Tag: Quadrinhos Nacionais

  • Resenha | Marighella #Livre

    Resenha | Marighella #Livre

    Marighella #Livre, publicado pela editora Draco, narra três momentos importantes da vida de Carlos Marighella: quando tinha 24 anos e foi torturado na véspera do que seria o Estado Novo em 1936; nos Anos de Chumbo da ditadura civil militar iniciada em 1964 quando levou um tiro no peito e enfrentou 14 policiais; pós AI-5, quando foi executado em 1969. A história é assinada por  Rogério Faria, tendo como ilustradores Ricardo Sousa nas duas primeiras histórias, e Jefferson Costa na última.

    Na primeira, Sousa emprega um traço mais solto, cartunizado, com desenhos que, caso não fossem sobre uma história de luta e violência, pareceriam inocentes e ingênuos. Esse contraste funciona bem, ainda mais quando se mostram detalhes de tortura e violência explícita que, nesta primeira história, é apenas um prenúncios dos tempos complicados que viriam décadas depois.

    Na segunda história, as autoridades perseguem Marighella quando ele está apenas vivendo como um civil tranquilo, assistindo um filme no cinema. Para além de efeitos dramáticos, Sousa denuncia que há poucas diferenças reais entre os tristes métodos das duas ditaduras, seja a varguista ou a militar.

    Na história desenhada pelo autor de Jeremias: Pele, há um clima semelhante às revistas policiais da Vertigo, com elementos de thriller, violência estilizada e, mesmo assim, não se perde o contato com o real. Por mais que seja a mais curta (e sangrenta) das três, é a mais carregada de conteúdo. As entrelinhas dão conta de um sujeito que queria pouco, que queria ver o povo livre, que via no sonho comunista um modo de todos os trabalhadores serem tratados como iguais. Marighella era um homem simples, que nessas breves histórias sequer tinha chance de discursar. Sua voz é resumida nos momentos onde lhe faltava fôlego, mas nas suas ações sobrava verve e vontade de lutar. Uma vida poética e inspiradora, que mira a revolução como única alternativa a classe trabalhadora.

  • Resenha | Capa Preta

    Resenha | Capa Preta

    Lourenço Mutarelli é um autor brasileiro cuja obra é bastante peculiar. A editora Comix Zone aproveitou da proximidade de um de seus editores com ele para publicar compilados de algumas de suas histórias clássicas. Foi assim com o fanzine Over-12, recentemente trazido de volta junto com  Mundo Pet.

    Capa Preta possui quatro histórias, publicadas originalmente em anos diferentes e que tem em comum a temática da violência e escatologia. As histórias são Transubstanciação (1991), Desgraçados (1993), Eu te amo, Lucimar (1994) e A confluência da Forquilha (1997). Na primeira é mostrado que nesse mundo de Mutarelli, as pessoas são degeneradas, podres e taradas em sua maioria. A trama aborda um poeta vagabundo, que comete infidelidades e tem sonhos bastante estranhos, envolvendo gente e divindades deformadas. Esses pesadelos ocorrem depois dele tentar ocupar sua mente com qualquer coisa: ouve rádio ou vê TV com volume de ambos altos. A atmosfera aqui lembra um pouco o trabalho do quadrinista Robert Crumb, embora mais sujo e cínico, deprimente em seus personagens como os do poeta e contista Charles Bukowski, ou seja, esse cenário fálico, violento e infernal, possui influência de autores malditos, cuja visão de mundo é mirada em desesperança, basicamente.

    As pessoas mostradas nas histórias são feias, cheias de imperfeições e imoralidades, e o uso do preto e branco valoriza essas condições. Outro aspecto curioso é que Mutarelli parece gostar demais de música portenha, as canções em espanhol permeiam mais de uma história, e servem de pano de fundo para a narrativa. Apesar da brevidade das histórias, há um monte de referências visuais em cada uma. A leitura para ser apreciada precisa ser feita com atenção, afinal, seu traço característico envolve um número de detalhes imenso em cada página dupla que  trabalha.

    As pessoas das quatro histórias são destruídas moral e sentimentalmente, viciadas e insensíveis mesmo quando são as “mocinhas”. Há poucos momentos de alegria e muitos de agonia. Elas são personagens, de fato, desprovidas da graça. Em mais de uma história há também a questão de profanação de elementos bíblicos, embora a maioria das vezes, só se referencie momentos contraditórios que o escrito cristão normalmente tem, como as brigas fraternais de Caim e Abel ou Esaú e Jacó. As cenas de sexo são grotescas, e caso o leitor seja muito sensível, é preciso apreciar com cuidado e parcimônia.

    A mais anárquica e pesada entre as desventuras reunidas é A Confluência da Forquilha, que mistura sentimentos familiares com fetiches estranhos em praticamente todos os personagens. Toca o “Divino Mau” de fato e mostra um apego dos homens estranhos ao comum e ordinário como forma de rechaçar o que o sujeito conservador acha ser errado. A curadoria que a Comix Zone fez ao escolher essas quatro edições para formar sua publicação é bem pensada, e apesar de não haver entre elas amarras cronológicas ou narrativas, há o mesmo espírito permeando todas, sem que se perca a identidade e originalidade de cada uma.

  • Resenha | Máquinas Não Choram

    Resenha | Máquinas Não Choram

    Em tempos de smart houses, smartphones, alexas e dispositivos tecnológicos dos mais diversos, nossas vidas estão cada vez mais automatizadas, constantemente assessoradas pela tecnologia. Se por algum motivo tais recursos se esgotassem, teríamos enorme dificuldade para nos readaptarmos à vida analógica, não é verdade?

    Pois então, em Máquinas Não Choram somos apresentados a um futuro próximo nos quais robôs são produtos massificados e já integrados de forma profunda na sociedade, acompanhando seus donos e os auxiliando em tarefas diárias. Após supostos problemas com o ifeel,  upgrade que possibilitou aos robôs desenvolver sentimentos, as fábricas anunciaram downgrade obrigatório, desabilitando a capacidade de sentir dos mesmos.

    Por sorte, Boy e Girl, dois robôs que desenvolveram forte laço de amizade ao longo do tempo, estavam sem conexão à hypernet no momento em que o downgrade foi realizado, e agora se tornaram párias a serem caçados e temidos pelas autoridades. O acontecimento modifica para sempre as relações entre os dois e seus respectivos donos, e os leva a uma jornada de sobrevivência e de reafirmação de valores como amizade e lealdade.

    Concebido por André Turtelli Poles e Renato Quirino, Máquinas Não Choram vai de referências como Wall-E e Blade Runner para desenvolver uma história leve e descompromissada que discute sobre vidas artificiais, construções sentimentais e até mesmo sobre liberdade. Com traço cartunesco e prosa ágil, a HQ alterna focos dramáticos a todo instante e dinamiza seu desenvolvimento ao entrecortar flashbacks e digressões com sutileza.

    Expressiva, a narrativa visual remonta ao traço cartunesco para transmitir leveza e descontração para um roteiro que, em uma segunda olhada, se mostra mais sério do que se poderia esperar. Com uma conclusão anticlimática e um uso criativo para a “trilha sonora” da história, mesclando-a com as onomatopeias e lançando-as de forma mais solta através dos requadros, Poles e Quirino discutem livre arbítrio e autoritarismo sem maiores cerimônias, fazendo dessa pequena fábula não convencional um conto ligeiramente maior do que se supunha inicialmente.

