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  • Resenha | A Revolução dos Bichos

    Resenha | A Revolução dos Bichos

    “Quatro pernas bom, duas pernas ruim!”

    Na missão de adaptar um dos maiores clássicos da literatura moderna mundial, A Revolução dos Bichos, de George Orwell, o ilustrador brasileiro Odyr não poderia ser mais bem-sucedido, em sua empreitada. Aos transpor o romance direto para o mundo das formas e cores de uma HQ, o artista gaúcho oferece uma nova roupagem digna de aplausos a mais trágica das parábolas ocidentais, e claramente universal, agora com uma dinâmica visual diferente. Preservando consigo a força deste “conto de fadas rural”, que Orwell imaginou há quase oitenta anos, e cuja glória o Cinema ainda não deu cabo de honrar, nada mudou na essência da alegoria histórica, muito pelo contrário.

    Desde 2019, temos aqui uma potência fabulesca e gráfica inéditas a embalar esta obra-prima sobre porcos e cavalos, cães e vacas que, cansados do chicote, formaram oposição com os seus cascos e chifres à violência do Sr. Jones, o fazendeiro da Granja do Solar, no interior da Inglaterra. Foi lá que a epopeia da bicharada começou, e sob a égide da coragem, da revolta e da esperança de serem donos de seus próprios destinos, sua Revolução expulsou o Sr. Jones daquelas terras, e a liberdade então se instalou. Desimpedidos, os trabalhadores e pacíficos bichos da Granja instituíram regras (a mais famosa, sendo “quatro patas bom, duas patas ruim”) a fim de simbolizar a verdade suprema: todos os animais são iguais! Só assim a dor da escravidão poderia ser, um dia, esquecida.

    Mas não tardou de aparecer uma maçã podre entre as aves e cães, entre os equinos e galináceos, traindo os princípios da Revolução, e arruinando a utopia desse paraíso. Logo, os ‘cidadãos’ da Granja dos Bichos são envenenados por uma inteligência superior entre eles, sem piedade ou culpa, e uma ideologia de violência e paranoia chega para encobrir a tirania, que só cresce. E de repente, onde antes imperava a felicidade, corre o risco de voltar a ter um imperador pior do que jamais se viu, antes. A sátira a política Stalinista na antiga União Soviética não poderia ser mais explícita ao leitor mais esperto, nem um pouco suavizada pelo texto ou pelos sublimes desenhos em nanquim de Odyr – muito mais que meros acessórios de luxo, à história.

    Em A Revolução dos Bichos, ao tecer de modo crítico e impactante a formação de um tirano, e seus seguidores cegos, envoltos neste sistema de pensamento único que aterroriza uma sociedade sem livre-opinião (submetida a um intérprete oficial que dita o certo, e o errado), Orwell flerta com o fascismo, a barbárie, a origem das distopias e toda sorte de injustiça que são injetadas, ou ainda, acordadas dentro de uma civilização. Todos os temas, como já afirmado, seguem intactos nesta obra-prima consequente, publicada no Brasil pela editora Quadrinhos na Cia., e que por seu colorido apelo e linguagem irresistíveis para todos os públicos, deve fazer parte das bibliotecas escolares para atrair os mais jovens a vivenciar, e aprender com esta aventura de modo divertido, mas não menos reflexivo.

  • Resenha | Pau e Pedra

    Resenha | Pau e Pedra

    Ainda em 2016, chega ao Brasil dois dos trabalhos mais famosos do americano Peter Kuper, elogiado quadrinista por trás de Ruínas, de 2015, e este extraordinário Pau e Pedra, de 2004. Ao evidenciar a ascensão e (a esperada) queda da própria civilização do autor, viciada em poder, soberania e colonização sobre outros povos, devido a ganância e o autoritarismo para com outras nações – algo que, no século XXI, continua a pleno vapor, a obra se torna, no mínimo, memorável. Mesmo que o tema, aqui, já tenha sido tratado num sem-número de outras obras, tanto na literatura quanto no cinema, desde que a arte começou a refletir acerca dos grandes impérios que a humanidade já viu.

    Impérios e poderes que, por x motivos ligados a ambição desmedida, e instinto de superioridade, voltaram as cinzas, em tempos ancestrais. Tudo começa com uma erupção vulcânica, ou seja, a aurora do homem. Neste caso, um gigante nasce dos destroços dessa erupção, num mundo em preto e branco que inveja o colorido, e quando o vê, o domina para estender seus domínios, sua própria lógica, e sua própria cultura. O gigante então vira líder de outros destroços ambulantes do mesmo vulcão, aparentemente, também desprovidos da dala, mas menores que ele, e que por isso, o obedecem cegamente – seu exército particular. Com o poder subindo rapidamente a cabeça, o titã passa a não aceitar represálias, e todos abaixo dele devem obedecê-lo ou serão presos. Mesmo ele tendo a mesma origem de seus vassalos.

    Munidos da força e resistência dos seus corpos de pedra, essa pequena civilização cresce, ao passo que silencia o povo alegre e colorido que dominou, e escraviza-os para extraírem recursos da sua própria terra natal – um ex-paraíso. Um belo dia, ela vira uma cópia do império do gigante: um lugar sem vida, sem cor e oprimido. Se no começo de Pau e Pedra, o rei detinha das melhores intenções para consigo mesmo, e seus semelhantes, o poder perfura a rocha, e sobe a cabeça de uma forma irremediável. Todos sofrem com isso, e para enfatizar essa guerra de vaidades e contradições éticas, Kuper não precisa de uma única palavra, tornando célebre com imagens fortemente expressivas um mundo onde quem é maior manda, em geral, com as verdades que inventa, e protege.

