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  • Resenha | Eu Matei Adolf Hitler

    Resenha | Eu Matei Adolf Hitler

    Jason é um autor de quadrinhos bastante inventivo entre os que permeiam o circuito alternativo. A realidade que ele estabelece tem muitos momentos nonsense e o modo como suas personagens são apresentadas é igualmente diferenciada. Em Eu Matei Adolf  Hitler o que se vê é uma ficção científica, que apesar do nome forte, não tem grandes discussões políticas, e sim uma premissa básica: neste mundo, os personagens são antropomorfizados, a função de assassino de aluguel é uma profissão legalizada e bastante comum, e por fim, existem viagens no tempo.

    O personagem principal é um matador contratado para um trabalho, e em paralelo a isso, ele lida com uma forte crise emocional em seu relacionamento. Sua missão é baseada no título do quadrinho, e o motivo da história seguir reside exatamente no fracasso do personagem em matar o Fuhrer. A solução para o insucesso é engraçada, e lida muito bem com paradoxos temporais.

    A leitura é rápida, engraçada e mordaz, seu caráter episódico brinca com questões da vida adulta, discutindo as relações conturbadas do casal e que servem de exemplo universal para relacionamentos em crise. A exploração desses envolvimentos é tão madura que surpreendente por serem tão bem resolvidas na história, seus personagens são complexos e as situações corriqueiras conversam bem com o que é universal. Além disso, é interessante observar como o autor brinca com questões como o alvorecer do nazismo, e se torna ainda mais irônica por tratar de tal modo que o vai-e-vem de um casal tem maior importância do que a intolerância de um líder político mal resolvido com seus pensamentos e com sua própria identidade.

  • Resenha | A Entrevista

    Resenha | A Entrevista

    Perdido em uma vida modorrenta e preso em um casamento fracassado, o psicólogo italiano Raniero vê sua vida mudar da água para o vinho quando conhece uma jovem e misteriosa paciente chamada Dora, que o leva por uma jornada de autoconhecimento e reflexão sem precedentes, colocando em dúvida as noções tradicionais de relacionamento e de liberdade sexual que sempre nortearam a vida certinha e nada ousada do protagonista.

    Ambientada na Itália em um futuro próximo, a trama gira em torno de temas como sexualidade, monogamia, vida extraterrestre, telepatia e o inclemente avançar da tecnologia na vida em sociedade, para estruturar seu enredo a partir da constante contraposição de pontos de vista entre os personagens, que por vezes se pegam em um jogo de interlocução que evocam mesmo o clima de uma entrevista.

    Embarcando em uma proposta narrativa que opera de modo fragmentário, Manuele Fior faz uso do silêncio com a mesma sutileza com a qual lida nas sequências conversacionais, forjando uma intrincada teia de eventos que atordoam e surpreendem a todo instante, contrabalanceando o impacto das interações com a aura etérea que paira sob o enredo, através de enquadramentos panorâmicos que atuam no controle do ritmo da narrativa.

    A arte, fortemente estruturada entre preto, branco e as variações de tonalidade que existem entre os dois, alterna planos abertos e fechados e em um engendrado uso dos tons de cinza para dar e retirar a iluminação necessária ao longo dos painéis, conferindo assim uma atmosfera sobrenatural e sombria para a história, artifício este que potencializa o suspense da trama ao mesmo tempo em que oferece camadas de significação no campo diegetico, ao se utilizar da ambientação típica das ficções científicas para explorar a profundidade inerente às emoções humanas.

    Autor de Cinco Mil Quilômetros por Segundo, o quadrinista italiano novamente investe em uma história sobre sentimentos e sobre a natureza complicada das relações interpessoais, mas agora foge do convencional ao entregar um trabalho inventivo e surpreendente, tanto a nível de roteiro quanto em relação à narrativa visual elíptica que adota ao inserir, de forma melindrosamente diluída no enredo, uma crítica à dependência do ser humano em relação às novas demandas impostas pela tecnologia e pela aparentemente incontrolável necessidade de romper com as convenções, algo que marca a história humana ao longo dos tempos, em contraste com a necessidade que os seres humanos têm de se conectar uns com os outros.

