Gorbachev.Céu é um documentário curioso. Além de dar voz a uma figura política controversa do passado, o ex-secretário geral do Partido Comunista e ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbachev, também se permite ser silencioso e contemplativo. Vitaly Mansky mergulha na identidade e intimidade do homem a quem se atribui o fim do sonho socialista, com ele já limitado fisicamente, embora bastante lúcido.
Gorbachev fala a respeito do desprezo que parte dos russos tem por sua figura, especialmente da imprensa, ainda que encare o momento político atual do país como continuação do seu trabalho. Ele se sente um herói da política e da democracia, vê Vladimir Lenin como um deus, mantém um postura serena e calma na maior parte dos momentos e se diz, reiteradamente, que foi mal compreendido ao longo de seu mandato.
O filme tem um ritmo lento, acompanhando as falas e pensamentos de seu biografado, os poucos momentos enérgicos resultam dos resumos que ele faz a respeito de figuras notáveis do regime soviético, especialmente as óbvias como Lenin e Josef Stalin, e outros menos lembrados como Yuri Andropov e Fyodor Kulakov. Suas opiniões são contundentes e curiosas, é possível enxergar em suas falas semelhanças com políticos brasileiros, incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que além de não gostar de ser associado à direita é escorregadio ao falar dos seus erros como governante.
Mansky considera Gorbachev um pária, e de fato, ele é. Contudo, o lado que ele escolhe defender em seu filme é que Mikhail foi injustiçado, a visão apresentado pelo documentário era que a URSS era nefasta e que a classe trabalhadora não teve tantos avanços. Isso não impede que entre cineasta e entrevistado haja atritos ou mitificações, Gorbachev responde de maneira atravessada a indagação de que a Rússia não é um país de democracia longeva, e de que seus tempos não fugiam do autoritarismo, e mesmo sem ter a mesma força de quando era jovem, ele se mostra vaidoso e resoluto, embora na maior parte do tempo seja cortês.
Parece um castigo que o presidente que estava no poder na dissolução da potência soviética esteja vivo e consciente, beirando um século de vida, possivelmente podendo acompanhar as duras críticas feitas sobre sua pessoa. Apesar da mornidão e do viés liberal existente no filme, Gorbachev.céu retrata um importante ator político do século XX, e ajuda a visualizar o mapa socioeconômico de hoje e ontem.
Na missão de adaptar um dos maiores clássicos da literatura moderna mundial, A Revolução dos Bichos, de George Orwell, o ilustrador brasileiro Odyr não poderia ser mais bem-sucedido, em sua empreitada. Aos transpor o romance direto para o mundo das formas e cores de uma HQ, o artista gaúcho oferece uma nova roupagem digna de aplausos a mais trágica das parábolas ocidentais, e claramente universal, agora com uma dinâmica visual diferente. Preservando consigo a força deste “conto de fadas rural”, que Orwell imaginou há quase oitenta anos, e cuja glória o Cinema ainda não deu cabo de honrar, nada mudou na essência da alegoria histórica, muito pelo contrário.
Desde 2019, temos aqui uma potência fabulesca e gráfica inéditas a embalar esta obra-prima sobre porcos e cavalos, cães e vacas que, cansados do chicote, formaram oposição com os seus cascos e chifres à violência do Sr. Jones, o fazendeiro da Granja do Solar, no interior da Inglaterra. Foi lá que a epopeia da bicharada começou, e sob a égide da coragem, da revolta e da esperança de serem donos de seus próprios destinos, sua Revolução expulsou o Sr. Jones daquelas terras, e a liberdade então se instalou. Desimpedidos, os trabalhadores e pacíficos bichos da Granja instituíram regras (a mais famosa, sendo “quatro patas bom, duas patas ruim”) a fim de simbolizar a verdade suprema: todos os animais são iguais! Só assim a dor da escravidão poderia ser, um dia, esquecida.
Mas não tardou de aparecer uma maçã podre entre as aves e cães, entre os equinos e galináceos, traindo os princípios da Revolução, e arruinando a utopia desse paraíso. Logo, os ‘cidadãos’ da Granja dos Bichos são envenenados por uma inteligência superior entre eles, sem piedade ou culpa, e uma ideologia de violência e paranoia chega para encobrir a tirania, que só cresce. E de repente, onde antes imperava a felicidade, corre o risco de voltar a ter um imperador pior do que jamais se viu, antes. A sátira a política Stalinista na antiga União Soviética não poderia ser mais explícita ao leitor mais esperto, nem um pouco suavizada pelo texto ou pelos sublimes desenhos em nanquim de Odyr – muito mais que meros acessórios de luxo, à história.
Em A Revolução dos Bichos, ao tecer de modo crítico e impactante a formação de um tirano, e seus seguidores cegos, envoltos neste sistema de pensamento único que aterroriza uma sociedade sem livre-opinião (submetida a um intérprete oficial que dita o certo, e o errado), Orwell flerta com o fascismo, a barbárie, a origem das distopias e toda sorte de injustiça que são injetadas, ou ainda, acordadas dentro de uma civilização. Todos os temas, como já afirmado, seguem intactos nesta obra-prima consequente, publicada no Brasil pela editora Quadrinhos na Cia., e que por seu colorido apelo e linguagem irresistíveis para todos os públicos, deve fazer parte das bibliotecas escolares para atrair os mais jovens a vivenciar, e aprender com esta aventura de modo divertido, mas não menos reflexivo.
“[…] nós não temos medo dos fascistas, senhores. Eles vão sumir daqui mais rápido do que qualquer outro governo.”
Será? Diferente do que pode-se esperar, devido ao título da obra, Como Esmagar o Fascismo não indica uma receita mágica e imediatista contra o oportunismo que corrói as mentes e corações das nações diante de imensos problemas a serem enfrentados. O fascismo não tem hora para ir embora, depende de nós, mas está sempre a espreita; nunca morre. Revivido de geração a geração, o fantasma sedutor do “desespero contrarrevolucionário”, como bem aponta Leon Trotsky, volta para nos lembrar que nenhuma paz é duradoura, e que diante de tempestades, nós nunca devemos baixar a guarda a ponto de subestimar seu poder de corrupção. Nossos monstros não surgem do nada. Eles são construídos, e permitidos, por quem dorme achando que o jogo está ganho.
Colocando o tema sob uma perspectiva histórica, o líder comunista Leon Trotsky analisa em diversas cartas antes da Segunda Guerra Mundial, aqui brilhantemente traduzidas para o português, todo o processo de envenenamento político e ideológico do povo alemão, francês e espanhol logo após o término da Primeira Guerra, e o super colapso econômico de 1929. Nota-se que, com países e valores nacionais entregues a uma frágil democracia europeia, e rendidos a um capitalismo agonizante, não demorou muito para os ratos do convés (eles não surgem do nada) enxergarem um terreno perfeito para virem à tona. Fato é que, com uma pequena burguesia e seu capital monopolista perdidos na névoa da instabilidade econômica e política, e uma classe trabalhadora sentindo-se injustiçada, às traças, qualquer um, ou melhor, qualquer persuasão em terra de cego vira lei.
Por subestimar esse “qualquer um”, a esquerda europeia perdeu o jogo e viu o fascismo de antes evoluir, aos poucos, para um nazi-fascismo sem precedentes na história, com a ascensão de Adolf Hitler e seu apoio cada vez maior do povo alemão, enquanto a democracia europeia era usada para eleger demônios antirreformistas, antirrevolucionários e antiprogressistas, em suma. Nota-se, na prática, o quanto o fascismo cria abismos entre as classes, amplia a diferença entre seus interesses, e faz o povo duvidar de si mesmo, tornando-o fraco feito cristal. Assim, Trotsky na publicação da editora Autonomia Literária defende, em um compilado de reflexões inesquecíveis, uma estratégia clara e urgente do proletariado para ir à luta contra sistemas políticos peçonhentos, sempre com seus avatares de novos rostos e mofados discursos. Antes nos palanques, hoje reforçados pelas redes sociais, e outras plataformas de lavagem cerebral e corrupção moral. É claro que a luta será demonizada, e por isso mesmo a estratégia se faz imprescindível no combate.
Sem apelar para os extremos, e sim a uma radicalização da classe trabalhadora em tempos de grande perigo, muitas vezes não-reconhecido, Como Esmagar o Fascismo joga uma luz impiedosamente crítica e alarmante para a eficiente e atemporal manobra de se alimentar grande problemas, para enfim, apresentar uma nova solução – que de novidade não carrega nada, apoiando-se numa sociedade pouco escolarizada e má formada historicamente para voltar em cena. Tal um velho filme de Charles Chaplin que, exibido a uma plateia que desconhece o gênio, pode ser convencida de presenciar algo inédito e esperançoso, este é o poder cruel do fascismo, além de se adaptar as épocas com rapidez e irreverência impressionantes. O sucesso eleitoral nazista, em 1932, provou como a agonia de um povo o arremessa a um possível suicídio político e ideológico, no que Trotsky reforça ser culpa, em larga escala, de uma esquerda desorganizada, e que nunca leva em conta a força de uma burguesia unida, com seus pares e seus múltiplos recursos persuasivos.
Depois de dezessete anos após o lançamento da revista, finalmente a versão animada da DC adapta Superman: Entre a Foice e o Martelo, revista consagrada de Mark Millar com desenhos de Dave Johnson cuja premissa é bastante simples: e se o bebê kriptoniano que se tornaria o Superman caísse em território soviético e não americano. Coube a Sam Liu a responsabilidade de conduzir essa versão, e infelizmente essa é mais um longa-metragem com o pouco apuro visual e com um traço feio e genérico, semelhante em muitos pontos aos filmes que adaptam os novos 52.