    Os EUA invadem territórios como cupim na madeira, não só por armas, é claro, mas com sua cultura através de inúmeros meios e veículos de comunicação a nível global – o chamado soft power, tendo Hollywood a principal aliada deste projeto. O autor deve sofrer ao expor as mazelas morais de sua nação com tamanho radicalismo, e objetividade metafórica, e produz uma alegoria política de grande sagacidade, na qual também o povo dá poder a seus superiores, e arca as consequências já que esse poder é desmedido – e incontrolável, seja por quem é mandado, seja por aquele que se deixa ascender, socialmente. A corrupção é ardilosa, colonial, tóxica, mas a natureza que dá, é a natureza que tira, e tudo pode, um dia, voltar a ser como era no início – nem que, para isso, tudo precise ser levado à estaca zero.

    Unindo diversão, a reflexão, Kuper propõe um ciclo atemporal em que as raças ganham sempre mais uma chance de escolher o melhor caminho para se desenvolverem. Em paz e harmonia, ou, sob guerras e conflitos que a detonarão, cedo ou tarde. O processo é longo, mas o tempo natural das coisas é assim mesmo. Nota-se, inclusive, uma bela alusão ao valores iluministas, com a inteligência sobrevivendo sob a repressão que não vence os que veem além, e cultivam a liberdade como a mais inestimável das joias que se pode ter, e cultivar. Publicada nacionalmente pela editora Cia das Letras através de seu selo Quadrinhos na Cia, num fabuloso trabalho gráfico evidenciando os pontos fortes do traço grosso e chapado do artista, nesta fábula repleta de autocrítica, Pau e Pedra é um dos triunfos que a nona-arte ganhou neste século, e será lembrada entre outras preciosidades.

    Compre: Pau e Pedra.

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  • Resenha | O Idiota: O Clássico de Fiódor Dostoiévski em Quadrinhos

    Resenha | O Idiota: O Clássico de Fiódor Dostoiévski em Quadrinhos

    André Diniz é um quadrinista com quase 20 anos no mercado, e talvez por conta da experiência, sua adaptação de O Idiota, o clássico de Fiódor Dostoiévski, para quadrinhos,é realmente muito bem feito. Publicado pelo selo Quadrinhos na Cia, da Companhia das Letras, a adaptação de Diniz é dessas obras que funcionam por si só, explorando o tema visual em oposição à escrita excessivamente psicológica e interna do gênio russo.

    Em 2018, o romance clássico completou 150 anos de publicação. O livro foi impresso como novela de folhetim e os leitores acompanhavam diariamente o príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin (ou apenas Príncipe Míchkin). Nao me cabe aqui explicar todo o enredo do livro dostoievskiano, primeiramente, por não ser tarefa fácil resumi-lo, já que o romance contém fortes reviravoltas, dezenas de personagens e uma sequência de altos e baixos que se perderiam frente à explicação do todo; segundo porque é um livro de domínio público com dezenas de versões por todos os cantos; terceiro porque é Dostoiévski e se você não leu nada dele ainda, desejo mesmo que você o leia e O Idiota é um bom começo.

    Mas voltando ao trabalho de Diniz. O quadrinista foi brilhante em enxugar o discurso interior, detalhista e psicológico que permeia a enredo de Dostoiévski e ilustrá-lo por meio de desenhos áridos, em preto e branco, que muito lembra o estilo dos cordéis nordestinos, uma de suas tantas características como artista. Há um contraste evidente e esperado entre as duas formas, contudo, o silêncio impresso no quadrinho, os poucos balões de textos, as grandes formas em alguns enquadramentos, despertam a curiosidade do leitor durante a leitura.

    Ao cortar o diálogo dos quadrinhos, conseguimos emergir mais profundamente no mundo silencioso daquela tragédia. Silêncio exterior, visto que a eloquência é feita de forma mental, em Dostoiévski. A ausência de linhas de diálogo pode até supor uma certa rapidez de leitura ou aproximação falsa do drama, mas atente aos detalhes. André Diniz usa apenas o preto, o branco e escalas de cinza, mas são essas nuances entre as tonalidades que darão o tom pesado da narrativa. As sombras são os detalhes.

    O quadrinista também opta por diversos closes nos personagens que devem fazer com que leiamos mais atentamente aqueles desenhos e a narrativa que está se formando. Aliás, talvez o problema do leitor mais apressado é que ele acabe apenas observando, mas não enxergando os acontecimentos da história. Há uma diferença. Apesar de não haver tantos diálogos, é preciso ler os quadrinhos com atenção para mergulhar de vez no drama do príncipe idiota.

    Leitura muito bem recomendada. É uma obra que presta grande serviço a todos os tipos de leitores e funciona complementando o trabalho genial do russo. De fato, adaptar não é seguir à risca o cânone, mas implementar um ponto-de-vista original sobre outro trabalho. Assim as histórias são recontadas entre elas mesmas e o fluxo infinito de suas terminações logo frutificará outras ideias e novas histórias.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: O Idiota.

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  • Resenha | Como Falar com Garotas em Festas

    Resenha | Como Falar com Garotas em Festas

    Sandman encontra Machado de Assis

    Como Falar com Garotas em Festas (Quadrinhos na Cia.), escrito por Neil Gaiman e ilustrado pelos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, é o tipo de história que só poderia ter saído mesmo do pai de Sandman. A trama roteirizada por Gaiman é construída do usual ao coletivo mitológico, sempre destacando, ou relembrando, a máxima de que nada é o que parece.