    Finais abertos carregam consigo o ônus e o bônus da controvérsia: muitos gostam, muitos desgostam, e ao se optar por algo nesse sentido, o risco se torna calculado da parte da equipe criativa. Assim, o final pode soar abrupto demais, caso se espere por um fechamento padrão para a narrativa. Essa sensação de conclusão aqui não aparece, o que deixa em aberto possibilidade de continuidade, mas também não possibilita opções imediatamente críveis para qualquer que seja o desenlace da história de Boy e Girl enquanto fugitivos da lei e sentimentais clandestinos.

    Publicado via catarse, o quadrinho possui lombada quadrada, capa cartonada e cinquenta e seis páginas em papel pólen.

  • Resenha | Por Muito Tempo Tentei me Convencer de Que Te Amava

    Resenha | Por Muito Tempo Tentei me Convencer de Que Te Amava

    Em 2015, o então prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, determinou que a Avenida Paulista deveria ser fechada para veículos motorizados e liberada para pedestres e ciclistas, durante os domingos e feriados nacionais, entre as 10h e as 18h.

    Tal medida teve como objetivo trazer a população para esses espaços, propiciando um ambiente de lazer tranquilo e seguro para as famílias que por lá poderiam passar. A medida foi bem sucedida e continua em vigor ainda nos dias atuais.

    Sob esse pano de fundo, Thiago Souto concebeu Por Muito Tempo Tentei me Convencer de Que Te Amava, história que narra o passeio dominical de um paulistano (ele mesmo, no caso) pela Avenida Paulista.

    Com uma narrativa sinestésica e polifônica, Souto leva o leitor a acompanhar sua sensação diante do que a cidade pode oferecer. Em fluxo de pensamento ele divaga e apresenta fragmentos da realidade entrecortados entre si, criando assim uma colcha de retalhos que evoca a experiência pessoal em detrimento do relato fidedigno.

    Desse modo, a narrativa se dispõe a construir toda uma ambientação que ressoa aos detalhes mais ordinários que englobam o contato humano, ao mesmo tempo em que personaliza a cidade de São Paulo, tratando-a quase como alguém com vida e vontade próprias.

    Nesse intuito, Souto abre mão de elementos basilares da narrativa gráfica, deixa de lado requadros e sarjetas, fazendo com que a página como um todo funcione tanto enquanto unidade de sentido quanto a partir de toda uma multiplicidade de cenas que se acumulam e se atropelam na explosão multissensorial pela qual o autor passa ao se pegar desbravando São Paulo por um ângulo que até então não havia imaginado.

    A diversidade é a todo tempo evocada através dos pedaços de vida que o olhar de Thiago capta em seu entorno, conjugando visualidades e pontos de convergência através de uma narrativa visual caótica e que se estabelece em dupla camada, através do preto, do branco e do magenta, que dão volumetria para as cenas ao mesmo tempo em que possibilitam a simultaneidade dos eventos que se entrepõem aos planos narrativos.

    A dissonância resultante do traço dinâmico e camaleônico de Souto torna um passeio de domingo em uma experiência transcendental, que discute a relação de amor do autor com a capital paulista, sua cidade natal, mas que traz consigo particularidades tão grandes e vastas que ele mesmo por vezes precisa parar e contemplar aquele todo múltiplo e diverso que compõe a cidade.

    Publicado pela Balão Editorial, Por Muito Tempo Tentei me Convencer de Que Te Amava possui quarenta e oito páginas em papel pólen e capa cartonada com orelhas. Breve, mas impactante, a história entrega uma carta de amor a São Paulo e desnuda o imenso potencial de Souto enquanto quadrinista, com seu roteiro fragmentário e arte fluida.

  • Resenha | O Entediante Trabalho de Morte Crens

    Resenha | O Entediante Trabalho de Morte Crens

    Engana-se quem enxerga O Entediante Trabalho de Morte Crens por um viés infantil, devido sua forma colorida e cartunesca, bem ao estilo “quadrinho de jornal de domingo”. A temática, porém, revela o contrário, já na primeira tirinha desta websérie criada lá em 2012, por Gustavo Borges. E se você tivesse um acordo, O Acordo, com a existência, e nunca pudesse quebrá-lo? Bom, a morte sabe o que é isso, e sente na pele que a eternidade pode ser bastante… fúnebre, ou divertida, depende do ponto de vista. Mas Morte Crens é inseguro, e ainda precisa aprender a ser feliz. Ser mais leve.

    A sensação aqui, vívida até não poder mais nesses quadrinhos tão simples, e eloquentes, é uma só: o ser-humano está fadado a existir entre a Vida e Morte Crens, e não podemos evitar esse cabo de guerra. Há, porém, beleza e fascinação nesta nossa sentença tão mundana: as maravilhas da mortalidade, não precisamos ser eternos. Morte Crens sabe disso, e cumpre seu papel: tira a vida, na hora exata, no prazo do homem, da mulher, dos animais. Coitado, ele não tem o mesmo luxo que a gente: será para sempre a morte, no trabalhar incessante dos que nunca podem parar. Não é à toa que sempre está irritado, em contraponto à Vida, a menina animada de cabelos verdes. Mais parecem a neta, e o avô. Ela, só vê novidade, as faíscas! Ele, só vê o desfecho, as cinzas.

    O cartunista Gustavo Borges não renega a carga filosófica desses personagens e suas condições, e insere um humor negro nas suas deliciosas tirinhas para aproveitar, ao máximo, a sua pequena grande criação cuja inspiração parece ter saído de um monólogo de O Auto da Compadecida, e que, curiosamente, faz alusão ao ciclo das coisas, acolhendo o que há de melhor na vida, e no seu fim – que pode ser um alívio ou um transtorno para cada um. De quebra, a coletânea ainda traz uma história especial, e extremamente simbólica sobre o medo de viver. A covardia do homem, assumida apenas quando a morte diz Oi. Ela é o nosso prazo. Eis uma obra para nos lembrar de viver o tempo que temos. E com coragem, de preferência. Muita coragem.

  • Resenha | O Filho Mau

    Resenha | O Filho Mau

    Rui Barbosa certa vez afirmou que “família é a célula mater da sociedade”, e em torno dessa estrutura nossa civilização se construiu e se desenvolveu. Invariavelmente, todos somos afetados, positiva ou negativamente e em maior ou menor medida, por toda a carga histórica e psicológica que nossas famílias nos trazem. Ninguém consegue escapar inteiramente dessa bagagem.

    Histórias de cunho familiar estão por aí desde que o mundo é mundo, e O Filho Mau não foge dessa tradição ao se debruçar sobre o diálogo desenvolvido entre uma neta e sua avó, no presente, acerca de uma tragédia que se abateu sob sua família, num passado já distante, mas que impactou sobremaneira todos dali em diante: o parricídio cometido pelo primogênito da casa, Manuelzinho.

    Alternando temporalidades, a história concebida por Carol Sakura e Walkir Fernandes explora vivências e trabalha com maestria pelos silêncios. choques e falhas de comunicação existentes no seio familiar, trabalhando a dificuldade muitas vezes existente para se expressar determinados sentimentos, anseios e angústias, quando em família.