A trama começa em 1946, na URSS, e já começa legal por mostrar uma versão bem encaixada das contra partes de Clark Kent e Lana Lang em terras russas/ucranianas, seguidas dos créditos iniciais que mostram capas e imagens clássicas do gibi. Este início quase ludibria o espectador, uma vez que mora nessa introdução os momentos mais brilhantes do roteiro, ao mostrar as propagandas soviéticas como uma arma eficaz na guerra ideológica, mas até as intenções dessa questão servem a um propósito complicado e maniqueísta de maneira desnecessária.
As passagens de tempo soam confusos, assim como as relações entre os personagens. A cumplicidade entre a figura de autoritária Joseph Stalin e o homem intransponível inexiste, assim como não existe qualquer tensão pessoal entre o personagem principal e qualquer outro aliado. O filme carece de personagens que sejam dúbios, e em se tratando de um filme sobre a Guerra Fria isso é um pecado terrível. A relação que deveria ser parental entre político e super humano é suavizada de modo que não há qualquer dualidade, nem em Super, nem em Stalin e em mais ninguém e por mais que a HQ seja digna de críticas negativas, esse tipo de problemática não vinha do texto de Millar.
Ao menos, há tentativa de abordagem mais delicada do camponês que ascendeu ao supra sumo da humanidade. A superação das barreiras do ordinário situa o personagem no exato oposto do que Jerry Siegel e Joe Shuster pensaram para o kriptoniano original, ao menos em geografia, pois os ideais do Superman clássico (o que nem voava e era visto em Superman Crônicas) tinha ideais marxistas. Uma pena que esse aspecto seja breve, passa rápido demais para causar espécie.
Os gulags são mostrados de modo bem caricato e todo o orgulho presente na identidade socialista soviética não tem qualquer menção ou exaltação. A maior preocupação do roteiro de J.M. DeMatteis (que comete quase tantos equívocos quanto seu colega quadrinista Brian Azzarello em Batman: A Piada Mortal) é fazer paralelos entre os campos de concentração nazista e esses lugares, incluindo aí uma mise-en-scene terrível, de um garoto flagelado e hiper moralista que tem até morcegos atrás de si (e que um tempo depois, se tornaria um personagem famoso). O primeiro ponto de ruptura é cedo demais, com um terço de filme o Superman já é um assassino tirano que não tem nenhum questionamento mesmo quando ele toma o poder sobre o antigo soberano.
As tentativas de paralelos com o universo comum da DC variam de qualidade. Por mais que a Diana/Mulher Maravilha seja uma personagem bem explorada aqui, a aliança entre Themyscira e URSS faz pouco sentido. A luta contra o Bizarro também, e a versão de Lex Luthor aqui é mais virtuosa até que a contra parte que era herói que combatia a Sindicato do Crime em uma das versões do universo DC.
Alguns pontos são positivos, como a participação de Lois e Lane e da Mulher Maravilha, mas nada que salve o filme do texto de propaganda do American Way of Life ou da total distância entre ele e quase todas as obras do Superman, sejam as que se baseia a revistas ou as mais clássicas. A mudança do final em é necessariamente um problema, mas toda a construção moral do personagem, sua modificação para ser um vilão não faz qualquer sentido visto os últimos atos dele, que se joga como um sacrifício meio nulo
Em alguns pontos a historia é panfletária de uma maneira até mesquinha. A questão do Muro de Berlim e o modo como se fala da influencia socialista ser encarada como cancerígena é podre, e no filme não se mostra o colapso que o capitalismo teve na época do poderio do Superman como líder dos soviéticos. Ate por essa construção malévola dele, não faz sentido insistir em demonstrar que o herói é belo, benevolente e preocupado com o bem estar mundial, pois mesmo Lex é mais honesto e bom do que o personagem-título.
Do ponto de vista narrativo o filme peca muito não só na figura do Super mas também na do Batman, que é um poço de clichês. Há também uma dificuldade em traduzir a essência do Superman nessa e por mais que Millar tenha mudado muita coisa nos rumos da vida do herói, mas o cerne e o básico, o essencial estava lá ao menos na premissa e aqui não, e nem é somente pela questão do personagem matar opositores sem dó, mas basicamente por não se enxergar nele nem um resquício do do herói clássico. Nenhum distanciamento entre como o povo vê seu governante e como ele realmente é justifica isso.
Há filme perturbadores, e há Vá e Veja. Provavelmente, sempre será assim. O convite do título não é à toa: o chamado não tem misericórdia, rumo ao nível mais baixo da alma humana – sem exageros nenhum, sobre isso. Cabe ao espectador ir até o inferno, e assisti-lo sem barreira nem blindagem alguma, mas de forma crua e objetiva aos horrores de uma guerra mundial, do ponto de vista de dois adolescentes que também assistem, despreparados assim como nós, e destroçados assim como nós, sua realidade na antiga União Soviética ser total, literal e irreversivelmente apodrecida. Muito já foi falado, negado e discutido sobre o terror que existe em Holocausto Canibal, Um Filme Sérvio e Necrofilia, alguns clássicos do gênero que chocam até o mais resistente dos homens. Mas nem um boleto bancário atrasado há um ano chega aos pés do horror psicodélico insuportavelmente real do clássico filme de Elem Klimov. Em uma palavra? Cruel. Noutra? Desumano. Choca por ser verossímil, impiedoso, e ao invés de tocar na ferida, a faz borbulhar enquanto produz um mal-estar inigualável.
Eis um dos melhores filmes do mundo que precisa não apenas ser assistido, mas testemunhado por quem aguentar a sessão. Afinal de contas, nem todos aguentam um soco no estômago a cada um dos 130 minutos de exibição, nos quais a guerra se mostra exatamente como ela é, e potencializada por um encenação naturalista e acachapante, e sem igual na história do Cinema. Vá e Veja é tudo aquilo que os dez melhores filmes de guerra de Hollywood (faça sua lista) quiseram ser, mas os estúdios não permitiram. Klimov não quis chocar ninguém, mas sim expor, com todo o requinte cinematográfico que pode existir enquanto andamos por um pesadelo, a vida como ela é quando toda a animosidade do Homem recai sobre ela, e nela se infiltra, fazendo dela o inferno na Terra. A Terra, aqui, não vai além dos limites da Bielorrússia, quando uma pequena vila da região é invadida por soldados alemães, e o jovem garoto Florya é forçado a integrar um grupo de resistência, como era de se esperar. Está plantada a semente da loucura para termos a certeza de o umbral está vazio, e que os cavaleiros de Satã estão soltos por ali, loucos pela guerra e seus efeitos na raça humana.
Tão bela, e tão destrutível quando quer ser. Florya então sobrevive, numa série de eventos que começam a remodelar sua personalidade (e que no final do filme, o deixarão mais envelhecido que um ancião centenário), e com a ajuda da forte e bela Glasha, ele conquista a oportunidade mais que custosa (a interminável cena da lama nunca pode ser esquecida) de regressar a vila que abandonou há pouco tempo, apenas para encontrar o massacre promovido por lá, e finalmente, quase na metade de Vá e Veja, começar a pagar seus pecados no seio de um conflito bélico diabólico, como se ele tivesse cem carmas de cem vidas diferentes para acertar as contas. Florya não encontrou fantasmas pelo caminho, mas algo muito pior: o fim da humanidade. Curioso como a zona em que tudo isso acontece tem um céu cinza sem fim, cobrindo a penitência de almas para sempre marcadas pela morte, o sacrifício, e a falta de esperanças por dias melhores. Nem mesmo para povos que nunca participaram ativamente de uma guerra arrasadora, como é o caso do Brasil, é impossível não sentir a dor e o lamento onipresentes aqui também apresentados na ausência do sol, e na predominância da noite, da neblina, e da absoluta falta (e silêncio) de Deus.
Quanta emoção, quanta vibração cabe num filme? Em cada close arrebatador no menino Florya, temos em seu rosto, olhos, boca e rugas a certeza de que terror maior que uma guerra para a psicologia humana, não há. O poder de Vá e Veja não pode ser mensurado em nenhuma cena do filme, nem mesmo no seu todo, uma tarefa ainda mais impossível de ser feita na sua meia-hora final, quando a perturbação aqui é tão grande que chega a ser forte demais para a maioria dos espectadores. Temos como norteadora da narrativa a transformação de um garoto que absorve, em seus pobres e escuros olhos assustados, a insanidade de sua própria raça para consigo mesmo; metamorfose essa que nenhum outro filme jamais chegou perto de conceber, ao público, com tamanha potência, e ousadia para também nos transformar, quase que tanto quanto seus personagens danosos. Pessoas um dia livres, e sãs, mas que um dia foram trancadas todas juntas numa casa para queimarem junto dos seus parentes e vizinhos, e aos “sortudos” a quem a morte ainda não chegou, resta assistir a tudo, enterrados na podridão mundana, e com o mais soberbo dos terrores impedindo-os até de piscar devido a força das visões. A experiência aqui é por sua conta, e risco, e acredite: se nada aqui te impressionar, a vida já perdeu o sentido pra você há muito tempo.
O Partidão foi durante muito tempo a maior referência partidária na esquerda, e o quadrinho A História do PCB: Partido Comunista Brasileiro em Quadrinhos – Parte 1 tenta resgatar um pouco dessa história e tradição, em uma reunião de artistas e roteiristas que remontam as origens do PCB e que conversam com a atualidade do partido hoje.