    O roteiro de Fior lembra em larga medida o eixo temático utilizado pelo seriado televisivo Black Mirror, que se notabilizou ao longo da última década por seu uso alegórico da tecnologia para versar sobre a complexidade do ser humano.

    Traduzida por Michele Vartuli, “A entrevista” é a segunda obra de Manuele Fior trazida ao país pela Editora Mino, cativando pela prosa envolvente e pela arte expressiva do autor, capaz de criar personagens inesperadamente relacionáveis e marcantes, lançados em situações incômodas e incomuns.

  • Resenha | Lavagem

    Resenha | Lavagem

    Lavagem é um quadrinho do autor paraibano Shiko, publicado pela Editora Mino, que se  tornou depois uma obra multimídia, acompanhado de um curta-metragem de mesmo nome. A história dá conta da vida de uma mulher cujo passado é um mistério e que é pontuado por ilações de seu atual companheiro, Omar, um homem turrão, ignorante, que passa mais tempo cuidando dos porcos do que da casa e das pessoas que nela habitam.

    A arte de Shiko é tão absurdamente gráfica que mesmo que esse sujeito tenha feições humanas e malévolas, ele não se diferencia tanto dos suínos que trata, sendo igualado em alguns pontos a um ser irracional e quadrúpede. A real riqueza da HQ mora na sua protagonista, uma mulher que sai da sua casa isolada no campo somente para ir a igreja, e no caminho comete atos que são julgados como libidinosos, que a fazem se culpar e ser culpada também pelas acusações de seu cônjuge.

    Shiko ficaria famoso pela sua participação na iniciativa das Graphic MSP com a historia do homem das caverna em Piteco: Ingá, e certamente a escolha dos editores por ele se deu pela condição de sujeira e primitivismo que a história de Lavagem pressupõe. Todos os momentos que apresentam relações sexuais – e dada que é  uma revista de tiro curto, há um número de páginas considerável dedicada ao sexo – não há um erotismo fácil e certeiro, ao contrário, é sempre carregado de culpa, quando não literalmente envolto em sujeira ou lama. É curioso como ao se abordar isso, haja também um apelo para que Omar e ela contraiam matrimonio, fugindo assim do pecado libertino da fornicação, e tanto no curta quanto na revista isso é acompanhado de uma pregação do pastor assembleiano Silas Malafaia, embora na revista isso não fique tão claro, mesmo com o texto transcrito literalmente. Talvez houvesse receio que o quadrinho fosse censurado ou processado, pois no curta-metragem ele inclusive aparece em tela. Essa função narrativa da pregação ajuda a inteirar os personagens com a entrada de um novo elemento, o sujeito que mudaria tudo.

    Da parte da arte, os personagens humanos são cheios de hachuras. Isso dá a eles um aspecto que remete visualmente ao primitivo, à fase animal do pensamento. Nesse ponto, não é só Omar, mas a mulher e o visitante da casa também tem aspectos semelhantes quando agem de maneira paranoica. A figura da mulher é muito bem retratada, com um nível de detalhamento de expressões faciais e sentimentos bem fortes. Não é nem preciso que ela fale muito, pois seus gestos e atos falam por si só. As cenas de sexo, mesmo sujas, também parecem naturais, como se os amantes estivessem despejando ali mais do que tesão e pulsão, mas também tensão, quase como um descarrego.

    O trabalho narrativo, por mais curto que seja, revela um bocado dos motivos da religiosidade causar tanto fascínio nas pessoas comuns. Se o humano, erudito ou não, tem necessidades sexuais, e se esse ser pensante se vê castrado o tempo inteiro, é natural que enxergue em forças superiores  a fonte de algum gozo. E é nesse pensamento com toques freudianos que a personagem da Mulher vive, seja na fantasia que faz com o irmão profeta, ou no sujeito da balsa, que a afasta da casa que ela não gosta de habitar. A busca pelo orgasmo se assemelha a obsessão com o Apocalipse, com o fim do mundo segundo a mitologia cristã. Tudo isso é pontuado pela sujeira e violência poética da historia, aliado também ao sentimento universal da fome animal, aqui exemplificada pelo estado famintos dos porcos. A busca aqui é da Eva por seu Adão, não pela necessidade dessa Eva de ter alguém, mas por que ela acreditar que precisa ter alguém, já que toda sua criação tradicional leva a isso. Omar é só um canal de sua frustração, e possivelmente, seus próximos parceiros (ou parceiro único) também serão carregados desses mesmos defeitos. Possivelmente, a louca obsessão e a sanha assassina que ela tem podem não ter parado só no que se vê neste gibi, e a espiritualidade presente nesses atos pode meramente ser substituída pelo desejo de sangue somente. Assim, toda a religiosidade funciona ou como catalisador do mal (o que torna a HQ em algo profano para leitores mais conservadores) ou mero placebo, com a figura episcopal sendo somente um canal transitório da morte, o anunciante da ceifa de vidas por mero oportunismo e projeção mental.