    Se, em um ambiente pautado pelo diálogo claro e límpido, lidar com o trauma de toda uma família já seria complicado, imagine o tamanho do problema ao se enfrentar barreiras por vezes intransponíveis que separam pessoas unidas pelos laços familiares, mas involuntariamente distantes, seja por dilemas do passado ou mesmo por medo de lidar com o peso do presente.

    Como resgatar uma memória dolorosa sem trazer gatilhos, mágoas ou mesmo desconforto em uma relação na qual se espera amor incondicional? O ideal de família perfeita é não somente questionado em O Filho Mau, mas estilhaçado, dilacerado, no momento em que as rachaduras são expostas e as feridas não podem mais ser ocultas por um véu de perfeição que raramente se comprova de fato. Há amor incondicional em família? Há perdão? Ou o seio familiar não seria simultaneamente um solo fértil para expectativas e decepções, um mar repleto por promessas muitas vezes não cumpridas?

    O Filho Mau apresenta um roteiro claro, direto e muito bem desenvolvido, que trafega entre o realismo psicológico e o impressionismo, criando uma relação intertextual bem elaborada com a natureza cínica dos contos de fada. O texto dialoga perfeitamente com a narrativa visual fluida e expressiva, potencializada pelo traço cartunesco e ágil de Fernandes, encontrando na cor roxa uma ferramenta de diferenciar as cenas do presente e as do passado, sem deixar de conferir profundidade para os personagens, mesmo em um conto tão breve.

    Falando muito através do silêncio, o roteiro de Sakura acerta em cheio ao costurar uma reflexão sobre dinâmica familiar e toda sorte de eventos que afetam o modo como as pessoas se percebem em relação à família, diante do avançar inclemente da vida. As quebras discursivas e as sequências conversacionais chamam a atenção pela naturalidade com que são dispostas, reproduzindo a complexidade existente em qualquer papo em família, evidenciando atritos e incômodos geracionais e perceptivos entre as duas protagonistas. A trama evidencia a fragilidade inerente aos diálogos delicados e inescapáveis travados no seio familiar, aqueles nos quais qualquer passo em falso pode gerar um conflito maior, envenenando as relações de todos como um todo.

    Organicamente o enredo dialoga com a narrativa visual fluida e ágil empreendida pelo traço cartunesco de Fernandes, encontrando na cor roxa uma ferramenta para diferenciar as cenas do presente e as do passado, sem deixar de conferir profundidade para os personagens. O uso de cores chapadas, com parco emprego de sombras e texturas, entrega ao plano narrativo uma dinâmica que remete à sutileza das histórias infantis, em um contraponto interessantíssimo com a temática séria que norteia o enredo.

    Conciso e profundo, O Filho Mau entrega um trabalho que envolve o leitor ao versar sobre um tema universal, sem deixar de operar de forma intimista e melancólica, exibindo um elevado grau de sofisticação e sincronia na construção diegetica. Ter apenas 104 páginas é um ponto negativo, pois a história é tão bem desenvolvida que não conta com qualquer tipo de barriga, deixando no leitor aquele gosto de “quero mais” que todo grande conto deixa.

    A obra de Carol Sakura e Walkir Fernandes foi publicada de modo independente em 2020, em capa cartonada e com orelhas. A graphic novel pode ser considerada, com o perdão do trocadilho, um Quadrinho para todas as famílias!

    Compre: O Filho Mau.

  • Resenha | Ramthar

    Resenha | Ramthar

    Ramthar é um quadrinho brasileiro resgatado pela Editora Mythos. A obra reúne histórias de um mundo em colapso, com o personagem-título sendo fruto desse cenário apocalíptico, vivendo entre a violência extrema e a sobrevivência ameaçada a todo momento. Esse quadrinho resgata uma história desenhada e escrita por Mozart Couto, desenhista que marcou época nos quadrinhos nacionais, e finalizada por Mike Deodato, e outra escrita pelo pai deste último, Deodato Borges o criador do personagem, com arte do filho.

    Couto produz uma história densa e difícil. A arte em preto e branco ajuda a grafar ainda mais a agressividade da narrativa. A primeira parte é fluida, fácil de ler, repleta de elementos narrativos adultos, além de uma originalidade em sua abordagem, apesar de não ser um personagem inédito em motivações e estilo de combate, ao menos não é um genérico ou enlatado norte-americano.

    É engraçado como elementos tão diferentes se cruzam. O cenário faz lembrar o bucólico e paupérrimo presentes em O Exterminador do Futuro e Mad Max 2. No que toca o protagonista, há características singulares, como o fato de se citar em terceira pessoa, e um visual que se assemelharia ao herói dos games God of War, quase como um proto Kratos. Já os personagens periféricos guardam coincidências visuais leves com figurantes vistos em Blade Runner, Waterworld e até o filme Conan: O Bárbaro de 1982.

    A parte que cabe ao Deodato desenhar é diferente em narrativa, a história reúne outras referências visuais e em argumento também. O tom é mais sujo, cínico, uma versão bem diferente em tônica da primeira, o roteiro de Borges é verborrágico, remetendo ao Conan de Roy Thomas. Ler Ramthar faz ter curiosidade por mais momentos como esse, e por outras criações de Deodato Borges, e resulta em um resgate necessário e infelizmente isolado.

  • Resenha | Quadrinhos A2 – 4ª Temporada

    Resenha | Quadrinhos A2 – 4ª Temporada

    Um dia de ócio para uma mente absurdamente criativa, pode produzir coisas fantásticas – e premissas mirabolantes. Em Quadrinhos A2, todo dia parece ser dia de uma grande ideia, mesmo que ela possa ser descartada após uma boa noite de sono. Mas a oficial mental nunca para de trabalhar, e nosso casal Paulo Crumbim e Cristina Eiko são reféns da própria imaginação, e da necessidade artística de criar, e expressar seus mundos interiores. O fardo, esse sim, precisa ser repassado para as outras pessoas, levando-as também a criação. Por que não? Não há nada mais lindo que a inspiração. E o Pino.

    Eis a testemunha do dia-a-dia dos cartunistas, que neste Volume 4 da série autobiográfica, precisam dar cabo de um projeto, o quanto antes! E enquanto Cris arrasa com seus lápis e papéis, Paulo viaja mais longe que a Enterprise, no cúmulo da procrastinação – palavra tão popular na era da internet. Tramas e monstros ganham vida, e logo em seguida nós (e Pino) somos a plateia curiosa para as loucuras de Cris e seu marido, orgulhosamente tagarelas, virem à tona. Nada mais será como era antes, não depois que um limão do espaço cai na Terra, e inteligente, planeja sua vingança à humanidade por 17 anos, após ser descartado em uma feira, na cidade de São Paulo.

    Em meio ao brainstorm da dupla de artistas, o novo se forma e se alimenta pela empolgação do outro – ele sempre mais impulsivo que ela, o que rende boas risadas. Os autores aproveitam uma tarde normal (que era para ser produtiva para ambos, na teoria), e abusam de traços próprios do gênero mangá, em ótimas cenas preto e branco que jamais carecem de um apelo colorido para nos divertir, encantar ou emocionar. Do ócio veio a catarse, mas não é legal ir dormir sem bolar o final da história. O fardo precisa ser repassado, na dor e na delícia de ser quem é.

    Compre: Quadrinhos A2 – 4ª Temporada.