Na introdução em texto, há um resumo da mentalidade comunista do partido, que luta pela transformação radical da sociedade atual visando a substituição do sistema capitalista pelo socialismo, na perspectiva da construção da sociedade comunista, para muito além da paranoia bolsonarista e ultradireitista. Segundo as palavras do editorial é papel do partido contribuir para a elevação da consciência de classe dos trabalhadores e tentar falar em uma linguagem de arte popular, em atenção aos 90 anos do PCB, à época do lançamento deste, em 2012.
A historia começa com Minervino limpando um veículo, que é confundido por um menino, como um bonde. O rapaz começa a conversar com Minervino, que fala sobre seu passado, sobre a organização dos trabalhadores têxteis, entre anos 1910 e 1920. A conversa é meramente um pretexto para se falar a respeito das movimentações do partido comunista, criado no ano de 1922, e no diálogo, passa rapidamente pela chegada de Luis Carlos Prestes e Olga Benário Prestes, além da ANL (Aliança Nacional Libertadora) e antes da tomada de poder da ditadura Varguista. A historia se baseia no conto que Minervino faz ao curioso menino pergunta e a qualidade da historia depende muita da arte, que varia de autor de acordo com pequenos agrupamentos de paginas.
Os desenhos e textos de Rosali Colares, Alex D’Ates e Luciano Irrthum. Daniel Oliveira e Márcio Rodrigues varia de qualidade, algumas vezes soando bem amador o modo de contar a historia, mas ao final a arte melhora muito, onde as sombras e cores escuras predominaram. Ha informações bem legais, como o detalhamento de Stalingrado e a presença maciça de comunistas na companhia brasileira Senta a Pua, entre eles, Dinaro Reis, o Tenente Vermelho. O PCB cresceu no pós guerra, teve 200 mil associados e elegeu 14 deputados, com direito a Carlos Marighella, Gregorio Bezerra e Jorge Amado, e Prestes senador. A perseguição ao partido, que foi posto na ilegalidade novamente é bem explorada e a historia termina após as autoridades reacionárias tomarem a força o poder presidencial de Jango.
É uma pena que esse volume seja tão curto, em especial pelo ritmo que ganha ao final, com uma arte a abordagem que lembra vagamente a obra de Robert Crumb, embora não tenha a acidez do estilo do quadrinista americano. Ainda assim, mesmo sendo uma obra curta ha muito o que apreciar em A Historia do PCB, uma publicação que conversa simples e direta sobre um dos movimentos progressistas mais importantes do país e que segue vivo por pessoas que agem na direção da resistência.
Trumbo é uma publicação em prol do montar, desmontar e, simultâneas vezes, do remontar o que é o sonho americano, questionável desde os anos oitenta, pós era-Vietnã, na terra dos sonhos, onde a magia acontece, palco já de muita perseguição e escândalos inomináveis. Seria a ilusão de sucesso dos idealizadores que se arranja, e aos poucos é rearranjada pela realidade cruel dos fatos, ou apenas o auto-engano que guia os mais corajosos em direção do reconhecimento, da fama e das grandes festas regadas de sexo, promessas e uísque? Publicado no Brasil pela Intrínseca editora, na esteira da vida e obra de um dos mais famosos roteiristas de Hollywood, a tal La La Land das constelações ambulantes, tem-se o retrato de uma época paranoica e que escancarou, de fato, a tensa relação entre Cinema, e política – e o que acontece de pior quando há indícios de traição.
Tanto que, esconder essa relação, hoje, seria em vão. Hollywood age como a mais útil ferramenta de disseminação de entretenimento mundial, conferindo aos EUA um soft power absoluto, infiltrando o modo de vida americano de uma forma muito mais efetiva do que por armas e exércitos predatórios, colonizando os continentes. O que é divertido nós compramos sem questionar quase nada sobre, e Hollywood sabe disso. Sempre soube, e Dalton Trumbo também – e muito bem. O cara era esperto como poucos, competitivo, e pendendo mais para a megalomania nos projetos de Cinema que escrevia, segundo o depoimento de Ian Hunter, um dos amigos de profissão que salvaram sua pele, na montanha-russa que acometeu sua vida. Todos esses aspectos o faziam diferente de outros roteiristas da era de ouro, quando os estúdios e as grandes estrelas detinham o poder, e não os personagens.
E por mais brilhante e único que fosse, Trumbo não criou Hollywood, e portanto, tinha de se adaptar as regras pré-concebidas da casa. Assumidamente comunista, o homem que conhecia as celebridades hollywoodianas como a palma de sua mão encabeçou a lista-negra que pretendia varrer qualquer traço comuna do “american business”, como apontou o lendário ator John Wayne, que ajudou a dedurar amigos de profissão. Preso, julgado, difamado, e a pior coisa para um autor, forçado a reescrever e em muitos casos dar seus roteiros para outros nomes assinarem, Trumbo, assim como tantos outros nomes de todos os setores dessa bilionária indústria, desceu aos sete círculos do inferno por trás da máquina de delírios, amparada por um governo capitalista e intolerante. Bruce Cook, num empenhado trabalho de apuração dos eventos, e contando com grandes depoimentos, remete o próprio caminho dessa figura emblemática a história de mil faces de uma Hollywood linda por fora, e, claro, apenas por fora.
Após sobreviver a grande depressão americana dos anos 1920, sempre quebrado, frustrado, e tendo sido indicado a trabalhar na Warner Bros., onde ganhou notoriedade e escreveu seu roteiro de filme mais famoso, Spartacus, o qual foi filmado por nada menos que Stanley Kubrick, Trumbo notou desde o começo que as cores do sonho americano são pura fachada. Resta, então, já na posteridade hoje presente, ler a obra que disseca o mitológico roteirista para encontrarmos o certo e o errado entre suas inspirações, afiliações e ideais. Certamente polêmico, hoje, o seu comunismo na época foi totalmente imperdoável, enxergado em forma de propaganda sutil nas narrativas que escreveu, forçando-o a se refugiar no México, e recomeçar do zero, após a perseguição política de quem nem ao menos se deu ao trabalho de averiguar seu trabalho (“Páginas demais”, declarou o investigador-chefe do Comitê de Atividades Antiamericanas, em 1947).
Nem mesmo Luis Buñuel e Charles Chaplin, dois dos maiores cineastas de todos os tempos, escaparam das investigações. Grandes nomes, ou melhor, lendas do passado cultural ocidental que foram prontamente ajudadas por quem defendia a liberdade de pensamento, tal como é garantida na Constituição dos Estados Unidos. Humprey Bogart, Henry Fonda, Bette Davis, John Huston e William Wyler, entre outros gigantes, lutaram em nome dos chamados “traidores” e “antipatriotas”. Os rebeldes com causa cuja política quase os consumiu. Mas é que o escritor, o teimoso extravagante bem representado no filme de 2015, Trumbo: A Lista Negra, na pele de Bryan Cranston, também sabia que os conflitos que planejava na ficção não eram à toa, e que a vida sem uma boa guerra a ser combatida, principalmente em Hollywood, não poderia ser, afinal, uma vida bem vivida.
Produção do estúdio de cinema Soyuzderfilm lançada em 1944, Zoya é uma produção soviética, em preto e branco e um registro cinebiográfico da vida de Zoya Kosmodermyamskaya, uma militante e combatente russa que lutou contra a invasão nazista na URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). O filme começa com a chegada de uma pessoa estranha numa instalação militar que só tinha homens. Logo, percebem ser essa pessoa uma mulher e a levam até os lideres do regimento nazista. O sujeito dá um tapa com as costas da mão na mulher, interpretada por Galina Vodyanitskaya, basicamente porque ela se mantem em silêncio. Aos poucos, a história da personagem real é desenvolvida, com direito a um retorno à época de sua infância.
Quando retorna ao passado, o filme relembra os períodos da Revolução Soviética e utiliza imagens reais de Josef Stalin, soando como uma propaganda do governo, mas sem compromisso de louvar a figura do líder soviético, mas demonstrando apenas o teor informacional. A forma como aparecem essas referências não tem demora, o foco narrativa nesse trecho é na construção do código ético da personagem, que já no início, era estabelecido pela sua militância e estudos, visando tornar a juventude em algo mais que apenas massa de manobra.
No longa é retratado que durante a ofensiva alemã, uma das maiores armas contra a ideologia nazifascista foi a instrução da juventude, que ocupava sua mente com conceitos que punham o povo como soberano, um pensamento que tinha nos trabalhadores seu foco central e suas articulações, dessa forma, a ascensão do Fuhrer e de uma mentalidade segregadora batiam de frente com o ideal não só de Zoya, como de todos os seus contemporâneos. Ora, para aquele juventude não existia alternativa senão o combate de forma veemente a ideologia de Adolf Hitler, Benito Mussolini e outros líderes de extrema-direita.
O filme foi lançado em Novembro de 1944, alguns poucos meses depois de Dia D onde as forças aliadas invadiram a Normandia, ou seja, é uma obra bem contemporânea. Os letreiros que descrevem as ações de Zoya dão a ela um caráter de heroísmo, mas não tornam ela um incidente isolado, ao contrário, fica claro que ela e tantos outros compatriotas se juntaram no esforço de guerra contra o Eixo. Falando assim parece maniqueísta a premissa, e de fato é quase impossível não soar assim dada a época do filme, mas o exemplo da personagem-título serve demais ao propósito de mostrar como prevenir a simpatia ou tolerância ao nazifascismo.
Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Thiago Augusto Corrêa (tdmundomente) e Filipe Pereira (@filipepereiral) recebem Delfin (@DelReyDelfin), do Terra Zero, para comentar um pouco sobre a obra de arte de Art Spiegelman: Maus. Falamos um pouco sobre a carreira do artista, o contexto geopolítico existente na época e a importância de toda essa discussão nos dias de hoje.