    O uso soberbo dos tons de preto, dos sombreados e hachuras torna Lavagem um objeto único. Shiko tem um domínio artístico poucas vezes visto, e a mistura que faz com as páginas duplas e o uso de letras garrafais para maximizar as sensações de violência e de chegada do mal assustam até mais que toda a profanação do subtexto. A história resulta em um quadrinho de tragédia familiar, calcada em uma questão violenta baseada no discurso fundamentalista religioso. Mas, como dito antes, poderia ser voltado para qualquer outra figura de autoridade. A ligação erótica com o Divino revela que os personagens têm uma auto imagem de muita pequenez, que é driblada em partes pelo vislumbre de um futuro longe daquela localidade, mas sem garantias de que essa não é uma historia cíclica. É essa dubiedade que torna a historia tão boa, pois a fuga de demônios talvez possa resultar num cair nos braços de outras criaturas ainda piores, sem dar a certeza se  o mal é externo ou interno na mente da figura analisada por Shiko.

    Compre: Lavagem.

  • Resenha | Sshhhh!

    Resenha | Sshhhh!

    Sem palavras. É como Jason trabalha e é como sua obra deixa o leitor. Operando através do silêncio, o autor norueguês consegue tocar e emocionar através dos requadros de Sshhhh!, narrativa gráfica trazida ao Brasil pela Mino, em 2017.

    Com um traço simples, mas não simplório, o quadrinista consegue extrair significações profundas para seus personagens e sua narrativa, navegando através das sutilezas provenientes dos gestos e das hesitações. Adepto de um estilo mais claro e preciso, influenciado pela linha clara franco-belga, Jason concebe suas ambientações de forma extremamente limpa e despojada, sem a necessidade de muito arrojo para situar sua história.

    Jason monta suas páginas através de quadrados e retângulos esteticamente padronizados, mantendo uma aparente estabilidade para sua trama, cuja perturbação se estabelece a nível semântico, e não sintático.

    A opção do autor por uma concepção antropomórfica dos personagens se justifica uma vez que o aspecto lúdico adquirido lhe possibilita conduzir a narrativa através de metáforas visuais poderosas, versando sobre a vida e suas inevitabilidades, exaltando a força dos momentos de silêncio na vida em si.

    Os momentos de maior importância em nossas vidas acontecem no silêncio, nós passamos muito mais tempo sem falar nada do que falando qualquer coisa, e ao trabalhar com a ausência de diálogos Jason ressalta o peso daquilo que ocorre quando as palavras não estão sendo ditas.

    Os animais de Jason logram êxito ao transmitir uma série de expressões da aparente inexpressividade, em uma demonstração clara da absurda competência do autor enquanto um legítimo narrador visual. Tristeza, solidão, amor e esperança são extraídas dos mesmos olhares, brancos e vazios, de cada personagem que o autor concebe.

    Em Sshhhh! nos vemos diante de uma representação alegórica da vida, que através de absurdos e recursos próprios do cartum, se apresenta exatamente como ela é: uma sequência de acontecimentos imperfeitos temperados com pitadas de alegrias aqui e acolá. Ao longo de dez contos curtos, Jason pede silêncio – sshhhh! – e encaminha o leitor para essa jornada de absoluta contemplação.

