eleitorado escolha pôr para fora essa necessidade de exclusão dos mais fracos. Há muitos traços comuns entre as estrategias, a diferença é a sofisticação das abordagens,  enquanto uma tem como base a ópera Rienzi de Wagner, a outra tem a hiper socialização conservadora de ex atores de filmes pornográficos e uma trilha genérica de música local, que tenciona parecer fruto da terra onde nasceu mas que pega emprestado uma sem número de elementos internacionais para suas formulas musicais baratas.

    Outro ponto comum é a insistência em manter um ultra nacionalismo, embora Adolf Hitler e os seus parecessem ser mais apegados a esse pensamento, enquanto boa parte das lideranças direitistas atuais o façam da boca para fora, sendo formadas também por entreguistas que falam fino com potências maiores. O Fuhrer  era megalomaníaco,  vaidoso e tinha o intuito de se cercar do que ele achava belo para esconder suas próprias inseguranças e frustrações por ser um artista que não deu certo, mas o conceito freudiano de compensação também está no modo de governar dos que se sentem (e são) frágeis, e onda ultra conservadora que tomou o mundo tem muitos desses líderes nesse sentido, especialmente os recém eleitos e os sem experiência .

    Os artistas esperavam da parte do governo uma repressão,  queimando algumas artes, chamadas de degeneradas, exibidas em Stuttgart, Nuremberg e outras cidades, frutos do que eles chamam de Bolchevismo Cultural, que eram vistos como instigados pelos judeus, e eram queimados depois. A história tem insistente tendência de se repetir, não à toa boa parte do levante pseudo liberal que tomou o Brasil e parte da América do Sul por volta de 2014, 2015 até hoje teve por passo inicial a perseguição de manifestações de arte, mas tirado de contexto.

    Há também um livre uso de informações falsas ou manipuladas a respeito da genética hebraica, acusando os mesmos de serem retardados (o termo usado na tradução é exatamente este) de que avançariam sobre os ditos normais. Assistir o documentário hoje é um exercício de quase  sadismo, pois a exposição dos infortúnios dos judeus e dos desmandos maquiavélicos dos nazistas impressiona pela crueldade, e pouco é aplacada pelo tom professoral, mas manter essa memoria é importante obviamente, para que haja parâmetro de comparações com movimentações semelhantes hoje e para que não haja esquecimento dessas práticas.

    Arquitetura da Destruição cita a máquina de propaganda e documentários de Joseph Goebbels, como já analisado O Eterno Judeu, e todo seu esforço é para expor não só os horrores praticados pelo governo nazista, mas também o modo como eles dominaram corações e mentes e esse é sem dúvida alguma o maior legado do trabalho de Cohen, denunciando e prevenindo o nascimento de novas  forças intolerantes. Talvez, se seus documentários fossem assistidos com atenção por parte de influenciadores de opinião, boa parte do levante reacionário recente poderia ou ser evitado ou ser aplacado, uma vez que há indícios dessas discussões todas dentro das pouco menos de duas horas de filme.

    https://www.youtube.com/watch?v=gDqGT4xepjQ

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  • Crítica | RBG

    Crítica | RBG

    “Eu não peço favores para o meu sexo.Tudo o que peço aos nossos irmãos, é que eles tirem os pés dos nossos pescoços”
    (Sara Grimke)

    No filme dirigido por Julie Cohen e Betsy West, acompanhamos a história de Ruth Bader Ginsburg, segunda mulher a ocupar uma cadeira na Suprema Corte dos EUA, e consequentemente toda sua trajetória que ficou marcada por uma série de lutas judiciais, quase sempre grifadas por uma insaciável busca pela legitimação da igualdade de gênero.

    ‘RBG’ trata-se de um apelido dado por uma internauta à juíza, apelido esse que por sua vez foi inspirado no rapper Notorious B.I.G., algo totalmente plausível, visto que Ruth da noite pro dia se viu alçada como ícone da cultura pop norte-americana, sendo frequentemente lembrada em programas televisivos, memes e afins, evidenciada praticamente como uma celebridade, apesar de ser dotada de um caráter íntimo comedido, extremamente paradoxal diante sua fama.