Duração: 112 min. Edição: Pablo Grilo, Caio Amorim e Julio Assano Junior Trilha Sonora: Flávio Vieira e Julio Assano Junior
Arte do Banner: Bruno Gaspar
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O cinema político é o cerne da filmografia do haitiano Raoul Peck. Transitando entre o cinema e a TV, o diretor se tornou conhecido pelo caráter crítico e social de seus filmes, em especial com a indicação ao Oscar de melhor documentário por Eu Não Sou Seu Negro, sobre a vida e obra do escritor e ativista James Baldwin. No entanto, seu prestígio se destaca desde os anos 2000 em filmes como Lumumba, cinebiografia do líder congolês Patrice Lumumba; Abril Sangrento, sobre o genocídio de Ruanda; além de uma ampla filmografia sobre as mazelas sofridas pelo seu povo ao longo da história. De modo que não se mostra uma surpresa a escolha de Peck em filmar um período da vida de um dos teóricos mais importantes dos últimos séculos: Karl Marx.
O Jovem Karl Marx, escrito por Peck e Pascal Bonitzer, com a colaboração de Pierre Hodgson, foi lançado em um período bastante controverso de nossa história. Não apenas pela série de retrocessos sociais que os trabalhadores vêm sofrendo, mas também pelo avanço e crescimento do conservadorismo no mundo. “Se eu não usar o trabalho infantil outros farão e eu perderei mercado”, alega um empresário em determinado momento do filme, desculpas não tão distantes daquelas que costumamos ouvir hoje. Se tratando de Peck, não há coincidências. Seu cinema anda lado a lado com o nosso tempo.
O trabalho do diretor procura discutir a constituição histórica do marxismo. Se voltando para a gênese da teoria social desenvolvida por Marx e Friedrich Engels (Stefan Konarske), o longa busca retratar todo o cenário do movimento revolucionário anticapitalista do século XIX, desde anarquistas, como Mikhail Bakunin (interpretado por Ivan Franek) a diversas variantes de socialistas. Culminando na construção do chamado socialismo científico que superava as teses idealistas e utópicas dos pensadores da época.
Assim, o filme se inicia com um período bastante específico da juventude de Marx, a perseguição do Estado prussiano aos camponeses por conta do “furto” de madeira – lei que criminalizava qualquer cidadão que apanhasse lenha caída na floresta por se tratar de propriedade privada. O legislativo responsável pelo projeto de lei entendia ser necessário um alargamento do termo “furto” para essas situações, já que se versava apenas de mera contravenção penal. O absurdo era tamanho pois não se referia meramente de furto de madeira verde, mas sim a criminalização pela subtração de madeira caída e apanhada no chão ou ainda o recolhimento de madeira seca. Para Marx, ainda um democrata radical neste período, se tratava de um claro exemplo de mercadorização da natureza e uma adequação das leis segundo os interesses de uma maioria e não a natureza jurídica das coisas. A visão do direito para o pensador também sofreria modificações a partir de então.
Essa criminalização culminou em prisões e até mesmo em assassinatos de camponeses pobres pelo governo, marcando profundamente o pensamento de Marx acerca do papel da propriedade privada e do próprio Estado. O fato é fundamental, pois, em poucos minutos do filme somos apresentados ao protagonista quando ainda escrevia no jornal prussiano Gazeta Renana, publicação que mantinha um postura severa à monarquia. Criticado pelos seus pares pela radicalidade de seu artigo sobre o tema (texto que pode ser lido no livro Os Despossuídos, da Boitempo Editorial), o acontecimento marca não apenas sua entrada na vida política, mas também o primeiro embate com questões “materiais” e não apenas filosóficas. Em cena, temos o primeiro rompimento de Marx com a escola de pensadores radicais democratas e idealistas, por se dar conta dos limites e contradições dentro da ordem e do caráter de classe do Estado burguês.
A produção é calcada na tomada de consciência de Marx para um modelo teórico-econômico que seria desenvolvido ao longo dos anos, mas que tem como pedra basilar sua aproximação com Engels, as superações do pensamento crítico-radical e a definição da classe trabalhadora como o sujeito revolucionário. Todos esses importantes períodos da juventude de Marx são bem retratados, mantendo uma boa didática para os que não conhecem o cerne da obra do pensador, inclusive desmistificando a demonização constante do autor e sua obra.
Após essa apresentação inicial, somos apresentados ao jovem Engels, no interior de uma das fábricas têxtil de seu pai na Inglaterra, mostrando uma revolta de mulheres diante da completa falta de condições e segurança de trabalho. Interessante notar como Peck retrata as contradições do parceiro de Marx, filho de um legítimo burguês que explora sem piedade seus funcionários, mas que ao mesmo tempo luta contra essa exploração. O contraste entre as condições materiais de Marx e Engels funcionam como um espelho ao longo do filme, seja pelo figurino de cada um ou pelos cigarros que fumam e os ambientes que frequentam.
A união é apresentada em cena de maneira curiosa, após um encontro dos dois em que discutem sobre as obras A Situação da Classe Operária na Inglaterra, de Engels, demonstrando a face mais cruel do pauperismo a que estava submetido o proletariado moderno, e Crítica da Filosofia do Direitode Hegel, em que Marx investe contra a existência do Estado político que aliena a participação direta das massas impondo-lhe a condição de Estado-não político. A cena se inicia sempre em plano e contraplano, remetendo a divisão dos dois. Ao longo dos diálogos, a câmera procura enquadrá-los num plano único, desenvolvendo uma aproximação que se completa na cena do jogo de xadrez em que, com o companheirismo já selado, observamos não só a união intelectual, mas também fraternal desses dois homens, ainda que estivessem em mundos divididos.
Outro ponto interessante no trabalho do diretor é a sensibilidade e a congruência em caracterizar as mulheres do filme. Ao retratar Jenny Marx (Vicky Krieps), o cineasta deixa claro sua contribuição real na teoria marxista, não se tratando meramente de um papel passivo frente às decisões centrais. Ao abordar Mary Burns (Hannah Steele), companheira de Engels, destaca sua responsabilidade tanto à frente da organização de mulheres que trabalhavam em fábricas de tecelagem, como na introdução dos dois companheiros na Liga dos Justos, uma organização internacionalista de trabalhadores que se tornaria a liga dos comunistas.
Dá metade para o final, o filme aborda tanto o processo de redação do Manifesto do Partido Comunista como também a luta entre as tendências do nascimento do movimento operário, retratando ainda o trabalho de desenvolvimento teórico das obras Teses Sobre Feuerbach, Miséria da Filosofia e A Sagrada Família, além de apresentar o rompimento com Joseph-Pierre Proudhon (Olivier Gourmet) e Wilhelm Weitling (Alexander Scheer).
É certo que a obra se configura como um cinema didático, sedimentado em um roteiro verborrágico que procura explicitar ao longo de quase duas horas de duração diversas teorias e teóricos. O trabalho de direção de arte é bastante fiel, em especial no que diz respeito aos cenários e ambientações, ainda que minimalista, retratando uma Europa no auge do da Revolução Industrial, demonstrando com excelência as contradições da miséria existente nas ruas inglesas em comparação ao luxo dos salões franceses.
O elenco se mostra bastante acertado com August Diehl interpretando Karl Marx entre explosões de arrogância, sorrisos sarcásticos e o desespero no olhar por não poder dar o melhor de si, seja à sua família ou a contribuição para a própria classe como gostaria. Konarske faz um trabalho interessante em sua interpretação de Engels, com as necessárias contradições de seu personagem e a gentileza de quem parece ter deixado de lado sua própria genialidade em prol do seu companheiro.
Peck não faz proselitismo e foge de qualquer viés propagandístico, deixando de lado qualquer aspecto messiânico ou demonizado de seu biografado, entregando uma visão humanizada de Marx, repleto de alegrias e tristezas, contentamento e decepções, ainda que essa tônica passe por problemas típicos de cinebiografias que seguem certa fórmula. Contudo, seu cinema sempre deixou claro que não pretende ser tecnicamente exuberante, afinal, em entrevista ao jornal mexicano El Universal afirmou que “nunca quis fazer um filme para contar histórias, [pois] o cinema para mim era uma forma de fazer política”.
Em outras palavras: somente o conteúdo importa, sendo a técnica apenas um instrumento para expressar com melhor qualidade as intenções e objetivos do diretor, uma ferramenta de engajamento político da sociedade. Remetendo a uma frase do próprio biografado: “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”. Peck, assim como Marx, está interessado nessa transformação.
Parte da composição artística é feita com base na experiência pessoal. Ações modificadoras que utilizam uma narrativa como registro eterno. Em maior ou menor grau, há sempre um relato que atravessa as páginas ficcionais. Nenhum autor está alheio ao seu tempo ou livre de inserir partículas de si em sua obra. Bem como há uma vertente que explicitamente transforma o objeto artístico em uma forma de reconstruir o passado, procurando ressignificá-lo através da arte.
Lançado pela WMF Martins Fontes, Minha Vida Chinesa é uma história em três partes escritas por Li Kunwu e Philippe Ôtié, retratando o período em que Kunwu viveu na China. Cada uma das partes da HQ abarca um período do país, tendo como ponto de partida inicial a liderança de Mao-Tse Tung, uma das primeiras grandes transformações da China nos últimos séculos.
O primeiro volume, lançado originalmente em 2009 e no Brasil em 2015, intitula-se O tempo do Pai. Partindo desde a fundação da família para narrar os primeiros anos de vida do autor como um observador da revolução comunista na china. Uma análise influênciada pelo pai da personagem, um dos secretários a serviço do Partido Comunista Chinês. Diante desse cenário, é com certo amargor que Kunwu narra os feitos da época.
