Tag: cinema russo

  • Crítica | A Guerra de Anna

    Crítica | A Guerra de Anna

    Expoente do cinema russo recente, A Guerra de Anna, novo longa de Aleksey Fedorchenko começa no silêncio absoluto, mostrando uma criança despertando do sono, em meio a terra, com pedaços de areia cobrindo seu rosto e a pele de seu corpo. Ela levanta e vai na direção de um lugar mais confortável, e é no meio desse intimismo que todo o drama prosseguiria até o findar de sua trama.

    Essa menina é Anna, sobrevivente judia de um massacre que cerceou a vida de toda a sua família. A personagem, interpretada por Marta Kosiova tem uma jornada pregressa bastante trágica, e mostra uma face da guerra muito dura e pesada, deixando claro o quão cruéis são os métodos dos nazistas, bem como o temor e falta de solidariedade e empatia de uma parcela da sociedade, por medo de represálias do governo fascista.

    Enquanto tenta sobreviver, Anna tenta encontrar insumos e matérias básicos para matar sua sede, fome e ter algum conforto, ainda que mínimo. As cenas de privações conversam bem com outras obras, sobretudo O Pianista, de Roman Polanski. A abordagem aqui é sutil e econômica, e isso faz a obra ganhar força, substância e uma identidade mais intimista de se contar sua história.

    Os olhos de Anna vêem atrocidades, protegidas apenas pela inocência e ingenuidade típicas de uma criança com menos de dez anos. O fato dela não ter maturidade para enxergar esses horrores que a cercam não a tornam presa fácil para a morte ou para os horrores da guerra, seu instinto de sobrevivência fala mais alto que sua pouca idade. Ela utiliza o que aparece para sobreviver, mas sua subsistência não é predatória, inclui apenas o necessário.

    O fato dela quase não falar a faz parecer um pouco com Vito Andolini, versão mais nova de Vito Corleone introduzida no livro O Poderoso Chefão de Mario Puzo e em O Poderoso Chefão Parte II. Como a história mostra somente sua infância, abre-se a possibilidade de conjecturarmos se num futuro Anna também ter enveredado, se adulta fosse, a uma vida marginal, tal qual também é mostrada no clássico de Sergio Leone, Era Uma Vez na América, cuja boa parte dos personagens foram crianças que tiveram sofrimentos semelhantes aos de Anna.

    Fedorchenko acerta na duração de pouco mais de uma hora de filme, pois no formato em que sua história é contada grande parte da força do discurso se diluiria caso fosse mais extenso. Ainda assim, ele não cai no simplismo de adocicar genericamente o final de sua obra, sem ignorar os horrores proveniente do pensamento fascista.

  • Crítica | Sobibor

    Crítica | Sobibor

    Sobibor era durante a Segunda Guerra Mundial um campo de concentração nazista em que o grosso dos aprisionados era formado por ciganos e russos, isso de certa forma justificaria o motivo para que Konstantin Khabenskiy dirigisse o seu filme. De início é mostrado de uma forma sensacionalista alguns soldados nazistas vendo pessoas se batizando em um rio, e na mentalidade deles, esse batismo só poderia ser feito por judeus. Para os alistados da Alemanha, a vida dos judeus serviria somente para fazer trabalho escravo, e claro, para enriquecer o Reich.

    Essa mentalidade gananciosa, apesar de extremamente maniqueísta, revela bem qual era o modus operandi do governo de Adolf Hitler, além do que o filme não tem qualquer receio em parecer nojento, há momentos onde o gore sobressai até as atuações de seu elenco, com uma exibição bem generosa de vísceras, amputamentos e dilacerações, em especial sobre os concentrados menos subordinados.

    O primeiro grande problema do longa é que seu elenco é de nacionalidades diversas, e a solução para driblar a questão linguística foi a de dublar alguns personagens, em especial quando se precisa falar alguma língua que não o russo, e isso faz um humor involuntário ocorrer, e dado que Khabenskiy é ator (e inclusive está no elenco do filme), seria de bom tom tomar atenção para esses aspectos.

    O filme soa ultra dramático, se vale de clichês comuns e mal executados, que faz parece-lo uma cópia de outros filmes dentro desse subgênero, o que é uma pena, pois a história real poderia gerar uma nova perspectiva não só de como funcionou a guerra e a intolerância de Hitler, bem como agiu a resistência. O levante que ali ocorreu era revanchista, em uma versão moderada do que Tarantino fez em Bastardos Inglórios, claro, sem toda a hiper violência e irrealidade que o diretor emprega em suas obras.