    O pássaro antropomorfo que protagoniza a história se vê às voltas com dilemas da vida que são comuns a qualquer um de nós, como o encontro do amor, a relação com a inexorável presença da morte, a decepção e o luto, o consolo da vinda dos filhos, de uma nova vida surgindo de si e ganhando asas para alçar os próprios voos, bem como a relação que cada um de nós trava com sua própria existência, com a passagem do tempo e da eterna busca por significação diante da árdua tarefa do viver.

    É muito interessante a forma como o protagonista lida em determinado momento com a própria sensação de apagamento e inexistência diante da sociedade, em uma busca flagrante por atenção daqueles que o cercam. Jason coloca seu personagem envolto por uma série de experiências de vida das mais diversas, para então, em uma espécie de eterno retorno nietzschiano, voltar para o ninho, seu ponto de partida na trama.

    A forma como o quadrinista concebe sua narrativa, tanto a níveis estruturais quanto diegéticos, é de um nível de complexidade poucas vezes visto no meio, o que potencializa os quadrinhos enquanto linguagem vasta e cujas possibilidades enquanto veículo narrativo muitas vezes são menosprezadas.

    Ao abrir mão do texto, o autor norueguês manipula a atenção do leitor, deixando-o em alerta para as sutilezas que seu nanquim dispõe nos requadros, compondo uma história muda, com muito a dizer.

    Com Sshhhh!, o que Jason economiza em palavras, gasta em significação.

    A história em quadrinhos, publicada pela editora Mino, apresenta 128 páginas, em uma belíssima capa cartão, e é a primeira publicação do quadrinista norueguês a ser publicada no Brasil.

    Compre: Sshhhh!.

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  • Resenha | A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar

    Resenha | A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar

    “Cheguei à conclusão que há dois tipos de pessoas. Os bem fodidos e os totalmente fodidos” – Seth

    Há certa beleza poética na melancolia com a qual Seth carrega as páginas de A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar. O volume reúne as edições originalmente publicadas nas edições #04 a #09 da série em quadrinhos do autor, Palookaville, bem popular durante os anos 90.

    O anacrônico quadrinista canadense, de exótico estilo e um nostálgico inveterado, se insere no centro da narrativa ao desempenhar o papel de protagonista de uma insana e, à primeira vista, incompreensível busca por um misterioso cartunista dos anos 40 e 50, do qual ninguém sabe muita coisa ao certo.

    Contando com seu inabalável amigo Chet para se lamentar e divagar sobre o tempo, a vida e as pessoas, Seth atravessa os anos nessa jornada em direção ao passado, encontrando nessa empreitada uma fuga de sua própria realidade medíocre e triste.

    A fixação do protagonista/autor com a primeira metade do século XX se descortina ao longo da narrativa em uma verdadeira incapacidade de enfrentar os próprios problemas, as próprias imperfeições, buscando em um passado idealizado e irrecuperável uma âncora que lhe dê significado e propósito no mundo. Avesso às mudanças que a vida impõe, o protagonista se vê perdido e sem rumo, enquanto observa os anos passando e tudo à sua volta se modificando.

    A busca pela história ordinária de Kalo – um cartunista canadense que logo abandonou a carreira promissora e encarou outra profissão para sustentar a família, se adequando às mudanças que a vida impôs –, acaba se mostrando um trabalho de reflexão do próprio Seth em sua relação com o passar do tempo, não rendendo qualquer clímax arrebatador, de forma que a história se finda tão monótona quanto começou.

    Contudo, não se engane. Tal monotonia é um excepcional acerto dentro da composição diegética do quadrinista. O tom melancólico com o qual autor concebe a narrativa não poderia ter outro resultado senão o anticlimático final que possui. A forma como o autor aborta esse descompasso e desconforto com a vida acaba gerando certo efeito cômico, que equilibra as nuances do quadrinho, sem que este se enverede pelo dramalhão ou para o nonsense. Há muito humor por trás da aparente tristeza com a qual Seth lida na história.

    A coloração amarelada das páginas, aliadas às pinceladas de azul em meio ao preto do nanquim, reforçam o desalento com o qual o protagonista se depara em sua vida. A paleta, inclusive, se assemelha em certa medida a Fun Home, de Alison Bechdel, ainda que o expressivo traço da quadrinista norte-americana em muito se diferencie da minimalista arte de Seth, que parte da inexpressividade para transpor ao máximo a indiferença e o marasmo com os quais o protagonista enxerga o mundo à sua volta.