    Começa com um lugar-comum: um jovem desengonçado é convidado junto com o amigo popular para uma festa em uma república feminina. O jovem desengonçado não consegue falar com as mulheres e o amigo popular tenta animar o companheiro para a aventura com as mulheres desconhecidas. Entram, um muito confiante, o outro com baixa autoestima.

    Cada rapaz segue um caminho diferente: enquanto o popular logo parte para cima da dona da festa, o desengonçado tenta conversar o melhor possível com alguma mulher sozinha. O nervosismo o atrapalha, por isso escolhe ouvir mais do que falar. Logo percebe que a maioria das mulheres dali são intercambistas. Contudo, não fica animado como o amigo popular ao saber disso, mas desconfiado com a coincidência de todas não serem dali.

    Quando o desengonçado passa a perguntar sobre a origem delas é que Gaiman desata toda sua criatividade mitológica. Aquelas adolescentes não são apenas corpos humanos, mas seres diversos que escolheram, naquele momento, habitar um invólucro de carne para aprender sobre a vida na terra. Daí ao final, o leitor surpreende-se com as origens de cada uma. Este o grande trunfo da história: a diversidade de seres que podem se esconder em carne e osso.

    Do ponto de vista gráfico, a preferência por cores quentes, sombras em degradê e formas assimétricas, transforma a atmosfera do quadrinho em algo retirado de um sonho. Os desenhos são esguios, contornos bem definidos e um trabalho magnífico de quadros construídos em aquarela. As cenas obedecem a um rigoroso controle de roteiro e imagem, de forma que, harmonicamente, são construídos momentos de tensão, suspense e desfecho.

    HQ simples, eficaz e excelente. Mas não se engane, a simplicidade é sempre conseguida com muito esforço e experiência. Não por acaso trata-se de uma parceria entre Gaiman, pai daquela que é considerada uma rara unanimidade entre as HQ’s, Sandman, e os irmãos que ganharam um Prêmio Jabuti (o maior prêmio literário nacional), pela adaptação de “O alienista”, de Machado de Assis, em quadrinhos.

    No final da história ainda encontramos esboços dos trabalhos de Fábio Moon e Gabriel Bá. HQ mais do que recomendada.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Resenha | Anne Frank: A Biografia Ilustrada

    Resenha | Anne Frank: A Biografia Ilustrada

    Registro fundamental da história, O Diário de Anne Frank se consagrou como um importante relato de uma testemunha vivendo sob a opressão da Segunda Guerra Mundial. Uma narrativa autoral com qualidade suficiente para se tornar também uma obra literária, tornando-se um relato de resistência e inspiração.

    Anne Frank nasceu como uma alemã livre. Quinze anos depois, quando morreu de tifo em um campo de concentração, sua vida havia se transformado por completo. A garota e sua família foram testemunhas da violência do Terceiro Reich contra qualquer um que era considerado impuro. Amadureceu e viveu parte da adolescência no anexo secreto em que a família e agregados permaneceram por dois anos fugindo do jugo alemão. Até serem traídos por um desconhecido. Durante o tempo em que permaneceu escondida, manteve um diário.

    A transformação de seu diário pessoal, escrito como forma de suportar o peso de dias terríveis, tornou-se um exemplo das diversas violências que o povo judeu, bem como outras minorias, passaram durante a guerra. Desde seu lançamento, o livro foi editado em versões diversas e até mesmo a autoria da obra foi questionada. O diário veio a tona a partir da leitura do pai de Anne, Otto Frank, único sobrevivente da família. Edições posteriores lançadas sem nenhuma edição, demonstraram que Anne era, de fato, uma garota precoce que amadureceu emocionalmente e literariamente no período de guerra.

    A força de sua história permanece em Anne Frank: A Biografia Ilustrada, lançado pela Quadrinhos da Cia, e realizada pela dupla Sid Jacobson e Ernie Colón. A obra é a quarta parceria da equipe que anteriormente trabalhou em duas edições dedicadas ao 11 de Setembro e em uma biografia de Che Guevara. Ou seja, autores que possuem um entrosamento adequado e, além disso, trabalharam anteriormente com materiais reais e histórias significativas. Dessa forma, a dupla é capaz de ir além da mera transposição de um livro para um novo formato.

    Jacobson pontua a história de Anne Frank expandido o enfoque de seu diário. Retoma a união que fundamentou a família, demonstrando como os Frank e os Hollãnder viviam antes do enlace matrimonial, bem como explica os fatos que levaram aos fatídicos acontecimentos da Guerra. A voz para narrar tais fatos é didática, mas bem inserida para criar o necessário contexto da época. Apresentando pequenos trechos do próprio diário ou outras fontes originais como cartas escritas por Otto Frank, a obra ganha maiores contornos explorando tanto o drama da família como da guerra em geral, situando os motivos fundamentais que levaram os alemães a assumir uma política agressiva de extermínio do povo judeu.

    A figura de Anne Frank é ressaltada com vigor, dando credibilidade necessária para que o leitor compreenda que a garota era um personagem diferente dentro da sociedade como um todo. Alguém que, desde a infância, foi tida como especial e diferente de outras figuras do seio familiar. Dessa forma, é coerente compreender como a garota foi capaz de usar a literatura como um meio de identificação pessoal e de alívio para seus dias massacrantes. Vivendo sob o jugo da guerra, sua maturidade foi precoce e urgente.

