Tag: união sovietica

  • Crítica | Gorbachev.céu

    Crítica | Gorbachev.céu

    Gorbachev.Céu é um documentário curioso. Além de dar voz a uma figura política controversa do passado, o ex-secretário geral do Partido Comunista e ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbachev, também se permite ser silencioso e contemplativo. Vitaly Mansky mergulha na identidade e intimidade do homem a quem se atribui o fim do sonho socialista, com ele já limitado fisicamente, embora bastante lúcido.

    Gorbachev fala a respeito do desprezo que parte dos russos tem por sua figura, especialmente da imprensa, ainda que encare o momento político atual do país como continuação do seu trabalho. Ele se sente um herói da política e da democracia, vê Vladimir Lenin como um deus, mantém um postura serena e calma na maior parte dos momentos e se diz, reiteradamente, que foi mal compreendido ao longo de seu mandato.

    O filme tem um ritmo lento, acompanhando as falas e pensamentos de seu biografado, os poucos momentos enérgicos resultam dos resumos que ele faz a respeito de figuras notáveis do regime soviético, especialmente as óbvias como Lenin e Josef Stalin, e outros menos lembrados como Yuri Andropov e Fyodor Kulakov. Suas opiniões são contundentes e curiosas, é possível enxergar em suas falas semelhanças com políticos brasileiros, incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que além de não gostar de ser associado à direita é escorregadio ao falar dos seus erros como governante.

    Mansky considera Gorbachev um pária, e de fato, ele é. Contudo, o lado que ele escolhe defender em seu filme é que Mikhail foi injustiçado, a visão apresentado pelo documentário era que a URSS era nefasta e que a classe trabalhadora não teve tantos avanços. Isso não impede que entre cineasta e entrevistado haja atritos ou mitificações, Gorbachev responde de maneira atravessada a indagação de que a Rússia não é um país de democracia longeva, e de que seus tempos não fugiam do autoritarismo, e mesmo sem ter a mesma força de quando era jovem, ele se mostra vaidoso e resoluto, embora na maior parte do tempo seja cortês.

    Parece um castigo que o presidente que estava no poder na dissolução da potência soviética esteja vivo e consciente, beirando um século de vida, possivelmente podendo acompanhar as duras críticas feitas sobre sua pessoa. Apesar da mornidão e do viés liberal existente no filme, Gorbachev.céu retrata um importante ator político do século XX, e ajuda a visualizar o mapa socioeconômico de hoje e ontem.

  • Crítica | Os Guardiões

    Crítica | Os Guardiões

    Filme russo, do filão de super-heróis, Os Guardiões começa de maneira curiosa, denunciando questões como o atomic horror que permeou toda o ideário da Guerra Fria, iniciando as explicações a respeito dos poderes dos personagens com uma musica pop cantada em inglês. Basicamente, o longa explora uma trama da época da União Soviética, em que Josef Stalin teria começado um programa de experimentos para transformar recrutas em super-humanos. Um deles se rebela e provoca o caos entre a sociedade russa.

    Para contrapor isso, uma força tarefa da inteligência russa começou a pesquisar entre os cidadãos comuns do país, na Sibéria, Cazaquistão e demais repúblicas soviéticas, pessoas aptas a passar pelos experimentos. Chega a ser engraçado ver toda a estética de filmes americanos/britânicos retratando a outra polaridade da Guerra Fria. Os efeitos especais e os poderes dos personagens fazem lembrar momentos icônicos de bons filmes de heróis, como X-Men 2, mas também guarda semelhanças estéticas com G.I. Joe, embora pareça muito mais com o segundo.

    O filme de Sarik Andreasyan lembra demais as produções da Asylum, seja nas atuações que não entregam boas interpretações, como nos efeitos especiais sofríveis. Um desses heróis se torna um Urso e tem o arquétipo típico de um cientista, ao melhor estilo Hulk. Sua persona é das coisas mais toscas e maravilhosas, uma vez que ele, sem intenção de ser, torna-se um alívio cômico carregado de estereótipos vazios.