    Ginsburg desde a adolescência teve de quebrar paradigmas. Cursou Harvard em uma época onde as mulheres viviam em constante estado de segregação imposto pelo machismo vigente, fator esse que (lógico) acabou desembocando em inimagináveis preconceitos em sua profissão, das mais variadas maneiras e formas possíveis. Traçado esse breve mapa, deixo a cargo do expectador descobrir outros tantos desafios que serão demonstrados ao longo do filme.

    Enquanto fórmula, o documentário é bastante formal, seguindo uma linha bastante protocolar, sendo palatável para qualquer público. Expõe contexto de forma bem didática. Narra toda a saga de Ruth Bader Ginsburg desde sua infância, perpassando por sua formação, desembocando no status mítico que a magistrada alcançou; tudo isso sem perder um olhar intimista para com a protagonista. Aliás, é justamente na dinâmica direta de entrevistas com a juíza e seus posicionamentos ideológicos que reside o grande trunfo do projeto. É através do cotidiano, de suas palavras e silêncios que RBG vai demonstrando sua real persona, fazendo assim com que acabemos por conseguir traçar uma lógica semiótica de todo o discurso que moveu sua vida e profissão. O projeto cênico em sua totalidade tem como objetivo principal exaltar os feitos da personagem que dá título ao filme, porém, toda essa narrativa de maneira indissociável traz consigo camadas múltiplas, fidedignas de um tempo e suas mais profundas contradições.

    Um dos maiores legados que o escritor tcheco Franz Kafka deixou ao mundo em sua literatura foi sobre a consciência da existência do espírito da lei e a lei fria quando se trata de justiça.

    Eis aqui o cerne de RBG.

    Sua figura pública é tão fascinante justamente porque sempre buscou lutar por um senso cívico que esteve muito à frente de seu tempo, situada em uma época onde “equidade” para com o gênero feminino era visto como uma mera utopia sem nexo. Por tudo isso e mais um pouco, sem dúvida a biografada merece ter sua história ressaltada e lembrada. Possivelmente, grande parte do público sairá desse documentário encantado com uma mulher tão cativante e indômita. Talvez até cantarolando I’ll Fight, canção tema do documentário. Caso algum leitor se interesse muito pela ministra que segue em atividade na Suprema Corte até hoje, deixo aqui a dica do filme Suprema, estrelado por Felicity Jones, outra obra que também reconstitui e narra os feitos de RBG.

    Texto de autoria de Tiago Lopes.

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  • Crítica | Tá Rindo de Quê?

    Crítica | Tá Rindo de Quê?

    Do trio de diretores Cláudio Manoel, Álvaro Campos e Alê Braga, o documentário Tá Rindo de Quê? tem o objetivo pessoal de mostrar como era a inglória missão dos humoristas e comediantes durante os anos pós-golpe de 1964, no regime civil-militar que se instaurou. Já no  início do filme são mostradas imagens da época, em preto e branco, com frases que variam entre idealistas de direita e de esquerda, tentando achar ali respostas para o povo, sobretudo os trabalhadores, mas a escolha da ordem delas faz um sentido diferente aparecer, o da confusão e a tentativa do longa  em emular a ambiguidade que era transmitida ao povo pela paranoia típica da época, já que o povo não entendia exatamente o que se passava.

