Autor: Lucas Fazola Miguel

  • Resenha | Hulk: Futuro Imperfeito

    Resenha | Hulk: Futuro Imperfeito

    A cultura pop está repleta de histórias ambientadas em futuros pós-apocalípticos, seja na literatura, no cinema ou nos quadrinhos em geral. Em que pese as características basilares do gênero, algumas obras se destacaram ao longo dos anos, por diferentes fatores.

    Nos anos noventa, o prolífico artista George Pérez procurou Peter David para trabalharem juntos em algum projeto. Sendo David o maior escritor da história d’O Incrível Hulk, nada mais natural do que a parceria entre esses dois talentosos profissionais resultar em uma aventura do Golias Esmeralda.

    Assim nasceu Futuro Imperfeito, minissérie publicada originalmente em duas partes pela Marvel Comics nos últimos meses de 1992. Na HQ, David e Pérez concebem a cidade de Dystopia, um lugar superpovoado, cercado por desertos e erigido a partir de ruínas do que outrora foi uma metrópole civilizada.

    Nesse lugar em que vozes se confundem e pessoas vestidas em trapos fazem de tudo para sobreviver, rebeldes se camuflam no meio da multidão, enquanto organizam a resistência ao sombrio e monstruoso Maestro, tirânico líder da região. Nesse lugar em que o futuro parece se encontrar com um passado remoto, a esperança surge no verde da pele do Hulk, que é trazido de seu tempo até esse futuro absurdo para descobrir questões inconvenientes de sua vida e então se provar em batalha, pelo bem do que restou da humanidade.

    Elogiar a qualidade de escrita de David é chover no molhado. Tecer elogios à narrativa visual de Pérez seria igualmente redundante. Fenomenal, a dupla construiu de forma conjunta uma história tão simples quanto memorável para um dos personagens mais complicados de se compreender no Universo Marvel.

    Por ser o escritor da série mensal do Hulk à época, David possuía amplo domínio do background do personagem. Desse modo, o herói surge em Futuro Imperfeito da mesma forma com que vinha sendo representado em sua série solo daquele tempo: a consciência de Banner no corpo do Hulk, o que fazia do herói tão genial quanto poderoso, ao mesmo tempo.

    Assim, o maior inimigo possível para o Hulk debuta no Universo Marvel. O Maestro é tudo o que o Hulk pode vir a ser, e tal sombra paira a todo instante na HQ, que não perde tempo nem apresenta nenhuma barriga na execução de seu dinâmico enredo.

    Diálogos poderosos se intercalam entre cenas de ação ágeis e impactantes, que reafirmam a escala de poder na qual se inserem os protagonistas desse embate de iguais, tão desiguais quanto o tempo poderia tornar. Recheada de referências, a HQ entrega uma aventura distópica de primeira grandeza e se configura como uma das histórias mais emblemáticas do Gigante Verde.

    Complementando o encadernado publicado pela Panini Comics, a história O Último Titã é escrita também por David, mas ilustrada por outro parceiro seu dos tempos da série mensal: Dale Keown. Ambientada em um futuro ainda mais longevo, no qual somente o Hulk sobreviveu na Terra, vemos o dilema existencial entre Banner e Hulk novamente trabalhado, de forma diferente da vista em Futuro Imperfeito, já que agora as duas personas lutam por espaço e possuem desejos completamente diferentes para encararem o fim dos tempos.

    Com tradução de Jotapê Martins, Fernando Lopes e Marcelo Soares, o encadernado Hulk: Futuro Imperfeito aquece aquele coração marvete com sucesso e preenche a lacuna existente no mercado com a ausência inexplicável dessa HQ durante tantos anos, após uma republicação lá do comecinho dos anos 2000.

  • Resenha | Crise Final

    Resenha | Crise Final

    Quando um dos novos deuses aparece morto e os céus mudam de cor, os heróis começam a desconfiar de que algo está errado. O que eles não imaginavam é o quão crítica a situação já era, e “algo errado” se torna um eufemismo de péssimo gosto, diante do caos que se avizinha no horizonte.

    Ao se infiltrar na Terra, Darkseid e seus asseclas prepararam o estratagema definitivo, o plano dos planos, e assim deflagram uma crise de proporções monumentais, sem qualquer precedente, e opõem Vida e Antivida, fragmentando tempo e espaço por todo o Multiverso, com consequências imprevisíveis.

    Diante de uma ameaça tão grande e tão inesperada, talvez nem mesmo a força combinada de todos os heróis seja o bastante para vencer a batalha das batalhas, um embate decisivo pela existência, que leva o conflito de “bem versus mal” a um patamar inimaginável. Exigidos ao máximo de suas forças, os heróis do multiverso DC se colocam contra deuses, em uma guerra definitiva dos paladinos da justiça contra os arautos da morte, servos de Darkseid.

    Grant Morrison concebe em Crise Final uma saga hermética e envolvente, que capta a essência dos personagens da editora das Lendas. O autor escocês aplica na saga conceitos que lhe renderam fama ao longo dos anos, como viagens no tempo, conflitos multiversais e narrativas em paralelo que posteriormente se perpassam e assim tecem uma intrincada colcha de retalhos, cuja significação só se mostra possível em sua plenitude ao final da trama, quando tudo se encaixa e começa a fazer sentido.

    Tal como num épico de guerra tradicional, a crise intercala diferentes focos narrativos, múltiplos frontes de batalha, dando urgência para os eventos e espaço para que os personagens se desenvolvam em cena. A diferença, contudo, reside no forte apelo da ficção científica que recai sobre a narrativa e lhe dá um charme incomum.

    Como de costume, o roteirista concebe sua trama trafegando por referências incontáveis à mitologia DC, muitas delas somente reconhecíveis para o leitor médio com o auxílio do Google, mas que se transformam em um deleite para o fã de longa data, que imerge na história tanto a nível diegético quanto na caça desenfreada a referências, das mais sutis às mais evidentes.

    Acompanhado de diversos artistas de alto calibre como J.G. Jones, Doug Mahnke, Carlos Pacheco entre outros, a trama se resulta em um trabalho de difícil fruição mas cuja experiência de leitura é bastante recompensadora.

    A edição definitiva de Crise Final publicada pela Panini Comics reúne as sete edições de “Final Crisis”, originalmente publicadas em 2008, além de “Final Crisis: Submit #1”, “Final Crisis: Superman Beyond #1” e “Final Crisis: Superman Beyond #2”. Com tradução de Jotapê Martins, o encadernado merece um maior apuro na revisão para as próximas reimpressões, pois apresenta muitos erros diminutos, que quando lidos em sequência acabam chamando a atenção.

  • Resenha | Máquinas Não Choram

    Resenha | Máquinas Não Choram

    Em tempos de smart houses, smartphones, alexas e dispositivos tecnológicos dos mais diversos, nossas vidas estão cada vez mais automatizadas, constantemente assessoradas pela tecnologia. Se por algum motivo tais recursos se esgotassem, teríamos enorme dificuldade para nos readaptarmos à vida analógica, não é verdade?

    Pois então, em Máquinas Não Choram somos apresentados a um futuro próximo nos quais robôs são produtos massificados e já integrados de forma profunda na sociedade, acompanhando seus donos e os auxiliando em tarefas diárias. Após supostos problemas com o ifeel,  upgrade que possibilitou aos robôs desenvolver sentimentos, as fábricas anunciaram downgrade obrigatório, desabilitando a capacidade de sentir dos mesmos.

    Por sorte, Boy e Girl, dois robôs que desenvolveram forte laço de amizade ao longo do tempo, estavam sem conexão à hypernet no momento em que o downgrade foi realizado, e agora se tornaram párias a serem caçados e temidos pelas autoridades. O acontecimento modifica para sempre as relações entre os dois e seus respectivos donos, e os leva a uma jornada de sobrevivência e de reafirmação de valores como amizade e lealdade.

    Concebido por André Turtelli Poles e Renato Quirino, Máquinas Não Choram vai de referências como Wall-E e Blade Runner para desenvolver uma história leve e descompromissada que discute sobre vidas artificiais, construções sentimentais e até mesmo sobre liberdade. Com traço cartunesco e prosa ágil, a HQ alterna focos dramáticos a todo instante e dinamiza seu desenvolvimento ao entrecortar flashbacks e digressões com sutileza.

    Expressiva, a narrativa visual remonta ao traço cartunesco para transmitir leveza e descontração para um roteiro que, em uma segunda olhada, se mostra mais sério do que se poderia esperar. Com uma conclusão anticlimática e um uso criativo para a “trilha sonora” da história, mesclando-a com as onomatopeias e lançando-as de forma mais solta através dos requadros, Poles e Quirino discutem livre arbítrio e autoritarismo sem maiores cerimônias, fazendo dessa pequena fábula não convencional um conto ligeiramente maior do que se supunha inicialmente.

    Finais abertos carregam consigo o ônus e o bônus da controvérsia: muitos gostam, muitos desgostam, e ao se optar por algo nesse sentido, o risco se torna calculado da parte da equipe criativa. Assim, o final pode soar abrupto demais, caso se espere por um fechamento padrão para a narrativa. Essa sensação de conclusão aqui não aparece, o que deixa em aberto possibilidade de continuidade, mas também não possibilita opções imediatamente críveis para qualquer que seja o desenlace da história de Boy e Girl enquanto fugitivos da lei e sentimentais clandestinos.

    Publicado via catarse, o quadrinho possui lombada quadrada, capa cartonada e cinquenta e seis páginas em papel pólen.

  • Caio Oliveira e as Paródias em Quadrinhos

    Caio Oliveira e as Paródias em Quadrinhos

    A produção nacional de quadrinhos é prolífica em paródias, em suas diferentes vertentes. Seguindo a tradição nacional de sucesso no humor, esse tipo de abordagem ganhou espaço e notoriedade por explorar chavões e clichês para gerar comicidade (e driblar licenciamentos editoriais).

    Assim, não é de se espantar que o trabalho de um fenômeno da gibisfera brasileira como Caio Oliveira ganhe notoriedade com a velocidade que ganhou.