    A direção de arte é ineficaz, uma vez que não há qualquer reconstrução de época, de modo que os vigilantes parecem viver na atualidade e não nos anos oitenta. O visual se encaixaria perfeitamente nos dias atuais, tirando pequenas referências de época. Há uma cena pós-crédito, que dá vazão a possíveis continuações, e dada a condição extremamente precária da obra, a torcida para que haja prosseguimento na saga é grande, já que o conteúdo é tão incrivelmente inadequado que soa hilário.

    Acompanhe-nos pelo Twitter e Instagram, curta a fanpage Vortex Cultural no Facebook, e participe das discussões no nosso grupo no Facebook.

  • Crítica | O Dono do Jogo

    Crítica | O Dono do Jogo

    O Dono do Jogo, de Edward Zwick, resume duas características do ano de 1972 nos Estados Unidos: a paranoia desencadeada pela propaganda anticomunista e a popularização do xadrez em todo o território nacional. O motivo disso tudo é bastante claro: a final do campeonato mundial de xadrez envolvendo o atual campeão, o soviético Boris Spassky (Liev Schreiber) e seu desafiante, o norte-americano Bobby Fischer (Tobey Maguire).

    Na trama, acompanhamos a história de Fischer desde sua infância, criado por uma mãe solteira socialista e judaica (Robin Weigert), os primeiros traços de paranoia e a aproximação com o xadrez que o faria campeão nacional ainda em sua adolescência. A explosão ao estrelato ainda jovem o levaria, alguns anos depois, a famosa final Fischer-Spassky, e serviria como propaganda nacionalista, uma esperança norte-americana para encerrar os 24 anos de dominação soviética no xadrez.

    Curiosamente, o título original Pawn Sacrifice remete a uma jogada clássica no xadrez em que, propositalmente, abre-se mão dos peões para a construção de uma jogada maior ou para ainda ganhar tempo no desenvolvimento de outras peças. Uma metáfora bastante óbvia para Fischer e o próprio xadrez, que acabam se tornando peões em um jogo muito maior do que eles, travado pelas duas superpotências da época, Estados Unidos e União Soviética.

    Pena que isso seja tão mal aproveitado pelo roteiro, pois assim que inserido qualquer sub-texto político, a trama vai pelo ares. O mesmo pode ser dito sobre a genialidade de Fischer no xadrez, já que em nenhum momento a direção de Zwick e o roteiro de Steven Knight procuram mostrar ao espectador a razão da genialidade do enxadrista, com exceção do jogo final com Spassky. Afinal, todas as partidas anteriores são cortadas e sabemos dos resultados por meio de diálogos entre as personagens.

    É difícil encontrar explicações para as escolhas da direção e roteiro: a construção das personagens são abandonadas assim que aparecem em tela; não há justificativas plausíveis para o que leva Fischer, um judeu, a ser influenciado por extremistas religiosos antissemitas; nenhuma explicação sobre seu relacionamento conturbado com a mãe, uma socialista; ou por fim, o que o leva a sofrer cada vez mais de uma suposta doença mental. Nada disso é desenvolvido, personificando a figura de Fischer à um simplismo massificado, bobo e infantil típico da já recorrente fórmula hollywoodiana em cinebiografias.

    A aproximação com a política soa rasteira e sequer desenvolve a forma como o governo norte-americano utiliza Fischer como peão durante a Guerra Fria e o descarta em seguida, devido a seus frequentes colapsos públicos, vindo a ser preso e, no final da vida, exilado dos Estados Unidos e refugiado na Islândia. Este fato é mencionado apenas por um epílogo final e em alguns trechos de época do próprio Fischer, o que se torna um dos grandes momentos do filme. Somente nos créditos conseguimos entender minimamente a complexidade da personagem, que convenhamos, Zwick tenta se aproximar, mas falha ao tentar envolvê-lo de forma significativa em seu filme.

