Tag: Pipoca e Nanquim

  • Resenha | Sob o Solo

    Resenha | Sob o Solo

    Após duas parcerias bem sucedidas entre Bianca Pinheiro (Bear, Mônica: Força) e Greg Stella em Meu Pai é um Homem da Montanha (2015) e Eles Estão por Aí (2018), a nova HQ do casal, Sob o Solo, lançada pela Pipoca & Nanquim, tem um formato diferenciado, emulando tirinhas, normalmente com quadros pares em cada página, abordando a pesada temática da guerra, mostrando os diálogos de dois soldados refugiados em um bunker, com receio de que o inimigo que bombardeia a superfície descubra o esconderijo subterrâneo.

    A história, bem como os desenhos, são simples. Os autores utilizam o minimalismo de bonecos de palitos para mostrar uma série de diálogos complexos, entre um alistado com receio de morrer, a um que está claramente ferido de maneira mortal. As páginas exploram o receio e paranoia de quem participa intimamente da guerra. Do receio da solidão e do enlouquecimento graças à perseguição do inimigo e da proximidade da morte.

    O foco narrativo se destaca pela sensação de isolamento e na solidão massificada que a historia apresenta, seja nas tentativas fracassadas da dupla em falar com os militares, mas também pela loucura oriunda do confinamento. Os autores trazem um desabafo humanizado, de um homem comum que chega a uma situação limite,  destruído emocional e moralmente por conta dos efeitos da guerra.

    A narrativa surgiu a partir de uma ideia de Greg que Pinheiro começou a dar a luz, em um primeiro storybord que rapidamente se tornou quase a arte finalizada. Dentro da proposta de Sob o Solo é essa simplicidade que funciona. Embora também contenha belas interferências de rabiscos bem elaborados, em momentos de maior tônica emotiva ou fantasiosa.

    Em comum as obras anteriores, há a eficiente parceria do casal que, ao produzir três narrativas diferentes entre si, evidenciam um talento versátil.

  • Resenha | Satsuma Gishiden: Crônicas dos Leais Guerreiros de Satsuma – Volume 1

    Resenha | Satsuma Gishiden: Crônicas dos Leais Guerreiros de Satsuma – Volume 1

    A editora Pipoca e Nanquim trouxe acertadamente para o Brasil o mangá de Hiroshi Hirata baseado no gênero samurai, O Preço da Desonra, onde um personagem cobra promissórias de dívidas de vida nos diversos clãs ao longo do território japonês. Em 2020 começou a se publicar a serie mais longeva e famosa do autor, um Gekigá (mangá adulto) publicado entre 1978 e 82, denominada Satsuma Gishiden: Crônicas dos Leais Guerreiros de Satsuma, dividida em três volumes, sendo o primeiro, o alvo desta análise.

    As histórias são mostradas em tom de crônica, pequenas e de tom mais épico e otimista que a publicação anterior do autor, até pelos protagonistas serem bravos guerreiros, e não um cobrador de dívidas que visa a  desconstrução temática romantizada dos samurais, embora as histórias tratem logo de início a nefasta prática do Hiemontori, onde dois clãs antes de entrar em combate, “brincam” com uma presa soltando um bandido entre os exércitos, com lanças e armas entre eles.

    O quadrinho é super violento, mostra muitas vísceras e cortes em períodos longos sem fala, tendo alguns com quase 30 paginas sem qualquer diálogo. Os detalhes de armaduras, cavalos, fortificações são ainda maiores que nos mangás anteriores do autor, uma chance única de mostrar a criatividade e inventividade dele, ao mostrar narrativas mais clássicas do subgênero.

    Foca bem na humilhação dos samurais camponeses, fortificando a ideia de que Hirata não gosta de falar de samurais meramente reiterando a condição de guerreiros honrados. Aqui se vê gente pobre, que tem que lançar mão de trabalhos que pagam mal, além de mostrar as humilhações ligadas até a furtos e roubos para conseguir alimento. A desonra para os guerreiros ronins em serem chamados de mentirosos ou ladrões mesmo quando pegos em flagrante é apenas uma das humilhações mostradas ao longo das mais de 400 páginas nesse volume. Outra denúncia desconstrutora de reputações é dos embates em guerreiros de classes diferentes, onde a corda sempre arrebenta no mais fraco.