    Entre os entrevistados estão Juca Chaves, Daniel Filho, Ary Toledo, Boni, Chico Caruso, Eliezer Motta, Bemvindo Sequeira, Agildo Ribeiro, Jaguar, Carmen Siqueira, Fafy Siqueira, e dentre esses há dois que se destacam: Carlos Alberto de Nóbrega, o mais veemente na ojeriza a ditadura, que afirma que a falta de liberdade é assassina, e Roberto Guilherme, que honra o nome de farda que usava como Sargento Pincel e defende que naquele período havia respeito e o sujeito podia andar na rua com ouro que não seria perturbado. Essa última fala grafa bem a ideia maniqueísta e egoísta de que se não ultrapassasse o bem estar pessoal, o cotidiano dos outros pouco importava. Essa alienação do povo era comum, assim como a inquietação de quem vivia de fazer rir, que era evidentemente uma função social realmente subversiva.

    Uma boa parte do documentário se dedica a falar de Chico Anysio (e de suas referências, brevemente, como Costinha e Ronald Golias, que era seu ídolo) e o fato dele conseguir tanto sucesso é muito por conta de dois fatores, o primeiro é que Chico City foi inaugurado em 1962, dois anos antes da “revolução” ter ocorrido, com o termo em atenção pela fala de Boni. O segundo era o largo uso de personagens que ele fazia, e isso tornava seu texto impessoal de certa forma.

    Em algum ponto, os roteiristas passaram a brincar com os textos e os limites dos censores. Faça Amor, Não Faça Guerra por exemplo era um programa de TV que usava de cacófagos demais para fazer insinuações sobre o caráter do Brasil político e piadas de cunho sexual. Outra discussão era a das mulheres no humor, que tinham seus papéis normalmente reduzidas a tipos e estereótipos, se resumindo basicamente objetos de cena. Para Fafy Siqueira, quem ajudou a modificar isso a força, foi Dercy Gonçalves e isso é largamente reconhecido, pois ela foi inspiração para que inúmeras outras humoristas também pusessem para fora seu desejo de fugir desses estereótipos sexistas.

    No final do longa, Henfil (em entrevistas antigas), Caruso e Daniel Filho falam sobre a censura, com o primeiro argumentando que ter seu trabalho revisado e podado não o ajudava em nada, enquanto para Caruso sim – isso demonstra os diferentes modos de criar e fazer humor – mas de certa forma, quando os cortes caíram, muitos sofreram um tipo de bloqueio mental. Para Caruso e Daniel Filho, a situação era tão traumática que mudou até seu modo de lidar com a própria arte. Tá Rindo de Quê? acerta principalmente na questão de ser um retrato bem amplo da época em que estuda, e compensa o fato de ser um documentário um pouco à moda antiga, com linguagem semelhante a televisiva e curadoria de entrevistas com informações bastante ricas, aliado a um ritmo fluido e que faz passar rápido seus 85 minutos de duração.

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  • Crítica | Peões

    Crítica | Peões

    Fruto do que costumou-se chamar de Cinema de Encontro, Peões é um longa de Eduardo Coutinho que investiga os detalhes mais íntimos da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, focando o funcionário raso e suas conquistas trabalhistas, mostrando pessoas que dependem da renda dessa campanha e de como alguns deles conseguiram em meio a um governo neoliberal, alguns avanços do ponto de vista para uma sobrevida profissional mais digna.

    Após alguns momentos de entrevista com pessoas comuns é mostrado um dos lideres do movimento grevista de 1979, em dois filmes, Abc da Greve e Linha de Montagem. Tanto nas imagens de arquivo, quanto nas palavras dos entrevistados, há uma reverencia bastante patente na figura de  Lula, que aquela altura do pleito era franco favorito a ganhar a eleição presidencial de 2002.

    Coutinho gasta muito tempo conversando com gente simples, seja com os funcionários humildes que prestavam serviço aos partidários do PT ou com os parentes desses, e uma boa parte deles parece ser bastante consciente politicamente,  tendo uma base de pensamento tão forte com que alguns assumam-se como comunistas, vendo nessa ideologia um bom norte para os direitos do povo serem respeitados.