    O quadrinista brasileiro tem uma capacidade ímpar de captar em seus Quadrinhos o zeitgeist e trabalhar a partir de uma perspectiva amplamente metarreferencial, empregando o humor como força motriz de suas inventivas histórias. Seguindo essa linha, temos aqui três diferentes trabalhos do autor, com propostas tão distintas quanto se poderia imaginar, mas que carregam consigo o humor gerado a partir da intertextualidade como traço marcante.

    Em All Hipster Marvel, Caio apresenta uma sátira à cultura hipster, desenvolvida através da intertextualidade paródica em relação aos heróis da Marvel Comics, ironizando alguns dos clichês das histórias da editora, através de minicontos em cores e traços cartunescos, nos quais o riso é o alvo, nem tanto uma linha narrativa unificada e coerente. A HQ possui vinte páginas e foi publicada em papel reciclado, com lombada canoa.

    Com Panza o quadrinista apresenta uma aventura de Sancho Pança, o fiel escudeiro de Dom Quixote, entrando em uma jornada para descobrir a verdade acerca da missão que norteou a vida do já idoso e doente Dom, enquanto sua sanidade é colocada à prova por seus surpreendentes inimigos.

    Menos sarcástica que a história anterior, Panza investe em um traço mais firme e bem delineado em preto e branco, se aproximando muito mais do padrão das animações do que das charges, novamente brincando com referências até mesmo anacrônicas como o Monstro de Frankenstein saltar das páginas de um livro para enfrentar um assustado e impotente Sancho dentro de um moinho de vento.

    O desdobramento criado por Caio a partir da história original conta com um humor mais comedido em seu tom, em contraponto com a narrativa visual expressiva e repleta de dinamismo em sua diagramação. Dessa simbiose, o autor concebe uma história que devolve o heroísmo ao Quixote, agora não mais um louco, mas sim um visionário incompreendido por seus pares, que repassa seu legado ao fiel e roliço escudeiro, forjando assim um herói improvável, mas o primeiro sidekick da história. Também em lombada canoa, Panza conta com quarenta páginas, impressas em papel pólen, além de capa cartonada.

    Em R’lyehboy temos uma salada de referências saltando das páginas, passando por Hellboy, H.P. Lovecraft, Raça Negra e toda a estética e mecânica dos jogos de RPG como Dungeons & Dragons, em páginas dispostas no formato horizontal, com poucos quadros e uma proposta de traço que brinca com o expressionismo que norteia o trabalho de Mike Mignola em choque com o traço cartunesco já característico de Caio.

    Assim acompanhamos a história nonsense de um investigador sobrenatural, claramente inspirado na criação máxima de Mignola e no famoso Cthulhu, símbolo maior da literatura lovecraftiana, diante de ameaças bizarras de toda sorte, como vikings cujo canto de guerra se assemelha a uma paródia de “É tarde demais”, do grupo de pagode Raça Negra. Falar em nonsense, como no início deste parágrafo, não se mostra um exagero agora que temos uma pequena noção do que estamos falando aqui, não é mesmo?

    Como as duas obras anteriores, R’lyehboy foi publicada também em capa cartonada, lombada canoa e setenta e duas páginas e emula o padrão visual das capas de Hellboy, de Mignola.

    Publicadas pela Quinta Capa e financiadas através do Catarse, as revistas de Caio Oliveira tecem um padrão narrativo hilário e despojado, fortemente calçado na paródia como estratégia de composição discursiva, alternando até mesmo entre estilos de narrativa visual de acordo com as propostas de cada história, evidenciando a versatilidade do quadrinista brasileiro, dono de um texto ácido e de uma arte dinâmica, que arrancam boas risadas até mesmo do leitor mais carrancudo.

    Conheça mais do trabalho de Caio Oliveira: Quinta Capa | Twitter | Instagram.

  • Resenha | Por Muito Tempo Tentei me Convencer de Que Te Amava

    Resenha | Por Muito Tempo Tentei me Convencer de Que Te Amava

    Em 2015, o então prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, determinou que a Avenida Paulista deveria ser fechada para veículos motorizados e liberada para pedestres e ciclistas, durante os domingos e feriados nacionais, entre as 10h e as 18h.

    Tal medida teve como objetivo trazer a população para esses espaços, propiciando um ambiente de lazer tranquilo e seguro para as famílias que por lá poderiam passar. A medida foi bem sucedida e continua em vigor ainda nos dias atuais.

    Sob esse pano de fundo, Thiago Souto concebeu Por Muito Tempo Tentei me Convencer de Que Te Amava, história que narra o passeio dominical de um paulistano (ele mesmo, no caso) pela Avenida Paulista.

    Com uma narrativa sinestésica e polifônica, Souto leva o leitor a acompanhar sua sensação diante do que a cidade pode oferecer. Em fluxo de pensamento ele divaga e apresenta fragmentos da realidade entrecortados entre si, criando assim uma colcha de retalhos que evoca a experiência pessoal em detrimento do relato fidedigno.

    Desse modo, a narrativa se dispõe a construir toda uma ambientação que ressoa aos detalhes mais ordinários que englobam o contato humano, ao mesmo tempo em que personaliza a cidade de São Paulo, tratando-a quase como alguém com vida e vontade próprias.

    Nesse intuito, Souto abre mão de elementos basilares da narrativa gráfica, deixa de lado requadros e sarjetas, fazendo com que a página como um todo funcione tanto enquanto unidade de sentido quanto a partir de toda uma multiplicidade de cenas que se acumulam e se atropelam na explosão multissensorial pela qual o autor passa ao se pegar desbravando São Paulo por um ângulo que até então não havia imaginado.

    A diversidade é a todo tempo evocada através dos pedaços de vida que o olhar de Thiago capta em seu entorno, conjugando visualidades e pontos de convergência através de uma narrativa visual caótica e que se estabelece em dupla camada, através do preto, do branco e do magenta, que dão volumetria para as cenas ao mesmo tempo em que possibilitam a simultaneidade dos eventos que se entrepõem aos planos narrativos.

    A dissonância resultante do traço dinâmico e camaleônico de Souto torna um passeio de domingo em uma experiência transcendental, que discute a relação de amor do autor com a capital paulista, sua cidade natal, mas que traz consigo particularidades tão grandes e vastas que ele mesmo por vezes precisa parar e contemplar aquele todo múltiplo e diverso que compõe a cidade.

    Publicado pela Balão Editorial, Por Muito Tempo Tentei me Convencer de Que Te Amava possui quarenta e oito páginas em papel pólen e capa cartonada com orelhas. Breve, mas impactante, a história entrega uma carta de amor a São Paulo e desnuda o imenso potencial de Souto enquanto quadrinista, com seu roteiro fragmentário e arte fluida.

  • Resenha | O Filho Mau

    Resenha | O Filho Mau

    Rui Barbosa certa vez afirmou que “família é a célula mater da sociedade”, e em torno dessa estrutura nossa civilização se construiu e se desenvolveu. Invariavelmente, todos somos afetados, positiva ou negativamente e em maior ou menor medida, por toda a carga histórica e psicológica que nossas famílias nos trazem. Ninguém consegue escapar inteiramente dessa bagagem.

    Histórias de cunho familiar estão por aí desde que o mundo é mundo, e O Filho Mau não foge dessa tradição ao se debruçar sobre o diálogo desenvolvido entre uma neta e sua avó, no presente, acerca de uma tragédia que se abateu sob sua família, num passado já distante, mas que impactou sobremaneira todos dali em diante: o parricídio cometido pelo primogênito da casa, Manuelzinho.

    Alternando temporalidades, a história concebida por Carol Sakura e Walkir Fernandes explora vivências e trabalha com maestria pelos silêncios. choques e falhas de comunicação existentes no seio familiar, trabalhando a dificuldade muitas vezes existente para se expressar determinados sentimentos, anseios e angústias, quando em família.

    Se, em um ambiente pautado pelo diálogo claro e límpido, lidar com o trauma de toda uma família já seria complicado, imagine o tamanho do problema ao se enfrentar barreiras por vezes intransponíveis que separam pessoas unidas pelos laços familiares, mas involuntariamente distantes, seja por dilemas do passado ou mesmo por medo de lidar com o peso do presente.

    Como resgatar uma memória dolorosa sem trazer gatilhos, mágoas ou mesmo desconforto em uma relação na qual se espera amor incondicional? O ideal de família perfeita é não somente questionado em O Filho Mau, mas estilhaçado, dilacerado, no momento em que as rachaduras são expostas e as feridas não podem mais ser ocultas por um véu de perfeição que raramente se comprova de fato. Há amor incondicional em família? Há perdão? Ou o seio familiar não seria simultaneamente um solo fértil para expectativas e decepções, um mar repleto por promessas muitas vezes não cumpridas?

    O Filho Mau apresenta um roteiro claro, direto e muito bem desenvolvido, que trafega entre o realismo psicológico e o impressionismo, criando uma relação intertextual bem elaborada com a natureza cínica dos contos de fada. O texto dialoga perfeitamente com a narrativa visual fluida e expressiva, potencializada pelo traço cartunesco e ágil de Fernandes, encontrando na cor roxa uma ferramenta de diferenciar as cenas do presente e as do passado, sem deixar de conferir profundidade para os personagens, mesmo em um conto tão breve.

    Falando muito através do silêncio, o roteiro de Sakura acerta em cheio ao costurar uma reflexão sobre dinâmica familiar e toda sorte de eventos que afetam o modo como as pessoas se percebem em relação à família, diante do avançar inclemente da vida. As quebras discursivas e as sequências conversacionais chamam a atenção pela naturalidade com que são dispostas, reproduzindo a complexidade existente em qualquer papo em família, evidenciando atritos e incômodos geracionais e perceptivos entre as duas protagonistas. A trama evidencia a fragilidade inerente aos diálogos delicados e inescapáveis travados no seio familiar, aqueles nos quais qualquer passo em falso pode gerar um conflito maior, envenenando as relações de todos como um todo.