  • Resenha | Over-12

    Resenha | Over-12

    Lourenço Mutarelli é um artista multifacetado. Roteirista de cinema, ator em inúmeras produções, com raízes nas historias em quadrinhos. Em 1988, lançou Over-12, uma manifestação em uma forma muito popular na sua época e bem menos em voga do que atualmente: os fanzines. A obra apresenta breves historias cheia de experimentalismos, antecipando narrativas como Diomedes, Mundo Pet e Capa Preta.

    A obra há muito tempo estava perdida e graças a editora Comix Zone o quadrinho foi republicado em fac-símile na nova edição de Mundo Pet. O material gráfico reproduzindo o zine ajuda a maximizar as condições das esquetes em preto e branco, valorizam o lápis e nanquim do artista que, na época, assinava como Luiz Fernando Mutarelli.

    As historias são curtas e em preto e branco, fato comum nas obras e publicações do autor. Aqui o quadrinista se coloca como personagem em primeira pessoa em algumas histórias e chega ao cúmulo de publicar o seu endereço da época, situação praticamente impossível de realizar nos dias atuais, mostrando o quanto os anos 80 eram loucos em essência e o quanto o autor não tinha receio de qualquer projeção.

    Até por seu caráter episódico, focado em breves narrativas, Over-12 não possui um grande arco. São ideias chapadas e lisérgicas de um artista que experimentava sem receio de expor seus pensamentos, mesmo que fossem carregados de escatologias ou de sentimentos misantrópicos que, obviamente, não se encaixam em qualquer metodologia politicamente correta ou algo que o valha. Considerando que suas obras são bastante anárquicas, é natural que esse inicio seja tão violento e selvagem.

     

  • Resenha | O Martírio de Joana Dark Side

    Resenha | O Martírio de Joana Dark Side

    Consagrada como heroína na França por seus feitos durante a Guerra dos Cem Anos, Joana d’Arc foi capturada, julgada e condenada à morte na fogueira, o que ocorreu em 1431.

    Amplamente conhecida, a trajetória de vida da jovem que ousou romper com os padrões da época já rendeu centenas de adaptações para os mais diferentes meios narrativos. Assim, contar qualquer aspecto de uma história tão famosa após tantos projetos bem sucedidos no passado torna-se um grande desafio.

    Que bom que quem se encarregou da inglória tarefa dessa vez foi o quadrinista brasileiro Wagner Willian.

    Em O Martírio de Joana Dark Side, o versátil artista se propõe a contar sobre o processo inquisitório pelo qual passou Joana, subjugada e humilhada pelo clero, até culminar com sua terrível execução na fogueira.

    Inspirado pelas diversas adaptações cinematográficas da história de Joana, como os filmes de Victor Fleming (1948), Robert Bresson (1965) e principalmente a versão de Carl Dreyer (1928), Wagner Willian opta por destrinchar o julgamento de Joana em toda sua carga dramática, apostando em planos fechados que ressaltam a agoniante condição da mártir diante de algozes que a todo momento debocham e vociferam contra suas convicções.

    Desenvolvida em preto e branco, a arte de Willian explora o suplício psicológico da personagem, e mesmo que se baseie em A Paixão de Joana d’Arc e em uma entrevista da protagonista do filme, Jeanne Falconetti, a abordagem escolhida pelo quadrinista remonta em grande medida os melhores momentos da cinematografia de Ingmar Bergman, ao contrapor a fé de Joana com sua angústia diante da iminência da morte.

    O realismo colocado em prática durante o julgamento é por vezes deixado de lado na progressão do roteiro, abrindo espaço para sequências que mesclam real e imaginário, num processo que reflete a mistura entre os anseios de Joana com a aceitação de seu fatídico e cruel destino.

    Incorrendo numa abordagem que remonta à metaficção historiográfica, Willian investe em um final poético para a história, que subverte o real encerramento da vida de Joana, numa tentativa de sublimar e redimir a injustiçada mulher, que desafiou as convenções e os preconceitos da época em nome de uma missão que considerava tão importante ao ponto de valer a sua vida.

    Com um roteiro conciso, O Martírio de Joana Dark Side apresenta uma história trágica e dura, cujo ritmo poderia se dar de forma mais ágil caso não se prendesse tanto nas referências que norteiam a concepção da trama como um todo, para assim poder explorar a inventiva e dinâmica narrativa visual que marca os trabalhos do autor de Bulldogma, O Maestro, o Cuco e a Lenda e Silvestre, esta última ganhadora do Prêmio Jabuti de 2020.

    Publicada de forma independente pelo próprio Willian, através de sua Editora Texugo, O Martírio de Joana Dark Side conta com 76 páginas, capa cartonada e papel Pólen Soft de 80g, como parte da Coleção Cine Qua Non Vol I.

    O potencial dramático do traço do quadrinista foi colocado à prova nesse Quadrinho, que conta com prefácio de Gabriela Franco (criadora do Minas Nerds), e resultou em uma grande homenagem ao ícone feminista que Joana d’Arc representa.

    Compre: O Martírio de Joana Dark Side.

  • Resenha | Quadrinhos A2 – 3ª Temporada

    Resenha | Quadrinhos A2 – 3ª Temporada

    A autobiografia do casal Paulo Crumbim e Cristina Eiko nunca foi tão forte. Sempre amigos íntimos deles, já que essa sempre foi a nossa sensação em Quadrinhos A2 (leia nossas resenhas sobre a primeira e a segunda temporada), nem todo dia é um dia especial na vida das pessoas, com segundas-feiras e tardes monótonas de sábado compondo o cotidiano. Nesta terceira temporada da série, o normal não lhes é destruidor, e muito pelo contrário: há algo de delicioso no banal, no silêncio, na volta pra casa nas avenidas caóticas de São Paulo. Ok, não há nada de “delicioso” nisso, mas graças aos traços e a narrativa (essa, sim) inebriante dos autores, tudo parece ficar bem melhor através do filtro da arte, do bom-humor e da sagacidade dessa dupla de artistas apaixonados.

    Porque a realidade é chata, e insuficiente. Assim, o fluxo de consciência ganha vida nas imagens em preto e branco, entre memórias e desejos pulsantes de um dia assíduo de trabalho para Paulo e Cris. Somam-se a isso antigos traumas, sonhos delirantes de uma tarde de verão de quem está sucumbindo ao stress de São Paulo, e, é lógico, a almejada irresponsabilidade de não precisar limpar o apartamento – quem dera! Além da louça suja na pia e os arquivos espalhados na tela do computador, Paulo e Cris são dois artistas cujo trabalho faz parte de seus dias e noites, de muito esforço criativo, e com uma imaginação tão viva, é uma aventura para qualquer leitor acompanhá-los bem de perto neste convite à sátira, explorando com um êxito já demonstrado, nos outros volumes, o dinamismo da linguagem dos quadrinhos.

    Traz à tona, portanto, o domínio dos autores em narrar uma boa história junto de seu cachorrinho, Pingo, e seus devaneios bastante aleatórios, mas falta aqui um propósito verdadeiro para este terceiro volume, um tanto dispensável para com a série inteira. Talvez o lado pessoal da publicação seja tão forte, que não sobrou espaço para avançar, acrescentar (ou refletir sobre) alguma relevância episódica na história crescente dos autores. Mesmo assim, as ideias visuais e o carisma da dupla garantem uma paixão nossa pela leitura que nos fazem torcer para não terminar – senão para retornar à experiência, várias vezes. Quadrinhos A2 continua sendo uma das melhores pedidas para uma leitura no ônibus, ou de pé no metrô, rindo no meio da multidão enfadonha.