A partir da revolução, a China sempre foi vista de maneira dúbia. As análises sobre Mao no poder apresentam, muitas vezes, fatos tendenciosos. E, ainda hoje, parte do material de grandes estudiosos sobre o tema ainda não chegaram em nossa língua. Para se compreender a fundo as modificações da China no período, são necessários explorar textos em outras línguas, a procura de autores diversos e vozes distintas capazes de pontuar o que foi bom e ruim nesse período. De qualquer maneira, o narrador demonstra incômodo sobre o que viveu, como se houvesse uma diferença clara da China de Mao vista de fora, daquela vivida cotidianamente.
A contextualização da história é pautada sob o ponto de vista do autor. A evolução do comunismo chinês é vista como uma ação paradoxal em que havia muita utopia em contraposição a uma miséria crescente. Desde o início da narrativa, permeando a evolução a partir de 1955, há paradoxos explícitos entre uma ênfase publicitária, da potência do comunismo como regime para melhorar a nação, enquanto a vida do personagem e sua família demonstra um cenário mais delicado em que o campo e a cidade se imaginavam mais equilibrados do que estariam de fato, todos vivendo em um ambiente desigual.
A ideologia maoísta é inferida como uma doutrinação inserida em diversos aspectos da sociedade. Havia preceitos puros, evidenciando a transformação da população como ativa na força de trabalho, sempre recordando-os que todos possuem igualdade, preservando uma auto-consciência sempre retomada pelos simpatizantes ao movimento. Porém, conforme o sistema agrega nova parte da população para defender seus ideais, a utopia do socialismo é aquebrantada por pequenos interesses próprios.
Evidente que o leitor mais atento irá pressupor que tal fato não aconteceu na China como um todo. Porém, pela visão de Kunwu, o benefício próprio da população era claro e tal fator foi utilizado para subjugar aqueles que não eram considerados bem inseridos na sociedade. O que o Partido Comunista Chinês fez, de fato, foi manter uma ideologia ativa dentro do país para que o projeto comunista nunca fosse destruído. Figuras que lutaram na guerra contra o Japão se tornavam símbolos heroicos e havia ações para que cada adolescente e criança nunca esquecesse de tais fatos. O poder estava também destinado ao povo, convidado a participar ativamente, tanto em pequenas modificações de cada local quanto a se tornar parte do grupo militar, tornando-se um soldado do partido.
A crítica diante do comunismo se torna mais forte quando a China desenvolve o projeto da grande revolução cultural proletária. Foi neste período que o famoso livro vermelho de Mao foi lançado. Contendo canções, temas e bases que definiam quais procedimentos a população devia adotar. Em geral, qualquer cultura considerada burguesa deveria ser substituída pela cultura proletária, para que a população tivesse identificação imediata. Os totens da velha China são substituídos por Mao e a revolução vermelha.
A revolução cultural ainda é considerada um ponto difícil na trajetória de Mao na China. A imposição destruidora da velha China, destruindo qualquer conceito burguês, causou rupturas profundas entre a população. Na HQ fica evidente que havia um processo extremo de culpabilidade a qualquer chines que parecesse não seguir os preceitos comunista. Os autores expressam incômodo com tais fatos, principalmente porque a própria família de Kunwu foi vítima de denúncias e difamações. Mesmo um funcionário exemplar como seu pai, tornou-se alvo de investigações, produzidas a partir de denuncias da própria população.
Uma Vida Chinesa não intenta ser uma aula de história. Mas apresentar, sempre que possível, o testemunho de um personagem que viveu dentro da China durante tais transformações. As cenas contextualizadas são explicadas na própria narrativa, sendo possível compreender os fatos sem a necessidade de outros textos, ainda que para o enriquecimento da compreensão da época, seja favorável procurar outras fontes. Afinal, trata-se de um relato pessoal, uma visão única sobre um grande grupo heterogêneo e um grande momento do país.
Os traços de Kunwun realizados em nanquim são peculiares. A estética da obra segue o estilo tradicional das graphic novels, composta nas cores preto e branco. Porém, os traços possuem pequenas modificações de uma retratação tradicional, como se tudo fosse reinterpretado pelo autor para produzir ainda mais enfase. As expressões são bem delineadas e, muitas vezes, distorcidas, gerando personagens com forte expressão física.
Ao decidir produzir um relato confessional e pessoal de uma vivência, a obra evita a normatização histórica, sem medo de inserir um ponto de vista diante dos fatos observados. Um material rico que funciona como um bom exemplo de uma história diante da História e um ponto de partida para aqueles que desejam estudar o tema, em um formato sempre convidativo como os das HQs.
O Dono do Jogo, de Edward Zwick, resume duas características do ano de 1972 nos Estados Unidos: a paranoia desencadeada pela propaganda anticomunista e a popularização do xadrez em todo o território nacional. O motivo disso tudo é bastante claro: a final do campeonato mundial de xadrez envolvendo o atual campeão, o soviético Boris Spassky (Liev Schreiber) e seu desafiante, o norte-americano Bobby Fischer (Tobey Maguire).
Na trama, acompanhamos a história de Fischer desde sua infância, criado por uma mãe solteira socialista e judaica (Robin Weigert), os primeiros traços de paranoia e a aproximação com o xadrez que o faria campeão nacional ainda em sua adolescência. A explosão ao estrelato ainda jovem o levaria, alguns anos depois, a famosa final Fischer-Spassky, e serviria como propaganda nacionalista, uma esperança norte-americana para encerrar os 24 anos de dominação soviética no xadrez.
Curiosamente, o título original Pawn Sacrifice remete a uma jogada clássica no xadrez em que, propositalmente, abre-se mão dos peões para a construção de uma jogada maior ou para ainda ganhar tempo no desenvolvimento de outras peças. Uma metáfora bastante óbvia para Fischer e o próprio xadrez, que acabam se tornando peões em um jogo muito maior do que eles, travado pelas duas superpotências da época, Estados Unidos e União Soviética.
Pena que isso seja tão mal aproveitado pelo roteiro, pois assim que inserido qualquer sub-texto político, a trama vai pelo ares. O mesmo pode ser dito sobre a genialidade de Fischer no xadrez, já que em nenhum momento a direção de Zwick e o roteiro de Steven Knight procuram mostrar ao espectador a razão da genialidade do enxadrista, com exceção do jogo final com Spassky. Afinal, todas as partidas anteriores são cortadas e sabemos dos resultados por meio de diálogos entre as personagens.
É difícil encontrar explicações para as escolhas da direção e roteiro: a construção das personagens são abandonadas assim que aparecem em tela; não há justificativas plausíveis para o que leva Fischer, um judeu, a ser influenciado por extremistas religiosos antissemitas; nenhuma explicação sobre seu relacionamento conturbado com a mãe, uma socialista; ou por fim, o que o leva a sofrer cada vez mais de uma suposta doença mental. Nada disso é desenvolvido, personificando a figura de Fischer à um simplismo massificado, bobo e infantil típico da já recorrente fórmula hollywoodiana em cinebiografias.
A aproximação com a política soa rasteira e sequer desenvolve a forma como o governo norte-americano utiliza Fischer como peão durante a Guerra Fria e o descarta em seguida, devido a seus frequentes colapsos públicos, vindo a ser preso e, no final da vida, exilado dos Estados Unidos e refugiado na Islândia. Este fato é mencionado apenas por um epílogo final e em alguns trechos de época do próprio Fischer, o que se torna um dos grandes momentos do filme. Somente nos créditos conseguimos entender minimamente a complexidade da personagem, que convenhamos, Zwick tenta se aproximar, mas falha ao tentar envolvê-lo de forma significativa em seu filme.
Ainda assim, o longa tem bons momentos, principalmente em sua fotografia ambientada nos anos 1950, 60 e 70, com emulações à filmagens de época e rápidas cenas da história do mundo intercaladas com jogadas em um tabuleiro de xadrez. Infelizmente, o clima de tensão e urgência típicos da Guerra Fria não se caracterizam em tela, como também a paranoia de Fischer, e em alguns momentos de Spassky, também não é transmutada para a sua direção. A atuação de Maguire deixa a desejar, abusando de tiques e exageros na composição de sua personagem, soando superficial para explicar essa figura controversa. Schreiber se mostra apenas correto como o enxadrista russo. A forma como sua personagem é apresentada incomoda pelo emprego de um vilanismo que deixa a dúvida se Boris Spassky era um jogador de xadrez ou um soldado da máfia russa. Um estereótipo certamente imposto ao ator, já que tem sido bastante comum vê-lo trabalhar em ótimas composições de outros papéis. Ainda assim, Michael Stuhlbarg e Peter Sarsgaard têm um bom trabalho como elenco de suporte à Maguire, roubando a cena em alguns momentos.
Zwick está longe de ser um mal diretor, já se mostrou competente em Um Ato de Liberdade, Diamante de Sangue, Tempo de Glória. Mas em O Dono do Jogo erra magistralmente em todas as frentes que procura abordar, seja ela ao caracterizar um jogo de xadrez, o cenário político da época ou as idiossincrasias de seu protagonista, se resumindo a um filme engessado, cômodo, repleto de clichês e com um viés excessivamente nacionalista e maniqueísta. Ao tenta ser neutro em suas discussões, o filme se resume a mais uma peça nacionalista de Hollywood: convencional, inofensiva e correta, muito aquém da personagem errática, arrogante e desequilibrada de Bobby Fischer.
Em entrevista publicada para a saudosa revista Filme Cultura, uma das principais revistas da história do cinema brasileiro que circulou entre 1966 e 1988, Zuenir Ventura questiona Eduardo Coutinho, quando no lançamento de Cabra Marcado para Morrer, se ele havia escrito um roteiro e Coutinho responde dizendo que não tinha escrito, pois tinha apenas o objetivo de contar algumas histórias. E muitas perguntas. Perguntas é o que move a discussão promovida no documentário Anna dos 6 aos 18, de Nikita Mikhalkov.