    As imagens de dor e sofrimento não tem sua importância valorizada, pois parecem jogadas em meio um roteiro confuso e problemas de atuação conforme já havíamos mencionado. Além do diretor, outra figura famosa é Christopher Lambert, que até tenta fazer um oficial nazista de mentalidade dúbia, mas não consegue, um pouco por conta da barreira da língua (é um ator norte-americano, de origem francesa, que fala alemão em um filme russo), ou pela unidimensionalidade de seu papel.

    Não há muito o que se elogiar no longa. Ao menos, ele consegue mostrar o quão cruel e desalmados eram os atos dos soldados nazistas, e culpa corretamente os alistados e oficiais pelas atitudes nefastas que tomam, não suavizando nada, mesmo que boa parte deles usassem a desculpa de estar apenas seguindo ordens. Ainda assim, é muito pouco para um filme cuja pretensão é tão grande.

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  • Crítica | Sem Amor

    Crítica | Sem Amor

    Primeiramente, eis um filme que deveria se chamar “Sem Comunicação”. Diferente do regular e insosso A Chegada, de 2016, o filme russo é um tratado ainda mais inexpressivo sobre dois fenômenos que assolam os tempos contemporâneos (e o cinema europeu) há um bom tempo, com a tecnologia (de nós, para nós) nos tornando reféns de seus comodismos, indo além disso no mau sentido. Uma família quebrada por um divórcio, mas antes de tudo, pelo aparente e sabidamente verdadeiro rasgo rotineiro de laços entre seus membros desinteressantes; um nó familiar que a trama tenta recosturar (não até o fim), ao longo de duas intermináveis horas.

    Horas acerca de um vácuo existencial tão supérfluo que chega a ser risível, a respeito de um niilismo cinematográfico que nas mãos erradas, prova-se mais que insuportável, eu diria ofensivo mesmo para a percepção de qualquer um(a). Lidar com o nada, com a falta da substância convertendo-a, através de uma história familiar, num substancial de bom gosto digno de um apetite cinéfilo genuíno é uma tarefa pra poucos, pra quem se conta nos dedos de uma mão só, e digamos que o cineasta Andrey Zvyagintsev não figura nem lá pelo vigésimo dedo, da quarta mão depois de Sem Amor – isso porque a abstração quase que total de um tema pode ser uma ação, uma estratégia cara demais para o pobre artista submetido a ela.

    Fato é que o cinema contemporâneo do velho continente e de outras partes do mundo vem sendo castigado por isso, por uma subutilização farsesca, uma secagem de grandes tópicos que poderiam ser muito mais bem explorados, ao invés de pobremente expostos numa espécie de falta de fé na história, na imagem e no sentido da mesma. Esse esvaziamento é sentido em todas as cenas do longa, em especial quando esposa e marido conversam sobre o desaparecimento do próprio filho, ou quando, numa busca frustrada pelo garoto em uma floresta gelada, tudo é tão rápida e cinicamente resolvido que faz com quem 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, tenha uma carga emocional digna de lágrimas.

    Diferente de David Fincher em Garota Exemplar, que usa de sua frieza para extrair dela algo muito maior, estimulante e inteligente, nos deixando hipnotizados sobre o sumiço de alguém e os desdobramentos a partir disso, Andrey não enxerga nada além de um mundo gélido, imparcial e sem fundamento algum de nada, sobre nada, e isso não é capricho seu, mas de vários outros cineastas na ativa, iniciantes ou não, que encontram na falta de posicionamento sobre um assunto uma praça segura para discursarem seus pontos de vista. Ingmar Bergman e Andrei Tarkovski, principalmente, seguem imbatíveis no Cinema de excelente qualidade quando o assunto é existencialismo, ou a falta de sentido na vida humana, antiga, moderna ou atual – só a tecnologia mudou, nós e o cerne da nossa vida, longe disso.

    Enquanto os mestres sueco e soviético em Solaris, ou Gritos e Sussurros, buscavam respostas e uma (im)provável direção pelo vazio das coisas, tateando com esmero no escuro de suas inesquecíveis e norteantes experimentações expressivas, inquietos tal qual duas crianças hiper curiosas que não enxergam nuvens lá em cima, mas a simbologia de fantásticas criaturas embasadas num fenômeno cúmulo-nimbo, outros de seus seguidores, talvez imitadores sem vergonha encaram as nuvens, ou no máximo, alguma formação sem graça vagando no vácuo sobre as nossas cabeças. Em oposição a Leviatã, de 2014, que ainda guardava alguma graça pelo menos na ambientação da história, Sem Amor é isso: Uma única nuvem, branca e incomunicável, num banal ciano celeste de friezas infinitas.