    A biografia, porém, tem espaço suficiente para demonstrar como cada Frank reagiu diante do mesmo problema. Dentro de uma situação sufocante, qualquer conflito natural de uma família se torna ainda mais difícil, beirando explosões que não acontecem devido ao confinamento obrigatório no anexo secreto. A história dos Frank aponta também como, em tempos obscuros, o apoio e ajuda são fundamentais para evitar maiores agressões. Além do diário ter sido guardado por uma das colaboradores de Otto, a rotina para que a família vivesse minimamente confortável dentro um espaço apertado foi apoiada pelos amigos íntimos que colocaram a própria vida em risco diante da barbárie.

    Conforme chega ao seu desfecho, quando os Frank são capturados, a biografia se torna mais vaga. Considerando que a fonte original seja o diário de Anne, é evidente que os relatos da família dentro dos campos de concentração sejam diminutos. O que Otto fez foi reunir posteriormente o relato de outros prisioneiros que estiveram ao lado de Anne. Um processo misto entre o pessoal e literário que desejava, ao menos, dar um fim digno a trajetória da família.

    A trajetória de Anne continua ainda hoje sendo uma das fortes figuras de resistência da Segunda Guerra Mundial. Seu papel como criança alemã judia com uma morte precoce, vivendo em um mundo massacrado pela guerra se mantém como um símbolo que representa um povo. O injustificado genocídio que oprimiu e dizimou um número gigantesco de judeus e outras minorias. Um fato histórico que nunca pode ser esquecido para que nunca mais se repita.

    Anne Frank: A Biografia Ilustrada foi realizada com aval da Casa de Anne Frank, instituição responsável por preservar a imagem da família e sua história. Formatada em uma outra mídia, a obra mantém a intensidade do relato original e apresenta a um novo público a relevância de uma interessante testemunha ocular de um momento sombrio da história. A edição lançada no país ainda conta com uma cronologia da família Frank, bem como apresenta sugestões de leitura para se aprofundar no tema.

    Compre: Anne Frank: A Biografia Ilustrada.

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  • Resenha | Reportagens

    Resenha | Reportagens

    Joe Sacco: o jornalismo é quadrinho e vice-versa

    Joe Sacco (Palestina) talvez seja o jornalista-quadrinista mais conhecido aqui no Brasil. “Reportagens” (Quadrinhos na Cia, selo de quadrinhos da Companhia das Letras) é uma reunião especial de trabalhos dele onde o tema predominante é o conflito ou, mais especificamente, as guerras modernas. Territórios palestinos, Iraque, Chechênia, Índia camponesa, imigrantes ilegais no Mediterrâneo e julgamentos de guerra são as seis matérias que compõem o livro.

    O mérito do autor reside em unir habilmente técnicas das duas áreas de conhecimento. O jornalismo o dá o rigor da apuração: entrevista com as fontes importantes, perguntas imprescindíveis para a investigação, encontra personagens-síntese para a condução da história e adiciona pesquisa para ampliar o conhecimento do leitor sobre o tema. E, do quadrinho, os traços rígidos funcionam como uma foto informativa mesclada com as intervenções que o espaço gráfico permite; as intervenções funcionam como os enquadramentos de um filme e dotam a imagem do movimento que uma foto tradicional não teria.

    Atente que um não sobrevive sem o outro: as informações visuais não se sustentam sem as informações textuais e vice-versa. Aliás, as informações textuais da apuração dão o tom das imagens, pois temos que lembrar que as reportagens são feitas sempre tendo em vista uma quantidade certa de páginas em determinada revista ou jornal. Este o outro mérito do autor: a coesão textual, pilar da imagem.

    Outro fator interessante do trabalho de Sacco é que ele figura nos próprios quadrinhos. Por vezes o jornalismo preza a ausência do repórter ou o trata como um árbitro sempre fora do objeto de investigação, mas o autor opta por outra via talvez por intensificar a experiência de leitura e também endossar o caráter investigativo das suas matérias; assim, fica a sensação de que somos conduzidos junto com o repórter e descobrimos as informações em conjunto. A reportagem desenvolve-se naturalmente, sem amarras ao leitor.

    Quanto ao tipo de desenho, por se tratar de reportagens de caráter informativo, o autor compõe com detalhes; é minucioso nas roupas, armamentos, veículos, pessoas, relevo, interiores das casas etc, sempre com traços sóbrios. Os entrecortes dos quadros são poucos e se atém principalmente ao detalhamento de expressões faciais para intensificar e destacar emoções. Os traços em preto e branco compõem 90% do livro e transmitem, metaforicamente, ambientes rígidos, pouco amistosos e desesperançosos.

    Ao final da leitura, duas emoções distintas: prazer pelo excelente produto estético-informativo (texto e imagens) e tristeza por conta dos crimes cometidos contra os seres humanos nas áreas das reportagens. Joe Sacco é um ótimo exemplo de um jornalista apaixonado pelo ofício de repórter que utiliza uma “nova” plataforma para transmitir as informações que apura. Um trabalho belíssimo que leva o leitor a procurar as outras obras do autor.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Reportagens – Joe Sacco.

  • Resenha | Monstros

    Resenha | Monstros

    Monstros-gustavo-duarteE se a baía de Santos passasse por um dia de baía de Tokyo e, como é extremamente comum, praticamente cotidiano no Japão, fosse invadida por monstros gigantes? Quais as ações e possíveis consequências deste tipo de situação? Pode-se dizer que essa seria a sinopse da HQ de Gustavo Duarte – Monstros –, que nos apresenta um primoroso trabalho que demonstra o dinamismo que um gibi desse pode e deve ter.

    O roteiro em si é bastante simples, basicamente três monstros gigantes invadem a cidade de Santos e um simpático e pacato dono de “buteco” (antes que venham me corrigir, o buteco é uma instituição adorada de cidades interioranas de Minas Gerais e São Paulo, tal como Bauru, a cidade de Duarte, portanto, se escreve assim mesmo, da forma mais caipira possível de se falar) vai resolver o problema e caçar os monstros que estão destruindo a cidade.