    A diagramação das páginas obedece a uma aparente simplicidade e organização fixa, sem fuga dos padrões de requadros tradicionais, exceto quando Seth entra em suas rememorações de tempos idos, contemplando seu próprio passado inatingível.

    A obra se trata, dessa maneira, de uma excelente e em igual medida incômoda narrativa gráfica, com a qual Seth toca poderosamente o leitor, expondo suas incongruências particulares em uma viagem ficcional de autoconhecimento e autorreflexão, tanto para o próprio autor quanto para quem se aventure a desbravar as páginas de sua “novela em quadros”.

    “A vida é boa, se você não fraquejar” saiu aqui no Brasil publicada pela editora Mino, em 192 páginas e capa cartão, em uma belíssima edição. A narrativa se insere dentro do hall das grandes histórias em quadrinhos indie dos anos 90, prato cheio para quem se interessa por narrativas que fujam do padrão publicado no mainstream.

    Compre: A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar.

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  • Resenha | Gideon Falls – Volume 1: O Celeiro Negro

    Resenha | Gideon Falls – Volume 1: O Celeiro Negro

    Existem histórias em quadrinhos que são aclamadas por seu texto, existem histórias em quadrinhos que são aclamadas por sua arte. E existe Gideon Falls, que atinge a excelência tanto no aspecto verbal quanto no imagético.

    A equipe criativa, formada por Jeff Lemire, Andrea Sorrentino e Dave Stewart construiu em Gideon Falls um verdadeiro clássico moderno, um tratado estético que lida com os limites da narrativa gráfica e os subverte em prol de uma experiência sensorial única, por meio de uma trama envolvente e instigante.

    O trabalho conjunto de texto, arte e cor resulta em uma poderosa e intrigante narrativa de horror, que se utiliza da fragmentação diegetica para contar sua história, a partir dos pontos de vista do Padre Wilfred e do mentalmente instável Norton, duas pessoas absolutamente diferentes e igualmente destroçados pela vida.

    É uma verdadeira aula de narrativa, a forma como Lemire descortina os mistérios escondidos em Gideon Falls e o enigmático Celeiro Negro que assombra a cidade. Toda a dinâmica entre os personagens é muito bem desenvolvida, de forma que a história não apresenta oscilação em seu ritmo, sem deixar o andamento da trama de lado em nenhum momento. Lemire concebe o terror em Gideon Falls através das entrelinhas de cada cena, cada diálogo, deixando que a tensão sobrenatural escape em alguns momentos, mas sem deixar muitas pistas para o leitor, sobre tudo o que se esconde por trás de toda a angústia que permeia a narrativa.

    Lemire foge da abordagem intimista de seus trabalhos autorais anteriores, criando uma dinâmica de relações intrincadas e complexas entre os personagens ao longo da narrativa, sem a necessidade de um subtexto familiar para conduzir as trajetórias de seus protagonistas. Sanidade e fé são colocadas em perspectiva pela escrita do autor canadense, através dos dilemas pelos quais Wilfred e Norton passam ao longo da história.

    A diagramação que Sorrentino faz através das páginas é igualmente deslumbrante e demonstra o pleno domínio que o quadrinista exerce sobre a história que se propõe a contar. Navegar pelas disposições dos quadros em Gideon Falls se revela uma viagem quase lisérgica pelos recônditos mais assustadores da mente humana. A alternância entre os requadros padrões e as diferentes configurações de composição de página, típicas do artista, refletem o próprio estado psicológico dos personagens em cada momento capturado no espaço-tempo contido no quadro.

    O trabalho em conjunto de Sorrentino com o colorista Stewart confere o tom psicodélico que a obra necessita, sem deixar de se preocupar em criar uma ambientação bem característica para Gideon Falls, em seus mais distintos núcleos. A arte casa perfeitamente com o brilhante texto de Lemire, de maneira que não se encontra uma sobreposição de arte pelo texto ou de texto pela arte, mas sim uma simbiose estrutural poucas vezes vista em uma história em quadrinhos.