Assim como para Coutinho, seus entrevistados tem uma importância factual para compor sua história, Mikhalkov utiliza desse mecanismo o seu filme, voltando-se, que parte de cinco perguntas banais feitas feitas à Anna, sua filha, desde os 6 até os 18 anos de idade, repetidas religiosamente, ano a ano ao longo de 12 anos: o que mais a amedrontava, o que mais ela desejava, o que ela mais odiava, o que mais amava e o que ela mais queria naquele momento. De 1980 a 1991, o cineasta repete essas cinco perguntas à sua filha Anna e, por meio delas, traça paralelos entre o crescimento de sua filha, por meio de suas respostas, como também da própria história de um povo e sua terra.
Segundo Mikhalkov, o longa inicia-se da ideia de utilizar um rolo de filme por ano na qual realizaria as mesmas cinco perguntas a sua filha. Dessa forma, dois temas iniciais são peças importantes de análise da obra do diretor: tempo e memória. O tempo, no cinema, é relativo, sendo o trabalho de montagem e edição instrumentos fundamentais para entendermos a construção narrativa de um filme, assim, notamos que a escolha de tais temas não se faz por mero acaso, já que a memória está ligada diretamente a noção subjetiva do tempo, bem como este se relaciona com uma noção de tempo cronológico, linear, ou melhor, histórico.
Ao se trabalhar em um gênero como o documentário é comum pensarmos em algumas práticas corriqueiras, como a utilização de registros, entrevistas e materiais de arquivo para a construção do tema desenvolvido no filme, pouco importando se estes materiais são de caráter público ou privado, pessoal ou anônimo, portanto, novamente nos debruçamos sobre a memória, que é tão cara para Mikhalkov, como se torna evidente em sua narração em off no início do filme, onde ele alega não saber ainda que filme iria fazer, mas sentia, intuitivamente, que poderia ser um documento importante. Dessa forma, utilizando registros de família, e inúmeras imagens conhecidas mundialmente, Mikhalkov cria seu multifacetado documentário para contar um pouco da sua história familiar, mas também dos últimos anos da União Soviética.
Interessante notar como quando Anna é questionada pela primeira vez suas respostas se encontram dentro de um universo típico de crianças, repleto de fantasia, contudo, um ano depois, com o ingresso à escola, seus medos e anseios passam a ser pensados no coletivo, sem saber ao certo os reflexos do um modelo de educação influenciaria os reais desejos de sua filha. A crítica ao modelo soviético se repete ao longo do documentário de modo menos ou mais implícito, como por exemplo, na montagem paralela onde o diretor contrapõe imagens de arquivo do líder soviético Leonid Brejnev de um teatro repleto de pessoas bem vestidas cantando a internacional, intercalada com imagens de pessoas simples dançando na rua, na qual é sobreposto os aplausos à Brejnev no teatro sobre as imagens do povo humilde, uma forma de retirar os aplausos dos líderes e dá-los aos cidadãos comuns. As críticas ao modelo socialista da União Soviética e a midiatização dão o tom da obra ao longo da vida de Anna.
Em 1987, novamente Anna é indagada sobre as mudanças que o país vem sofrendo por conta das reformas políticas e econômicas de Mikhail Gorbachev. Já mais velha e com a abertura do país a iniciativa privada, as transformações em sua filha e na própria sociedade civil são evidentes pelas roupas utilizadas por Anna, seu modo de falar, como também pela inserção de imagens utilizadas pelo diretor, desfiles e concursos de beleza, comerciais de produtos repleto de cores e shows de rock. Curiosamente, em decorrência das reformas de Gorbachev, neste momento Mikhalkov abandona as críticas ao socialismo e passa a criticar todas as mudanças advindas da abertura do país ao capitalismo.
Apesar da proposta inicial do documentário ser registrar os medos e desejos de sua filha no decorrer dos anos, Anna dos 6 aos 18 é acima de tudo uma exercício de autoanálise na medida em que o filme se desenrola. Por conta disso, é interessante notar como o filme parecer perder o seu foco inicial, naturalmente, isso ocorre num importante momento de transição político-ideológica, substituindo o tom crítico por um ar nostálgico na medida em que vemos o desenrolar da história que culminaria com o fim da União Soviética.
Anna dos 6 aos 18 é acima de tudo um trabalho invejável sobre temas caros como a relação pais-filhos, tempo, transformações políticas e sociais, e além disso, uma aula de montagem e manipulação de imagens por meio de materiais de arquivo, seja público ou privado. Além disso, a postura anticomunista e crítica em relação à União Soviética soa vazia, já que a o declínio do socialismo real não provocou o esperado retorno que o diretor parecia almejar, abordando tais transformações da sociedade num retrato do capitalismo em sua forma mais degradante, concluindo o documentário de maneira desiludida e desesperançosa com o novo sistema político-econômico, mostrando um Rússia tomada por uma epidemia demagógica que engoliu e destroçou os sonhos e o saudosismo de uma época passada, encerrando seu filme com o tema central, o tempo.
Bem vindos a bordo, camaradas. Nesta edição do VortCast da Agenda Cultural, Flávio Vieira (@flaviopvieira), Filipe Pereira (@filipepereiral), Rafael Moreira (@_rmc) e Douglas Fricke, o Exumador (@dwfricke), do Podtrash e Debate Histórico, se reúnem para realizar uma indicação de filmografia política que tem por objetivo a doutrinação ideológica de nossas criancinhas através do Marxismo Cultural e os estudos de Antônio Gramsci para transformá-los em soldados da Revolução Comunista. Hasta La Victoria Siempre!
Duração: 102 min. Edição: Victor Marçon Trilha Sonora: Victor Marçon
Arte do Banner: Bruno Gaspar
Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal – Milton Santos
Os Jacobinos Negros – C. L. R. James
Poder e Desaparecimento: Os Campos de Concentração na Argentina – Pilar Calveiro Resenha As Veias Abertas da América Latina – Eduardo Galeano
Intentando resgatar a memória de um notável brasileiro, Sylvio Back se aventura pela trajetória panorâmica do autor Graciliano Ramos, elevando a carreira e visão de mundo do alagoano ao patamar cósmico, ao apresentar seu O Universo Graciliano, de Sylvio Back. Não à toa, o primeiro personagem flagrado em cena é Oscar Niemeyer, cujos desígnios políticos eram muito semelhantes aos ideais sociais do escritor, transmitindo a mensagem antes mesmo do preâmbulo.
A câmera invade a intimidade dos que depõem, com closes fechadíssimos, expondo pele e rugas -, defeitos que tornam cada um dos participantes ainda mais humano. Com a trêmula câmera, comum ao movimento de quem registra, sem modificação estética, a obra faz do ofício um paralelo com a carreira e o texto de Ramos, o que já havia sido realizado anteriormente por Nelson Pereira dos Santos em seus Vidas Secas e Memórias do Cárcere.
Em cada palavra da parte dos convidados, nota-se o destaque que Graciliano dava ao socialismo e à crença de que a revolução soviética seria a resposta para todos os males sociais, algo representado em suas obras pelo árido deserto nordestino, onde as condições paupérrimas impediam que qualquer coisa se proliferasse. Como principal motivador desse decréscimo de vida, a condição de supervalorização do capital. Voraz leitor e estudante das condições econômicas, Graciliano batizou de Lênin um de seus filhos, homenageando o homem que, segundo seu pensamento, conseguiu se aproximar mais do pragmatismo recorrente de Karl Marx.
A verve política de Ramos é bastante focada, especialmente em seu ingresso no PCB (Partido Comunista Brasileiro) junto a outros tantos ilustres, como Jorge Amado, Cândido Portinari, Niemeyer, além de outros autores, intelectuais e proletários. Sua participação aconteceu desde a inspiração a Luis Carlos Prestes até o fomento à entrada de escritores mais moços para que adentrassem as fileiras do grêmio político. As diretrizes eram levadas a sério, ipsis literis na maioria das vezes, seguidas como em uma seita onde nada se destaca. Em determinado ponto, o documentário de Back envolve tanto a figura de Graciliano quanto os efeitos do socialismo sobre toda uma geração de pensadores brasileiros, com ele incluso, claro.
A edição de Mariana Fumo e a fotografia de Erick Mammoccio ajudam a transcender os formatos comuns ao gênero documental, mesmo levando-se em conta os novos modos de registrar os fundamentos biográficos. A linguagem enquadra uma visão fidedigna, resgatando dos entrevistados detalhes privados do personagem, humanizando-o de um modo pragmático, mas bem distante da literatura propagandista e panfletária. Revela-se uma persona repleta de nuances, com uma multiplicidade de pensamento aberto, e a quebra de rigidez típica de quem pensava o comunismo dentro do partido, sendo uma voz dissonante que visava analisar a estrutura do Brasil, adaptando o modo de governo aos anseios e necessidades do povo.
O sertão era o cenário das histórias de Graciliano por exibir uma dura realidade, pessimista em essência, por conter na região o resumo das necessidades básicas do brasileiro às quais eram relegadas pela disparidade social, que na prática resultava em fome, desnutrição e miséria. Apesar da questão tender a ser ignorada por teóricos, graças à quantidade exorbitante de burocracia que tomou grande parte da esquerda, tais anseios se associam naturalmente ao pensamento básico socialista. A escolha de Back em retratar esta faceta de Graciliano Ramos não só humaniza a figura mítica como também mostra o engajamento e alma do artista e do homem por trás da grandíssima obra.