    Porém, o maior destaque da HQ se dá pela narrativa gráfica, já que não existe nenhum balão de diálogo. A grande característica do estilo de Duarte é justamente produzir gibis que não tenham diálogos ou descrições textuais, fazendo com que a relação entre os quadros seja o grande responsável pela condução da narrativa. Aliás, aí se encontra o ponto forte da revista, a narrativa gráfica de Duarte. É impressionante como ele consegue dar fluidez para a sua arte, que neste caso se trata de uma união entre arte e roteiro, já que o desenvolvimento da história e da trama acontece apenas nos desenhos e na relação entre eles.

    gustavo-duarte-portal-mosaicoIsso traz a discussão da própria questão da construção de uma HQ, muitas pessoas ficam atentas apenas aos quadrinhos e aos dizeres dos personagens e esquecem que a arte não se trata de um complemento, mas de elemento fundamental, não como ilustração, mas como narrativa. Basta ler antigas revistas em que todas as ações eram mostradas na arte e descritas nos balões; era muito ruim, podem acreditar. Logo, imagine Monstros como um filme mudo, você vai compreender tudo, não precisa de alguém lhe falando tudo.

    Além da narrativa gráfica, que é o ponto mais importante, o gibi se destaca pela quantidade de referências à cidade de Santos, à cultura pop e à cultura brasileira de forma geral. É interessante vermos partes da cidade como o calçadão, o porto de Santos e o Museu de Pesca serem retratados na passagem dos monstros pela cidade. Também é interessante a quantidade de referências que demonstra a própria personalidade e gostos do autor, como o símbolo do “Norusca”, tradicional time da cidade de Bauru; o símbolo da banda Ultraje a Rigor, que se faz presente em um dado momento e o mais legal neste sentido: o encontro do caçador de monstros com seus três amigos que são a caricatura do Roger (Ultraje a Rigor), Flea (Red Hot Chili Peppers) e Bi Ribeiro (Paralamas do Sucesso). Já a cultura popular é representada por referências como os “causos de pescador”, o ápice da cultura de buteco, o expoente maior do exótico, o símbolo de um local e dos vitoriosos que conseguiram sobrepujá-lo: o ovo colorido de bar (que tem um importante papel na trama). Várias referências são apresentadas, com destaque também para os seriados japoneses, inspiração primeira da HQ.

    monstros 02Enfim, vale muito a pena, mais do que recomendado o gibi de Gustavo Duarte, que se trata de um dos maiores nesta nova geração de quadrinistas brasileiros que estão se destacando no mercado. E, ao ler o gibi e comprovar toda a capacidade do autor, penso que (em tom de desabafo) deve ter acontecido alguma interferência para que Pavor Espaciar fosse tão meia boca. Mas, procurem, leiam! Monstros é muito bom.

    Compre: Monstros – Gustavo Duarte

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

  • Resenha | Campo em Branco

    Resenha | Campo em Branco

    Campo em Branco - Emilio Fraia - DW Ribatski - capa

    A história de dois irmãos, explicitada sem delongas por seus autores Emilio Fraia e DW Ribatski. A trama já mostra seu caráter num epílogo intimista, que desemboca na trama principal, Campo em Branco, de subtítulo Lembrança de 1987. As pessoas de papéis periféricos – como a comissária de bordo – têm suas falas cortadas e não possuem face, como se a sua identidade não importasse. Os personagens que importam não têm muito tato, são indiscretos em suas falas, explicitando até o seu incômodo diante das coisas que se apresentam a eles.

    As escolhas estéticas de Ribatski dão uma rusticidade única à obra, seja pelas cores predominantes, em tons de azul, branco e preto, como pelas hachuras que lembram os restos de grafite dos lápis infantis, como as sujeiras deixadas pela borracha depois de um esforço para apagar-se um erro – tais traços fortes “coincidem” com as duras feições dos personagens, ou com seus pelos faciais que fazem lembrar as marcas que o tempo deixou em sua pele.

    Os pecados, ligados ao jogo, são mostrados de modo visceral e até um pouco cruel, mas ainda assim guardam em si uma carga de normalidade grande, mostrando estas características de modo absolutamente natural, assim como as paragens, com cenários que variam entre planícies e zonas urbanas. A relação de Lúcio e Mirko é composta de momentos de vivência estranha, onde os irmãos se instalam nos lugares mais ermos em prol de uma aventura idílica, movida quase que por completo pela porralouquice, pela vontade de alcançar algo que eles jamais tiveram acesso, uma experiência arrebatadora, digna de lembranças, a despeito até do bom senso.

    Um dos signos escolhidos por Emilio Fraia é o macarrão instantâneo, um alimento fácil de fazer, de rápido cozimento, que representa em si a efemeridade da rotina dos irmãos, o pouco tempo e recurso que ambos têm para suprir as suas necessidades básicas. É curioso como o encontro dos dois irmãos enfrenta enormes distâncias, que consomem muito tempo para serem atravessadas e, simultaneamente, concentram tão pouco tempo para executar até as refeições.

    Em determinados pontos da leitura, a nostalgia dá lugar a um incômodo, especialmente após o começo do tomo 2, onde Lúcio se acidenta e é deixado pelo irmão aos cuidados de uma estranha. A única grandeza permitida dentro da revista é a magnitude ampla da Natureza, que faz às vezes de Divino, mostrando-se superior, e muito, aos humanos da história.