    Ainda assim, o longa tem bons momentos, principalmente em sua fotografia ambientada nos anos 1950, 60 e 70, com emulações à filmagens de época e rápidas cenas da história do mundo intercaladas com jogadas em um tabuleiro de xadrez. Infelizmente, o clima de tensão e urgência típicos da Guerra Fria não se caracterizam em tela, como também a paranoia de Fischer, e em alguns momentos de Spassky, também não é transmutada para a sua direção. A atuação de Maguire deixa a desejar, abusando de tiques e exageros na composição de sua personagem, soando superficial para explicar essa figura controversa. Schreiber se mostra apenas correto como o enxadrista russo. A forma como sua personagem é apresentada incomoda pelo emprego de um vilanismo que deixa a dúvida se Boris Spassky era um jogador de xadrez ou um soldado da máfia russa. Um estereótipo certamente imposto ao ator, já que tem sido bastante comum vê-lo trabalhar em ótimas composições de outros papéis. Ainda assim, Michael Stuhlbarg e Peter Sarsgaard têm um bom trabalho como elenco de suporte à Maguire, roubando a cena em alguns momentos.

    Zwick está longe de ser um mal diretor, já se mostrou competente em Um Ato de Liberdade, Diamante de Sangue, Tempo de Glória. Mas em O Dono do Jogo erra magistralmente em todas as frentes que procura abordar, seja ela ao caracterizar um jogo de xadrez, o cenário político da época ou as idiossincrasias de seu protagonista, se resumindo a um filme engessado, cômodo, repleto de clichês e com um viés excessivamente nacionalista e maniqueísta. Ao tenta ser neutro em suas discussões, o filme se resume a mais uma peça nacionalista de Hollywood: convencional, inofensiva e correta, muito aquém da personagem errática, arrogante e desequilibrada de Bobby Fischer.

  • Crítica | Anna dos 6 aos 18

    Crítica | Anna dos 6 aos 18

    anna-dos-6-aos-18Em entrevista publicada para a saudosa revista Filme Cultura, uma das principais revistas da história do cinema brasileiro que circulou entre 1966 e 1988, Zuenir Ventura questiona Eduardo Coutinho, quando no lançamento de Cabra Marcado para Morrer, se ele havia escrito um roteiro e Coutinho responde dizendo que não tinha escrito, pois tinha apenas o objetivo de contar algumas histórias. E muitas perguntas. Perguntas é o que move a discussão promovida no documentário Anna dos 6 aos 18, de Nikita Mikhalkov.

    Assim como para Coutinho, seus entrevistados tem uma importância factual para compor sua história, Mikhalkov utiliza desse mecanismo o seu filme, voltando-se, que parte de cinco perguntas banais feitas feitas à Anna, sua filha, desde os 6 até os 18 anos de idade, repetidas religiosamente, ano a ano ao longo de 12 anos: o que mais a amedrontava, o que mais ela desejava, o que ela mais odiava, o que mais amava e o que ela mais queria naquele momento. De 1980 a 1991, o cineasta repete essas cinco perguntas à sua filha Anna e, por meio delas, traça paralelos entre o crescimento de sua filha, por meio de suas respostas, como também da própria história de um povo e sua terra.

    Segundo Mikhalkov, o longa inicia-se da ideia de utilizar um rolo de filme por ano na qual realizaria as mesmas cinco perguntas a sua filha. Dessa forma, dois temas iniciais são peças importantes de análise da obra do diretor: tempo e memória. O tempo, no cinema, é relativo, sendo o trabalho de montagem e edição instrumentos fundamentais para entendermos a construção narrativa de um filme, assim, notamos que a escolha de tais temas não se faz por mero acaso, já que a memória está ligada diretamente a noção subjetiva do tempo, bem como este se relaciona com uma noção de tempo cronológico, linear, ou melhor, histórico.

    Ao se trabalhar em um gênero como o documentário é comum pensarmos em algumas práticas corriqueiras, como a utilização de registros, entrevistas e materiais de arquivo para a construção do tema desenvolvido no filme, pouco importando se estes materiais são de caráter público ou privado, pessoal ou anônimo, portanto, novamente nos debruçamos sobre a memória, que é tão cara para Mikhalkov, como se torna evidente em sua narração em off no início do filme, onde ele alega não saber ainda que filme iria fazer, mas sentia, intuitivamente, que poderia ser um documento importante. Dessa forma, utilizando registros de família, e inúmeras imagens conhecidas mundialmente, Mikhalkov cria seu multifacetado documentário para contar um pouco da sua história familiar, mas também dos últimos anos da União Soviética.