    As histórias sobre burocracia são mais enfadonhas, mas ajudam o espírito de tirar o romantismo do shogunato e dos samurais. Esse é o mesmíssimo caráter que Hirata já havia mostrado em O Preço da Desonra. Esses momentos servem de respiro entre as cenas de batalha, que quando ocorrem, simplesmente deixam o leitor embasbacado pela grafia e violência, que mesmo sem cores, ainda soam muito sanguinolentas

    O trabalho gráfico desta publicação é bastante bonito, possui um glossário no final, que explica o contexto histórico, como era o império, o governo e a economia de feudos. Apesar de não ter personagens tão memoráveis como foi com o cobrador Hanshiro no outro mangá, as histórias tem momentos muito épicos e vergonhosos, mostrando faces pouco exploradas da história do país milenar que é o Japão, com gente excluída em foco, e que resultam em leituras muito fluídas e prazerosas.

  • Resenha | O Preço da Desonra

    Resenha | O Preço da Desonra

    O Preço da Desonra é o primeiro mangá publicado no Brasil do autor Hiroshi Hirata. Conhecido no Japão por apresentar histórias de samurai elogiadíssimas, entre elas, Satsuma Gishiden, a história deste é  adulta, denominada como Gekigá e foi lançada entre 1971 e 73. Suas histórias são curtas, narradas a partir das experiências de Kubidai Hanshiro, que vem a ser um tomador de promissórias, que vai atrás da dívida entre os dojos e clãs de samurais.

    A primeira história já começa em meio a ação, com um samurai tentando comprar o direito à sua vida com uma promissória, regra essa estabelecida em algumas vertentes dos combates japoneses, embora essa prática seja atrelada a guerreiros covardes e não comprometidos com a tradição e principalmente, com a honradez. A desonra do título mora na dívida que o clã não quer assumir, e logo, aparece o cobrador das promissórias.

    O traço de Hirata é absurdo, em momentos de calmaria é super bem detalhado, nas batalhas, o nanquim transborda fluidez. É um trabalho único visualmente , os quadros valorizam demais os cenários, e as paisagens limpas tornam os combates em eventos ainda mais épicos, seja no conflito entre clãs ou no combate em que Hanshiro em alguns pontos é obrigado a fazer.

    As lutas com cavalos, os saqueadores, o abuso as mulheres, tudo é retratado de forma visceral, onde a beleza da violência se mistura a uma reflexão sobre atitudes profanas. Hirata desconstrói a imagem de super honrado ligada aos samurais, mostra homens mesquinhos, ingratos, onde até a covardia é um pecado subalterno perto dos tanto outros equívocos desses que deveriam ser defensores da honra burguesa.

    Os conflitos dentro dos clãs e as discussões sobre o monetário revelam dois aspectos, sendo o mais importante, a total desglamourização da figura dos guerreiros japoneses, e isso seria agravado até na série Satsuma Gishiden. O outro aspecto é o quanto aos samurais, que eram vistos como as pessoas mais honradas e corretas do Japão feudal eram tão humanas, cheias de falhas, sendo egoístas e até deploráveis, seja ao negar o compromisso pré-estabelecido com as promissórias, ou no suplicar por sua vida, sem pensar em todo o código de honra feito no juramento à espada que é feito. O Preço da Desonra é visceral, violentíssimo e tem em Hanshiro um protagonista perfeito para a condução de seu drama, tornando esse trabalho inglório em uma história rica, mesmo que o foco seja em momentos de descrédito e mácula.

    Compre: O Preço da Desonra.