    O desenrolar da história apresenta muito simbolismo, mas este acaba carecendo de significado, na maioria das vezes, calcando-se quase exclusivamente na relação fraternal e nos seus altos e baixos. A falta de exploração de assuntos mais complexos faz com que o produto final fique um pouco pretensioso, ostentando uma mensagem não tão profunda quanto quer parecer. A falta de compromisso com a linearidade temporal funciona para exemplificar o quão caótica é a relação de Lúcio e Mirko, mas é cansativa em certos pontos, por deixar a leitura menos fluida e mais truncada, a mão de Fraia é um pouco pesada nesse quesito. Campo Em Branco funciona como um escape emocional, que mostra o quão conflituosa e cheia de rivalidade pode ser a relação entre irmãos de sangue.

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  • Resenha | V.I.S.H.N.U.

    Resenha | V.I.S.H.N.U.

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    Então é assim… antes, eu estava atrás do que está atrás do meu pensamento… agora… só não queria que me levassem… para onde eu vim!

    Mas… estou. Ou… Sou.

    Eu sou o que vocês procuram… Me chamem pelo nome que me foi dado…

    Me chamem de… V.I.S.H.N.U.

    É com essa introdução, com um quê de filosofia e até mesmo com um tom shakespeariano, que se dá a abertura de V.I.S.H.N.U. E se ela soa um tanto quanto pretensiosa a princípio, seus idealizadores têm a confiança de que conseguirão entregar um trabalho à altura. Trata-se da primeira Graphic Novel brasileira de ficção científica, o que por si só já um marco.

    Em um futuro tecnológico, temos o dude, uma inteligência artificial quântica conectada à nuvem mesmo quando o seu dono pessoal não estiver online. Ele é capaz de organizar sua vida, realizar qualquer transação digital e até cuidar de seu lazer. Em poucos meses, possuir um ‘dude’ é tão banal quanto possuir um celular. Aclamado por um feito único, essa foi a primeira IA da história da humanidade a passar no Teste de Turing. Claro que, ao chegar ao cidadão comum, tal inteligência já era usada por indústrias ao redor do globo, o que criou uma grande dependência da humanidade no dude para manter o seu modo de vida. Serviços, transações, transporte e governos inteiros… o dude é praticamente onipresente. E quando essa IA se colapsa de forma misteriosa e sem deixar rastros de seu fim, o impacto é gigantesco. O que se ergue após isso é uma sociedade dividida pelo medo do que a tecnologia pode nos trazer ou nos tirar.

    Novos complexos de pesquisa tecnológica são criados ao redor do mundo com o objetivo de estudar inteligências artificias e nos precaver de um novo desastre como o dude. É em uma dessas bases que surge V.I.S.H.N.U., uma nova e assustadora IA que tranca todos os sistemas do complexo e se recusa a se comunicar até que tragam até ele o cientista greco-brasileiro Karabalis.

    O roteiro de Ronaldo Bressane mostra desde o início que o argumento que se seguirá neste thriller vai além do campo da ficção científica, demonstrando, também, que possui uma abordagem política e filosófica, como vimos em sua abertura. Cuidadosamente enveredando por temas que envolvem neurociência, além de descobertas recentes do campo tecnológico, tudo com um toque sutil para tornar tais temas incorporados à trama principal.

    A arte em preto e branco fica por conta de Fabio Cobiaco. Trabalhando menos nos detalhes e mais no contraponto entre preto, branco e cinza, ela traz uma aura que casa perfeitamente com o tom de uma sociedade que enfrenta um momento de pós-colapso tecnológico.

    A graphic novel é dividida em 12 capítulos não-lineares que mesclam muito bem os temas propostos. Em um formato pouco comum (29x29cm), mas muito bem estilizado, V.I.S.H.N.U. é promissor e mostra que temos, sim, espaço e demanda para tal temática dentro do mercado nacional. Fazendo justiça ao que de melhor se espera do gênero ficção científica, com uma trama bem conduzida, críticas sociais e existenciais, tudo isso envolto em um enredo que flui com facilidade.

    Espero que os idealizadores deem continuidade ao trabalho, pois, apesar de ser uma história com arco fechado, deixa também aberta a possibilidade para mais narrativas.

    No trailer abaixo, uma leve demonstração de sua arte e algumas das frases marcantes presentes nessa obra.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Resenha | Retalhos (2)

    Resenha | Retalhos (2)

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    Quando pegamos uma obra em nossas mãos, estamos praticamente fazendo um pacto com o autor de nos relacionarmos com aquela como um todo. Usufruir de uma obra demanda todo um trabalho valorativo, o qual chega a cada pessoa de uma maneira diferente. Quando estamos com uma auto biografia em mãos, a coisa muda de figura, pois sabemos que desde o começo não estamos usufruindo de uma mera obra, mas da vida de outra pessoa – ou pelo menos um pedaço dela.

    Retalhos (Blankets, no original) é uma graphic novel auto biográfica de Craig Thompson e conta a história de sua infância e o começo de sua vida adulta. Iniciando-se quando pequeno, Craig retrata sua infância dentro de uma família religiosa no interior do Wisconsin, Estados Unidos. Craig se aprofundou nos estudos da bíblia pra poder fugir de um mundo em que se sentia deslocado. Ao mesmo tempo que foi crescendo, distanciou-se do seu irmão, com o qual dividiu a mesma cama por anos de sua juventude. Já na adolescência, Craig conhece e se apaixona por Raina, uma garota de personalidade forte. Adentra assim em um relacionamento que vai mudar a forma como enxerga a vida, Deus, a si mesmo e o amor.