A evocação primária de Libertem Angela Davis envolve uma forte trilha sonora, muito ligada ao ideal da principal biografada. Os gritos de “freedom” acompanhados do groove inserem o público na aura de luta pela igualdade racial, mais do que qualquer cena anterior à trilha. Após a apresentação, toda a formalidade é quebrada de modo necessário, expondo as indignidades que os marginalizados padeciam, além da resposta agressiva que os manifestantes sofriam, agredidos com brutalidade e repressão por parte dos policiais, com a mesma medida violenta que eles viam nas ruas, longe dos holofotes. A desfaçatez reinava no modus operandi das forças armadas, na tentativa de manter o estado totalitário no poder, sem que nada mudasse.
O cunho político do documentário de Susan Lynch visa analisar o momento histórico pelo qual passava os Estados Unidos da América, antecipando a condição que seria vista mais tarde na África como Apartheid. O viés escolhido é o olhar de uma professora, uma função de fundamental importância na sociedade civil e que contribuía para a filosofia social predominante, até que esta norma muda. Ao menor sinal do ensino – em escolas segregadoras, que separam alunos por cor – dos ideais marxistas, faz-se dela uma inimiga do governo e da ordem imperante.
A luta das autoridades com Angela era política, tomada pela paranoia da Guerra Fria, que fazia perseguir quaisquer afiliados do Partido Comunista, uma vez que o discurso era tratado como algo “diabólico”, tirado de contexto a fim de parecer ir contra a tradição, família e propriedade. Nos discursos do povo manipulado, havia gritos de “volte para a Rússia” e “volte para a África”, além de exibir uma variação ainda mais pesada de preconceito racial, com desenhos caricaturais de Davis assemelhando sua figura à caracterização da população zulu.
Toda hecatombe ocorria ao lado do recrudescimento da máquina de governo, com o governador Ronald Reagan achando em Davis uma párea e perigosa inimiga do país, claro, junto ao estouro do confronto no Vietnã e a ascensão dos Panteras Negras. O estado de sítio estava instaurado, e uma guerra civil tomava o asfalto, fruto da dificuldade de evolução e de reflexão do antigo discurso de AbrahamLincoln. A igualdade parecia cada vez mais distante.
Em razão de um incidente, na época muitíssimo mal explicado, Angela Davis foi indiciada, tendo sua prisão decretada e executada sob muitos protestos, que alegavam manipulação de informação por parte da mídia. A culpabilidade da professora foi tão alta que até o presidente RichardNixon a endossou. A pena para Davis incorreu no desejo de extradição, o que intensificou ainda mais a onda de protestos.
O caráter de atualidade do filme é impressionante, especialmente por notar-se a praticamente nula evolução a que o mundo se submeteu, mesmo após 40 anos decorridos após o início do movimento. A controvérsia a respeito dos direitos à liberdade política e da marginalização do “diferente” prossegue em países de diferentes histórias e tradições de luta, dos mais ricos até os ditos subdesenvolvidos; alguns com arquétipos mudados: dos negros sendo substituídos por outras minorias igualmente marginalizadas, como o público LGBT, ao lado da perseguição dos que pensam à esquerda, e contra tantos outros. E a questão racial ainda longe de ser resolvida.
A contextualização documental mostra muitos registros visuais da época, assim como inúmeros depoimentos dos envolvidos, até de lados opostos. Serve como um bom retrato do panorama cronológico, tanto que reforça a injustiça presente no julgamento de Davis, uma vez que o argumento é um dos poucos fatores em cujo contexto abrange todas as falas. Os membros do movimento e os mais conservadores enxergam a professora da mesma forma: uma lutadora dos direitos civis.
O recurso narrativo para remontar as cenas do tribunal – que obviamente não poderiam ser filmadas – foi perene ao exibir uma arte peculiar entre os depoimentos dos entrevistados. O destaque ao penteado black power de Angela revela uma idealização do ícone acima da figura humana, do símbolo da eterna luta de classes presente no epicentro do capitalismo do século XX.
A poesia vencia no discurso desintoxicante da ré, que lutava contra os grilhões que amarravam os seus braços e os de muitos. O conteúdo do filme de Lynch é contestador, assinalado pela fala do branco advogado de defesa, Leo Branton, que profere ao também branco júri, o qual decidiria a sentença de Davis, convidando-o a pensar de modo diferente:
“Eu quero que você interprete um papel comigo, para os próximos vários minutos: eu quero que você pense “preto”. Eu quero que você seja negro. Não se preocupe. Vou deixá-lo voltar a ser branco quando isto acabar. Se você é negro, você sabe que seus antepassados foram trazidos a este país como escravos. E o Supremo Tribunal dos EUA determinou: não há direitos. Uma pessoa negra tinha que ser o que os homens brancos queriam, e era obrigada a respeitar esta decisão. Uma intelectual como Angela Davis sabia disso. Cada vez que uma pessoa negra erguia a voz em apoio a liberdade e à liberdade do homem negro, foi assassinada. E, por isso, você sabe todas essas coisas, se você é Angela Davis ou se você é negro. Você, como negro, não se pergunta por que ela fugiu, só se pergunta: por que o mundo permitiu que fosse apanhada?”
Após toda a luta, o desejo da já idosa Angela Davis é que a discussão amadureça, além até de seu reclame. O lema de sua vida é voltado para que mais vitórias, como as que conseguiu naquela época, se repitam, na tentativa de tornar o mundo moderno o mais igualitário possível. Libertem Angela Davis consegue informar e emocionar o público de maneira equilibrada, com a inserção total do espectador no drama da biografada.
Khmer Vermelho era o nome dado aos seguidores do Partido Comunista doKampuchea, que foi soberano no Camboja, de 1975 a 1979. Há poucos registros sobre está época e o intuito de Rithy Pahn é resgatar um pouco desta história. O cunho emocional da obra logo é explicitado, focando uma narração do passado através de simpáticos bonecos, lembranças de tempos mais simples, mas nem isso era sagrado, visto que às vezes, subvertiam os brinquedos, mostrando-os pegando em armas, se alistando meio que a força. Os bonecos servem para preencher as lacunas cuja história oficial não conta, segundo é claro as memórias de Panh e de outros homens do povo.
O intimismo faz parte da narrativa, assim como a pessoalidade. O narrador tinha apenas 13 anos no começo da narrativa, e até por isso a memória é muito viva e o sofrimento ainda aparenta ser fresco em sua vivência. O desenrolar dos fatos mostra um povo sofrido, escravo dos interesses de seu governo ditatorial. O contador da história afirma que para a identidade do povo sobreviver, é preciso esconder uma imagem de cores diferentes daquelas vestes pretas padrão, impingidas pelos mandantes de Kampuchea, uma imagem internalizada, pois se estivesse exposta, esta seria morta.
As rachaduras nos rostos dos bonequinhos servem para mostrar o quão arranhada estava a percepção da própria figura do povo, eles se sentiam derrotados, porque eram humilhados e punidos; caso não se sentissem humilhados, às vezes pela restrição de bens que em momento nenhum representavam luxo, como a proibição de ter-se panelas. Os cidadãos só tinham colheres, sua comida era racionada, enquanto os vigias tinham fartura, e não escondiam isto, nas palavras de Pahn, para reeducar tinha que se começar por destruir.
A dor e o desprezo mantinham o povo unido, nem tanto por um ideal, uma vez que a aflição de suas almas não permitia pensar tais coisas, e o não acesso a informação também impelia-os a sofrer calados e sem perspectivas de melhora. A cooperação entre eles acontecia pela falta dos bens básicos, o intuito era a subsistência. Em alguns momentos, o diretor mostra as partes agridoces de sua vida, acompanhando os sets de filmagem que passavam por sua estalagem, e que não por acaso, traziam cor e canto à sua vida, além de uma ponta de vislumbre a esperança de conseguir sonhar, e talvez até realizar tais desejos.
Mas o foco é mesmo na privação, privação de alimento, cerceamento da vida e completa inexistência de direitos. As imagens que o governo fez questão de manter vivas, são as dos acordos políticos, dos líderes ditatoriais se reunindo e celebrando, brindando com champanhe a boa colheita que vinha, às custas da população escravizada, que quando conseguia sobreviver, tinham uma sub-vida. A manipulação de imagens é flagrada, como demonstrada pelos únicos vts que sobreviveram, numa colcha de retalhos feita por Pol Pot, que registra somente o que ele quer, numa realidade inventada, muito distante do verossimilhante sofrimento de sua população. Tal ignorância é ofensiva e desrespeitosa com quem morria trabalhando na floresta.
O autor declara algumas vezes, na duração da fita, que ele é uma criança. A afirmativa serve para este não se distanciar do sofrimento alheio, relembrando que o padecimento da “gente” é o seu, mas revela algo ainda mais pessoal, o de que seu sentimento e sua alma ainda está um pouco presa àquela época tão difícil, e que os ecos do flagelo e da desgraça ainda o abalam demasiado, e influenciam a sua arte – por isso a feitura deste A Imagem Que Falta, que é tocante, não apelativo e toma muito cuidado ao explicitar o infortúnio do povo e a desgraçada atitude dos poderosos. O luto é difícil, o funeral interminável, a poesia de Panh tenta aplacar um pouco da árida vivência das pessoas que não estavam na montagem videoclíptica feita pelo regime, e explicita o real cenário político de Kampuchea.
Getúlio Vargas foi um dos maiores nomes da política brasileira e um dos comandantes mais importantes da história do Brasil. O período de quase 20 anos do político no poder transformou radicalmente a face da República brasileira, o que levantou paixões a seu favor e contra, especialmente ao final de sua administração.