    Duas entrevistadas são bastante curiosas e bem enfáticas, inclusive em tom de crítica ao PT ainda antes deles subirem ao poder. Na primeira delas, a personagem reclama que o ideal do Partido dos Trabalhadores que eleva Lula a presidente, não é o mesmo dos seus tempos de militância, alguns anos atrás, ainda que faça a ressalva de que adora Lula e o ache inteligente, mas o seu programa de governo não engloba as mesmas pautas de outrora. A segunda, diz que no começo os partidários do PT eram mais agressivos, e partiam para o enfrentamento direto, sem medo de se machucar ou de serem encarados como violentos ou bárbaros. Os dois discursos são bem opostos a conciliação que se deu nos governos em que o partido esteve na cadeira presidencial, avessos a postura conhecida como Lulinha Paz e Amor, e talvez fossem proféticas quanto aos absurdos ocorridos com o partido no futuro, seja no Golpe a Dilma, na prisão de Lula em 2018 ou no antipetismo alimentado pela imprensa e oposição.

    Peões é um retrato muito realista do povo brasileiro, mostrando pessoas absolutamente comuns e que contrariam a máxima de que brasileiro não gosta e não discute política. As pessoas que são mostradas, cada um do seu modo, demonstram como a militância funciona nas camadas mais populares, provando que a pecha de que a esquerda é formada única e exclusivamente por pessoas abastadas que nunca tiveram necessidades reais é uma visão bastante preconceituosa e irreal sobre ela.

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  • Crítica | Marcha Cega

    Crítica | Marcha Cega

    O filme de Gabriel Di Giacomo utiliza como ponto inicial de seu filme, Marcha Cega, a figura de Sergio Silva, um fotógrafo que ficou cego após um tiro da truculenta Polícia Militar de SP em meio a uma manifestação política que ele cobria. Antes mesmo de mostrar isso, há cenas da polícia desfilando, cantando o hino da Independência do Brasil e a promessa de proteger os entes do povo. Não foi o caso de Sergio, que perdeu o sentido que fazia sua profissão ser útil.

    Os depoimentos de manifestantes políticos que foram (e são) perseguidos, os intelectuais e ex-membros políticos de secretárias de segurança falam sob um cenário negro, remetendo a obscuridade desses processos e da cegueira propriamente dita. A transição da maior parte das cenas é composta por uma tela preta que fica por alguns instantes, e isso normalmente é um recurso ruim quando usado em documentários, aqui há função narrativa, seja por imitar a perda da visão, no caso de Sergio, seja pela conversa que tem com os muitos casos de pessoas que tiveram seus olhos alvejados em trocas de tiro, seja de borracha ou mesmo os projéteis metálicos.

    As falas denunciam os atos de abuso de autoridade, unido a algumas cenas onde descrições dos manuais das polícias, como coibir manifestantes e agir com a violência é bastante comum. O argumento da maior parte dos entrevistados é que a mídia alternativa é importante, pois sem ela a pauta dos grandes veículos de imprensa ocorreria basicamente culpando ao atos de protesto como mera oportunidade de vandalizar os bens públicos e espaços urbanos. Os veículos que mostram o povo apanhando são os  que fazem com que as TVs e a grande imprensa passem a tratar o sujeito comum como vítima da ação truculenta do Estado, mostrando afinal que a violência normalmente vem de cima.

    Ao final de Marcha Cega, aparecem letreiros que anunciam a tentativa de contato com as assessorias de Alexandre Moraes – ex-secretário de segurança e atualmente ministro do STF -, Geraldo Alckmin – governador de São Paulo à época -, e a direção de núcleos das polícias citadas ao longo dos 88 minutos de corte do documentário, e todos foram ignorados, alguns de maneira mais veemente outros de forma polida. A oportunidade de fala oficial foi dada e simplesmente ignorada, e a ironia mora aí, pois essa é a atitude normalmente utilizada pelas autoridades, que ignoram sumariamente os pedidos e exigências do povo, só respondendo quando lhe é conveniente.