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    Craig Thompson possui uma habilidade notável de contar histórias. Não apenas possui uma arte suave e incrível que consegue expressar bem os sentimentos retratados em cada cena – brincando com estéticas de luz e sombra ou até mesmo quebrando o formato dos quadros das páginas – , mas também possui um roteiro que beira a poesia. A junção dos dois componentes em Retalhos é poderosa e demonstra um trabalho delicado, meticuloso e verdadeiro.

    O intimismo da obra não se esconde. A HQ pesa como um desabafo do autor, de toda uma vida e histórias que nunca teve coragem de contar, a não ser naquele momento. É sincero e, portanto, profundo, mas sem cair em um sentimentalismo piegas.

    Retalhos é uma história de amadurecimento, dos perigos dos extremos e da obsessão – desde a sua busca incessante por Deus ou por um amor idealizado em uma pessoa – e da importância das experiências em nossas vidas. Qualquer detalhe a mais é expor injustamente uma obra que merece ser lida e recebida com toda sua intensidade.

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    Texto de autoria de Pedro Lobato.

    Ouça nosso podcast sobre Retalhos.

  • Resenha | O Lixo da História

    Resenha | O Lixo da História

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    A história dos quadrinhos nacionais esbarra na própria história do cartunista brasileiro Angeli. Considerado um dos mais influentes quadrinistas do Brasil, Angeli criou inúmeros personagens que já fazem parte da nossa cultura como Bob Cuspe, Rê Bordosa, Mara Tara, Os Skrotinhos, Wood & Stock, e tantos outros que colocaram o artista como referência no quadrinho nacional, ao lado de nomes como Laerte e o saudoso Glauco.

    Angeli foi o fundador da revista Chiclete com Banana, criada na década de 1980 e um marco para o mercado editorial de quadrinhos nacionais, tendo em vista a liberdade dos artistas para abordarem o que bem entendessem, mas acima de tudo a análise comportamental do ser humano sob uma ótica visceral da época. Nas páginas da Chiclete com Banana diversos personagens foram criados, boa parte dos já citados, além de tantos outros.

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    Contudo, as charges políticas que produziu para a Folha de São Paulo são consideradas por muitos o trabalho mais contundente de Angeli. Há décadas o artista publica seu trabalho na página dois da Folha, e desde então não poupa ninguém e nunca escolheu um lado fácil para tecer suas críticas políticas.

    Desde 2001, Angeli vem dedicando seu humor ácido em face da política internacional norte-americana e os conflitos no Oriente Médio após o 11 de setembro. A política de guerra ao terrorismo de George W. Bush não é poupada, sempre retratando os anos 2000 como um período sujo, marcados pela presença constante de sangue e de um tratamento à vida humana como meros peões em um grande jogo de xadrez.

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    O traço de Angeli retrata muito bem esses anos, sujo e visceral, mas ao mesmo tempo com um acabamento que denota a diversidade de estilos do autor. Sua arte na maioria das vezes não precisa de texto, fala por si só. A mensagem é clara. Nada é poupado, seja governos, crenças, ideias, Angeli atira para todos os lados, e absurdamente, quase sempre acerta.

    Todas essas charges são reunidas no álbum O Lixo da História, publicado pela Quadrinhos na Cia. em uma coletânea que faz jus ao conteúdo interno. A edição conta ainda com uma linha do tempo para entender melhor o contexto histórico relacionado com as charges publicadas.

    Angeli se mantém implacável: não nos deixa esquecer que os anos 2000 passaram muito longe de ser um período de paz em nossa história e relembra como vidas humanas são subvalorizadas em prol de interesses financeiros ou de poder.

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  • Resenha | Segredo de Família

    Resenha | Segredo de Família

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    Segredo de Família, de Eric Heuvel, holandês e um dos grandes cartunistas e ilustradores da atualidade, chega ao Brasil pelas mãos da Quadrinhos na Cia. Heuvel tem formação em história e suas obras são conhecidas pela caráter educativo e o contexto histórico onde costuma retratar um pedaço da história da humanidade, e essa graphic novel trata exatamente disso.

    Na trama, conhecemos Jeroen, um jovem que vai até a casa de sua avó procurando objetos que possam ser vendidos no Mercado de Pulgas do Dia da Rainha, um evento especial na Holanda em que a população sai às ruas para aproveitar a música ao vivo, comes e bebes, além do próprio comércio de mercadorias usadas que são vendidas no mencionado Comércio de Pulgas.

    No meio das coisas de sua avó, Jeroen descobre um antigo uniforme policial holandês, uma estrela judia de tecidos, antigas fotografias e um álbum de recortes. Essa descoberta desperta uma série de lembranças e leva a avó de Jeroen a narrar a história de sua juventude em Amsterdam durante a ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial.

    O roteiro de Heuvel traça um paralelo com a história de Anne Frank, adolescente alemã de origem judaica, que morreu aos quinze anos no campo de concentração de Auschwitz, vítima do holocausto. Apesar de alemã, Anne se mudou para Amsterdam em 1933, fugindo da ascensão nazista que crescia cada dia mais. Em Segredo de Família, a avó de Jeroen tem como sua melhor amiga Esther, uma judia alemã que também se muda para Amsterdam fugindo da Alemanha antes do início da grande guerra.

    Os pontos fortes da graphic novel são os relatos de acontecimentos históricos e os papéis que cada personagem desempenha nessa grande catástrofe mundial. Heuvel procura se abster de julgar as atitudes de cada um deles, evitando julgamentos morais. O traço cartunesco do autor é muito similar ao do belga Hergé (Tintim), o que não deve ser mera coincidência.