    Compre: Quadrinhos A2 – 3ª Temporada.

  • Resenha | Rango 1

    Resenha | Rango 1

    De Edgar Vasques, Rango 1 compila algumas historias do personagem titulo publicadas no jornal Folha da Manhã e diversas outras revistas como Pasquim. Este volume 1, lançado em um tempo longínquo pela L&PM editores possui prefácio de Érico Veríssimo, que adjetiva muito bem as historias do personagem, descrevendo-o como um anti-herói que vive em condições paupérrimas e que se nutre de humor ácido já que comida é algo que falta bastante tanto para si, como para seu filho.

    Cada página possui duas tirinhas. O espírito presente mira a vida de um sujeito sem esperanças, bastante pragmático e muito pobre. Ele tem a companhia do seu já citado filho, além de eventualmente falar com o estrangeiro Chaco e Baba, um sujeito que está sempre bêbado.

    As conversas envolvem problemas universais como a fome, desemprego e pessoas em situação de rua, com um humor ácido e bastante político. A maioria delas é bem espirituosa, toca em feridas, critica principalmente as pessoas mais abastadas e o modo com a burguesia lida com as pessoas em situação de rua e/ou mendicância.

    Rango hoje pode ser considerado como uma obra que trata de questões óbvias, mas em sua época, 1974, não era. Sobram criticas ao capitalismo, concentração de renda, busca por lucro acima de tudo, industrialização e mostra como armas dos pobres a esperança das crianças, o cinismo dos pais e até a bebedeira para ludibriar a fome.

    Em algumas tiras não há como ficar incólume, há uma de cortar o coração, em que o menino diz que raspou o prato, quando está sentado em cima de uma lixeira vazia. Embora a publicação não seja exatamente engraçada, afinal trata de situações bem pesadas, Rango tem muito peso, e aborda uma época do Brasil que se imaginava superada ao menos em grandes cidades, e se torna ainda mais grave por retratar uma realidade que em confins do país ainda se alastra e que também voltou a ser flagrante em metrópoles como Rio de Janeiro, São Paulo e outras grande cidades, piorada a situação ainda mais em épocas de pandemia.

  • Resenha | Sob o Solo

    Resenha | Sob o Solo

    Após duas parcerias bem sucedidas entre Bianca Pinheiro (Bear, Mônica: Força) e Greg Stella em Meu Pai é um Homem da Montanha (2015) e Eles Estão por Aí (2018), a nova HQ do casal, Sob o Solo, lançada pela Pipoca & Nanquim, tem um formato diferenciado, emulando tirinhas, normalmente com quadros pares em cada página, abordando a pesada temática da guerra, mostrando os diálogos de dois soldados refugiados em um bunker, com receio de que o inimigo que bombardeia a superfície descubra o esconderijo subterrâneo.

    A história, bem como os desenhos, são simples. Os autores utilizam o minimalismo de bonecos de palitos para mostrar uma série de diálogos complexos, entre um alistado com receio de morrer, a um que está claramente ferido de maneira mortal. As páginas exploram o receio e paranoia de quem participa intimamente da guerra. Do receio da solidão e do enlouquecimento graças à perseguição do inimigo e da proximidade da morte.

    O foco narrativo se destaca pela sensação de isolamento e na solidão massificada que a historia apresenta, seja nas tentativas fracassadas da dupla em falar com os militares, mas também pela loucura oriunda do confinamento. Os autores trazem um desabafo humanizado, de um homem comum que chega a uma situação limite,  destruído emocional e moralmente por conta dos efeitos da guerra.

    A narrativa surgiu a partir de uma ideia de Greg que Pinheiro começou a dar a luz, em um primeiro storybord que rapidamente se tornou quase a arte finalizada. Dentro da proposta de Sob o Solo é essa simplicidade que funciona. Embora também contenha belas interferências de rabiscos bem elaborados, em momentos de maior tônica emotiva ou fantasiosa.

    Em comum as obras anteriores, há a eficiente parceria do casal que, ao produzir três narrativas diferentes entre si, evidenciam um talento versátil.

  • Resenha | Quadrinhos A2 – 2ª Temporada

    Resenha | Quadrinhos A2 – 2ª Temporada

    É realmente raro, raro demais, saber que vamos nos apaixonar por um livro antes mesmo de abri-lo. Este segundo volume de Quadrinhos A2 é um anzol que nos arrebata só pela capa, pela primeira página, ou pelas boas memórias que o primeiro volume deixou. Agora, os cartunistas Paulo Crumbim e Cristina Eiko continuam a ser ilustrados por eles mesmos, de uma maneira deliciosamente surrealista, em sua rotina bem paulistana de apartamento, estresse, muito trânsito e um fetiche bem típico por tudo o que envolve praia – há de se estudar isso. Mas, se continuamos íntimos dessa dupla (quem não quer ser amigo deles?), agora há um novo marujo nessa nau dos loucos por quadrinhos e praia. Um marujo peludinho.

    Pino veio para ficar, elemento centralizador de (quase) tudo que há de bom em quem daria ótimos pais, para a sorte do Pino. Já que eles não queriam um gatinho (atenção adoradores de gatos, é tudo uma brincadeira, viu?), o doguinho Dachshund foi a escolha ideal para agitar a normalidade do dia a dia, enquanto Paulo, feito criança no natal, anseia pela chegada do seu trabalho, impresso, embrulhado e com cheirinho de novidade – por que nessa hora, as horas passam tão devagar? O que mais impressiona nesta “sátira da vida real” é o naturalismo das situações e diálogos, já que até nos exageros de uma noite mal dormida os quadrinhos expressam uma sensatez que faz o leitor se identificar com o drama, o ridículo, a comédia. É tudo verdade.

    O segundo volume poderia se dar ao luxo de mostrar mais aventuras de Pino com seus donos, mas ao invés disso, prefere seguir a mesma linha narrativa de antes (o que torna a série coerente), apostando tudo numa viagem de Paulo e Cristina ao 7º Festival Internacional de Quadrinhos, em Minas Gerais (FIQ). É claro que lá eles irão sentir saudades do filhote, mas mesmo assim não deixam de sentir o medo de distribuir autógrafos numa mesa bastante concorrida. Eis aqui mais uma alegoria adorável da vida pessoal e profissional de uma imaginação compartilhada, A2, cujo coração também encontra, no peito do outro, um porto seguro para afincar raízes, e brilhar. E que venha a parte três (será que o Pino ainda é filhote?).

    Compre: Quadrinhos A2 – 2ª Temporada.

  • Resenha | Quadrinhos A2 – 1ª Temporada

    Resenha | Quadrinhos A2 – 1ª Temporada

    Quem nunca passou por um perrengue a dois, numa viagem? Aos que já, vão se identificar na hora com os problemas de um casal tentando chegar a ‘Comicon’ de um Rio de Janeiro cheio de praias, restaurantes e outras atrações tão sedutoras, quanto. Rumo a esse badalado evento de quadrinhos, Paulo e Cristina enfrentam todo tipo de imprevisto enquanto percebem que um é o melhor parceiro do outro para todas as horas – exceto quando Cristina começa a duvidar que alienígenas estão invadindo a Terra, as três da madrugada.