    Organicamente o enredo dialoga com a narrativa visual fluida e ágil empreendida pelo traço cartunesco de Fernandes, encontrando na cor roxa uma ferramenta para diferenciar as cenas do presente e as do passado, sem deixar de conferir profundidade para os personagens. O uso de cores chapadas, com parco emprego de sombras e texturas, entrega ao plano narrativo uma dinâmica que remete à sutileza das histórias infantis, em um contraponto interessantíssimo com a temática séria que norteia o enredo.

    Conciso e profundo, O Filho Mau entrega um trabalho que envolve o leitor ao versar sobre um tema universal, sem deixar de operar de forma intimista e melancólica, exibindo um elevado grau de sofisticação e sincronia na construção diegetica. Ter apenas 104 páginas é um ponto negativo, pois a história é tão bem desenvolvida que não conta com qualquer tipo de barriga, deixando no leitor aquele gosto de “quero mais” que todo grande conto deixa.

    A obra de Carol Sakura e Walkir Fernandes foi publicada de modo independente em 2020, em capa cartonada e com orelhas. A graphic novel pode ser considerada, com o perdão do trocadilho, um Quadrinho para todas as famílias!

    Compre: O Filho Mau.

  • Resenha | A Entrevista

    Resenha | A Entrevista

    Perdido em uma vida modorrenta e preso em um casamento fracassado, o psicólogo italiano Raniero vê sua vida mudar da água para o vinho quando conhece uma jovem e misteriosa paciente chamada Dora, que o leva por uma jornada de autoconhecimento e reflexão sem precedentes, colocando em dúvida as noções tradicionais de relacionamento e de liberdade sexual que sempre nortearam a vida certinha e nada ousada do protagonista.

    Ambientada na Itália em um futuro próximo, a trama gira em torno de temas como sexualidade, monogamia, vida extraterrestre, telepatia e o inclemente avançar da tecnologia na vida em sociedade, para estruturar seu enredo a partir da constante contraposição de pontos de vista entre os personagens, que por vezes se pegam em um jogo de interlocução que evocam mesmo o clima de uma entrevista.

    Embarcando em uma proposta narrativa que opera de modo fragmentário, Manuele Fior faz uso do silêncio com a mesma sutileza com a qual lida nas sequências conversacionais, forjando uma intrincada teia de eventos que atordoam e surpreendem a todo instante, contrabalanceando o impacto das interações com a aura etérea que paira sob o enredo, através de enquadramentos panorâmicos que atuam no controle do ritmo da narrativa.

    A arte, fortemente estruturada entre preto, branco e as variações de tonalidade que existem entre os dois, alterna planos abertos e fechados e em um engendrado uso dos tons de cinza para dar e retirar a iluminação necessária ao longo dos painéis, conferindo assim uma atmosfera sobrenatural e sombria para a história, artifício este que potencializa o suspense da trama ao mesmo tempo em que oferece camadas de significação no campo diegetico, ao se utilizar da ambientação típica das ficções científicas para explorar a profundidade inerente às emoções humanas.

    Autor de Cinco Mil Quilômetros por Segundo, o quadrinista italiano novamente investe em uma história sobre sentimentos e sobre a natureza complicada das relações interpessoais, mas agora foge do convencional ao entregar um trabalho inventivo e surpreendente, tanto a nível de roteiro quanto em relação à narrativa visual elíptica que adota ao inserir, de forma melindrosamente diluída no enredo, uma crítica à dependência do ser humano em relação às novas demandas impostas pela tecnologia e pela aparentemente incontrolável necessidade de romper com as convenções, algo que marca a história humana ao longo dos tempos, em contraste com a necessidade que os seres humanos têm de se conectar uns com os outros.

    O roteiro de Fior lembra em larga medida o eixo temático utilizado pelo seriado televisivo Black Mirror, que se notabilizou ao longo da última década por seu uso alegórico da tecnologia para versar sobre a complexidade do ser humano.

    Traduzida por Michele Vartuli, “A entrevista” é a segunda obra de Manuele Fior trazida ao país pela Editora Mino, cativando pela prosa envolvente e pela arte expressiva do autor, capaz de criar personagens inesperadamente relacionáveis e marcantes, lançados em situações incômodas e incomuns.

  • Resenha | O Martírio de Joana Dark Side

    Resenha | O Martírio de Joana Dark Side

    Consagrada como heroína na França por seus feitos durante a Guerra dos Cem Anos, Joana d’Arc foi capturada, julgada e condenada à morte na fogueira, o que ocorreu em 1431.

    Amplamente conhecida, a trajetória de vida da jovem que ousou romper com os padrões da época já rendeu centenas de adaptações para os mais diferentes meios narrativos. Assim, contar qualquer aspecto de uma história tão famosa após tantos projetos bem sucedidos no passado torna-se um grande desafio.

    Que bom que quem se encarregou da inglória tarefa dessa vez foi o quadrinista brasileiro Wagner Willian.

    Em O Martírio de Joana Dark Side, o versátil artista se propõe a contar sobre o processo inquisitório pelo qual passou Joana, subjugada e humilhada pelo clero, até culminar com sua terrível execução na fogueira.

    Inspirado pelas diversas adaptações cinematográficas da história de Joana, como os filmes de Victor Fleming (1948), Robert Bresson (1965) e principalmente a versão de Carl Dreyer (1928), Wagner Willian opta por destrinchar o julgamento de Joana em toda sua carga dramática, apostando em planos fechados que ressaltam a agoniante condição da mártir diante de algozes que a todo momento debocham e vociferam contra suas convicções.

    Desenvolvida em preto e branco, a arte de Willian explora o suplício psicológico da personagem, e mesmo que se baseie em A Paixão de Joana d’Arc e em uma entrevista da protagonista do filme, Jeanne Falconetti, a abordagem escolhida pelo quadrinista remonta em grande medida os melhores momentos da cinematografia de Ingmar Bergman, ao contrapor a fé de Joana com sua angústia diante da iminência da morte.

    O realismo colocado em prática durante o julgamento é por vezes deixado de lado na progressão do roteiro, abrindo espaço para sequências que mesclam real e imaginário, num processo que reflete a mistura entre os anseios de Joana com a aceitação de seu fatídico e cruel destino.

    Incorrendo numa abordagem que remonta à metaficção historiográfica, Willian investe em um final poético para a história, que subverte o real encerramento da vida de Joana, numa tentativa de sublimar e redimir a injustiçada mulher, que desafiou as convenções e os preconceitos da época em nome de uma missão que considerava tão importante ao ponto de valer a sua vida.

    Com um roteiro conciso, O Martírio de Joana Dark Side apresenta uma história trágica e dura, cujo ritmo poderia se dar de forma mais ágil caso não se prendesse tanto nas referências que norteiam a concepção da trama como um todo, para assim poder explorar a inventiva e dinâmica narrativa visual que marca os trabalhos do autor de Bulldogma, O Maestro, o Cuco e a Lenda e Silvestre, esta última ganhadora do Prêmio Jabuti de 2020.

    Publicada de forma independente pelo próprio Willian, através de sua Editora Texugo, O Martírio de Joana Dark Side conta com 76 páginas, capa cartonada e papel Pólen Soft de 80g, como parte da Coleção Cine Qua Non Vol I.

    O potencial dramático do traço do quadrinista foi colocado à prova nesse Quadrinho, que conta com prefácio de Gabriela Franco (criadora do Minas Nerds), e resultou em uma grande homenagem ao ícone feminista que Joana d’Arc representa.

    Compre: O Martírio de Joana Dark Side.

  • Resenha | Vingadores da Costa Oeste: Melhor Costa

    Resenha | Vingadores da Costa Oeste: Melhor Costa

    Na esteira dos acontecimentos de sua série solo, que antecede este encadernado e espantosamente ainda não foi publicada no Brasil, Kate Bishop tem trabalhado como investigadora particular em Los Angeles, mas no momento em que tubarões terrestres invadem a costa e a Tigresa surge gigantesca e insana diante de toda a cidade, a Gaviã Arqueira precisa reunir forças com improváveis heróis para darem conta desse perigo iminente.

    Nesse intuito, se juntam a Kate seu amigo e mentor Clint Barton, a explosiva Miss America Chavez, a carismática Gwenpool, o infame Quentin Quire e o novo namorado de Kate, o novato Fusão. Em uma aventura tresloucada e pautada pelo nonsense, o grupo encara nessa jornada uma série de vilões de quarta (ou até quinta) categoria, enquanto são filmados e financiados por um reality show televisivo que acompanha suas peripécias pela cidade dos anjos. É isso mesmo que você leu: da efemeridade millenial surge a nova formação dos Vingadores da Costa Oeste!

    Com boas doses de humor e no melhor estilo mockumentary, Kelly Thompson faz dessa série a “continuação espiritual” de seu sensacional trabalho anterior, e algumas das tramas trabalhadas em Vingadores da Costa Oeste fazem mais sentido quando se tem na bagagem a leitura das aventuras anteriores de Kate Bishop, de modo que o leitor que simplesmente caiu de paraquedas e só leu esse encadernado pode acabar se sentindo como quem subiu num bonde em movimento.

    Os diálogos expositivos ao extremo e muitas vezes preguiçosos podem incomodar em algum ponto e tornar a leitura ligeiramente maçante, mas a vibe de série cômica torna possível que esses problemas sejam relevados em prol de um enredo que flerta com os conceitos mais cafonas possíveis de forma despreocupada e orgânica. Os clichês das aventuras super-heroicas são explorados com um excelente timming pela autora, que debocha do gênero enquanto faz referências diversas, tanto ao meio dos quadrinhos quanto à cultura pop em geral. Nesse sentido, são impagáveis e imperdíveis as participações de Gwenpool e Quentin Quire, o inesperado casalzinho da vez, com seus comentários metalinguísticos e tiradas espirituosas.

    As piadas visuais são brilhantemente desenvolvidas pelos desenhistas que acompanham Thompson nessa empreitada, como o grande Stefano Caselli e os pouco conhecidos Daniele Di Nicuolo, Gang-Hyuk Lim e Moy R., em parceria com as cores de Tríona Farrell e do próprio Lim, que trabalha nas duas etapas da narrativa visual. Desse modo, as sequências em off, na qual os membros do grupo dão depoimentos lembram em grande medida séries populares como The Office e Modern Family, o que casa com a proposta de Thompson de fazer do grupo uma equipe de trabalho improvável e unida por laços de amizade.