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  • Crítica | No Intenso Agora

    Crítica | No Intenso Agora

    “Nem sempre a gente sabe o que tá filmado…”

    É engraçado como João Moreira Salles soa o filme inteiro como se estivesse pedindo licença para adentrar na realidade, registrá-la e investigá-la, feito um jornalista não temeroso mas ainda desacostumado com a sua profissão. O cineasta carioca não parece decifrar com tranquilidade fotos em movimento com atores e situações reais de um Brasil, de uma Europa, de uma Ásia ancestrais. Poetizando tempos distintos ao nosso momento atual, Salles promove uma viagem pelo tempo e faz um filme-hipnose, e metódico, como melhor deve ser chamado No Intenso Agora. A intensidade, na verdade, não mora em nenhum dos seus relatos acerca de eventos que moldaram a história da humanidade, como hoje em 2018 já se pode perceber, mas consta na ganância especulativa de Salles em torno de fatos dignos de interpretações de caráter extremamente dúbio, e abismal.

    A história é feita de controvérsia, aonde quer que se olhe em seus registros e impressões decorrentes. Para nós, seria injusto ter sobrado apenas uma nostalgia irreparável de tempos remotos e recentes? Eis um documentário que tenta ser original não escapando da nostalgia familiar do começo da sua narração (onipresente e que quase nunca deixa as imagens falarem por si só), para se debulhar em questões paralelas e nacionalistas que equilibram os seus temas, o tempo todo. O forte teor político de No Intenso Agora, que consegue ser um pouco mais que um poço de desejos e lembranças do seu diretor, anda de mãos dadas com uma visão caseira e basilar que parece sair de um documentário do saudosista português Manoel de Oliveira, e é esse o verdadeiro núcleo essencial de uma obra que une tantas ocorrências da década de 60, para culminar num mesmo propósito nobre para todos nós: seus desdobramentos posteriores constatados no povo, e para o povo.

    E é isso que o diretor do espetacular Santiago, de 2007, está mais interessado: O que acontece de periférico na existência de um fato, o que rola em suas beiradas e como isso afeta a todos. Como ele mesmo fala, é mesmo difícil prever o futuro, e por isso talvez tenhamos tanta sede em revirar o passado, como sentem com mais força os mais conservadores de opinião. Numa teia de acontecimentos, o povo carioca velava em 1968 o estudante Edson Luis, morto pela polícia, e a democracia ainda era mito no Brasil. Na França, o povo francês lutava na rua por liberdade, felicidade e mais direitos em março do mesmo anos, mas qual era a opinião dessa gente, aqui e acolá? E qual o valor da rua quando pronunciamentos presidenciáveis são filmados pela TV, e não diante do próprio palanque? O filme de Salles tenta estimular respostas a essas perguntas, para a dimensão humana das tragédias, mas se perde em excesso de relatos e registros que, por mais valiosos que sejam, faz o documentário perder o foco e ser engolido pelo ego considerável do seu diretor.

    A alegria e a tristeza do povo (europeu, chinês, brasileiro) não é debatida em eventos de grande potência, mas pincelada e almejada como bem se entende na frase de um estudante francês: ‘Cada segundo tem a espessura da eternidade’. Se antes havia mais local que polêmica num fato controverso, hoje há mais controvérsia que peso regional num fato, dada a nossa globalização. O mundo já foi regulado, e hoje parece seguir feito uma criança sem os pais para engatinhar em seus tropeços históricos. No Intenso Agora é um Utopia e Barbárie menor, mais pessoal com o que lida e debate, muito mais poético e mais excessivo no seu vasto escopo histórico. A partir dos caminhos de uma família de classe média, conhecemos os víeis conflitantes e marcantes de um outrora não tão distante da nossa contemporaneidade líquida, e conectada. Mas a questão que fica, agora, é a seguinte: O quanto nosso passado importa à maioria das pessoas, agora? Se depender desse documentário, tudo.