    Gideon Falls foi de longe a melhor série lançada nos EUA em 2018 pela Image Comics e publicada no Brasil pela Editora MINO, quase que simultaneamente ao lançamento no mercado norte-americano, sendo assim um trabalho editorial digno de todos os aplausos possíveis. O encadernado brasileiro, editado por Janaína de Luna e traduzido por Dandara Palankof, compila o material originalmente publicado em Gideon Falls #01 a #06, totalizando 160 páginas, com papel de excelente gramatura e uma belíssima capa dura.

    Compre: Gideon Falls Volume 1: O Celeiro Negro.

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  • Resenha | Condado de Essex

    Resenha | Condado de Essex

    Cada pessoa tem uma forma de se lembrar, muitas das vezes mítica, fantasiosa, sobre o lugar em que nasceu e cresceu. É impressionante como nos lembramos de famílias, pessoas e eventos que, quanto mais distantes do ponto de vista do tempo, mais vivas e interessantes elas se parecem. Isso é Condado de Essex, de Jeff Lemire, uma verdadeira biografia sobre o espírito do local em que o autor passou a sua infância e tudo aquilo que isso representa para ele.

    Condado de Essex pode ser, de forma muito simples, ser tratado como um conjunto de Histórias que se interlaçam e tem como foco o local de nascimento de todas elas, ou seja, o Condado de Essex, no Canadá. Porém, essa pretensa simplicidade em nada representa a HQ, que se mostra grandiosa em execução e também nos resultados que ela atinge.

    São muitas as suas virtudes e as maneiras de enxergar essa história, vou buscar apresentar algumas que mais me chamaram a atenção. O primeiro ponto é a simplicidade e conexão que os personagens realizam com o leitor. Você acredita em todos eles, nas suas vidas, nos seus problemas, nos erros que cometeram, nos eventuais acertos e nos traumas que carregam. E a forma como a vida deles é contata é sensacional, com leveza, sem sobressaltos ou mesmo grandes reviravoltas, tudo dentro de uma sensibilidade que a vida daqueles personagens pedia.

    Outra importante questão seria a abordagem cultural que o autor coloca nestes quadrinhos. Eu já tinha conhecimento do que o Hóquei representa para os canadenses, podendo ser considerado como o mais famoso esporte do país (algo parecido com o nosso futebol aqui), mas ao ler a história você passa a entender melhor sobre essa paixão nacional e como ela se relaciona com a localidade em termos específicos. Você aprende com o que está lendo e também entende melhor sobre um povo (eu adoro todo tipo de esporte, até jogo de bolinha de gude na TV eu assisto, e após a leitura passei a ter um olhar mais carinhoso para o time de Hóquei do Toronto Maple Leafs, uma vez que não tinha nenhuma preferência na NHL).

    Outro grande valor é a própria estrutura narrativa, a qual foi dividida em grandes arcos que se interligam, as vezes de forma direta outras por compartilhar o local dos eventos. E toda a narrativa se dá de acordo com o olhar dos personagens, não se trata de um narrador que tudo vê e nos conta, mas sim de uma perspectiva bastante humana, demonstrando como cada uma daquelas pessoas percebe e sente o que ocorreu. O quadrinho foi lançado em 2008 lá fora, mas parece ser uma das obras mais maduras e ricas de Jeff Lemire, chegando por aqui apenas em 2017 pela Editora Mino, que um ano antes havia publicado o excelente O Soldador Subaquático, também de Lemire.

    E a grande questão persiste: por que eu me interessaria por uma História sobre o Canadá? Como algo tão distante pode dialogar comigo e com a minha realidade? Ao ler a história você se sente como na sua própria infância e adolescência, ao se lembrar de famílias tradicionais, fofocas locais, aquele craque da cidade que nunca vingou e as várias personalidades que compõe qualquer cidade, principalmente as de pequeno porte.

    Não se intimidem pelo numero de páginas ou mesmo pelo preço, trata- se de uma HQ que merece ser lida e compartilhada. Não apenas leia, mas empreste, divulgue, e apresente para outros que gostem de uma boa leitura.

    Compre: Condado de Essex.