    Alguém anda lendo e escrevendo muito gibi… e aos que nunca tiveram uma viagem conturbada, vão experimentar com perfeição e um humor delicioso o que acontece quando um quer correr e nadar na praia, e a outra quer ir para uma convenção de gibis. Nem sempre os desejos são iguais, e ai o mais ensolarado domingo pode virar uma segunda-feira chuvosa (fato é que o stress do paulista nunca o abandona). Quadrinhos A2 é uma celebração biográfica de uma aventura cheia de altos e baixos, cuja única pretensão é nos fazer sentir amigos íntimos e de longa data desse casal.

    Indo além, os quadrinhos de Paulo Crumbim e Cristina Eiko combinam com gosto ficção e realidade, dando aquele toque surreal que só a nona-arte consegue inserir no cotidiano das pessoas, ao transformar uma simples ida na praia do Botafogo numa jornada maluca na areia para encontrar a pessoa perdida, por exemplo. Desta forma, a Comicon torna-se um mito quase inalcançável em meio as peripécias de um casal tão discreto quanto divertido, e que só queria aproveitar a capital carioca com o máximo de descobertas possíveis, e um tiquinho de romance – destruído, é claro, pelo taxista malandro e as baratas no restaurante.

    Quadrinhos A2 prova como qualquer passeio, com a pessoa certa, vale a pena e torna-se memorável a ponto de merecer um adorável gibi, apenas sobre isso. Ilustrado em preto-e-branco e com diálogos hilários, temos uma epopeia tropical de dois nerds que abandonaram São Paulo para explorar a cidade maravilhosa por seis dias, aceitando o chamado do destino e a certeza que não seria uma viagem perfeita, e por isso mesmo, digna de vivê-la. E alguém avisa a Cristina que etês barulhentos não vão abduzi-la, enquanto o Paulo ronca do seu lado? Agradecido.

    Compre: Quadrinhos A2 – 1ª Temporada.

  • Resenha | A Mediocrização dos Afetos

    Resenha | A Mediocrização dos Afetos

    O amor tá ultrapassado, e o coração aqui tirou um tempo para conversar sobre isso.  Em meia dúzia de palavras, a quadrinista Chiquinha (Fabiane Langona) expõe os absurdos emocionais muito oriundos ao nossos tempos, já descritos pelo sociólogo Zygmunt Bauman como tempos líquidos, e aqui destrinchados da forma mais sarcástica e enlouquecida possível. Disso, nossa realidade passa pela peneira do absurdo, e assim o coração e sua alma romântica desabafa sobre o seu lugar no século dos aplicativos de pegação, e da liquidez de todos os sentimentos que guardamos para o próximo.

    Nessa Mediocrização dos Afetos, oitava edição da coleção Ugrito, observamos um mundo caótico onde o Amor virou amorzinho, e hoje respira em alguma UTI sem receber muitas visitas. O gosto imprevisível da prosa e das reflexões de Chiquinha remete a uma prazerosa crônica ilustrada, tão rápida quanto uma viagem de metrô da Paulista ao vale do Anhangabaú (fora do horário de pico), e que reflete com força e objetividade as ânsias de quem ainda dá valor ao sentimento mais forte do universo, e que por vezes chega a ser contestado em tempos de guerra, ou de puro cinismo e superficialidade crescente que hoje em dia banham muitas das relações humanas.

    A sagacidade de alguns quadrinhos impressiona os mais desavisados, uma vez que o humor não poupa as mais diversas situações de serem representadas, aqui. Para Chiquinha, fica difícil não expor as inseguranças emocionais de alguém em uma época em que o que há de melhor no amor, é absolutamente banalizado de um jeito explícito, e muitas vezes até vanglorioso. Por que apostar em apenas uma pessoa, que aparentemente confia em nós, se há um cardápio de faces me esperando para a próxima caça? Uma caça infinita e que, a longo prazo, pode esfriar o coração do mais apaixonado e encantador Romeu. Um apelo, então? Não deixemos isso acontecer.

    Compre: A Mediocrização dos Afetos.

  • Resenha | Culpa

    Resenha | Culpa

    Quando cortam nossas asas, quem nos dá o direito de cortar as asas do próximo? Redirecionar nossas frustrações é algo que aprendemos desde muito cedo, e Culpa, décima primeira edição da coleção Ugrito, trata de simbolizar isso entre dois irmãos, e um pai que não sabe reconhecer o talento do filho mais velho. A culpa aqui parece ser transmitida de pai para filho, quase como um fardo. Um sentimento de reprovação muito forte que pode gerar efeitos eternos, e claro, revela seu caráter tóxico quando se é espalhado em uma família no mais banal dos dias.

    Nos traços bastante expressivos e na sensibilidade latente da quadrinista Cristina Eiko (Quadrinhos A2, Penadinho – Vida), observamos que não há nada mais gostoso que observar crianças escolhendo o que serão quando crescer. Entre robôs e dinossauros, possíveis astronautas e artistas, a inspiração não tem fim até ser esmagada pela mão fria do adulto que destrói a vontade do menino ser um paleontólogo, já que “você está muito velho para sonhar”! O que nos deixa tão cruel ao longo dos anos para não permitir o voo dos outros, talvez, a alturas mais altas do que jamais poderíamos alcançar?

    Cada um tem sua resposta, sua trajetória e seus traumas, mas Culpa é de fato sobre os impactos psicológicos que o desencorajamento paternal causa, em qualquer um. Altamente reflexiva, a obra com pouco mais de 15 páginas revela um dos piores lados da infância: o despertar para o primeiro desafio que pode botar tudo a perder para uma criança, e apagar a chama que existe em corações tão puros, e ainda despreparados para lidar com as falhas dos nossos pais. Eles não são perfeitos, mas nossos sonhos talvez sejam. Se vale a pena lutar por eles, encorajar os dos outros é tão valioso quanto.

    Compre: Culpa.

  • Resenha | Lavagem

    Resenha | Lavagem

    Lavagem é um quadrinho do autor paraibano Shiko, publicado pela Editora Mino, que se  tornou depois uma obra multimídia, acompanhado de um curta-metragem de mesmo nome. A história dá conta da vida de uma mulher cujo passado é um mistério e que é pontuado por ilações de seu atual companheiro, Omar, um homem turrão, ignorante, que passa mais tempo cuidando dos porcos do que da casa e das pessoas que nela habitam.

    A arte de Shiko é tão absurdamente gráfica que mesmo que esse sujeito tenha feições humanas e malévolas, ele não se diferencia tanto dos suínos que trata, sendo igualado em alguns pontos a um ser irracional e quadrúpede. A real riqueza da HQ mora na sua protagonista, uma mulher que sai da sua casa isolada no campo somente para ir a igreja, e no caminho comete atos que são julgados como libidinosos, que a fazem se culpar e ser culpada também pelas acusações de seu cônjuge.