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  • Crítica | Em Nome da América

    Crítica | Em Nome da América

    Em Nome da América é um exemplar documental do cinema de denúncia. Sua motivação é investigar os detalhes de um grupo de norte-americanos, que vieram ao Brasil como voluntários, através da organização Peace Corps (Corpos da Paz), e que chegaram ao Brasil em meio a década de 1960, durante o governo do democrata John F. Keneddy, enquanto por aqui o início do período militar estava em ebulição.

    O diretor Fernando Weller usa depoimentos de estadunidenses, na atualidade, para mostrar a terrível situação que o povo sofria, e as contradições deles serem enviados para um país que buscava alternativas mais humanitárias mas que também não fez qualquer esforço para se manter o estado democrático de direito, acabando por depor um presidente democraticamente eleito com o apoio desse mesmo EUA. Levando em conta o lançamento nos cinemas de circuito, é curioso e até catártico o fato do filme vir à público pouco antes das revelações de documentos que comprovam que o governo Geisel torturou e matou boa parte de seus adversários.

    Os Corpos da da Paz representavam uma parcela do governo de JFK que visava civilizar o continente da América Latina. As contradições entre a boa vontade dos jovens e as ações imperialistas são novamente analisadas aqui, como foi no documentário colombiano The Foreigners, filme esse que foi encomendado pelos voluntários da paz que estavam na Colômbia.

    Tomando isso como ponto de partida, a maioria dos entrevistados explicita sem qualquer pudor que o golpe de 64 só conseguiu se firmar por conta da paranoia do governo dos Estados Unidos, de que poderia haver a partir do Brasil algumas células comunistas, daí fortalecer o poderio das igrejas locais era importante, pois seriam elas que bateriam de frente com as ligas camponesas que lutavam por melhores condições de trabalho no campo. Esse tipo de intervenção era comum em outros países, mas sempre foi encarada como teoria da conspiração por muitos brasileiros até pouco tempo atrás.

    A leitura que Weller traz ao seu filme é bastante sóbria, sem medo de tomar partido, uma vez que é bem clara a intenção dos Estados Unidos de apoiar as ditaduras latinas, a fim de tentar frear a possibilidade do socialismo surgir em território latino americano, como aconteceu em Cuba, fato que claramente não faz sentido, visto todos os estudos feitos anteriores, inclusive em documentários como Jango, de Silvio Tendler, já que o governo de João Goulart nunca teve ou esboçou essa alternativa revolucionária. Em Nome da América traz um excelente estudo que complementa outros documentários realizados após a abertura do regime militar.

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  • Crítica | Entre Os Homens de Bem

    Crítica | Entre Os Homens de Bem

    De Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, antes mesmo de mostrar o conteúdo do longa há um anúncio de que o filme não possui qualquer traço de verba pública ou mesmo de captação semelhante. Entre os Homens de Bem é focado na figura do deputado federal eleito pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, do Estado do Rio de Janeiro, Jean Willys.

    Antes mesmo do discurso do biografado, é mostrado um ritual ligado as religiões afro-brasileiras, em meio a alguns discursos de políticos conservadores e de extrema direita, bradando basicamente contra a orientação sexual LGBT, vista em Jean e em alguns outros parlamentares. Em meio a crise política do Brasil em 2018, analisar esse tipo de discurso, que foi gravado na época antes de 2015, 2016, com as falas inflamadas de pastores, de dentro do parlamento e até de fora, uma vez que não aparecem somente Marco Feliciano, mas também Silas Malafaia, em um discurso preconceituoso, prepotente, arrogante e carregado de uma fala que foge demais a ideia de  um estado laico, que se agrava principalmente por essa fala ocorrer dentro da casa da lei.

    Os documentaristas usam as filmagens da edição do Big Brother Brasil em que Willys foi o campeão, para mostrar uma escalada de vitorias dele sobre preconceito, embora o fato dele ter sido alvo da panela que tentou eliminar ele precocemente do programa fosse contestável à época. Essa parte como um todo força um pouco a barra, ainda mais quando tenta dar uma legitimidade ao prêmio de vencedor ao professor como se fosse um sinônimo de que o Brasil realmente luta contra preconceitos homofóbicos, até porque pouco tempo depois um dos vencedores do reality show foi um sujeito claramente anti-gay.