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  • Crítica | Os Guardiões

    Crítica | Os Guardiões

    Filme russo, do filão de super-heróis, Os Guardiões começa de maneira curiosa, denunciando questões como o atomic horror que permeou toda o ideário da Guerra Fria, iniciando as explicações a respeito dos poderes dos personagens com uma musica pop cantada em inglês. Basicamente, o longa explora uma trama da época da União Soviética, em que Josef Stalin teria começado um programa de experimentos para transformar recrutas em super-humanos. Um deles se rebela e provoca o caos entre a sociedade russa.

    Para contrapor isso, uma força tarefa da inteligência russa começou a pesquisar entre os cidadãos comuns do país, na Sibéria, Cazaquistão e demais repúblicas soviéticas, pessoas aptas a passar pelos experimentos. Chega a ser engraçado ver toda a estética de filmes americanos/britânicos retratando a outra polaridade da Guerra Fria. Os efeitos especais e os poderes dos personagens fazem lembrar momentos icônicos de bons filmes de heróis, como X-Men 2, mas também guarda semelhanças estéticas com G.I. Joe, embora pareça muito mais com o segundo.

    O filme de Sarik Andreasyan lembra demais as produções da Asylum, seja nas atuações que não entregam boas interpretações, como nos efeitos especiais sofríveis. Um desses heróis se torna um Urso e tem o arquétipo típico de um cientista, ao melhor estilo Hulk. Sua persona é das coisas mais toscas e maravilhosas, uma vez que ele, sem intenção de ser, torna-se um alívio cômico carregado de estereótipos vazios.

    A direção de arte é ineficaz, uma vez que não há qualquer reconstrução de época, de modo que os vigilantes parecem viver na atualidade e não nos anos oitenta. O visual se encaixaria perfeitamente nos dias atuais, tirando pequenas referências de época. Há uma cena pós-crédito, que dá vazão a possíveis continuações, e dada a condição extremamente precária da obra, a torcida para que haja prosseguimento na saga é grande, já que o conteúdo é tão incrivelmente inadequado que soa hilário.

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  • Crítica | Anna dos 6 aos 18

    Crítica | Anna dos 6 aos 18

    anna-dos-6-aos-18Em entrevista publicada para a saudosa revista Filme Cultura, uma das principais revistas da história do cinema brasileiro que circulou entre 1966 e 1988, Zuenir Ventura questiona Eduardo Coutinho, quando no lançamento de Cabra Marcado para Morrer, se ele havia escrito um roteiro e Coutinho responde dizendo que não tinha escrito, pois tinha apenas o objetivo de contar algumas histórias. E muitas perguntas. Perguntas é o que move a discussão promovida no documentário Anna dos 6 aos 18, de Nikita Mikhalkov.

    Assim como para Coutinho, seus entrevistados tem uma importância factual para compor sua história, Mikhalkov utiliza desse mecanismo o seu filme, voltando-se, que parte de cinco perguntas banais feitas feitas à Anna, sua filha, desde os 6 até os 18 anos de idade, repetidas religiosamente, ano a ano ao longo de 12 anos: o que mais a amedrontava, o que mais ela desejava, o que ela mais odiava, o que mais amava e o que ela mais queria naquele momento. De 1980 a 1991, o cineasta repete essas cinco perguntas à sua filha Anna e, por meio delas, traça paralelos entre o crescimento de sua filha, por meio de suas respostas, como também da própria história de um povo e sua terra.

    Segundo Mikhalkov, o longa inicia-se da ideia de utilizar um rolo de filme por ano na qual realizaria as mesmas cinco perguntas a sua filha. Dessa forma, dois temas iniciais são peças importantes de análise da obra do diretor: tempo e memória. O tempo, no cinema, é relativo, sendo o trabalho de montagem e edição instrumentos fundamentais para entendermos a construção narrativa de um filme, assim, notamos que a escolha de tais temas não se faz por mero acaso, já que a memória está ligada diretamente a noção subjetiva do tempo, bem como este se relaciona com uma noção de tempo cronológico, linear, ou melhor, histórico.