    Interessante notar como quando Anna é questionada pela primeira vez suas respostas se encontram dentro de um universo típico de crianças, repleto de fantasia, contudo, um ano depois, com o ingresso à escola, seus medos e anseios passam a ser pensados no coletivo, sem saber ao certo os reflexos do um modelo de educação influenciaria os reais desejos de sua filha. A crítica ao modelo soviético se repete ao longo do documentário de modo menos ou mais implícito, como por exemplo, na montagem paralela onde o diretor contrapõe imagens de arquivo do líder soviético Leonid Brejnev de um teatro repleto de pessoas bem vestidas cantando a internacional, intercalada com imagens de pessoas simples dançando na rua, na qual é sobreposto os aplausos à Brejnev no teatro sobre as imagens do povo humilde, uma forma de retirar os aplausos dos líderes e dá-los aos cidadãos comuns. As críticas ao modelo socialista da União Soviética e a midiatização dão o tom da obra ao longo da vida de Anna.

    Em 1987, novamente Anna é indagada sobre as mudanças que o país vem sofrendo por conta das reformas políticas e econômicas de Mikhail Gorbachev. Já mais velha e com a abertura do país a iniciativa privada, as transformações em sua filha e na própria sociedade civil são evidentes pelas roupas utilizadas por Anna, seu modo de falar, como também pela inserção de imagens utilizadas pelo diretor, desfiles e concursos de beleza, comerciais de produtos repleto de cores e shows de rock. Curiosamente, em decorrência das reformas de Gorbachev, neste momento Mikhalkov abandona as críticas ao socialismo e passa a criticar todas as mudanças advindas da abertura do país ao capitalismo.

    Apesar da proposta inicial do documentário ser registrar os medos e desejos de sua filha no decorrer dos anos, Anna dos 6 aos 18 é acima de tudo uma exercício de autoanálise na medida em que o filme se desenrola. Por conta disso, é interessante notar como o filme parecer perder o seu foco inicial, naturalmente, isso ocorre num importante momento de transição político-ideológica, substituindo o tom crítico por um ar nostálgico na medida em que vemos o desenrolar da história que culminaria com o fim da União Soviética.

    Anna dos 6 aos 18 é acima de tudo um trabalho invejável sobre temas caros como a relação pais-filhos, tempo, transformações políticas e sociais, e além disso, uma aula de montagem e manipulação de imagens por meio de materiais de arquivo, seja público ou privado. Além disso, a postura anticomunista e crítica em relação à União Soviética soa vazia, já que a o declínio do socialismo real não provocou o esperado retorno que o diretor parecia almejar, abordando tais transformações da sociedade num retrato do capitalismo em sua forma mais degradante, concluindo o documentário de maneira desiludida e desesperançosa com o novo sistema político-econômico, mostrando um Rússia tomada por uma epidemia demagógica que engoliu e destroçou os sonhos e o saudosismo de uma época passada, encerrando seu filme com o tema central, o tempo.

  • Crítica | Adeus, Lenin!

    Crítica | Adeus, Lenin!

    1_zoomResponsável por liderar a safra recente de filmes alemães como Barbara e A Vida dos Outros, que se propuseram a revisitar o passado da ocupação soviética, Adeus, Lenin! se tornou uma grata surpresa pela originalidade da história em um filme que reverencia o próprio cinema.

    A mãe socialista de dois jovens alemães orientais entra em coma meses antes do Muro de Berlim cair e o país se reunificar, e quando acorda seu filho faz de tudo para protegê-la do choque criando uma nova realidade.