    A tradução de Dandara Palankof, associada com a adaptação de Mateus Ornellas se destacam sobremaneira, na medida em que as piadas e as referências se tornam palatáveis e fazem o texto ganhar fluidez, apesar da expositividade supracitada.

    Por fim, Thompson entrega um trabalho honesto e bem divertido, mas que não vai muito além disso, resolvendo pontas soltas da série da Gaviã Arqueira e reativando uma equipe carismática da Casa das Ideias desde os tempos em que John Byrne esteve à frente das histórias, há mais de trinta anos.

    Com suas 240 páginas e publicada em capa cartonada, a série tem excelente acabamento e impressão, um formato muito pedido pelo público em geral mas que em diversos momentos é ignorado pela editora Panini, em prol dos encadernados de capa dura, que oneram o preço final para o público e por vezes se tornam menos acessíveis. Fica a esperança de que esse formato faça sucesso e abra caminho para que outras publicações da editora saiam também dessa forma, atingindo ainda mais leitores.

  • Resenha | Eles Nos Chamavam de Inimigo

    Resenha | Eles Nos Chamavam de Inimigo

    O ator George Takei ficou mundialmente conhecido por seu personagem Hikaru Sulu, na franquia Star Trek, um fenômeno da ficção científica referenciado nos mais diversos produtos culturais ao longo das últimas décadas, sempre presente no imaginário popular através de filmes e séries dos mais diversos.

    O que a maioria das pessoas não sabem, contudo, é que antes de se tornar um ator e ativista mundialmente reconhecido, o longevo ator enfrentou o preconceito e a discriminação racial em níveis cavalares, logo após o ataque japonês a Pearl Harbor, no final de 1941.

    Na histeria que varreu a Costa Oeste dos Estados Unidos após o atentado, tanto os japoneses residentes nos EUA quanto seus descendentes foram levados para campos de detenção, injustificadamente listados como suspeitos de associação e fidelidade ao Império Japonês, em plena Segunda Guerra Mundial.

    Desapropriados de tudo que haviam conquistado honestamente ao longo dos anos e deixados em um campo severamente vigiado no meio do Arkansas, os Takei percorreram uma longa jornada até a recuperação de sua liberdade, com consequências que perduraram através das décadas para a população nipo-americana e que influenciaram sobremaneira a forma como o primogênito George viria a enxergar o mundo.

    Em um relato sensível e detalhado, Takei conta a história de sua família de forma tocante e intimista. Contando com Justin Eisinger e Steven Scott nos roteiros, as reminiscências do octogenário ator percorrem tanto sua infância quanto sua vida adulta, explorando não só o trauma do encarceramento injustificável quanto as reverberações desse absurdo institucionalizado pelo Estado.

    A impressionante narrativa visual de Harmony Becker dialoga com as facetas do roteiro ao apresentar um traço camaleônico que se adapta às sequências propostas, ora apresentando um aspecto mais cartunesco, ao explorar as aventuras do pequeno George e seus irmãos, ora dispondo de uma narrativa mais detalhada e menos descontraída, para trabalhar a passagem dos anos e os momentos marcantes da trajetória de Takei pós campo de detenção.

    A tradução de Érico Assis logra êxito ao reproduzir os costumes e maneirismos da fala de japoneses se comunicando em uma língua que não é a sua, gerando efeitos cômicos em alguns momentos mais lúdicos, mas sem perder a seriedade exigida pelos momentos mais tensos da história.

    A leveza da visão infantil é contrastada a todo instante pelos autores com o absurdo cometido contra a população nipo-americana em um evidente movimento racista institucionalizado pelo Estado. As discussões políticas travadas pelos pais do intérprete de Hikaru Sulu são a todo tempo colocadas em perspectiva com as recordações de momentos divertidos e lúdicos do próprio George e seus irmãos em meio ao total e completo absurdo.

    Seguindo o relato do Takei mais famoso da família, a obra carrega consigo a observância de todo o disparate ocorrido junto de um otimismo marcante do ator em relação à democracia e à ideia de liberdade que ele próprio imagina sobre os EUA. Esse viés entusiasta e patriótico acaba evidenciado e gera incômodo na medida em que se percebe que há mais idealização do que constatação factual sobre as estruturas democráticas dos EUA.

    Nessa obra, indicada ao prêmio Eisner 2020 na categoria de obras baseadas em fatos reais, as contradições e os equívocos dos EUA não são mencionados diretamente por Takei, mas podem ser inferidos pelos leitores mais atentos através da construção de roteiro elaborada por Eisinger e Scott, apesar do tom positivo com que George Takei, do alto de suas mais de oito décadas de vida, consegue manter sobre sua longa e próspera vida.

    Publicada pela Editora Devir no final de 2019, “Eles nos chamavam de inimigo” conta com 208 páginas, capa cartonada com orelhas e um design de edição que torna a leitura ainda mais satisfatória e envolvente.

    Compre: Eles Nos Chamavam de Inimigos.

  • Resenha | Jane, a Raposa e Eu

    Resenha | Jane, a Raposa e Eu

    Sabemos que o bullying e os absurdos padrões de beleza permeiam a sociedade através dos anos, oprimindo sim a todos, mas especialmente as mulheres desde a mais tenra idade, sempre exigindo delas muito mais do que exigem dos homens, colocando sobre o sexo feminino pressões esdrúxulas e inexplicáveis como forma de reafirmação de padrões validados por uma cultura que hierarquiza mulheres em relação aos homens nas mais diferentes instâncias.

    Em Jane, a Raposa e Eu as autoras canadenses Isabelle Arsenault e Fanny Britt se juntam para narrar as agruras e os percalços pelos quais passa a tímida Hélène, recém excluída do grupo de amigos da escola e agora mais uma das crianças deslocadas e desoladas a perambular pelo lugar, sendo insultada e depreciada por todos à sua volta.

    Se sentindo cada vez mais excluída e diminuída perante os demais, a garota se apega substancialmente à leitura de Jane Eyre, clássico da literatura escrito por Charlotte Brontë, sempre se comparando com a personagem-título, e buscando nela forças para superar a melancolia decorrente do abandono por parte de suas colegas, enquanto convive com seu descontentamento com o próprio peso e com a situação em que se encontra no seu círculo de convivência e diante do mundo propriamente dito.

    Em uma prosa intimista e sensível, Arsenault e Britt conseguem emular a sensação de desalento e de solidão que uma criança pode sofrer quando se vê perseguida por todos os lados, sem conseguir expressar o que sente e se afundando cada vez mais em seu desencanto com o mundo. A crítica aos padrões estéticos e às pressões pelas quais as meninas passam – muitas vezes espelhando traumas e opressões também vivenciados por suas mães – é trabalhada de forma delicada e tocante, fazendo uso em diversos momentos do aspecto simbólico para extrair significação e profundidade para a trama.

    Narrada quase que inteiramente através do fluxo de pensamento da própria Hélène, a história nos aproxima das emoções da protagonista e nos permite identificar como os acontecimentos do dia a dia são por ela percebidos e como ela se afeta por cada palavra, gesto ou olhar lançados para si pelos demais.

    Tanto Jane Eyre quanto a raposa, citadas no título expõem perspectivas da mente de Hélène, que vê a protagonista do romance de Brontë como um ideal de mulher inatingível e enxerga na raposa com a qual se deparou durante o acampamento escolar como um símbolo da rejeição e do medo que tomam conta de sua cabeça confusa e atribulada.

    A amizade, contudo, surge nesse tocante romance gráfico como aspecto redentor para a garota, fazendo de Géraldine a parceria necessária para esse momento difícil, a existência que devolve cor ao mundo de Hélène e a faz deixar alguns traumas de lado, largando o vazio e abraçando a esperança por dias melhores.

    Em uma narrativa que se apega ao poder da amizade como saída para esse círculo vicioso de depreciação e de desalento, a obra extrai da simplicidade a força para tratar da complexidade que é crescer diante de tantas imposições e opressões implacáveis vindas de todos os lados, inclusive de onde menos se espera.

    A tradução para a edição brasileira fica por conta de Beatrice Moreira Santos, que conserva em seu trabalho a ingenuidade do fluxo de pensamento de uma garota tão jovem e tão introvertida quanto Hélène. O letreiramento e a composição ficam a cargo da experiente e icônica Lilian Mitsunaga, que faz uso de fontes diferentes quando reproduz o monólogo de Hélène, os diálogos propriamente ditos e as reflexões da garota sobre Jane Eyre.

    Chama a atenção, positivamente, o fato do corpo editorial à cargo da edição brasileira ser composto quase que inteiramente por mulheres, salvo a presença de Geraldo Alves na produção gráfica, uma vez que além das supracitadas Beatrice e Lilian, estão presentes no trabalho Maria Fernanda Alves no acompanhamento editorial, Cristina Yamazaki e Ana Maria Alvares na parte de revisão gráfica e Katia Harumi Terasaka por conta da edição de arte.

    Publicada no Brasil pela Editora WMF Martins Fontes, Jane, a Raposa e Eu conta com 104 páginas em papel off-set de excelente gramatura e capa cartonada, sem orelhas.

    Compre: Jane, a Raposa e Eu.

  • Resenha | Silas

    Resenha | Silas

    Em Salto, Rapha Pinheiro apresentou ao público um primeiro vislumbre da cidade subterrânea de Intos, destacando a coragem e o ímpeto do jovem Nü, que se impôs diante das mentiras e desmandos que mantém o Barão no controle de toda a população.

    Se colocando em um papel de arauto da verdade, após descobrir que o mundo da superfície é seguro e o povo tem vivido e morrido em meio às claustrofóbicas paredes das cavernas, Nü parte com Jules e Mae, frustrado por não conseguir convencer a população acerca da vilania do líder da cidade, mas não sem tocar ao menos uma pessoa, o misterioso capitão da polícia de Intos, Silas.

    Nesse spin-off, Pinheiro se propõe a contar a vida do silencioso e enigmático personagem, em paralelo com a trajetória de Nü, narrada em Salto. Com precisão, o quadrinista mostra a sofrida vida de Silas, que desde pequeno se viu sozinho, após um terrível e misterioso acidente, precisando de uma engenhosa armadura para conseguir sobreviver na cidade.