  • Resenha | Beasts of Burden: Cães Sábios e Homens Nefastos

    Resenha | Beasts of Burden: Cães Sábios e Homens Nefastos

    Quando Jill Thompson precisou ser substituída no segundo volume de Beasts of Burden, um clima de incertezas pairou sobre a multipremiada série, contudo, Benjamin Dewey se mostrou um nome acertado para conduzir essa história junto de Evan Dorkin, co-criador da série junto de Thompson.

    O traço mais rígido de Dewey casou perfeitamente com o clima dessa sequência, que deixou os fofinhos cachorros (e gato) de “Rituais animais” de lado e deu espaço para os Cães Sábios, mais velhos, experientes e severos, diante de toda sorte de ameaças sobrenaturais que cercam Burden Hill. A firmeza do novo desenhista conferiu a solidez necessária para o bom andamento da trama ali proposta.

    Em “Cães sábios e homens nefastos”, Dorkin e Dewey direcionam seu olhar para os arredores da cidade, nas Montanhas Pocono, onde incêndios e ocorrências sinistras surgiram sem mais nem menos, tendo em comum a presença de um estranho símbolo em formato de “S”. Para investigar tal fenômeno, a matilha dos Cães Sábios se embrenha na mata fechada, e começa a perceber que existe muito mais em jogo ali do que possa parecer.

    Adentrando por uma teia intrincada de eventos inexplicáveis, Lundy e sua equipe acaba por se deparar com a perigosa Irmandade da Serpente Vermelha, um grupo de humanos versados em magia e que ameaçam o equilíbrio sobrenatural do lugar, em busca de um antigo deus arcano, algo com o qual os Cães Sábios não podem permitir.

    Entre Salamandras, Guaxinins, Zumbis e Licantropes, o segundo volume de Beasts of Burden expande com sucesso sua mitologia, dando mais um passo rumo ao iminente conflito entre as forças do bem e do mal nesse ambiente de magia e mistério.

    Tendo em Miranda e Lundy seu maior enfoque narrativo, o enredo logra sucesso ao desenvolver não só as personalidades de seus protagonistas, como também dos coadjuvantes Emrys e Carver. Nesse volume temos a primeira interação entre humanos e animais realmente significativa, demonstrando a existência de homens e mulheres também operadores de magia que agem – ou agiam – em conjunto com os animais, algo que o primeiro volume tocou apenas de forma bem breve e distante.

    O desenvolvimento de Miranda, única remanescente da equipe apresentada no volume original, é flagrante, ao passo em que ela caminha para se tornar uma Cadela Sábia e de grande poder, enquanto vemos o orgulhoso Lundy ceder em suas decisões para o bem da equipe.

    As cores conseguem dar vivacidade para a narrativa, conferindo volume e textura para os personagens, sejam eles cachorros ou humanos. O supracitado traço de Dewey obtém êxito ao dar um aspecto mais duro e rígido para os Cães Sábios, sem perder de vista o humor inerente ao bom roteiro de Dorkin.

    Cabe ressaltar que, ainda que seja o segundo volume da série, a história funciona perfeitamente de maneira independente, não sendo necessária a leitura de “Rituais animais” para o entendimento pleno da narrativa.

    Publicado no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim, Beasts of Burden: Cães Sábios e Homens Nefastos saiu nos EUA em 2018 pela Dark Horse e chegou por aqui em 2019, contendo 124 páginas, papel de excelente gramatura e uma capa dura com acabamento primoroso. Um legítimo Petardo!

    Compre: Beasts of Burden: Cães Sábios e Homens Nefastos.

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  • Resenha | Virgem Depois dos 30

    Resenha | Virgem Depois dos 30

    Na Terra do Sol Nascente um em cada quatro homens solteiros com mais de trinta anos jamais teve relações carnais, sexuais, ou sejam há mais de dois milhões de virgens nesses moldes no Japão, e Virgem Depois dos 30 é um mangá documentário (um formato tradicional, mas que não é muito conhecido no Brasil), o estudo de Atsuhiko Nakamura acompanhado trabalho visual do mangaká Bargain Sakuraichi analisa a história de oito pessoas, a maioria anônima, em  historias pesadas , carregadas de uma realidade melancólica e digna de pena.

