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  • Resenha | O Relatório de Brodeck

    Resenha | O Relatório de Brodeck

    “Não é trabalho de um artista dar ao público o que o público quer. Se o público soubesse o que quer, ele não seria o público, mas o artista. É trabalho do artista dar ao público o que o público necessita.”

    A reflexão acima, do grande Alan Moore, é pontual e pode ser relembrada, ao final da leitura de O Relatório de Brodeck, com a substituição do termo “artista” por “editora”. Pode-se fazer tal modificação ao analisar-se o trabalho que a editora Pipoca & Nanquim tem realizado no cenário nacional, se especializado em trazer ao público brasileiro obras seminais, de altíssimo requinte estético e narrativo, que dificilmente chegariam ao país, não fosse por seu intermédio.

    Manu Larcenet, adaptando brilhantemente o livro de Philippe Claudel, apresenta em O Relatório de Brodeck uma narrativa pungente sobre humanidade, alteridade e barbárie. Situada logo após o final da segunda guerra mundial, a trama acompanha o escriba Brodeck, habitante de um pequeno vilarejo próximo à Alemanha e que acaba de retornar dos temíveis campos de concentração. Após um trágico evento no armazém local, ele se vê responsável por reportar o acontecido através de um relatório, e durante as investigações acaba se deparando com o que de pior a humanidade tem a oferecer.

    Ao longo das descobertas sobre o ocorrido, o protagonista percebe como a guerra mexe com as pessoas, de formas por vezes irreversíveis. A espiral de violência que perpassa o vilarejo fazem com que a perversidade e o instinto de sobrevivência suplantem a civilidade e a compaixão, de modo que a crueldade humana é a todo momento evidenciada na obra, e colocada em perspectiva por um igualmente quebrantado Brodeck.

    A experiência do protagonista com a guerra é a todo momento contraposta com a dos habitantes do vilarejo, em uma análise do outro a partir da perspectiva do eu, meticulosamente estabelecida. A incapacidade do ser humano em lidar com a diferença e a abrupta guinada à barbárie por parte de pessoas outrora amigáveis são elementos contundentes e poderosos dentro da narrativa.

    A escrita fragmentária do autor confunde inicialmente o leitor, de modo a emular a própria surpresa de Brodeck a partir dos fatos que se descortinam diante de seus olhos, indo e voltando no passado e no presente. A arte de Larcenet é um deleite, capturando poderosamente a escuridão e as dores dos personagens, bem como a perplexidade de Brodeck, por trás de sua aparente passividade.

    Com O Relatório de Brodeck, Larcenet traz consigo uma poderosa narrativa sobre os limites da natureza humana diante de sua própria crueldade, estabelecendo uma discussão, infelizmente, cada vez mais atual.

    A edição da Pipoca & Nanquim, com 320 páginas em formato widescreen, papel pólen e capa dura, contribui com a ideia de “relatório” proposta pelo título da obra, apresentando a história em quadrinhos com um requinte condizente com a grandeza do trabalho.

    Compre: O Relatório de Brodeck.

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  • Crítica | Antes do Inverno

    Crítica | Antes do Inverno

    antes do invernoO inverno como metáfora é um símbolo do final da vida. Um senso de derrocada que, se não representa a própria morte, é um anúncio de algo significando um novo estágio.

    Evocando tal imagem simbólica, Antes do Inverno situa-se em um momento anterior ao da terceira idade como instante de decadência. Foca a estabilidade tranquila e tediosa de Paul (Daniel Auteuil), um neurocirurgião de 60 anos, bem-sucedido, casado, residente em uma bonita casa luxuosa. A realidade costumeira é quebrada quando flores começam a ser entregues no hospital em que trabalha e, posteriormente, em seu consultório particular e na sua própria casa.

    Através da presença de um elemento carregado de novidade e mistério, o personagem coloca-se em alerta, com medo de uma ameaça, mas curioso em saber quem é o remetente das flores. No café onde é freguês, descobre que a garçonete, Lou (Leïla Bekhti), foi operada por ele quando criança. Assim, começam um diálogo e estabelecem uma relação.

    A garçonete e as flores representam o elemento de renovação que corrompe seu cotidiano estável. Aos poucos, Paul se envolve na procura de descobrir se a garota é a remetente das flores, ao mesmo tempo em que se sente atraído pelo novo.

    O roteiro evita cair no abismo da atração sensual em que uma garota jovem se apaixona por um personagem mais velho. Mesmo que o elemento seja sugerido em cena, o neurocirurgião reconhece a própria velhice e o senso de completude da vida, demonstrando que o que sente em relação ao desconhecido não é uma atração explícita, mas um tipo de curiosidade em conhecer a garçonete com mais profundidade.

    A realidade plástica e estável de Paul entra em choque com a vida de Lou, marcada por uma espécie de sobrevivência diária. Cada movimento que o médico faz para descobri-la acaba por afastá-lo da esposa (Kristin Scott Thomas), que nota a mudança de atitude dele e do único companheiro que restou, um psicólogo (Richard Berry) apaixonado pela mulher do amigo.

    De maneira lenta, o drama é conduzido por cada investida do personagem rumo ao desconhecido, como últimos impulsos de descoberta e curiosidade antes de assumir a derrocada da velhice. Em nenhum momento o médico aparenta buscar uma aventura. Pelo contrário, mais parece à procura de um acontecimento que lhe retire da repetição diária da rotina. Atos que demonstram uma personagem resignada, mas não necessariamente almejando uma nova vida que modifique suas estruturas.

    Não bastando a intensidade do drama interior, há uma pequena reviravolta que faz com que o personagem encontre o elemento de reflexão. Um impacto agressivo revelando-se além do conflito interno. Afora o envelhecimento cotidiano, o inverno futuro é mais agressivo e cru do que o provável entardecer bem-sucedido e estável.