    O bom roteiro do diretor Wolgand Becker em parcecia com Bernd Lichtenberg, Achim von Borries, Hendrik Handloegten e Christoph Silber tem como premissa discutir a diegese do próprio cinema de ficção através de uma fábula sobre o tempo. A narrativa precisou encontrar um tom levemente fantástico para que fosse possível construir situações pouco realistas e chegar em uma das duas grandes discussões que o filme se propõe.

    Da mesma forma que nós espectadores só aceitamos entrar em um universo irreal onde pessoas se passam por outras se certos elementos forem verossímeis, o mesmo vale para a mãe de Alex. Para que ela aceite a nova realidade proposta pelo filho, ele tem de criar diversos elementos que façam com que seja verossímil, entre eles a produção de programas de TV, emular embalagens de produtos que não existem mais e etc.

    O tempo é a outra grande discussão do roteiro, e ela surge nas vezes em que a mãe entra em choque com a realidade quebrando a proposta por Alex, forçando soluções narrativas interessantes, como nos casos em que ela saía do quarto com o símbolo da Coca-Cola à vista. Esse embate trazem à tona os motivos nobres de Alex: a princípio seus atos se revelam pensando em preservar a mãe de ter um novo ataque cardíaco, mas através da grande revelação no terceiro ato, quem sempre esteve preso ao passado e não aceita as novas transformações do mundo é ele.

    Por último, o revisionismo histórico sobre o trauma soviético a que o filme se propõe é essencial e reabriu as discussões sobre a outra grande ferida no passado alemão. Apesar de ser uma comédia, o roteiro abraça os problemas tanto da ocupação soviética sob o governo socialista, que cerceava os direitos humanos e dava poucas opções de liberdade e consumo, quanto da mudança radical para o capitalismo, que aumentou o desemprego de funcionários e causou o fechamento de lojas.

    A direção de Wolfgang Becker é sólida e mantém o clima de comédia o filme todo, levemente alternando com o drama quando da necessidade do roteiro. Os leves toques de fantasia nas sequências em que Alex produz a nova realidade para a mãe são o ponto alto do filme, junto com a direção de atores.

    O ótimo Daniel Brühl foi a grande revelação na época interpretando o jovem Alex; Katrin Sass como a mãe, e as participações menores de Maria Simon, sendo a irmã Ariane e Chulpan Khamatova o seu interesse amoroso, Lara, trouxeram qualidade à obra.

    A fotografia de Martin Kukula é levemente fantasiosa e abusa do marrom e principalmente de tons secos que remetem ao passado. A edição de Peter R. Adam mantém o bom ritmo e as duas horas passam sem serem percebidas. Por ser um filme de época, o departamento de arte se destaca bastante graças ao ótimo trabalho de Matthias Klemme como supervisor, no desenho de produção de Lothar Holler, e dos figurinos de Aenne Plaumann.

    Adeus, Lenin! é um dos filmes que se tornou referência nos anos 2000 e traz tantas discussões relevantes que transforma seu tema universal e atemporal.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom

    Crítica | Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom

    Winter on Fire 1

    Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom é o segundo longa-metragem documental do diretor Evgeny Afineevsky, bastante acostumado a tratar temas controversos dentro do seio familiar do americano. O filme, liberado na Netflix, em 2015, trata da controversa questão atual da Ucrânia, passando por um pequeno preâmbulo a respeito da questão política na época da União Soviética, situando seu espectador sobre as eleições de 2004, que foram canceladas e alegadas como fraudulentas por grande parte da opinião pública internacional, apesar da controvérsia a respeito da veracidade das acusações.

    O documentário toma por verdade todas as acusações de fraude a respeito do antigo presidente Víktor Yanukóvytch, falando neste começo sobre a anulação do pleito em 2004 e desenvolvendo um papel heroico para os manifestantes que conseguiram sua queda, ignorando partes substanciais e importantes do fundamento em que baseia tais militâncias, sem sequer deixar claro para o público a participação do Svoboda, partido ultranacionalista de extrema-direita, que, entre muitas alegações, não aceita mestiços em suas fileiras e tem um panfleto que usa argumentos fascistas e neo-nazistas.