    O trabalho editorial deste primeiro mangá da Editora Pipoca e Nanquim é bem bonito, apesar de ter capa cartão, o trabalho é bonito neste ponto, e é fácil ler o quadrinho aberto, ao contrário das primeiros versões de mangás publicados no Brasil na década passada. Esta versão possui uma capa retirável, e impresso nessa parte ha desenhos que remetem as historias que serão contadas nos textos do documentário, com referências ao inferno ocidental, a diabos e demônios japoneses também.

    O começo do “drama”cita Assim Falou Zaratrusta, com as palavras de Friedrich Nietzsche Em alguns, a castidade é uma virtude, mas, em muitos outros, é quase um vício, e essa realmente é a síntese da maioria dos casos. O primeiro serve bem nesse exemplo, fala sobre o serviço de cuidado de idosos, onde a maioria dos celibatários trabalham. A revista não demora a mostrar a infantilização desses adultos e o quanto isso ocorre graças ao ato de serem excluídos de algo tão básico quanto a vazão ao tesão e a libido. Os homens pioram ao idealizar mulheres, acreditando que uma princesa de conto de fadas o aceitará com todos os defeitos que tem e com a total dificuldade de socializar.

    A maneira como Nakamura apresenta os conceitos orientais pouco conhecidos impressiona por sua fluidez, a maioria desses virgens são chamados de solteiros parasitas, se aproveitam do amor incondicional de algum dos seus pais para que esses os sirvam, ou com dinheiro ou com cuidados básicos. Para contratantes é difícil empregar os virgens, no caso do primeiro, o sujeito tem problemas sérios com ortografia de palavras simples e com aprendizado,além de se enxergar  sempre a frente dos outros, é orgulhoso e humilha as pessoas sempre que pode, mesmo que não faça sentido.

    Em comum, os homens estudados tem a questão de ter sofrido bullying quando novos. A maioria entra em modo de defesa, daí se origina suas capacidades de aprendizado falho. Mesmo os que tem ensino superior também são traumatizados com isso. Outro ponto comum é a rejeição das primeira mulheres que os mesmos flertaram. É comum também auto mutilação e até tentativas de suicídio, alguns se apegam a fantasias de mulheres que conhecem, outros em mulheres que não são de carne e osso, e outros tantos tem na religião um dos motivos para auto enganação sobre seu celibato.

    Há também com esses virgens, a dificuldade de manter um emprego, boa parte deles vive de bicos, e tem sua vida social resumida a suas casas, pequenos cubículos onde destilam seu ódio na internet, em fóruns de extrema direita, que propagam xenofobia e um machismo exacerbado e injustificado, onde culpam as mulheres por não enxergar neles possíveis parceiros sexuais e para a vida. O gasto que eles fazem de seu tempo livre chega a assustar, e o gibi consegue equilibrar bem o didatismo com uma linguagem mais franca e direta.

    Há fortes críticas aos celibatários que fazem parte da comunidade, até mais que aos incels, e mais assustador até do que os fanáticos que só pensam em mulheres animadas, são os que são fãs da idols, uma categoria que por si só é estranha, e explorada em diversas obras, como o longa animado Perfect Blue, de Satoshi Kon. Os otakus em estágios “mais avançados” sentem repulsa fisiológica a mulheres de verdade, chegam a vomitar se veem mulheres de perto, por conta de poros, suor, espinhas e imperfeições pequenas. Boa parte deles moram em quartos minúsculos, em um lugar onde outros otakus também residem, em pequenos cubos, trabalhando em sub empregos que só existem para sustentar seus vícios em animes ou nas tais cantoras.