    Criado pelo Barão, Silas cresceu e se destacou vivendo isolado das pessoas, sem demonstrar emoções nem quaisquer preocupações que não tivessem relação com sua atuação profissional. Intransigente e impiedoso, Silas passa por uma crise de consciência após ser interpelado por um beberrão na rua, e posteriormente conhecer Maud Rockwell.

    Na idosa, também afligida por um acidente durante a infância, Silas encontra uma figura materna, e começa a repensar suas atitudes e sua devoção cega ao Barão, enquanto surge na cidade o burburinho resultante das aventuras de Nü. Tendo de conviver com a tragédia da perda e com sua consciência lhe mostrando que há algo de errado na história que vem lhe sendo contada ao longo dos anos, Silas parte para descobrir a verdade, o que resulta nos eventos mostrados em Salto, e nos leva ao confronto entre o capitão arrependido e seu mentor corrompido.

    De forma inventiva, Rapha Pinheiro faz de Silas um complemento para o entendimento de Salto, mostrando facetas da história que não poderiam ser observadas em um primeiro momento, em uma perspectiva unidimensional. Em um recurso típico das séries de TV e do cinema, essa montagem das cenas já vistas anteriormente sob uma outra perspectiva confere requinte para a narrativa.

    Nessa nova HQ, o quadrinista expande os conceitos que apresentou em seu trabalho anterior e fecha algumas pontas, deixando outras em aberto para uma possível – e desejável – continuação, dando conta dos desdobramentos resultantes dos eventos narrados nesse conto sobre escolhas e mudanças de rota.

    Pinheiro demonstra sensibilidade ao construir a personalidade de um personagem que não pode falar, e cujas feições se encontram escondidas por baixo de uma inflexível máscara protetora. Por trás de todo o aparato tecnológico, Silas apresenta complexidades, traumas e valores, demonstrados através de um competente trabalho de composição narrativa por parte do autor.

    Ao não fazer uso do suporte verbal, Silas atua em uma narrativa contada por seus coadjuvantes, o que faz com que estes também precisem ser bem construídos e desenvolvidos, para não soarem rasos e descartáveis. O amadurecimento da escrita de Rapha Pinheiro é flagrante entre Salto e Silas, enquanto a arte continua um ponto de destaque na trama, conduzindo visualmente o leitor por caminhos que as palavras muitas vezes não dão conta de revelar.

    Em relação ao letreiramento dos balões e caixas de texto, a HQ comete alguns deslizes de ordem revisional, mas nada que interfira na experiência de leitura.

    Com Silas, Pinheiro dá mais um passo em seu universo steampunk, tecendo metáforas com o mundo real e dando alma e personalidade para suas criações. Fica a esperança de uma continuação, pois o universo ficcional criado pelo quadrinista ficou ainda mais interessante.

    Publicado pela Avec Editora, Silas conta com 96 páginas em papel couché de boa gramatura e capa cartonada, sem orelhas.

    Compre: Silas.

  • Resenha | Salto

    Resenha | Salto

    Com a chegada de uma terrível e persistente chuva, os habitantes flamejantes de Edos partiram para as cavernas, se estabelecendo e criando a cidade subterrânea de Intos. Durante anos e anos a sociedade se organizou por ali sob a égide do Barão, que alegadamente possibilitou ao povo as condições para que a vida nas profundezas da caverna fossem possíveis.

    Essa “verdade”, amplamente difundida para a população, sempre foi tida como inquestionável, e o poder do Barão permanecia incontestável, até que o tímido e inquieto Nü, o único rapaz azul no meio de uma cidade povoada por pessoas laranja, começa a desconfiar de que há algo de estranho no ar, e decide investigar. Saltando por entre os telhados das casas de Intos, o jovem acaba descobrindo detalhes inconvenientes acerca do venerado Barão, e passa a ser perseguido pela cidade.

    Ao fugir dali para preservar sua vida, Nü salta pelos labirínticos caminhos das cavernas, até descobrir a assustadora verdade: o mundo lá fora está normal, sem chuvas, e o Barão tem usado o medo para manter a população sob seu controle durante todos esses anos.

    Partindo para uma jornada de revelação e de contra-ataque diante das mentiras com as quais conviveu durante todos esses anos, Nü se propõe a revelar toda a verdade para a população, mesmo que sua vida seja colocada em risco no processo.

    Em uma releitura interessante e criativa do Mito da Caverna, de Platão, Rapha Pinheiro constrói uma narrativa de aventura calcada em uma estética steampunk, com forte teor de crítica social, em uma abordagem que lembra em alguns momentos a aclamada série Bone, de Jeff Smith.

    Com grande domínio da narrativa visual, o quadrinista carioca investe em angulações ousadas e opta por um enquadramento dinâmico, alternando entre planos fechados e panorâmicos, dando solidez e identidade para o universo que criou. O uso de cores digitais acrescenta em muito a esse senso de identificação e pertencimento da obra, chamando a atenção em diversos momentos pelo contraste entre as cabeças flamejantes dos habitantes de Intos e as paredes escuras das cavernas. Os personagens apresentam carisma e expressividade marcante, todos bem caracterizados e distintos em cena.

    Apostando em diagramações inteligentes, contando com rimas visuais e jogos de sentido através da relação entre forma e conteúdo, Rapha Pinheiro dá consistência e profundidade para a angústia de um Nü, já consciente da verdade, que se vê impotente e frustrado diante da letargia e do medo que fazem com que a mentira do Barão se torne mais confortável para a população do que o inexorável peso da verdade.

    Com um roteiro irregular, mas bem amarrado, e uma arte muito interessante, a obra derrapa ligeiramente em suas primeiras páginas, no que se refere à naturalidade do texto. Em um primeiro momento, as conversas soam um pouco artificiais e expositivas, mas logo esse desalinho se ajeita e a trama encontra seu equilíbrio entre texto e arte, comungando os dois eixos da narrativa gráfica de forma coesa e coerente dentro da proposta narrativa.

    Com Salto, Rapha Pinheiro apresenta uma história bem planejada e executada, uma metáfora universal com soluções interessantes em sua narrativa visual e apenas algumas inconsistências de roteiro, mas nenhum problema que seja realmente digno de nota.

    O encerramento, que inicialmente pode soar apressado para muitos, acaba por ser o fechamento ideal para um conto sobre insurgência e indignação diante das mazelas que acometem o mundo diariamente.

    A HQ foi publicada no Brasil pela Avec Editora, em 2017, em capa cartão e com 96 páginas em papel couché de boa gramatura.

    Compre: Salto.

  • Resenha | Homem-Aranha: A Morte de Jean DeWolff

    Resenha | Homem-Aranha: A Morte de Jean DeWolff

    A tragédia marca a biografia de Peter Parker desde a mais tenra idade. Perder entes queridos tem sido uma constante na vida do personagem desde seu surgimento no começo dos anos 60, pelas mãos de Stan Lee e Steve Ditko.

    Após perder os pais, o tio, o sogro e a namorada, era de se esperar que o alter ego do Homem-Aranha já estivesse calejado e acostumado a lidar com a morte sempre ao redor, certo? Pois é a partir de mais uma perda fatal que Peter David escreveu uma das grandes histórias do herói aracnídeo, a saga da morte da Capitã de polícia Jean DeWolff.

    Vista pelo Amigão da Vizinhança como alguém de confiança dentro da força policial, Jean é encontrada brutalmente assassinada em seu apartamento, um crime violento e misterioso, cujo autor não deixou pistas nem justificativas.

    Empenhado a buscar justiça para sua falecida amiga, o Aranha se envolve em uma investigação repleta de idas e vindas, se mostrando sempre à beira de um ataque de nervos, dominado pela tensão, pela raiva e pela sensação de impotência diante do ocorrido.

    Os assassinatos prosseguem, de modo que surge para o público a figura do Devorador de Pecados, um fanático mascarado que tem empilhado corpos por toda a cidade, criando uma teia de eventos que traz para o jogo a figura do Homem sem Medo da Cozinha do Inferno, o Demolidor.

    Com brilhantismo, Peter David consegue compor uma trama tensa e bem costurada, contrapondo as personalidades de Matt Murdock e Peter Parker dentro do roteiro e em diálogo com as subtramas inseridas ao longo da narrativa, de modo a discutir a percepção de justiça versus vingança e a reafirmar a importância do sistema judicial dentro da vida em sociedade.

    A trama versa sobre temáticas ainda hoje pertinentes e se encaixa dentro da proposta da Marvel à época, de modo que as representações de Nova York na história possuem muito do que vemos na fase de Frank Miller à frente da série do Demolidor, tornando as ruas da cidade como um barril de pólvora prestes à estourar, refletindo a tensão social crescente entre as mais diferentes camadas da população.

    O escritor se esforça em compor um Peter Parker furioso e sombrio, afetado pelas perdas que se acumularam ao longo de sua vida, agindo de modo implacável e impiedoso. Tal caracterização é condizente com a proposta temática, dando maior seriedade para o enredo, que se desenrola competentemente dividindo o foco narrativo entre os variados eixos que compõem o núcleo da trama.

    As escolhas narrativas para a história são pertinentes, gerando impacto e dando peso para cada morte ali retratada. A arte, vale ressaltar, potencializa a dramaticidade do enredo, fazendo uso de enquadramentos cuidadosamente escolhidos para manter a tensão e o ar de urgência que a narrativa pede.

    Das grandes histórias do Homem-Aranha, certamente A Morte de Jean DeWolff é uma das mais celebradas, haja visto o peso que ela conferiu para a biografia já atormentada de Peter Parker e o alto nível de sua estrutura narrativa, que remete aos romances policiais sem deixar de lado os heróis fantasiados, contrapondo estilos e tons narrativos em prol do pleno desenvolvimento do enredo, valorizando todas as suas nuances.

    A construção psicológica dos personagens é soberbamente bem erigida, de maneira que David consegue trabalhar com uma grande quantidade de coadjuvantes dentro da história sem perder o fio da meada nem abrir mão do controle do ritmo narrativo.