    O filme e o deputado são bastante didáticos, no sentido de explicar onde exatamente o discurso pró família tradicional está errado e onde ele começa a perseguir as minorias, como se seus direitos fossem maiores que os dos outros. Jean lê uma historia de um medico gay, que ao não conseguir mais reprimir sua sexualidade, se assume e é tratado como endemoniado e possesso pelo diabo. Para quem já está acostumado com esse tipo de discurso, tal situação é extremamente banal, mas para quem não está situado no ambiente alienatório de quem condena a homo afetividade só por condenar ou por supostas leis espirituais, isso é assustador, ainda mais em se tratando do Brasil, que é uma pátria multi cultural e de diversidade religiosa muito difundida.

    O culto semanal acontece tradicionalmente dentro do Congresso, no entanto, há uma falácia dentro da conversa, em especial de Marcos Feliciano, de que os homossexuais querem privilégios, quando quem os tem é a bancada evangélica. Também se gasta um tempo discutindo a falácia que boa parte dos leigos, que encara pedofilia com homossexualidade, discussão essa já amplamente discutida entre juntas médicas e refutada cientificamente, mas ainda levantada por parte de alguns fundamentalistas desonestos.

    Um dos principais alvos do filme é destacar a visão limitada da relação sexual que muitos dos opositores do biografado tem, normalmente declarando que estas são feitas para e tão somente procriação, o que é obviamente uma mentira, além disso, há a denuncia do discurso que propaga que o PT investe na luta entre classes políticas, de gêneros e afins para justificar seu plano de poder. Essa ultima sentença vem da boca de Jair Bolsonaro, atual presidenciável. Parte da preocupação do deputado reeleito do PSOL, era com a quantidade exorbitante de votos de Bolsonaro, e os minutos finais de Entre Os Homens de Bem, destaca não só a rivalidade entre os dois plenários, mas também o crescimento da popularidade do militar de reserva eleito no Rio de Janeiro. Esse viés de denuncia talvez seja o argumento mais inteligente, apesar de hoje parecer previsível, pois já havia sido feita antes mesmo de se declarar mais categoricamente a chapa presidencial do personagem deplorável que é Bolsonaro.

    Cavechini e Barros não tem qualquer receio em parecer ou não parecerem parciais, e todas as bandeiras levantadas por Willys no decorrer dos 104 minutos do longa são justas e igualitárias, e apesar de alguns tropeços do político, ao falar a respeito do cenário da esquerda atual, e de algumas leituras bastante ingênuas na época da eleição – como por exemplo, a reclamação dele a aproximação de Dilma Roussef a Katia Abreu – seus mandatos tem sido preconizados por pautas muito corretas e progressistas, tanto em votação como em proposição de projetos, e o filme registra isso a maestria, misturando bem momentos de imagens inéditas muito intimas com videotapes de sessões da câmara, para muito além até das declarações do deputado que contradizem em algum modo sua militância progressista, do que está no filme, não há qualquer reprimenda ou crítica negativa a postura dele como representante do povo.

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  • Crítica | Eu Não Sou Seu Negro

    Crítica | Eu Não Sou Seu Negro

    “A história dos negros na América é a história da América. E não é uma história bonita”. Essa é uma das frases que James Baldwin, famoso escritor americano, profere no documentário Eu Não Sou Seu Negro, de Raoul Peck. Além dessa, existem várias outras frases, citações, textos, palestras e conversas onde ele expõe de forma nua e crua as relações raciais nos EUA, com a qual podemos traçar alguns paralelos em relação ao Brasil. O difícil mesmo é escolher quais citações usar, pois a cada minuto Baldwin nos joga na cara, com uma lucidez dolorosa, a forma como os EUA foram construídos em cima de um projeto de separação racial e exploração da população negra trazida da África. E como não dá mais para ignorar isso.