    O caso de Ichito Suzuka, um ator pornô cuja historia é muito trise resume bem os causos do estudo. Ele é o único cujo nome é dito sem pseudônimos, e sua jornada é deplorável. Há outras historias de gente sexualmente ativa, e até de pessoas que claramente mentem para si mesmos sobre sua sexualidade só para se sentir aceito, e é preciso ter paciência e atenção ao ler a revista, pois ela causa incômodo e possíveis gatilhos especialmente para quem tem depressão. É triste ver isso, e acompanhar a burocracia com que alguns se tratam, chegando ao cumulo de vários deles fazerem tabelas de respostas femininas no Excel, para não perderem o progresso que fazem, como se o flerte fosse um jogo.

    Segundo Nakamura, Bargain só sabia da aparência de Miyata e do ator Suzuka, o resto, ele só leu o livro Virgens de Meia Idade (publicação antiga do próprio Nakamura, pela editora Ganesha), e tirou suas conclusões. O último capítulo mostra o autor indo atrás dos entrevistados, ou trabalhando junto com eles (em especial, com o primeiro), fato que já era suspeito de quem lê sua obra, dada a riqueza de detalhes apresentada. Virgem Depois dos 30 dá uma visibilidade a pessoas em uma situação tão grave, ao passo que destaca o quanto a cuidadoria de idosos é sucateada e manuseada por problemáticos e tarados que até assediam senhoras.

    Muito se comenta que a editora Pipoca e Nanquim teve muita coragem de publicar esta obra, e de fato isso é muito verdade, pois o momento do Brasil evoca muito as questões dos Incel e outros celibatários e o mangá ainda foi lançado no mesmo ano do atentado de Suzano, então não teria momento mais oportuno para se abrir esse tipo de ferida, seja em qualquer configuração de sociedade, é preciso se refletir e discutir sobre isso, indiscutivelmente.

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  • Resenha | A Arte de Charlie Chan Hock Chye

    Resenha | A Arte de Charlie Chan Hock Chye

    De quantas maneiras pode-se contar uma história? Em A Arte de Charlie Chan Hock Chye, o quadrinista Sonny Liew, nascido na Malásia e radicado em Singapura, mostra que não existem limites narrativos quando há um domínio pleno do meio escolhido para se transmitir uma mensagem.

    A partir dos olhos do fictício quadrinista singapurano Charlie Chan, Liew se propõe a contar a história política de Singapura, desde os anos 50 até os dias atuais. Criando a narrativa através de uma espécie de acervo documental da trajetória de Chan como artista de quadrinhos, o autor concebe uma espécie de metaficção historiográfica, ficcionalizando em cima de fatos da história singapurana, ilustrando passagens complicadas do processo de formação do país através da subjetividade do trabalho de um artista já idoso e reflexivo quanto a sua trajetória. Em um exercício espetacular de metalinguagem, Liew brinca com os limites entre real e imaginário, ao navegar simultaneamente pela história de seu país e dos quadrinhos propriamente ditos.

    A forma como Chan escolhe para contar suas histórias, repletas de subtextos políticos e pertinentes aos delicados eventos históricos de Singapura, dialoga fortemente com a tradição dos quadrinhos ao redor do mundo. O uso de funny animals, de traços mais infantis, estilizados, variando entre histórias de selvas, guerras e até tokusatsus, evidencia uma preocupação de Charlie Chan em se mostrar versátil ao longo dos anos, na busca pelo sucesso enquanto quadrinista. De Osamu Tezuka a Frank Miller, o autor passa por diferentes estilos de traços e enquadramentos, estabelecendo diferentes níveis de percepção do trabalho, para além do campo diegético. A busca pelas referências históricas dentro da narrativa é um deleite para quem pesquisa e se interessa pelo processo de desenvolvimento dos quadrinhos em si.

    Liew demonstra com esse trabalho um domínio não só artístico quanto histórico em relação à narrativa gráfica propriamente dita, fazendo uso de montagens de páginas extremamente inovadoras, emulando ao longo das páginas papéis antigos e desgastados pela ação do tempo, recortes colados com fita em páginas em branco, concebendo dessa forma a ideia de um arcaico acervo do trabalho de Chan, que dialoga com seu leitor a todo instante, enquanto comenta sua vida e obra. É interessante perceber como o autor acaba se inserindo na própria trama e fazendo de si um ator, ao “interpretar” o virtuoso Charlie Chan, empregando diferentes traços e estilos, conferindo verossimilhança para sua proposta, levando muitos a acreditarem erroneamente que existe de fato um quadrinista singapurano chamado Charlie Chan. As fronteiras entre ficção e realidade encontram-se extremamente diluídas e confrontadas, nesse brilhante trabalho de Liew.