    O encadernado da Panini Comics engloba tanto o arco da morte da Capitã DeWolff quanto o arco do retorno do Devorador de Pecados, de maneira que a primeira história é desenhada pelo talentoso Rich Buckler, enquanto a segunda trama fica a cargo do longevo Sal Buscema.

    Se na primeira metade temos o aspecto investigativo colocado em evidência, na segunda metade Peter David investe em um arco sobre estresse pós-traumático, trabalhando a psique do Devorador de Pecados e do Homem-Aranha, colocando em perspectiva as marcas que foram deixadas em corpo e alma dos dois rivais após o assassinato de Jean DeWolff.

    Enquanto a arte de Buckler trabalha as mazelas da cidade e o aspecto trágico inerente à história, a dinamicidade da narrativa visual de Buscema fica evidente em cada painel disposto no Quadrinho.

    Homem-Aranha: A Morte de Jean DeWolff é o tipo de história para se ler e reler apreciando as camadas inseridas por Peter David e pelos artistas em cada sequência de quadros, evidenciando a potência que a mídia História em Quadrinhos possui.

  • Resenha | Homem-Aranha Noir: A Face Oculta

    Resenha | Homem-Aranha Noir: A Face Oculta

    Nos Quadrinhos mainstream, de tempos em tempos surgem linhas editoriais alternativas, como podemos perceber pelas versões 2099 e zumbis da Marvel Comics e pelos incontáveis elseworlds do multiverso da DC Comics. O sucesso dessas publicações costumeiramente resulta em continuações, com grandes oscilações nos níveis de qualidade das histórias.

    A linha Marvel Noir não foge dessa tradição, colocando os grandes personagens da Casa das Ideias em um contexto mais violento e visceral da década de 1930, durante o auge da Grande Depressão norte-americana. Em um período simultaneamente sombrio e sedutor, as possibilidades narrativas se multiplicam consideravelmente, equilibrando o drama e o mistério inerentes às narrativas policiais com a ficção científica que resulta no arquétipo dos super-heróis.

    Dentro desse contexto, o sucesso dessa linha editorial era inevitável, e a versão alternativa que obteve maior popularidade, para surpresa de zero pessoas, foi o Homem-Aranha Noir, tornando-se natural que fosse dele a primeira sequência de aventuras dentro dessa continuidade.

    Para manter a fórmula que anteriormente funcionou, o editor Alejandro Arbona não poupou esforços para contar com o retorno da equipe criativa do volume original, formada pelos roteiristas David Hine e Fabrice Sapolsky e pelo desenhista/colorista Carmine Di Giandomenico.

    Nessa nova aventura, a equipe criativa situa o herói aracnídeo em 1933, poucos meses após os eventos do arco anterior, em um momento no qual a crise econômica ainda mantém o país em uma situação delicada, mas indícios de uma retomada são sentidos através de medidas adotadas pelo recém-empossado presidente Franklin Delano Roosevelt, enquanto a sombra do Nazismo começa a tomar força em solo americano, vindo secretamente do outro lado do Atlântico.

    Se no contexto macro podem ser percebidos tímidos sinais de melhora, nas ruas de Nova York a crueldade das gangues ainda impera, com o Mestre do Crime assumindo o posto outrora ocupado por Norman Osborn, O Duende, mantendo o submundo em polvorosa e preenchendo o vácuo momentâneo nas esferas de poder da máfia.

    Envolvido com Felicia Hardy, socialite dona da boate Gata Negra, Peter Parker se vê às voltas com uma intrincada investigação jornalística, junto de seu novo amigo Robbie Robertson, que envolve os bizarros experimentos com animais realizados por um certo Otto Octavius.

    Com um subtexto social bem calibrado, que aborda o racismo da forma abjeta que merece, a história mantém um ritmo de suspense que em muito se assemelha temática e estilisticamente ao filme de Jordan Peele, Corra!, lançado alguns anos após a publicação dessa HQ. Em, que pese o tom de ficção científica, a história mantém um diálogo bem fidedigno com a maneira com a qual a população negra sempre foi vista no ocidente, sobretudo nos Estados Unidos.

    O roteiro de Hine e Sapolsky se vira muito bem ao trabalhar sua história dentro do contexto da época, adaptando os personagens do cânone do Homem-Aranha de modo que faça sentido suas presenças na história, como o agente federal Jean De Wolfe, versão da Capitã Jean DeWolff, que na época jamais conseguiria atingir tal posto, dado o machismo estrutural que impossibilitava que mulheres ocupassem postos desse tipo até então.

    A inserção do Nazismo como um elemento preponderante na ameaça central da história garante um link poderoso com a história real do século XX, algo que gera uma camada de verossimilhança nessa proposta quase metaficcional de narrativa.

    A arte do italiano Di Giandomenico não é marcante por sua sutileza, ganhando destaque através do uso de seu alto contraste e de uma coloração digital que foge um pouco da estética proposta pelo traço, gerando um certo estranhamento no desenrolar da leitura, atenuado pela dinamicidade dos enquadramentos do artista, famoso por fazer storyboards para filmes de cineastas como Martin Scorsese.

    Um ponto que merece destaque negativo é a imprecisão histórica cometida pela tradução brasileira ao final da HQ, quando um oficial nazista fala, no original, em “the national socialist vision of the future (…)”, o trecho é erroneamente traduzido como “o ideal socialista para o futuro (…)”. Esse tipo de equívoco equipara nazismo e socialismo, correntes políticas antagônicas e cuja associação se mostra, à luz dos fatos e dos estudos teóricos, completamente descabida.

    Erros de tradução à parte, Homem-Aranha Noir: A Face Oculta logra êxito ao transpor a personalidade de Peter Parker para um contexto mais bruto e violento de sociedade, apresentando um Amigão da Vizinhança não tão amigável como estamos habituados, bem mais implacável e frio, como se fosse este de fato um homem reflexo de seu tempo.

    O volume publicado pela Panini Comics em capa dura reúne as quatro edições da minissérie Spider-Man Noir: Eyes Without a Face, e contém um pequeno glossário e uma interessante galeria de capas.

    Compre: Homem-Aranha Noir – A Face Oculta.

  • Resenha | DC Encontra Looney Tunes

    Resenha | DC Encontra Looney Tunes

    Em 2017 a DC Comics realizou uma série de crossovers com os personagens da Looney Tunes, em uma iniciativa até certo ponto natural, dado que tanto a editora quanto a marca de desenhos infantis são propriedades do conglomerado Time-Warner, e explorar produtos transmidiáticos é algo corriqueiro dentro da indústria cultural.

    Havia muito risco ao se desenvolver essa ideia, visto que o tom das histórias dos super-heróis em muito se distanciou ao longo das décadas daquele empregado nas pueris animações de Pernalonga e cia. Tal risco, contudo, foi minimizado ao longo da empreitada idealizada por Joey Cavalieri e executada por uma gama extensa de roteiristas e artistas da editora das lendas.

    As histórias, publicadas lá fora primeiro individualmente, saíram por aqui reunidas em um encadernado de capa cartonada, e como toda antologia, oscila bastante em relação ao nível de suas histórias, apresentando tramas mais sérias e mais descontraídas, buscando encontrar um equilíbrio para a junção dos dois universos ficcionais, de modo que todos os encontros fizessem sentido.

    Dessa forma, histórias mais nonsense como as de Pernalonga com a Legião dos Super-Heróis e a maçante trama de Willie Coyote com o insano Lobo coexistem com histórias bem pensadas e contextualizadas como as do Caçador de Marte com Marvin, O Marciano; a parceria entre Mulher-Maravilha e Taz, o western de Eufrazino e Jonah Hex e a melhor história do volume, o encontro de Hortelino e Batman.

    Cada história vem complementada, ao seu final, por um segmento curto de histórias ao estilo Looney Tunes, mais infantis e com maior liberdade para que os autores teçam até mesmo alguns comentários metalinguísticos interessantes, mas que no geral não tornam essa sessão objetivamente relevante ou interessante para o leitor médio, funcionando apenas como um apelo à nostalgia.

    Os links executados nas histórias são em geral bem inseridos. “Melhores intenções”, de Steve Orlando, Frank J. Barbiere e Aaron Lopresti conecta o Caçador de Marte ao marciano Marvin através da sensação de isolamento, inadequação e saudades de Marte que ambos possuem, e os antagoniza a partir da perspectiva contrária que possuem acerca da Terra, concebendo um conto sobre tolerância e aceitação bem pertinente para um tempo no qual ainda tenhamos vivas discussões acaloradas e preconceituosas em relação aos imigrantes mundo afora.

    Em “Melhor um diabo conhecido”, Tony Bedard, Barry Kitson e John Floyd conectam Taz e Mulher-Maravilha ao transformarem o Demônio da Tasmânia em uma criatura mitológica com a qual Diana já havia lidado anos antes, e alguém cuja ajuda era agora indispensável para que a princesa das amazonas pudesse vencer seus inimigos. Essa história surpreende por conseguir adaptar um personagem difícil como o Taz em uma sacada bem inteligente por parte da equipe criativa, adequando o personagem ao contexto visual e temático que permeia o background da heroína.

    Com “Chegan’o e atiran’o”, Jimmy Palmiotti e Mark Teixeira elaboraram uma divertida e empolgante história de faroeste, unindo o estourado Eufrazino Puxa-Briga com o soturno Jonah Hex em uma aventura que envolve a corrida pelo ouro nos EUA e a ganância desmedida em uma época na qual a lei que valia era a de quem atirasse mais rápido. Em que pese a bizarra aparição de Frangolino na história – não há explicação plausível para um Frango antropomórfico e que lute boxe com outros seres humanos dentro da trama -, a história segue um ritmo típico das histórias do velho-oeste, e se valem muitas vezes das personalidades antagônicas dos dois protagonistas para criar uma dinâmica de interação aprazível e coerente com a trama.

