Tag: Andrey Zvyagintsev

  • Crítica | Sem Amor

    Crítica | Sem Amor

    Primeiramente, eis um filme que deveria se chamar “Sem Comunicação”. Diferente do regular e insosso A Chegada, de 2016, o filme russo é um tratado ainda mais inexpressivo sobre dois fenômenos que assolam os tempos contemporâneos (e o cinema europeu) há um bom tempo, com a tecnologia (de nós, para nós) nos tornando reféns de seus comodismos, indo além disso no mau sentido. Uma família quebrada por um divórcio, mas antes de tudo, pelo aparente e sabidamente verdadeiro rasgo rotineiro de laços entre seus membros desinteressantes; um nó familiar que a trama tenta recosturar (não até o fim), ao longo de duas intermináveis horas.

    Horas acerca de um vácuo existencial tão supérfluo que chega a ser risível, a respeito de um niilismo cinematográfico que nas mãos erradas, prova-se mais que insuportável, eu diria ofensivo mesmo para a percepção de qualquer um(a). Lidar com o nada, com a falta da substância convertendo-a, através de uma história familiar, num substancial de bom gosto digno de um apetite cinéfilo genuíno é uma tarefa pra poucos, pra quem se conta nos dedos de uma mão só, e digamos que o cineasta Andrey Zvyagintsev não figura nem lá pelo vigésimo dedo, da quarta mão depois de Sem Amor – isso porque a abstração quase que total de um tema pode ser uma ação, uma estratégia cara demais para o pobre artista submetido a ela.

    Fato é que o cinema contemporâneo do velho continente e de outras partes do mundo vem sendo castigado por isso, por uma subutilização farsesca, uma secagem de grandes tópicos que poderiam ser muito mais bem explorados, ao invés de pobremente expostos numa espécie de falta de fé na história, na imagem e no sentido da mesma. Esse esvaziamento é sentido em todas as cenas do longa, em especial quando esposa e marido conversam sobre o desaparecimento do próprio filho, ou quando, numa busca frustrada pelo garoto em uma floresta gelada, tudo é tão rápida e cinicamente resolvido que faz com quem 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, tenha uma carga emocional digna de lágrimas.

    Diferente de David Fincher em Garota Exemplar, que usa de sua frieza para extrair dela algo muito maior, estimulante e inteligente, nos deixando hipnotizados sobre o sumiço de alguém e os desdobramentos a partir disso, Andrey não enxerga nada além de um mundo gélido, imparcial e sem fundamento algum de nada, sobre nada, e isso não é capricho seu, mas de vários outros cineastas na ativa, iniciantes ou não, que encontram na falta de posicionamento sobre um assunto uma praça segura para discursarem seus pontos de vista. Ingmar Bergman e Andrei Tarkovski, principalmente, seguem imbatíveis no Cinema de excelente qualidade quando o assunto é existencialismo, ou a falta de sentido na vida humana, antiga, moderna ou atual – só a tecnologia mudou, nós e o cerne da nossa vida, longe disso.

    Enquanto os mestres sueco e soviético em Solaris, ou Gritos e Sussurros, buscavam respostas e uma (im)provável direção pelo vazio das coisas, tateando com esmero no escuro de suas inesquecíveis e norteantes experimentações expressivas, inquietos tal qual duas crianças hiper curiosas que não enxergam nuvens lá em cima, mas a simbologia de fantásticas criaturas embasadas num fenômeno cúmulo-nimbo, outros de seus seguidores, talvez imitadores sem vergonha encaram as nuvens, ou no máximo, alguma formação sem graça vagando no vácuo sobre as nossas cabeças. Em oposição a Leviatã, de 2014, que ainda guardava alguma graça pelo menos na ambientação da história, Sem Amor é isso: Uma única nuvem, branca e incomunicável, num banal ciano celeste de friezas infinitas.

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  • Crítica | Leviatã

    Crítica | Leviatã

    leviatã

    Leviatã. Rima com amanhã, exatamente sobre o que trata este filme. O futuro e a angústia das incertezas a partir da insegurança que o amanhã confere. Quanto a essas incertezas, o filme discorre suas razões de cabo a rabo, desde o que move a vida dos habitantes de lugar-nenhum no fim do mundo – o mundo deles no qual só os “nativos” parecem ter acesso e conhecimento de como sobreviver em bando por lá – até o ambiente, que, por mais lúdico e inspirador, chega a sofrer influência e alteração pelo homem pelo simples fato deste viver em determinados recantos da Terra, culminando em caráter de parasita, muitas e muitas vezes. A troca de influência entre o social e a ambiência é a coluna dorsal de um atestado felino das relações humanas – astuto e expressivo, ainda que discreto, diga-se de passagem. É como se o magnífico turco Era Uma Vez na Anatólia fosse (re)filmado na ótica implacável e cética do francês Michael Haneke, e nem é preciso medir as palavras para atestar tal delírio alternativo.