    Ao se trabalhar em um gênero como o documentário é comum pensarmos em algumas práticas corriqueiras, como a utilização de registros, entrevistas e materiais de arquivo para a construção do tema desenvolvido no filme, pouco importando se estes materiais são de caráter público ou privado, pessoal ou anônimo, portanto, novamente nos debruçamos sobre a memória, que é tão cara para Mikhalkov, como se torna evidente em sua narração em off no início do filme, onde ele alega não saber ainda que filme iria fazer, mas sentia, intuitivamente, que poderia ser um documento importante. Dessa forma, utilizando registros de família, e inúmeras imagens conhecidas mundialmente, Mikhalkov cria seu multifacetado documentário para contar um pouco da sua história familiar, mas também dos últimos anos da União Soviética.

    Interessante notar como quando Anna é questionada pela primeira vez suas respostas se encontram dentro de um universo típico de crianças, repleto de fantasia, contudo, um ano depois, com o ingresso à escola, seus medos e anseios passam a ser pensados no coletivo, sem saber ao certo os reflexos do um modelo de educação influenciaria os reais desejos de sua filha. A crítica ao modelo soviético se repete ao longo do documentário de modo menos ou mais implícito, como por exemplo, na montagem paralela onde o diretor contrapõe imagens de arquivo do líder soviético Leonid Brejnev de um teatro repleto de pessoas bem vestidas cantando a internacional, intercalada com imagens de pessoas simples dançando na rua, na qual é sobreposto os aplausos à Brejnev no teatro sobre as imagens do povo humilde, uma forma de retirar os aplausos dos líderes e dá-los aos cidadãos comuns. As críticas ao modelo socialista da União Soviética e a midiatização dão o tom da obra ao longo da vida de Anna.

    Em 1987, novamente Anna é indagada sobre as mudanças que o país vem sofrendo por conta das reformas políticas e econômicas de Mikhail Gorbachev. Já mais velha e com a abertura do país a iniciativa privada, as transformações em sua filha e na própria sociedade civil são evidentes pelas roupas utilizadas por Anna, seu modo de falar, como também pela inserção de imagens utilizadas pelo diretor, desfiles e concursos de beleza, comerciais de produtos repleto de cores e shows de rock. Curiosamente, em decorrência das reformas de Gorbachev, neste momento Mikhalkov abandona as críticas ao socialismo e passa a criticar todas as mudanças advindas da abertura do país ao capitalismo.

    Apesar da proposta inicial do documentário ser registrar os medos e desejos de sua filha no decorrer dos anos, Anna dos 6 aos 18 é acima de tudo uma exercício de autoanálise na medida em que o filme se desenrola. Por conta disso, é interessante notar como o filme parecer perder o seu foco inicial, naturalmente, isso ocorre num importante momento de transição político-ideológica, substituindo o tom crítico por um ar nostálgico na medida em que vemos o desenrolar da história que culminaria com o fim da União Soviética.

    Anna dos 6 aos 18 é acima de tudo um trabalho invejável sobre temas caros como a relação pais-filhos, tempo, transformações políticas e sociais, e além disso, uma aula de montagem e manipulação de imagens por meio de materiais de arquivo, seja público ou privado. Além disso, a postura anticomunista e crítica em relação à União Soviética soa vazia, já que a o declínio do socialismo real não provocou o esperado retorno que o diretor parecia almejar, abordando tais transformações da sociedade num retrato do capitalismo em sua forma mais degradante, concluindo o documentário de maneira desiludida e desesperançosa com o novo sistema político-econômico, mostrando um Rússia tomada por uma epidemia demagógica que engoliu e destroçou os sonhos e o saudosismo de uma época passada, encerrando seu filme com o tema central, o tempo.

  • Crítica | Leviatã

    Crítica | Leviatã

    leviatã

    Leviatã. Rima com amanhã, exatamente sobre o que trata este filme. O futuro e a angústia das incertezas a partir da insegurança que o amanhã confere. Quanto a essas incertezas, o filme discorre suas razões de cabo a rabo, desde o que move a vida dos habitantes de lugar-nenhum no fim do mundo – o mundo deles no qual só os “nativos” parecem ter acesso e conhecimento de como sobreviver em bando por lá – até o ambiente, que, por mais lúdico e inspirador, chega a sofrer influência e alteração pelo homem pelo simples fato deste viver em determinados recantos da Terra, culminando em caráter de parasita, muitas e muitas vezes. A troca de influência entre o social e a ambiência é a coluna dorsal de um atestado felino das relações humanas – astuto e expressivo, ainda que discreto, diga-se de passagem. É como se o magnífico turco Era Uma Vez na Anatólia fosse (re)filmado na ótica implacável e cética do francês Michael Haneke, e nem é preciso medir as palavras para atestar tal delírio alternativo.