    A nacionalidade russa de Afineevsky poderia influir em sua análise das manifestações ocorridas recentemente no país balcânico, e surpreendentemente provoca o efeito contrário do que se esperava. O mote escolhido pelo diretor é bastante favorável aos protestos que ocorreram em Kiev e demais cidades, os quais visavam uma liberdade maior para a população, que em seus brados exigia a integração da nação a União Européia; aos poucos, evoluíram para a insatisfação famigerada com o governo de Yanukóvytch, do denominado Partido das Regiões, partido político que advoga para os interesses dos russos da Ucrânia.

    FILE - In this file photo taken on Saturday, Jan. 25, 2014, smoke and fireballs rise during clashes between protesters and police in central Kiev, Ukraine. The "Heavenly Hundred" is what Ukrainians in Kiev call those who died during months of anti-government protests in 2013-14. The grisliest day was a year ago Friday _ Feb. 20, 2014 _ when sniper fire tore through crowds on the capital's main square, killing more than 50 people. A year later, so much has changed. Russia has annexed Ukraine’s Crimean Peninsula, Ukraine has a new president and government, and the country is embroiled in a war in the east with Russia-backed separatists that has killed over 5,600 people and forced a million to flee. (AP Photo/Sergei Grits, File)

    As câmeras não demoram a exibir os protestantes em confronto com as forças policiais, não poupando o espectador das cenas em que o povo é duramente tratado. A impressão passada pela obra é de que o grito era uníssono, e que o Euromaidan representava de fato os anseios do povo ucraniano. O que não ocorre ao longo dos noventa e seis minutos de duração é a possibilidade de travar-se um diálogo minimamente justo, já que fora do movimento não há praticamente nenhum depoimento que não seja avesso a Yanukóvytch, a seus aliados, e claro, a Vladmir Putin, cuja imagem é representada a partir de um arquétipo maniqueísta, semelhante a um vilão de histórias em quadrinhos.

    É evidente, e até óbvio, que um documentário necessite escolher um viés para sua exploração, e é ainda mais natural que o enfoque seja feito a partir do viés que o seu realizador mais ache interessante, passando inclusive por suas ideologias políticas. No entanto, ignorar por completo o lado oposto causa um estranhamento na abordagem, correndo o risco de transformar o filme em um folheto propagandista.

    Analisando sob o ponto de vista político, Winter on Fire não consegue traçar um quadro minimamente condizente com toda a complexidade que envolve o cenário político local e as manifestações ocorridas a partir de 2013. Em A Praça Tahrir, a própria produtora Netflix havia se inserido em assunto semelhante, ainda que a proposta neste tenha sido completamente diferente, uma vez que a diretora Jehane Noujaim se valeu unicamente de fitas gravadas pelos próprios manifestantes, fator que justifica a sua categoria de fala única. Com Yanukóvytch o caso é diferente, e a imagem passada ignora a discussão a respeito dos rumos do país, que está claramente dividido, apresentando uma estampa de igualdade e união que não condizem com a realidade.

    Os dez minutos finais selam o destino dos ucranianos com possibilidades bastante esperançosas, com cenas de festejo acompanhadas de uma trilha sonora que exala docilidade, fomentando uma esperança e um sentimento de suavidade patriótico ironicamente fragmentado. A situação da Criméia, por exemplo, só é levantada após todo o desfecho narrativo do longa, citado nos pré-créditos finais, talvez aludindo a uma possível continuação que falaria especificamente deste episódio. O resultado final do documentário passa por uma incômoda fuga do complexo quadro político, ocultando informações importantes, como a proibição de partidos comunistas ocorrida recentemente, o que faz com que a sonegação dos lados políticos dos órgãos por trás das manifestações, ao menos de um modo explícito, torne-se ainda mais flagrante e vexatório. A resultante se assemelha demasiadamente a um retrato rasgado, com uma parte necessária e importante faltando, e ainda assim é louvada por grande parte dos analistas que sequer tem ciência disto.