    Bobagens (e uma atmosfera semi-emergencial que remete muito a Onde os Fracos Não Têm Vez) à parte, Leviatã adere à eterna moda soviética de ser realista a ponto da realidade ser surreal, e precisar ser ficção na tela de Cinema, exigindo do público uma fuga na ilusão para esquecer que o real pode ser tão mundano e frio, com certeza. Os cineastas Sergei M. Eisenstein e Vsevolod Pudovkin já faziam isso há quase um século, em Potemkin e A Mãe. Essa total apropriação da realidade pelas mãos da ficção, e todo o resto, pode ser percebido nos primeiros 15 minutos de Leviatã, contadinhos. Filmes de respeito são assim mesmo.

    O filme é um relato de um presente regido por suas pontas, um momento atual resultado e estopim do que já foi e do que será, uma não-oficial adaptação literal ao cinema, com veias de forte e imponente literatura russa, da melhor qualidade, a tanger aspectos de reinações da história, triste e contemplativa, moderna e histórica no mesmo nível, e ao mesmo tempo. O filme é uma enorme metáfora indireta só aos cegos que não querem ver, para com algo maior ainda: a Rússia e suas fundações refletidas no comportamento da civilização. Leviatã é um filme universal e com situações universais que, por acaso e entre aspas, calha de ser russo. Sabe as famílias despejadas no Rio de Janeiro, movidas para não enfeiarem os arredores da Copa de 2014? Aqui, essas famílias falam russo, os políticos têm cara e religião hipócrita, e as resoluções para os abusos e pressões de autoridades são expostas sem medo – essa história poderia estar em qualquer jornal do Brasil se manchetes não vendessem devaneios.

    Do suspiro “Toda minha vida está aqui” se resume a sensação de uma família de advogado reunida ao redor de uma mesa, o olhar geral num quadro pagão, com seu habitat estampado entre a moldura e prestes a ser corrompido num país gigante em que a pequenez se faz na ação jurídica de quem comanda suas tangentes. O cineasta Andrey Zvyagintsev vai fundo sabendo onde termina o abissal e começa o inferno, e desbrava tradições de um povo e de uma classe (baixa, claro) ignorando limites sensoriais – cada rosto no filme é uma bomba a explodir num barril de pólvora cercado por rochas milenares e um mar de lágrimas, lágrimas daqueles que o olham sem saber se almejam nadar para longe ou limpar com suas ondas o que infesta a pátria das pessoas que só querem viver em paz. De pequenos grandes momentos nos quais o silêncio grita tanto quanto as discussões, Leviatã admite que não há futuro respeitável sem respeitar o histórico do que poderia consagrar o estado atual das coisas. Sim, é uma obra de hipóteses. Alice no País das Maravilhas no mundo real – é impossível saber qual cabeça será cortada antes do fim, talvez todas. Destaque para a atuação coletiva, gloriosa.

    Com uma míngua de esperanças, a família se reforça para cantar ao político que rouba seu sono o refrão de Apesar de Você, de Chico Buarque, através de atos e relatos contra o abuso político e a favor da boa e velha resistência existencial da parte de baixo da pirâmide, sempre e ainda sofrida. E assim como os personagens que são maiores que seus dilemas e ensejos de sobrevivência, o filme se expande além de suas personas, locais e iluminação, à luz de um prisma enorme de interpretação ao gosto do público, cortesia do cineasta Andrey. Mesmo com a falta de uma alegoria épica aos moldes de cineastas como Ceylan ou Lav Diaz, e com algo mais prático ao estilo de Abbas Kiarostami e do próprio Andrey, Leviatã, onde nada é gratuito e toda ação e reação tem seu pesar, se consagra como narrativa mais que sólida, exemplar, e ainda nos oferece a obrigação, enquanto público, de prover conclusões ao filme. Uma obra complexa, mas com uma história bem aberta, de propósito, dada a revisões se não for pedir muito. Nós somos o ponto final nesse espelho interativo ao lado de cá da tela, onde, lá e cá, a corrupção política é natural e inerente ao espírito humano (pelo menos enquanto a ficção não prova o contrário). Daí o esforço pelo amanhã, num mundo dividido entre o natural e o mecânico.