    A Arte de Charlie Chan Hock Chye rompe com as fronteiras da narrativa gráfica tradicional, tecendo um cuidadoso panorama das tensões inerentes ao desenvolvimento de Singapura, passando pelas questões de classe e pelo dualismo de um mundo fragmentado entre capitalismo e comunismo, sob o mar de incertezas da Guerra Fria.

    A obra, trazida ao Brasil pela editora Pipoca & Nanquim, conta com 320 páginas em papel offset e capa dura em alto relevo. Prestigiada internacionalmente, a obra ganhou três prêmios Eisner no ano de 2017. Sua trama foge do padrão e entrega uma poderosa e metalinguística narrativa, que funciona tanto como experimentalismo estético quanto como relato histórico de toda uma nação.

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  • Resenha | O Relatório de Brodeck

    Resenha | O Relatório de Brodeck

    “Não é trabalho de um artista dar ao público o que o público quer. Se o público soubesse o que quer, ele não seria o público, mas o artista. É trabalho do artista dar ao público o que o público necessita.”

    A reflexão acima, do grande Alan Moore, é pontual e pode ser relembrada, ao final da leitura de O Relatório de Brodeck, com a substituição do termo “artista” por “editora”. Pode-se fazer tal modificação ao analisar-se o trabalho que a editora Pipoca & Nanquim tem realizado no cenário nacional, se especializado em trazer ao público brasileiro obras seminais, de altíssimo requinte estético e narrativo, que dificilmente chegariam ao país, não fosse por seu intermédio.

    Manu Larcenet, adaptando brilhantemente o livro de Philippe Claudel, apresenta em O Relatório de Brodeck uma narrativa pungente sobre humanidade, alteridade e barbárie. Situada logo após o final da segunda guerra mundial, a trama acompanha o escriba Brodeck, habitante de um pequeno vilarejo próximo à Alemanha e que acaba de retornar dos temíveis campos de concentração. Após um trágico evento no armazém local, ele se vê responsável por reportar o acontecido através de um relatório, e durante as investigações acaba se deparando com o que de pior a humanidade tem a oferecer.

    Ao longo das descobertas sobre o ocorrido, o protagonista percebe como a guerra mexe com as pessoas, de formas por vezes irreversíveis. A espiral de violência que perpassa o vilarejo fazem com que a perversidade e o instinto de sobrevivência suplantem a civilidade e a compaixão, de modo que a crueldade humana é a todo momento evidenciada na obra, e colocada em perspectiva por um igualmente quebrantado Brodeck.

    A experiência do protagonista com a guerra é a todo momento contraposta com a dos habitantes do vilarejo, em uma análise do outro a partir da perspectiva do eu, meticulosamente estabelecida. A incapacidade do ser humano em lidar com a diferença e a abrupta guinada à barbárie por parte de pessoas outrora amigáveis são elementos contundentes e poderosos dentro da narrativa.

    A escrita fragmentária do autor confunde inicialmente o leitor, de modo a emular a própria surpresa de Brodeck a partir dos fatos que se descortinam diante de seus olhos, indo e voltando no passado e no presente. A arte de Larcenet é um deleite, capturando poderosamente a escuridão e as dores dos personagens, bem como a perplexidade de Brodeck, por trás de sua aparente passividade.

    Com O Relatório de Brodeck, Larcenet traz consigo uma poderosa narrativa sobre os limites da natureza humana diante de sua própria crueldade, estabelecendo uma discussão, infelizmente, cada vez mais atual.