    Shiko ficaria famoso pela sua participação na iniciativa das Graphic MSP com a historia do homem das caverna em Piteco: Ingá, e certamente a escolha dos editores por ele se deu pela condição de sujeira e primitivismo que a história de Lavagem pressupõe. Todos os momentos que apresentam relações sexuais – e dada que é  uma revista de tiro curto, há um número de páginas considerável dedicada ao sexo – não há um erotismo fácil e certeiro, ao contrário, é sempre carregado de culpa, quando não literalmente envolto em sujeira ou lama. É curioso como ao se abordar isso, haja também um apelo para que Omar e ela contraiam matrimonio, fugindo assim do pecado libertino da fornicação, e tanto no curta quanto na revista isso é acompanhado de uma pregação do pastor assembleiano Silas Malafaia, embora na revista isso não fique tão claro, mesmo com o texto transcrito literalmente. Talvez houvesse receio que o quadrinho fosse censurado ou processado, pois no curta-metragem ele inclusive aparece em tela. Essa função narrativa da pregação ajuda a inteirar os personagens com a entrada de um novo elemento, o sujeito que mudaria tudo.

    Da parte da arte, os personagens humanos são cheios de hachuras. Isso dá a eles um aspecto que remete visualmente ao primitivo, à fase animal do pensamento. Nesse ponto, não é só Omar, mas a mulher e o visitante da casa também tem aspectos semelhantes quando agem de maneira paranoica. A figura da mulher é muito bem retratada, com um nível de detalhamento de expressões faciais e sentimentos bem fortes. Não é nem preciso que ela fale muito, pois seus gestos e atos falam por si só. As cenas de sexo, mesmo sujas, também parecem naturais, como se os amantes estivessem despejando ali mais do que tesão e pulsão, mas também tensão, quase como um descarrego.

    O trabalho narrativo, por mais curto que seja, revela um bocado dos motivos da religiosidade causar tanto fascínio nas pessoas comuns. Se o humano, erudito ou não, tem necessidades sexuais, e se esse ser pensante se vê castrado o tempo inteiro, é natural que enxergue em forças superiores  a fonte de algum gozo. E é nesse pensamento com toques freudianos que a personagem da Mulher vive, seja na fantasia que faz com o irmão profeta, ou no sujeito da balsa, que a afasta da casa que ela não gosta de habitar. A busca pelo orgasmo se assemelha a obsessão com o Apocalipse, com o fim do mundo segundo a mitologia cristã. Tudo isso é pontuado pela sujeira e violência poética da historia, aliado também ao sentimento universal da fome animal, aqui exemplificada pelo estado famintos dos porcos. A busca aqui é da Eva por seu Adão, não pela necessidade dessa Eva de ter alguém, mas por que ela acreditar que precisa ter alguém, já que toda sua criação tradicional leva a isso. Omar é só um canal de sua frustração, e possivelmente, seus próximos parceiros (ou parceiro único) também serão carregados desses mesmos defeitos. Possivelmente, a louca obsessão e a sanha assassina que ela tem podem não ter parado só no que se vê neste gibi, e a espiritualidade presente nesses atos pode meramente ser substituída pelo desejo de sangue somente. Assim, toda a religiosidade funciona ou como catalisador do mal (o que torna a HQ em algo profano para leitores mais conservadores) ou mero placebo, com a figura episcopal sendo somente um canal transitório da morte, o anunciante da ceifa de vidas por mero oportunismo e projeção mental.

    O uso soberbo dos tons de preto, dos sombreados e hachuras torna Lavagem um objeto único. Shiko tem um domínio artístico poucas vezes visto, e a mistura que faz com as páginas duplas e o uso de letras garrafais para maximizar as sensações de violência e de chegada do mal assustam até mais que toda a profanação do subtexto. A história resulta em um quadrinho de tragédia familiar, calcada em uma questão violenta baseada no discurso fundamentalista religioso. Mas, como dito antes, poderia ser voltado para qualquer outra figura de autoridade. A ligação erótica com o Divino revela que os personagens têm uma auto imagem de muita pequenez, que é driblada em partes pelo vislumbre de um futuro longe daquela localidade, mas sem garantias de que essa não é uma historia cíclica. É essa dubiedade que torna a historia tão boa, pois a fuga de demônios talvez possa resultar num cair nos braços de outras criaturas ainda piores, sem dar a certeza se  o mal é externo ou interno na mente da figura analisada por Shiko.

    Compre: Lavagem.

  • Resenha | Silas

    Resenha | Silas

    Em Salto, Rapha Pinheiro apresentou ao público um primeiro vislumbre da cidade subterrânea de Intos, destacando a coragem e o ímpeto do jovem Nü, que se impôs diante das mentiras e desmandos que mantém o Barão no controle de toda a população.

    Se colocando em um papel de arauto da verdade, após descobrir que o mundo da superfície é seguro e o povo tem vivido e morrido em meio às claustrofóbicas paredes das cavernas, Nü parte com Jules e Mae, frustrado por não conseguir convencer a população acerca da vilania do líder da cidade, mas não sem tocar ao menos uma pessoa, o misterioso capitão da polícia de Intos, Silas.

    Nesse spin-off, Pinheiro se propõe a contar a vida do silencioso e enigmático personagem, em paralelo com a trajetória de Nü, narrada em Salto. Com precisão, o quadrinista mostra a sofrida vida de Silas, que desde pequeno se viu sozinho, após um terrível e misterioso acidente, precisando de uma engenhosa armadura para conseguir sobreviver na cidade.

    Criado pelo Barão, Silas cresceu e se destacou vivendo isolado das pessoas, sem demonstrar emoções nem quaisquer preocupações que não tivessem relação com sua atuação profissional. Intransigente e impiedoso, Silas passa por uma crise de consciência após ser interpelado por um beberrão na rua, e posteriormente conhecer Maud Rockwell.

    Na idosa, também afligida por um acidente durante a infância, Silas encontra uma figura materna, e começa a repensar suas atitudes e sua devoção cega ao Barão, enquanto surge na cidade o burburinho resultante das aventuras de Nü. Tendo de conviver com a tragédia da perda e com sua consciência lhe mostrando que há algo de errado na história que vem lhe sendo contada ao longo dos anos, Silas parte para descobrir a verdade, o que resulta nos eventos mostrados em Salto, e nos leva ao confronto entre o capitão arrependido e seu mentor corrompido.

    De forma inventiva, Rapha Pinheiro faz de Silas um complemento para o entendimento de Salto, mostrando facetas da história que não poderiam ser observadas em um primeiro momento, em uma perspectiva unidimensional. Em um recurso típico das séries de TV e do cinema, essa montagem das cenas já vistas anteriormente sob uma outra perspectiva confere requinte para a narrativa.

    Nessa nova HQ, o quadrinista expande os conceitos que apresentou em seu trabalho anterior e fecha algumas pontas, deixando outras em aberto para uma possível – e desejável – continuação, dando conta dos desdobramentos resultantes dos eventos narrados nesse conto sobre escolhas e mudanças de rota.

    Pinheiro demonstra sensibilidade ao construir a personalidade de um personagem que não pode falar, e cujas feições se encontram escondidas por baixo de uma inflexível máscara protetora. Por trás de todo o aparato tecnológico, Silas apresenta complexidades, traumas e valores, demonstrados através de um competente trabalho de composição narrativa por parte do autor.

    Ao não fazer uso do suporte verbal, Silas atua em uma narrativa contada por seus coadjuvantes, o que faz com que estes também precisem ser bem construídos e desenvolvidos, para não soarem rasos e descartáveis. O amadurecimento da escrita de Rapha Pinheiro é flagrante entre Salto e Silas, enquanto a arte continua um ponto de destaque na trama, conduzindo visualmente o leitor por caminhos que as palavras muitas vezes não dão conta de revelar.