O filme de João Jardim (do excelente Lixo Extraordinário), com roteiro de George Moura, retrata os últimos 19 dias da vida do ex-presidente, quando o governo é acometido por um turbilhão de críticas após o principal rival político de Vargas, o ferrenho anticomunista Carlos Lacerda, sofrer um atentado, descobrindo-se, logo depois, que os mentores do ato eram pessoas intimamente ligadas a Getúlio.
Contando com fotografia e design de produção excelentes, o filme consegue reproduzir toda a ambientação da época e fazer o espectador se sentir naquela primeira metade da década de 1950. O Palácio do Catete também contribui enormemente nesse sentido, tendo em vista que o local se manteve praticamente inalterado desde os eventos retratados.
Optando por uma ótica mais intimista e com toques de thriller psicológico, o diretor tenta mostrar o lado humano do presidente, já idoso, sofrendo todas as pressões políticas em um momento diferente do país, pois se na década de 30 Getúlio conseguiu impor seu modelo, já na democracia, durante a ascensão da Guerra Fria e da influência dos EUA na América Latina, Vargas sofre a oposição dos setores da sociedade alinhados aos interesses americanos, enquanto sua postura nacionalista, outrora tão eficaz, agora atrai cada vez menos adeptos. O enfoque intimista e pessoal por vezes se torna desnecessariamente lento, e o uso da metalinguagem para explicar os pesadelos do personagem também se mostra repetitivo, dando ao filme um certo tom novelístico característico da TV brasileira.
Essa pressão se manifestava na figura de Carlos Lacerda (Alexandre Borges), governador da Guanabara e principal porta-voz do udenismo. Suas ferozes críticas ao presidente iam desde o moralismo simplista de acusá-lo de causar todos os problemas do país, até o de culpá-lo pela degeneração da democracia e pela explosão endêmica da corrupção, discurso este muito usado até hoje pelos setores herdeiros do udenismo contra governos que não conseguem vencer no jogo democrático.
A figura de Carlos Lacerda no filme é mostrada de forma distante, com discursos inflamados, transmitidos na televisão, exigindo a renúncia de Vargas— uma escolha estranha, pois naquela época a TV não era utilizada como meio de comunicação em massa, pois havia poucos aparelhos no país. Esse papel era desempenhado pelo rádio. No entanto, uma construção maior desse personagem poderia tornar a trama menos maniqueísta.
Maniqueísmo este que se manifesta o tempo todo ao focar a figura de Vargas de forma uníssona, em dúvida apenas quanto ao que mostrar em relação a sua honestidade em lidar com o problema. O presidente é retratado como uma pessoa íntegra que desconhecia absolutamente tudo o que se passava com sua guarda pessoal. Ainda que não soubesse sobre o atentado propriamente dito, para alguém tão centralizador como ele, torna-se um fato que, se não impossível, bastante improvável. No final, tendemos a nos simpatizar com Vargas e antagonizar Lacerda de maneira simplista em razão dessa abordagem.
O que é muito bem retratado é a relação ambígua com os militares, que já se mostravam descontentes com a democracia e ávidos por terem uma participação maior no poder desde a Era Vargas. Enquanto alguns militares lutavam para manter o legalismo, grande parte se organizava para exigir a renúncia do presidente e preparar o terreno para um golpe militar, o que não seria novidade nem no Brasil, nem na América Latina no período.
Também merece destaque a atuação de Tony Ramos no papel do presidente. Apesar do exagero do tamanho da barriga e do pouco trabalho com o sotaque gaúcho, o ator transmite ao personagem todo o peso dramático que os eventos narrados impuseram a Vargas.
O suicídio do ex-presidente no filme também possui parte de seu impacto retirado por não ter sido bem construída a cadeia de eventos que levou a esse fato. Quando a situação se torna insustentável, após Vargas ter abdicado de tomar qualquer posição ofensiva em sua defesa, a única saída possível ao presidente parece ter sido o suicídio, sozinho em seu quarto com seu revólver. O ato, mostrado de forma engrandecedora, oculta os relatos de que, após o tiro, Getúlio sobreviveu ainda por algumas horas. Também oculta, dentre a comoção popular por sua morte, a ira de parte da população que depredou sedes e carros de jornais opositores, caso de O Globo, que teve papel chave na oposição ao governante, ausência essa convenientemente deixada de lado no filme.
Dessa forma, Getúlio opta conscientemente por construir um personagem que é fruto de escolhas da direção, excluindo algumas informações e exaltando outras. Apesar de ter sucesso em compor um personagem forte mostrando seus dilemas internos e pesadelos, falha em dar a profundidade necessária a seus algozes e aos eventos que levaram a escolha pelo seu suicídio. Talvez por isso, o filme se mostre interessante somente a quem já conheça os fatos e pessoas ali descritos, se mostrando uma experiência não muito agradável ao espectador tradicional.
O documentário capitaneado por Isa Grinspum Ferraz visa mostrar várias facetas de Carlos Marighella como o de um sujeito pacato e ligado a família, longe demais da imagem pintada pelos mandantes do regime que o pintavam como o pior dos terroristas subversivos e inimigo número um do Estado. A narração da sobrinha de Carlos revela que o filme começou a ser feito de fato após a morte do líder revolucionário.
No início da fita, são lidas cartas do próprio punho do “anarquista da Sicília”, provindo de uma miscigenada herança entre o italiano Augusto Marighella e da negra Maria Rita, criado em uma casa onde tinha spaghetti e caruru, não havia como crescer sem ser questionador, desde a infância ele não entendia porque o pobre precisava se matar de trabalhar para chegar ao final da vida sem ter absolutamente nada.
Já muito novo ele se engajaria ao comunismo autodeclarado, levando à Bahia, sua terra, o discurso contra a oligarquia, incitando o povo à revolução. O comunismo baiano dos anos 1930 era contra o integralismo principalmente, e não era alinhado a Karl Marx, até pela dificuldade do acesso, era feitos de mulatos, como Jorge Amado, Edson Carneiro, Couto Ferraz, um grupo que vivia a utopia, mas não se desgarravam da realidade marginal baiana. Os intelectuais precisavam sair da neutralidade e se declarar fascistas, comunistas ou liberais, graças ao novo quadro político mundial, aos poucos “os pingos eram postos nos is”. A ida de Marighella ao Rio de Janeiro já culminara numa prisão, acusado pela imprensa à época, de perturbar a paz e não colaborar com a boa ordem do Estado.
A escolha pelas imagens das paisagens e belezas naturais contrastam com os recortes de jornais, quase sempre explicitando uma luta e perseguição muito violenta ao “cavalheiro Marighella”, que variam entre prisões e comícios. Carlos e outros militantes de bigodes grossos se associavam a LuisCarlos Prestes, sua dificuldade nas manifestações era o de parar de falar e terminar seus discursos. Graças ao Presidente Dutra, o Partido Comunista Brasileiro foi tornado ilegal e Carlos Marighella passou a viver na clandestinidade, seu primeiro filho só viria a conhecê-lo aos sete anos de idade. Em meio a paranoia mundial, eram veiculados comerciais estadunidenses muito engraçados, com “animações desanimadas” mostrando o poderio soviético, explodindo símbolos do capital, como A Estátua da Liberdade.
A posição de Marighella era diferente da de Brizola, Goulart e outros tantos pensadores. Ele viajou para a China, para a União Soviética a fim de conseguir instrução sobre o estado totalitário socialista. Um momento emocionante é quando sua esposa Clara Charf, declara que ele não sabia falar chinês e que ele havia feito um dicionário desenhado do idioma, mas que o livro foi tomado pelas autoridades, numa das invasões da polícia a sua residência. O “mulatão” cada vez se precavia mais e alertava seus colegas de que eles não resistiriam a caça após o Golpe Militar. Seu argumento era de fuga, mesmo após as falas de Jango de que o vice, uma vez empossado presidente, teria uma resposta rápida a ação dos militares. Ele era muitíssimo bem informado, parecia prever as artimanhas e a movimentação dos homens de farda.
Sua postura se tornaria ainda mais extremista, rompendo com o partido após a sua prisão e a ida a Cuba, em uma viagem clandestina. Se declarara um revolucionário, ligado às massas e inconforme à maneira cordata com que a esquerda se portava de forma muito inocente e submissa aos caprichos militares, e até essas reprimendas são publicadas carregadas de um conteúdo poetizado. Para ele, o revide devia ser na mesma força e medida, era inspirador, de confiança e admiração, e sobretudo era uma figura simples, ao mesmo tempo que estudiosa e muito inteligente.
Apesar de sua afeição ao modo de revolução chinês, Marighella queria um comunismo genuinamente nacional, com samba, futebol e cores tão caracteristicamente brasileiros. Ele não era um teórico, participava dos assaltos de forma ativa e veemente. Suas ações não eram freadas pela possibilidade de perecer ou do sacrifício de vidas alheias, das dos seus, em ações de guerrilha que os adeptos já tinham conhecimento e claro, dos seus opositores.
O modo como a realizadora apresenta a morte do guerrilheiro é sem muito apuro do modo como ocorreu o assassinato, tal artifício emula tanto a forma sem respostas do Regime ao assassinar o seu opositor e também a não necessidade de ser lógico, e claro que o próprio Marighella usava em seus poemas, ainda que nestes escritos ele não retire os seus pés do chão. Carlos Marighella era o libertário utópico, munido da informação, mas que prestou a sua imagem para inspirar o ideal da liberdade do país, o que Isa Grinspum Ferraz fez é uma homenagem muito competente a sua figura, sem ser chapa branca, destacando até seus erros, mas focando a aura do contestador imberbe que ele era, dando à revolução um nome estrangeiro, de difícil dicção e de fácil identificação.