    Em “Leze por mim” temos a história que mais se destaca na antologia, o encontro entre Batman e Hortelino Troca-Letras, concebido por Tom King e Lee Weeks. Um dos grandes méritos do conto reside na perfeita interação que os autores realizaram entre os dois universos, trazendo para Gotham City os carismáticos personagens da Looney Tunes, mas transformando-os em personagens humanos, identificando-os com suas contrapartes cartunescas através da composição visual e de maneirismos verbais e gestuais, em uma demonstração de sincronia conceitual entre Weeks e King. Ao se colocar à caça do bandido Pernalonga, Hortelino se vê envolvido em um misterioso assassinato que o leva a encontrar o famigerado Cavaleiro das Trevas de Gotham City. A pegada noir da história cativa e prende o leitor do início ao fim, em mais um trabalho competente de um Tom King que à época ainda estava construindo sua jornada à frente da revista solo do Homem-Morcego.

    O saldo final do projeto é positivo, dado que apenas duas histórias acabaram ficando aquém das expectativas criadas, ainda que possam agradar ao leitor que as encare de modo mais despretensioso. Contando com 248 páginas, a edição da Panini Comics chegou ao Brasil sem muito alarde em 2018, mas foi publicada em um formato ideal, com papel de boa gramatura, capa cartão e lombada quadrada.

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  • Resenha | Fruto Estranho

    Resenha | Fruto Estranho

    A Grande Cheia do Mississipi, ocorrida em 1927, foi uma das piores catástrofes naturais norte-americana de seu tempo, atingindo as margens do rio e os diques com força, inundando áreas de grandes proporções e deixando um rastro de destruição por onde passou.

    Paralelo a isso, a segregação racial perpetuava um ciclo de desigualdades, fortalecendo movimentos supremacistas brancos como os da Ku Klux Klan, que se propunham a perseguir descaradamente as pessoas de pele negra.

    Com esse contexto em mente, J.G. Jones procurou Mark Waid para juntos trabalharem em uma história ambientada nesse começo de século XX, no sul dos Estados Unidos, no qual surge diante de uma sociedade racista e desigual a figura de um ubermensch, o super-homem nietzschiano, porém negro.

    A história se passa em Chatterlee, no Mississipi, durante o supracitado ano de 1927, quando aterrissa na Terra um misterioso e aparentemente desorientado homem. De modo bem diferente da chegada à Terra do recém nascido Kal-El, nas histórias clássicas do Superman, o homem chega já adulto e e imponente, um verdadeiro colosso entre os homens, a epítome da perfeição humana, em meio a uma sociedade que representa de forma inequívoca o atraso total da humanidade.

    Paralela à chegada desse estranho indivíduo, chega à cidade o engenheiro Fonder McCoy, enviado por Washington para ajudar durante a crise dos diques. McCoy, como a maioria da classe trabalhadora da cidade, é negro, o que resulta em doses cavalares de racismo sendo destiladas contra sua figura ao longo de toda obra.

    Amparado pela figura do controverso Senador e da bem intencionada, porém alienada viúva Lantry, McCoy vislumbra na figura do colosso uma chance de garantir a sobrevivência da cidade e da subsistência de seus moradores, tanto a elite branca e racista quanto a grande quantidade de humildes trabalhadores negros, que ali vivem em condições paupérrimas.

    Jones e Waid, famosos na indústria dos comics mainstream norte-americanos, angariaram fama e prestígio narrando a história de homens e mulheres superpoderosos, se digladiando contra ameaças inimagináveis em prol do bem da humanidade, buscando evocar o melhor que o ser humano tem em si.

    Ao se juntar para conceber Fruto Estranho, contudo, a dupla se propôs a narrar um conto sobre o racismo estruturalizado na sociedade norte-americana, em contraposição ao surgimento de uma espécie de Superman indesejado por conta de sua cor. O quadrinho possui grande apuro no que se refere ao trabalho de pesquisa histórica e apresenta questões relevantes, padecendo com alguns problemas de ordem narrativa.

    Os diálogos frios e violentamente racistas com os quais Waid povoa a obra dão verossimilhança para a trama, dialogando com a soberba arte realista pintada por Jones, mas a noção de direcionamento da história acaba comprometida quando pensamos no papel principal da trama.

    O silencioso e colossal alienígena tem desenvolvimento praticamente nulo ao longo da trama, de modo que o destaque das ações recaia sempre sobre Sonny, o pobre homem negro que inicialmente encontra o poderoso extraterrestre e que subsequentemente o acompanha ao longo das desventuras na cidade.

    Cumpre-nos ressaltar que é Sonny quem objetivamente resolve as subtramas da narrativa, se irrompendo contra as forças opressoras e racistas que se impõem sobre ele e seus semelhantes, ainda que o catalisador que motivou a população tenha sido o superpoderoso colosso negro.

    A trama se ambienta com sucesso dentro do contexto histórico e tem êxito ao apresentar as reações da cidade à presença daquele descomunal homem. A Ku Klux Klan exerce um papel relevante na obra, demonstrando a absurda influência desse grupo abjeto dentro das instâncias de poder dos Estados Unidos.

    Se nas histórias lúdicas da DC Comics a figura do Superman se constrói como um símbolo de esperança para a humanidade, em Fruto Estranho o colossal super-homem negro assume papel semelhante para seus iguais, em um grande trabalho de examinação do mito heroico realizado por Waid e Jones.

    O título, publicado pela Boom! Studios nos EUA, saiu por aqui através de Mythos Editora em uma belíssima edição em capa dura e com papel couché, propõe uma discussão pertinente, mas que conta com alguns desequilíbrios em sua organização.

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  • Resenha | Beasts of Burden: Cães Sábios e Homens Nefastos

    Resenha | Beasts of Burden: Cães Sábios e Homens Nefastos

    Quando Jill Thompson precisou ser substituída no segundo volume de Beasts of Burden, um clima de incertezas pairou sobre a multipremiada série, contudo, Benjamin Dewey se mostrou um nome acertado para conduzir essa história junto de Evan Dorkin, co-criador da série junto de Thompson.

    O traço mais rígido de Dewey casou perfeitamente com o clima dessa sequência, que deixou os fofinhos cachorros (e gato) de “Rituais animais” de lado e deu espaço para os Cães Sábios, mais velhos, experientes e severos, diante de toda sorte de ameaças sobrenaturais que cercam Burden Hill. A firmeza do novo desenhista conferiu a solidez necessária para o bom andamento da trama ali proposta.

    Em “Cães sábios e homens nefastos”, Dorkin e Dewey direcionam seu olhar para os arredores da cidade, nas Montanhas Pocono, onde incêndios e ocorrências sinistras surgiram sem mais nem menos, tendo em comum a presença de um estranho símbolo em formato de “S”. Para investigar tal fenômeno, a matilha dos Cães Sábios se embrenha na mata fechada, e começa a perceber que existe muito mais em jogo ali do que possa parecer.

    Adentrando por uma teia intrincada de eventos inexplicáveis, Lundy e sua equipe acaba por se deparar com a perigosa Irmandade da Serpente Vermelha, um grupo de humanos versados em magia e que ameaçam o equilíbrio sobrenatural do lugar, em busca de um antigo deus arcano, algo com o qual os Cães Sábios não podem permitir.

    Entre Salamandras, Guaxinins, Zumbis e Licantropes, o segundo volume de Beasts of Burden expande com sucesso sua mitologia, dando mais um passo rumo ao iminente conflito entre as forças do bem e do mal nesse ambiente de magia e mistério.

    Tendo em Miranda e Lundy seu maior enfoque narrativo, o enredo logra sucesso ao desenvolver não só as personalidades de seus protagonistas, como também dos coadjuvantes Emrys e Carver. Nesse volume temos a primeira interação entre humanos e animais realmente significativa, demonstrando a existência de homens e mulheres também operadores de magia que agem – ou agiam – em conjunto com os animais, algo que o primeiro volume tocou apenas de forma bem breve e distante.

    O desenvolvimento de Miranda, única remanescente da equipe apresentada no volume original, é flagrante, ao passo em que ela caminha para se tornar uma Cadela Sábia e de grande poder, enquanto vemos o orgulhoso Lundy ceder em suas decisões para o bem da equipe.

    As cores conseguem dar vivacidade para a narrativa, conferindo volume e textura para os personagens, sejam eles cachorros ou humanos. O supracitado traço de Dewey obtém êxito ao dar um aspecto mais duro e rígido para os Cães Sábios, sem perder de vista o humor inerente ao bom roteiro de Dorkin.

    Cabe ressaltar que, ainda que seja o segundo volume da série, a história funciona perfeitamente de maneira independente, não sendo necessária a leitura de “Rituais animais” para o entendimento pleno da narrativa.

    Publicado no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim, Beasts of Burden: Cães Sábios e Homens Nefastos saiu nos EUA em 2018 pela Dark Horse e chegou por aqui em 2019, contendo 124 páginas, papel de excelente gramatura e uma capa dura com acabamento primoroso. Um legítimo Petardo!

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  • Resenha | Carnívora

    Resenha | Carnívora

    Há algo de muito errado acontecendo no Complexo da Caveira. Estranhos relatos tem assombrado o morro carioca, e de alguma maneira essas histórias se relacionam com o sequestro da jovem Adriana Lambert. Em busca de respostas sobre sua noiva desaparecida, o esquentado policial civil Carlos Ferraz se envolve em uma série de problemas, ao passo em que a delegada adjunta Jéssica Melo, novata no departamento, se propõe a buscar a solução para o caso ao seu modo, sem saber que está se enfiando em uma ocorrência de cunho sobrenatural.

    De autoria de Péricles Júnior, Carnívora se situa entre a narrativa policial e o terror, se construindo de forma metarreferencial e de maneira um tanto quanto descoordenada em seus atos. O enredo da HQ é relativamente bem elaborado, mas não acompanha o alto nível da arte, penando com diálogos engessados e certa confusão no enfoque narrativo. A certa altura, não é possível dizer quem protagoniza a história, tampouco que se trata de uma trama contada a partir de dois pontos de vista. A sucessão dos acontecimentos apresenta um encadeamento de cenas confuso e caótico, transitando pela narrativa sem muito apego ao desenvolvimento real dos personagens.