    Bobagens (e uma atmosfera semi-emergencial que remete muito a Onde os Fracos Não Têm Vez) à parte, Leviatã adere à eterna moda soviética de ser realista a ponto da realidade ser surreal, e precisar ser ficção na tela de Cinema, exigindo do público uma fuga na ilusão para esquecer que o real pode ser tão mundano e frio, com certeza. Os cineastas Sergei M. Eisenstein e Vsevolod Pudovkin já faziam isso há quase um século, em Potemkin e A Mãe. Essa total apropriação da realidade pelas mãos da ficção, e todo o resto, pode ser percebido nos primeiros 15 minutos de Leviatã, contadinhos. Filmes de respeito são assim mesmo.

    O filme é um relato de um presente regido por suas pontas, um momento atual resultado e estopim do que já foi e do que será, uma não-oficial adaptação literal ao cinema, com veias de forte e imponente literatura russa, da melhor qualidade, a tanger aspectos de reinações da história, triste e contemplativa, moderna e histórica no mesmo nível, e ao mesmo tempo. O filme é uma enorme metáfora indireta só aos cegos que não querem ver, para com algo maior ainda: a Rússia e suas fundações refletidas no comportamento da civilização. Leviatã é um filme universal e com situações universais que, por acaso e entre aspas, calha de ser russo. Sabe as famílias despejadas no Rio de Janeiro, movidas para não enfeiarem os arredores da Copa de 2014? Aqui, essas famílias falam russo, os políticos têm cara e religião hipócrita, e as resoluções para os abusos e pressões de autoridades são expostas sem medo – essa história poderia estar em qualquer jornal do Brasil se manchetes não vendessem devaneios.

    Do suspiro “Toda minha vida está aqui” se resume a sensação de uma família de advogado reunida ao redor de uma mesa, o olhar geral num quadro pagão, com seu habitat estampado entre a moldura e prestes a ser corrompido num país gigante em que a pequenez se faz na ação jurídica de quem comanda suas tangentes. O cineasta Andrey Zvyagintsev vai fundo sabendo onde termina o abissal e começa o inferno, e desbrava tradições de um povo e de uma classe (baixa, claro) ignorando limites sensoriais – cada rosto no filme é uma bomba a explodir num barril de pólvora cercado por rochas milenares e um mar de lágrimas, lágrimas daqueles que o olham sem saber se almejam nadar para longe ou limpar com suas ondas o que infesta a pátria das pessoas que só querem viver em paz. De pequenos grandes momentos nos quais o silêncio grita tanto quanto as discussões, Leviatã admite que não há futuro respeitável sem respeitar o histórico do que poderia consagrar o estado atual das coisas. Sim, é uma obra de hipóteses. Alice no País das Maravilhas no mundo real – é impossível saber qual cabeça será cortada antes do fim, talvez todas. Destaque para a atuação coletiva, gloriosa.

    Com uma míngua de esperanças, a família se reforça para cantar ao político que rouba seu sono o refrão de Apesar de Você, de Chico Buarque, através de atos e relatos contra o abuso político e a favor da boa e velha resistência existencial da parte de baixo da pirâmide, sempre e ainda sofrida. E assim como os personagens que são maiores que seus dilemas e ensejos de sobrevivência, o filme se expande além de suas personas, locais e iluminação, à luz de um prisma enorme de interpretação ao gosto do público, cortesia do cineasta Andrey. Mesmo com a falta de uma alegoria épica aos moldes de cineastas como Ceylan ou Lav Diaz, e com algo mais prático ao estilo de Abbas Kiarostami e do próprio Andrey, Leviatã, onde nada é gratuito e toda ação e reação tem seu pesar, se consagra como narrativa mais que sólida, exemplar, e ainda nos oferece a obrigação, enquanto público, de prover conclusões ao filme. Uma obra complexa, mas com uma história bem aberta, de propósito, dada a revisões se não for pedir muito. Nós somos o ponto final nesse espelho interativo ao lado de cá da tela, onde, lá e cá, a corrupção política é natural e inerente ao espírito humano (pelo menos enquanto a ficção não prova o contrário). Daí o esforço pelo amanhã, num mundo dividido entre o natural e o mecânico.