    O filme Eu Não Sou Seu Negro é um projeto do cineasta (com narração de Samuel L. Jackson), utilizando como base o livro não concluído de Baldwin, Remember this House, onde o escritor iria contar a história dos EUA a partir dos assassinatos de três dos principais líderes negros da história: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King, durante o movimento pelos direitos civis.

    No início e final do filme, Baldwin cita a necessidade tanto de ter saído dos EUA (com a paranoia real de a cada esquina poder ser morto por alguém), até viver em Paris por tanto tempo que passou a sentir falta dos EUA. Mas, como ele deixa claro, não dos ícones da cultura americana, como a comida ou os esportes, mas sim o seu povo. Mesmo deixando também claro que nunca se sentiu conectado com nenhum movimento em particular (Os Panteras Negras, a NAACP, ou as congregações cristãs), ele queria estar ali, circulando entre eles, observando a história acontecer. Enquanto escrevia sobre ela.

    É morto Medgar Evers.

    A todo o tempo no filme, Baldwin cita a relação e o diálogo na época com os brancos (sociedade em geral e também representantes do governo dos Kennedy) e a frustração com não só a incapacidade deles de entenderem o real problema, mas também de entender que havia um problema ali. Os brancos acreditavam firmemente que os EUA eram um projeto que deu certo, e a escravidão e violência eram um desvio de caráter, não um traço fundador do país.

    A divisão no país, entre brancos e negros, não é só econômica. Há uma barreira quase intransponível que mesmo os brancos liberais e antirracistas não conseguem ver ou mesmo entender como ela opera no seu cotidiano. Ao citar amplamente sua infância e seu início de aprendizagem e formação psicológica, Baldwin mostra, utilizando-se como exemplo, como o negro nos EUA cresce com outros referenciais de beleza, de postura, de atitude, de crenças, e de oportunidades, e como se dá o choque ao saber que tudo aquilo que lhe foi vendido, não foi feito para ele.

    É morto Malcom X.

    Discordando-se ou não de sua postura (como havia discordâncias, as vezes ferozes, mesmo dentro do movimento negro), Malcom foi um porta-voz ativo de uma mensagem que precisava ser ouvida. A da raiva acumulada por séculos, e de que o negro americano nunca foi pacífico ou que aceitou a condição que lhe foi imposta. E que agora essa raiva iria retornar na mesma medida a sociedade que lhes impôs tudo isso. E essa atitude iria custar uma repressão enorme do aparato estatal, já que o “Revolucionário branco quando se arma é aplaudido. O negro é tratado como criminoso.”

    É morto Martin Luther King.

    Toda a estrutura social, econômica, política e especialmente militar dos EUA, toda a base do “sonho americano”, foi construída em cima de uma noção de país que só serve para uma pequena minoria, que desfruta de todo essa qualidade de vida ao custo da mão-de-obra barata dos negros desde a escravidão.

    A ignorância do branco em relação a todas essas questões se reflete na discussão com o professor de filosofia de Yale, Paul Weiss, cuja frase marcante “a cor não deveria ser o foco do debate” é o típico argumento do branco, quando se é negro nos EUA ou no Brasil a principal preocupação do negro antes de tudo é sobreviver ao dia-a-dia. A ameaça de morte está em cada pessoa e em cada figura de autoridade. Todo o histórico de violência do país é o retrato dessa divisão, e o argumento principal de Baldwin é que isso tem um custo. O vazio emocional dos EUA é tão grande que se tenta preencher isso com uma avalanche de bens materiais. Cada americano, violento ou ignorante, tem uma parcela de responsabilidade enquanto não assume a situação do país. E isso se reflete na violência das instituições, da população contra si mesma, os tiroteios em massa, a paranoia com segurança e o “invasor externo”, etc, afinal “Você não pode me linchar e me manter nos guetos sem se transformar em algo monstruoso”.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

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