    O aspecto policial é bem fundamentado, mesmo com a questão supracitada dos diálogos antinaturais, estabelecendo uma dinâmica de equipe padronizada e relativamente harmônica. Quando se embrenha no terror é que a trama escorrega, visto que o gore existente nas cenas em que as criaturas devoram pedaços das pessoas acaba sendo prejudicado pela utilização da arte em preto e branco. Além da dimensão visual, a explicação para o surgimento da ameaça sobrenatural incorre em alguns estereótipos religiosos e titubeia ao pontuar a origem do fenômeno, a existência ou não de magia e da motivação envolvida.

    As soluções do autor para encerrar a obra são corajosas e acertadas, visto que a história encontra maior fluidez quando centrada em Jéssica, e não em Carlos. Adriana, contudo, é pouco notada, sem que a personagem fosse minimamente trabalhada ao longo da história, e sua presença na capa acaba funcionando mais para fins estéticos do que para qualquer outra coisa. A história é envolvente e bem contada, ainda que cause certo incômodo nas transições de cenas em alguns momentos. A arte de Péricles Júnior é excepcional para ambientar de forma competente a narrativa, encontrando grande força em sua expressividade, e o trabalho possibilita o vislumbre de mudanças promissoras para os futuros trabalhos do autor.

    O quadrinho, publicado pela Avec Editora, conta com capa cartão e papel de excelente gramatura, potencializando o nanquim do quadrinista. A HQ apresenta alguns problemas em relação à revisão textual, mas nada que prejudique a experiência de leitura em suas 120 páginas.

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  • Resenha | Batman: O Messias

    Resenha | Batman: O Messias

    Na reta final dos anos oitenta, pouco após o apogeu da chamada Era de Bronze das histórias em quadrinhos, as tramas viscerais, ultrarrealistas e permeadas por doses cavalares de violência e sangue pipocavam aos montes no mainstream quadrinístico, monopolizado pelas majors Marvel e DC Comics. O trabalho bem sucedido de nomes como Frank Miller e Alan Moore impactou sobremaneira nos artistas da época, o que gerou bons e maus frutos.

    Inserido nesse contexto de época, o roteirista norte-americano Jim Starlin se associou com o desenhista Bernie Wrightson e com o colorista Bill Wray, para contar uma história do Cruzado Encapuzado sobre fé, manipulação e redenção.

    Starlin já era conhecido por ter criado o vilão Thanos para a Marvel Comics, além de ter escrito as histórias de Adam Warlock e do Capitão Marvel. Wrightson, por sua vez, possuía uma carreira extensa e devidamente estabelecida, desenhando para várias editoras, mas se notabilizando por ser um excelente desenhista de histórias de terror, como o Monstro do Pântano, co-criado por ele em parceria com Len Wein.

    A dupla, junto a Wray, decidiu trabalhar com o  Cavaleiro das Trevas, e para isso trouxe ao mundo a minissérie O Messias, dividida em quatro capítulos. Nela, a equipe criativa versa sobre uma temática profundamente atual: a manipulação das massas a partir do fundamentalismo religioso. O Batman, preso e vulnerável, se vê diante da insurgência do Diácono Joseph Blackfire, uma figura controversa e maquiavélica, que se coloca ao lado dos desfavorecidos para fomentar seu culto pessoal, vendendo-se como um legítimo messias para os cidadãos de Gotham City.

    A história parte de uma premissa simples, que ressoa com nossa realidade e dessa forma adquire o impacto pretendido quando foi concebida no final dos anos oitenta, mirando os televangelistas que povoavam as TVs norte-americanas, manipulando as massas e acirrando os ânimos.

    É interessante observarmos o trabalho de ambientação realizado por Starlin e Wrightson, que concebem sua Gotham City profundamente espelhada na cidade de Nova York, de modo a haver um Central Park e uma proximidade com Nova Jersey que torna inegável a intencionalidade. A cidade suja, sombria e misteriosa concebida pela equipe criativa se assemelha em grande medida com a “Big Apple” dos filmes de Martin Scorsese, evocando um ar de degradação típico das histórias noir.

    Starlin ousa bastante, concebendo um Batman falível, errático e inseguro, bem diferente do “rei do preparo” que vimos nas décadas que se seguiram. O autor realmente derrubou o Morcego dentro de uma perspectiva diferente, a de sua racionalidade, e não corporal. As dúvidas, os anseios do herói são colocados à prova a todo instante na narrativa, tendo em Jason Todd uma âncora que prende Wayne à sua realidade e o auxilia no combate a esse inimigo virtualmente invisível.

    O caos que assola Gotham, decorrente das ações de Blackfire, se assemelha em muito ao que pudemos ver em Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, de Christopher Nolan, deixando clara a influência assimilada pelo diretor no encerramento de sua trilogia cinematográfica.

    A arte de Wrightson brinca com o surrealismo a todo instante, investindo em um horror psicológico típico da época, trabalhando com enquadramentos inventivos e metáforas visuais poderosas. A influência do trabalho de Frank Miller fica evidente tanto na composição visual de Gotham quanto na utilização das telas de TV como requadros, para evocar a força da mídia tal qual o criador de Sin City pensou em sua magnum opus O Cavaleiro das Trevas, de 1986.

    A coloração de Wray em diversos momentos se assemelha ao trabalho de Lynn Varley na famosa história futurista do Homem-Morcego, flertando ora com as cores pálidas ora com cores berrantes, deixando sempre em destaque o uso das sombras e das luzes como elementos de composição da mise-en-scène proposta para a narrativa.

    Os méritos da narrativa podem causar certo estranhamento no leitor, visto que ninguém espera se deparar com a visão de um Batman fragilizado, algo que pode de igual modo potencializar o argumento que norteia o enredo, acerca do alcance que uma manipulação de massas bem engendrada pode causar.

    O uso da violência é bem dosado na história, de forma que faça sentido e não soe como apelação barata para chamar leitores para si.

    A editora Panini lançou essa grande história inicialmente pelo selo Grandes Clássicos DC, anos atrás, e trouxe de volta o trabalho em uma exuberante edição de luxo, com capa dura e papel de boa gramatura. Imperdível!

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  • Resenha | O Fantasma de Anya

    Resenha | O Fantasma de Anya

    Vera Brosgol, autora russa e radicada nos EUA, possui uma sólida carreira no campo das animações, e estreou nas histórias em quadrinhos no ano de 2011, com O Fantasma de Anya, obra posteriormente publicada aqui no Brasil, em 2013, pela Editora Jangada. O trabalho de estreia de Brosgol foi tão aclamado por público e crítica que abocanhou de uma só vez os celebrados prêmios Harvey (Melhor Publicação Gráfica Original para Jovens) e Eisner (Melhor Publicação para Jovens Adultos), em 2012.

    Com um traço deveras agradável e limpo, que lembra em muito os desenhos animados do Disney Channel do comecinho da década passada, como Kim Possible, Lilo & Stitch e Jake Long, Brosgol faz uso de uma diagramação padrão e uma arte expressiva, que em muitas vezes torna desnecessária a utilização de balões de fala.

    A narrativa visual da autora é muito satisfatória, o que torna as transições de cenas bem orgânicas e fluidas, quase como uma animação propriamente dita. O trabalho de Brosgol em O Fantasma de Anya poderia facilmente virar um desenho animado, dado o grau de aproximação existente na concepção visual da história em quadrinhos. O uso do roxo como paleta de cor para o desenho confere um aspecto soturno e sobrenatural para a história, enquanto evidencia a competência da quadrinista em dar volume para seus personagens e cenários.

    A trama acompanha a história da adolescente Anya Borzakovskaya, uma imigrante russa que conta com sérias dificuldades na interação social, enquanto sofre com a constante sensação de inadequação que permeia a adolescência de todos nós. Tudo muda para a garota quando ela cai em um buraco e nele encontra um esqueleto misterioso, que posteriormente revela ser o corpo de Emily, o fantasma de uma garota que morreu naquele mesmo local, 90 anos antes, e que se revelou para Anya.

    Levando um pequeno ossinho da fantasma consigo, Anya passa a se aproveitar dos poderes de Emily para se dar bem na escola, melhorando suas notas e seu convívio social. Tais ganhos, no entanto, acabam por mexer demais com elementos basilares da vida da garota russa, o que a levam a perceber que há algo de errado nisso tudo. A barganha espúria que ela fez com Emily esconde mais perigos do que se poderia imaginar, e Brosgol obtém êxito ao desenvolver tal percepção de Anya com naturalidade e sutileza.

    A virada no roteiro é bem executada e inserida na trama, acompanhando o ótimo desenvolvimento dos personagens. Anya, sua mãe, seu irmão, Siobhan, Dima e os demais alunos da escola são bem trabalhados e construídos, o que enriquece a própria formação da protagonista. Anya só possui segurança quanto à certeza de suas inseguranças, o que a leva a lidar com dificuldades de aceitação própria em relação ao seu peso, à sua aparência e à sua condição de imigrante. A garota se esforça ao máximo para parecer americana, por vezes renegando suas origens, bem como se privando de certas roupas por também não lidar bem com a própria forma física, e tudo isso buscando um mesmo objetivo: aceitação.

    A garota busca a todo tempo ser aceita por aqueles com os quais convive, escondendo elementos importantes de sua vida para tentar ser quem não é, e agradar pessoas que nem a conhecem de verdade, deixando de lado aqueles que de fato se importam com ela. Vera Brosgol trabalha muito bem com essa temática, possivelmente buscando elementos em sua própria biografia, visto que ela mesma foi uma imigrante russa, chegando aos EUA quando era bem pequenina. Emily funciona para Anya quase como um espelho retorcido, fazendo com que a garota perceba em si o que viu de errado na fantasma, dando um ar fabular para a história.

    Trafegando por referências que vão desde o Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe, até as histórias infantis, Brosgol apresenta uma competente e deliciosa narrativa logo em sua estréia. Já em relação ao trabalho editorial, este apresentou qualidades e defeitos em sua edição da obra, algo natural até. Se conta com alguns erros de revisão e com certo desfocamento das letras em quadros com o fundo colorido, a edição apresenta um papel de ótima gramatura e uma capa cartão bem resistente, o que possibilitam uma boa experiência de leitura.

    Compre: O Fantasma de Anya.

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