    Um grande trabalho que tem como tema central o holocausto; no entanto, deixa muito a desejar se comparado a obras como Maus.

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  • Resenha | Três Sombras

    Resenha | Três Sombras

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    Confesso que enveredei relativamente tarde no mundo dos quadrinhos, e talvez seja este justamente o fator que me faça apreciar mais os trabalhos alternativos, em detrimento da convencional história de super-herói.

    O ponto é que a cada obra alternativa que me deparo mais cresce a minha admiração por este seguimento.  Com Três Sombras, não foi diferente.

    A premissa é singela. Joachim vive com seus pais (Louis e Lise) em um local recluso, seguem uma vida de campo modesta, simples e feliz. Tudo corria perfeitamente até que um dia os nossos personagens notam três sombras, paradas no horizonte.  Eis que a trama se inicia.

    A simbologia e a representação metafórica destas sombras ante a vida da família é imensa, e Cyril Pedrosa discorre muito bem ao longo da HQ manifestando os mais primários e complexos sentimentos que tais sombras causam em cada um deles (e também em cada um de nós).

    Entre eles estão a mudança, a inconstância da vida e de tudo ao nosso redor. O pai de Joachim reage em um primeiro momento da maneira mais previsível e ineficaz possível, ou seja, cede à negação de tais entidades ou do que elas podem representar.  Não consegue aceitar a mudança e toda a corrente de eventos trazidos com ela.

    Joachim, ironicamente acaba tendo (a seu tempo) a visão mais madura de toda a situação, talvez justamente por não estar tão carregado dos temores dos adultos, nem da carga que os anos da vida trazem, seja ela boa ou não.

    Tudo isso é representado com maestria no traço de Pedrosa. Vale dizer que a HQ tem pouquíssimo texto, sendo talvez a sua arte o que mais lhe dá força e simbologia.

    O traço é fluído, contínuo, alongado, natural e terno. Casando perfeitamente com a temática central da obra: não se para o tempo, não se consegue fugir do seu destino, e o preço ao se tentar tal empreitada, pode ser caro demais. O desenho percorre as páginas como um rio fluindo através do tempo. O leitor, apenas mais um apreciando esta vista transitória, mas não por isso menos especial, ao contrário, exatamente por isso  extremamente especial.

    Há muito mais de significado nesta obra do que eu discorri aqui, valores e temores que afligem muitos de nós, mas creio que parte do prazer em lê-la seja justamente cada um assimila-la de maneira particular. Trazer para si o significado que Cyril Pedrosa transmitiu com o seu trabalho.

    O filósofo pré-socrático Heráclito (para quem a natureza está sempre em constante fluxo/mudança) com certeza apreciaria esta obra.

    Para finalizar, atente para o poema no final, simplesmente tocante dentro do contexto.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

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  • Resenha | Asterios Polyp

    Resenha | Asterios Polyp

    Asterios Polyp - Mazzucchelli

    Em seu quinquagésimo aniversário um homem está em seu bagunçado apartamento, assistindo vídeos, quando seu prédio é atingido por um raio e assim se inicia  um incêndio e no pouco tempo que ele tem para sair de casa, ele pega apenas poucos itens. Assim começa Asterios Polyp, uma história que vai contar a trajetória deste homem pela sua vida, com sua ascensão, queda e redenção.

    É difícil eu conseguir me deparar com algo e dizer que aquilo é genial, mas Astérios é genial. Esta Graphic Novel criada inteiramente, roteiro e arte, por David Mazzucchelli não pode receber outro adjetivo senão genial. Tudo que está presente foi pensado, cada forma, traço ou palavra. De início  pode até gerar estranheza a forma como é  o traço dos personagens, quase cartunescos, mas depois você vai entendendo o motivo dele ser assim.

    Como dito, a história conta a vida de um homem comum, Asterios Polyp, porém é narrada pelo irmão gêmeo, que não conseguiu nascer, Ignazio. A narrativa não é linear, ela é traçada entre o presente e o passado. É partindo daí que vem a construção do personagem, Asterios é um arquiteto renomado, com desenhos incríveis, mas nenhum construído. Com uma visão forte do mundo, formado por linhas retas e dualidade.  E tudo isto é mostrado não somente na narrativa, quanto na arte, em determinados quadros Mazzucchelli “desconstrói” o personagem à um desenho de formas geométricas retas. Pode parecer chato você acompanhar a vida de uma pessoa comum, mas não é, é divertido e fascinante.

    E a narrativa é sensacional, não é complicada como algumas outras histórias em quadrinhos autorais, mas sai do comum, são usadas formas diversas de expressar o que o autor quer e você consegue entender perfeitamente o que ele quis com aquilo. A obra tem referências à diversos mitos, Odisseia, Orfeu, Eurídice e muitas outras são exemplos disso. Tudo isso torna a obra mais completa, embora não seja necessário conhecer essas referências para entender a história, eles servem apenas para complementá-la.

    Em termos de arte, como já dito anteriormente, é de se estranhar no início, mas depois que você se acostuma dá pra perceber que cada linha foi pensada, do traço as cores. Não há mais de 2 ou 3 cores por página, raras exceções, e mesmo assim não fica em excesso uma cor, fica no tom perfeito.

    Por fim, Asterios Polyp demorou 10 anos para ser feito e você vê que esse tempo foi bem empregado em cada página. Uma história simples e empolgante, uma narrativa diferente e uma arte pensada nos mínimos detalhes, isso faz com que este quadrinho seja altamente recomendável para qualquer pessoa ler e se divertir, seja fã de quadrinhos ou não.

    Texto de autoria de André Kirano.