    Em relação ao letreiramento dos balões e caixas de texto, a HQ comete alguns deslizes de ordem revisional, mas nada que interfira na experiência de leitura.

    Com Silas, Pinheiro dá mais um passo em seu universo steampunk, tecendo metáforas com o mundo real e dando alma e personalidade para suas criações. Fica a esperança de uma continuação, pois o universo ficcional criado pelo quadrinista ficou ainda mais interessante.

    Publicado pela Avec Editora, Silas conta com 96 páginas em papel couché de boa gramatura e capa cartonada, sem orelhas.

    Compre: Silas.

  • Resenha | Salto

    Resenha | Salto

    Com a chegada de uma terrível e persistente chuva, os habitantes flamejantes de Edos partiram para as cavernas, se estabelecendo e criando a cidade subterrânea de Intos. Durante anos e anos a sociedade se organizou por ali sob a égide do Barão, que alegadamente possibilitou ao povo as condições para que a vida nas profundezas da caverna fossem possíveis.

    Essa “verdade”, amplamente difundida para a população, sempre foi tida como inquestionável, e o poder do Barão permanecia incontestável, até que o tímido e inquieto Nü, o único rapaz azul no meio de uma cidade povoada por pessoas laranja, começa a desconfiar de que há algo de estranho no ar, e decide investigar. Saltando por entre os telhados das casas de Intos, o jovem acaba descobrindo detalhes inconvenientes acerca do venerado Barão, e passa a ser perseguido pela cidade.

    Ao fugir dali para preservar sua vida, Nü salta pelos labirínticos caminhos das cavernas, até descobrir a assustadora verdade: o mundo lá fora está normal, sem chuvas, e o Barão tem usado o medo para manter a população sob seu controle durante todos esses anos.

    Partindo para uma jornada de revelação e de contra-ataque diante das mentiras com as quais conviveu durante todos esses anos, Nü se propõe a revelar toda a verdade para a população, mesmo que sua vida seja colocada em risco no processo.

    Em uma releitura interessante e criativa do Mito da Caverna, de Platão, Rapha Pinheiro constrói uma narrativa de aventura calcada em uma estética steampunk, com forte teor de crítica social, em uma abordagem que lembra em alguns momentos a aclamada série Bone, de Jeff Smith.

    Com grande domínio da narrativa visual, o quadrinista carioca investe em angulações ousadas e opta por um enquadramento dinâmico, alternando entre planos fechados e panorâmicos, dando solidez e identidade para o universo que criou. O uso de cores digitais acrescenta em muito a esse senso de identificação e pertencimento da obra, chamando a atenção em diversos momentos pelo contraste entre as cabeças flamejantes dos habitantes de Intos e as paredes escuras das cavernas. Os personagens apresentam carisma e expressividade marcante, todos bem caracterizados e distintos em cena.

    Apostando em diagramações inteligentes, contando com rimas visuais e jogos de sentido através da relação entre forma e conteúdo, Rapha Pinheiro dá consistência e profundidade para a angústia de um Nü, já consciente da verdade, que se vê impotente e frustrado diante da letargia e do medo que fazem com que a mentira do Barão se torne mais confortável para a população do que o inexorável peso da verdade.

    Com um roteiro irregular, mas bem amarrado, e uma arte muito interessante, a obra derrapa ligeiramente em suas primeiras páginas, no que se refere à naturalidade do texto. Em um primeiro momento, as conversas soam um pouco artificiais e expositivas, mas logo esse desalinho se ajeita e a trama encontra seu equilíbrio entre texto e arte, comungando os dois eixos da narrativa gráfica de forma coesa e coerente dentro da proposta narrativa.

    Com Salto, Rapha Pinheiro apresenta uma história bem planejada e executada, uma metáfora universal com soluções interessantes em sua narrativa visual e apenas algumas inconsistências de roteiro, mas nenhum problema que seja realmente digno de nota.

    O encerramento, que inicialmente pode soar apressado para muitos, acaba por ser o fechamento ideal para um conto sobre insurgência e indignação diante das mazelas que acometem o mundo diariamente.

    A HQ foi publicada no Brasil pela Avec Editora, em 2017, em capa cartão e com 96 páginas em papel couché de boa gramatura.

    Compre: Salto.

  • Resenha | Topografias

    Resenha | Topografias

    Ao se deparar com uma coletânea gráfica de contos, tal como essa Topografias, com suas seis histórias curtas, o leitor deve se achar incumbido de uma corajosa missão, a frente: submergir em um mar de sensações inconfessáveis e deixar-se contaminar por um silêncio tão revelador, quando íntimo.  Empresa esta que se alastra por meio de toda uma leitura lúdica, afim de aproveitá-la como se deve, sucumbindo então aos estímulos sensoriais propostos por seis autoras num esforço coletivo, cada uma a sua maneira. Cada uma com sua visão.

    Com estilos e narrativas gráficas absolutamente distintos, eis uma obra imponente em meio a sua sensibilidade exuberante, suas cores e formas tão contemplativas. É notável como o sexteto de autoras aqui se impôs ao nobre desafio de serem absolutamente honestas às suas próprias perspectivas essenciais, e estéticas, na composição de contos acerca do papel e dos efeitos das mudanças, das descobertas, e das transformações na experiência humana dos seres – em especial, o ser feminino.

    Para tanto, o apelo surreal é forte. De primeiro, sentimos (e o verbo é esse) o impacto da mudança de ambientes para duas jovens mulheres; em seguida, e não muito além, experimentamos visualmente as transformações inevitáveis que moldam nossa consciência, e o que construímos ao redor, nos traços e matizes espetaculares das autoras Bárbara Malagoli, Julia Balthazar, Mariana Paraizo, Lovelove6, Puiupo e Taís Koshino. De mutações biológicas bizarras, a transição do ciúme ao amor entre duas garotas (o primeiro tido como um sentimento primitivo de pertencimento predatório, e o segundo já encarado pela visão mais altruísta e ágape do mesmo), o leitor é conduzido a um mar de sensações catárticas em cada história na qual se permite afundar, desde a primeira e sugestiva página.

    O delírio de um traço promove aqui a epifania pretendida em certos momentos, ou ainda, a melancolia poética de outros instantes, sempre invariavelmente vibrantes como se o desejo desses seis contos fosse o de explodir, página afora, com vida, alegria e tristeza próprias, e sem precisar de muitas palavras para isso. É fato que a pujança desses contos nos chega intacta, impressa e acessível até aos menos sensíveis de nós (e acredite, são muitos), mas também nota-se o quanto a falta de harmonia não apenas visual, mas na falta de uma concordância narrativa mais forte, e contínua, consegue impactar negativamente na transição de uma história para a outra.

    Assim, a sensação final (logo após a última história, talvez a mais poderosa, bela e sensual de todas) é a de que Topografias, lançada em junho de 2016 pelo Selo Piqui, mesmo que fadado as mais extensas interpretações simbólicas, quase conseguiu ser tão marcante quanto talvez pretendesse ser, desde o início. Se o projeto gráfico de 2016 não atinge plenamente tal objetivo, de certo chega próximo, bem próximo, em suas claras e francas ambições de potência sensorial e pura exuberância estética para todos os gostos – e sensibilidades.

    Compre: Topografias.