  • Resenha | Sorge: O Espião

    Resenha | Sorge: O Espião

    sorge-o-espião

    Falar de Richard Sorge é falar de história, de União Soviética e de Segunda Guerra Mundial. Dito isso, esclareço que qualquer resenha sobre Sorge, O Espião, publicação da Editora Veneta, seria rasteira sem um breve adendo biográfico sobre sua importância histórica.

    Filho de pai alemão e mãe russa, e nascido em Sabunchi, no Azerbaijão – até então, parte do Império Russo -, muda-se para a Alemanha quando ainda tinha três anos. Motivo pelo qual em 1914 voluntaria-se para lutar na Primeira Guerra Mundial, entrando para um batalhão da artilharia alemã. No conflito, fica gravemente ferido em março de 1916, e é promovido a Cabo, condecorado com a Cruz de Ferro, honraria militar pelo reconhecimento aos serviços prestados à nação, e depois enviado para casa.

    Em 1925, muda-se para Moscou e entra para o Partido Comunista Soviético. Apenas cinco anos depois é enviado para a China como jornalista independente, mas com o objetivo real de prestar serviço de espionagem ao Exército Vermelho e familiarizar-se com a Ásia. Três anos depois se instala no Japão, já como jornalista prestigiado e passa a reunir informações sobre as relações entre Japão e Alemanha.

    Curioso? Como de herói alemão, Sorge entra para a história como o mais importante espião de todos os tempos? Difícil saber. Os historiadores relatam que, após a dispensa militar, passou a questionar a guerra e se aproximar da literatura marxista, talvez por conta do seu tio-avô, Friedrich Adolph Sorge ser mundialmente conhecido por sua colaboração ao lado de Karl Marx, no movimento operário e abolicionista nos Estados Unidos, e secretário da Primeira Internacional Comunista. A semente havia sido plantada e o tempo tratou de germinar.

    O álbum que temos em mãos não se trata de um documento biográfico sobre a história de Sorge, mas apenas um breve período dela, mais precisamente após se instalar no Extremo Oriente no início dos anos 1930 e as relações que mantinha com a embaixada alemã no Japão.

    A autora responsável pela obra é a alemã Isabel Kreitz, eleita no Comic Festival de Hamburgo de 1997 a melhor quadrinista nacional, e infelizmente, pouco conhecida no Brasil, reconhecida apenas por sua participação no álbum Elvis, de Reinhard Kleist (também conhecido pelas suas biografias de Johnny Cash e Fidel Castro), publicada pela 8inverso Comics. Kreitz desenvolve a trama sob o ponto de vista de Sorge e personagens que orbitam à sua volta.

    De persona difícil, Sorge vivia cercado de belas mulheres, e era conhecido pela sua faceta de bon vivant e beberrão, porém dono uma integridade enorme. Difícil sabermos o quanto dessa personalidade não fazia parte de seu disfarce como jornalista internacional renomado e o que, de fato, era autêntico, contribuindo ainda mais para a típica caracterização de espiões criada por autores como Ian Fleming, Tom Clancy e tantos outros.

    Na trama, conhecemos um pouco do dia-a-dia de Sorge e sua rede de contatos a partir dos testemunhos de seus personagens, seguindo um formato documental onde a narrativa é intercalada por esses testemunhos, até culminar nos acontecimentos que provavelmente foram a maior razão que impediu a vitória dos nazistas na Segunda Guerra, segundo diversos historiadores e jornalistas.

    Os desenhos de Kreitz são duros, retrato do tempo em que a história de Sorge é ambientada, repleto de sombras constantes, como num clássico conto noir dos anos 1930 e 1940. O traço forte e branco e preto do lápis casa com a crueza histórica da personalidade contraditória de Sorge. O álbum conta ainda com uma pequena biografia do espião, escrita pelo jornalista e pesquisador Frank Gieese, além de contar com um quadro que resume o destino de boa parte da rede de colaboradores de Sorge.

    Acima de um importante relato histórico, Sorge, O Espião é uma bela narrativa sobre amor, dramas e ideias, questões comumente esquecidas atualmente.

    Compre Aqui: Sorge, o espião

    Stamp_Richard_Sorge