    A edição da Pipoca & Nanquim, com 320 páginas em formato widescreen, papel pólen e capa dura, contribui com a ideia de “relatório” proposta pelo título da obra, apresentando a história em quadrinhos com um requinte condizente com a grandeza do trabalho.

    Compre: O Relatório de Brodeck.

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  • Resenha | Um Pequeno Assassinato

    Resenha | Um Pequeno Assassinato

    Alan Moore é o Deus adulto das HQ’s. Pra muita gente essa é única verdade a se seguir desde que Watchmen saiu dos seus dedos e das unhas sujas de Dave Gibbons pra mudar o jogo na nona-arte, mostrando que quadrinhos também podem ser coisa pra poucos adultos, já que a maioria não estava preparada para uma dose letárgica de Moore. Aquelas que libertam nossa cabeça, e nos mergulham num nível sensorial abissal de experiências com a mídia que o escritor devotou sua vida inteira, elevando os patamares do seu campo de batalha, antes de poder voar com as suas próprias asas, e com Um Pequeno Assassinato ele finalmente consegue essa pretensão, ou melhor, essa necessidade, numa excelente parceria essencial com o também veterano desenhista Oscar Zárate.

    Temos aqui uma obra repleta de camadas que merecem ser descobertas e redescobertas ao longo de surpreendentes releituras. Quando Moore enfim se livrou dos super-heróis que lhes deram um prestígio nunca antes almejado por um escritor de quadrinhos, ele metaforizou, através da figura de Timothy Hole (um publicitário atormentado por seu passado relutante) o seu cansaço e sua própria repulsa por todo o mercado editorial norte-americano comandado pelas velhas DC e Marvel Comics. Assim, o mago britânico escolheu esta história e seu desenhista colaborador para poder respirar, ser um artista livre, fiel a si mesmo, tornando visível a partir de situações e imagens psicodélicas, e múltiplas associações entre realidade e ficção, um passado que o caça, e que ele (Timothy Hole) renega até o fim. Bem antes da sua conclusão, porém, a proposta de se produzir uma obra literária inquietante e maliciosa é nítida desde o início, como, é claro, não poderia deixar de ser.

    Ilustrando as andanças do recluso e misterioso Timothy, percebemos passo por passo que seu tormento não mora em encontrar soluções criativas para divulgar um produto em determinado local (rotina de todo publicitário), mas em ser perseguido pela figura “inconveniente” de um menino que, real ou não, é vivo e significativo demais para ser ignorado. Um Pequeno Assassinato não é icônico, ninguém fará spin-offs hollywoodianos sobre ele, mas é uma ode a todo homem comum cujo passado complicado e conflituoso merece ser visto pelo viés do extraordinário, e do encantamento que o cotidiano mata e não nos deixa observar, olhando pra trás. Juntando suas palavras com os traços e as ideias inconfundíveis de Zárate, tal encantamento torna-se irresistível ao traduzir em imagens repletas de cores e formas e enquadramentos impressionantes a pressão psicológica e emocional que o próprio Moore sentiu, tentando desvincular-se de uma indústria que queria comprar sua alma.

    Leitores não devem ser subestimados, receptor nenhum, a bem da verdade, uma vez que podemos sentir quando um artista atua para expurgar seus demônios através do que faz, e aqui não é diferente, com doses cavalares de uma inteligência e elegância a toda prova. A versão brasileira desta graphic novel, termo para quadrinhos encadernados que Alan Moore e seus desenhistas colaboradores tornaram mundialmente populares após tantas empreitadas históricas nos anos 80 e 90, não poderia ser de fato superior. A editora Pipoca e Nanquim realiza aqui um admirável trabalho de revitalização qualitativa da obra original, evidenciando os méritos e prestígios artísticos do livro num tratamento impecável, página por página, contando com a tradução eloquente de Marília Toledo em pequenos grandes momentos que refletem, com perfeição, a força dramática que a dupla empregou, no seu idioma autêntico. Nada mais respeitoso a uma das melhores crias (sem exageros) de um gênio literário dos nossos tempos.

    Compre: Um Pequeno Assassinato.

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