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

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  • Resenha | O Soldador Subaquático

    Resenha | O Soldador Subaquático

    No longínquo ano de 1999, quando comecei minha graduação em História, me deparei com um conceito que usaria durante muito tempo: indústria cultural. Nele, entre outras coisas, é discutida a obra de arte em uma época de fácil reprodução técnica e de modelo de produção em larga escala. Em outras palavras, a crítica é que se perdia o sentido da arte em prol de um sentido de mercado, mais padronizado e artificial. O Soldador Subaquático, de Jeff Lemire, ainda que se trate de uma produção visando o mercado, tem pouco ou quase nada de um padrão imposto ou encaixotada dentro de modelos mercadológicos claros, como podemos ver em gibis de heróis. Trata-se aqui de uma história calcada em relações sociais cotidianas e a forma como as pessoas lidam com as pressões e sentimentos que pertencem a todos.

    A história deveria ser apresentada para todos aqueles que ainda insistem em dizer que gibi é coisa apenas para criança, com um enredo de proposta aparentemente simples, mas com uma profundidade temática absurda e capaz de explorar muitos e variados sentimentos muito comuns para quase todos nós. O enredo é bem claro: Jack, um soldador subaquático, prestes a ter um filho tem que enfrentar a insegurança e temores de se tornar pai ao mesmo tempo que revive e tem de resolver os problemas deixados da sua própria relação com o seu pai. A partir daí, o autor dá uma verdadeira aula de como abordar esses temas de forma bastante criativa e fugindo das maneiras convencionais de elaborar uma história em quadrinhos.

    Toda a história gira em torno da forma como Jack, o protagonista se relaciona com a figura do pai, que representa uma memória de ausência e de um certo vazio, com a de seu vindouro filho, que faz com que ele se coloque no papel de pai e nas responsabilidades que isso implica.

    Em uma narrativa que faz uso de flashbacks e até mesmo da criação de uma breve distopia em forma de delírio, Lemire nos conta a relação do protagonista com o pai e como adoração por parte do filho e a ausência em momentos cruciais pelo pai geraram uma estranha noção de amor mas com algo que faltava, uma incompletude. E, esse sentimento, que estava adormecido, surge no momento em Jack se tornará pai e ele terá que resolver o seu passado para compreender melhor o presente. Presente e passado se intercalam em vários momentos da trama, demonstrando a importância destas noções para qualquer tipo de relação.

    A arte de Lemire, ainda que não agrade a todos, combina perfeitamente com as ideias e propostas apresentadas durante a trama, fazendo com que se tenha uma união muito interessante e viva, seja no tempo presente, como também durante o passado do personagem.

    Outro importante fator a ser destacado é que Lemire produziu esse trabalho justamente quando estava para ser pai, ou seja, se trata um pouco das próprias angústias e anseios do autor, que nos são apresentados de forma bem transparentes. Enfim, ler O Soldador Subaquático é adentrar um pouco na mente do autor é conhecer um pouco mais sobre a pessoa e não apenas da obra.

    Compre: O Soldador Subaquático.

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

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  • Resenha | Perpetuum Mobile

    Resenha | Perpetuum Mobile

    PerpetuumMobileCapaDupla[1]

    Perpetuum mobile, ou moto continuum, é o termo em latim para o sonho utópico dos engenheiros: a máquina de movimento perpétuo. Essa máquina hipotética utiliza – e reutiliza – a energia gerada pelo seu próprio movimento. Apesar da impossibilidade física de existirem – ao menos segundo as leis da física do nosso universo – há ainda quem persiga a construção de tais dispositivos.

    Neste quadrinho – lançado inicialmente por financiamento coletivo e agora republicado pela editora Mino – Martin é um eterno insatisfeito. Na cidade fictícia de San Juarez, é ele que vive em moto contínuo, em busca de uma vida que o satisfaça. Suas escolhas podem não ser as mais acertadas, mas ele continua tentando. Em busca de um novo emprego, de um novo relacionamento, de novas experiências. Mas o que fazer com essa busca incessante quando o fim do mundo chega?

    A narrativa não-linear confunde um pouco e pede uma segunda leitura. Mas, a menos que eu esteja redondamente enganada na minha interpretação, a história é um recap dos últimos meses de Martin – algo como o clichê da vida passando diante dos olhos numa situação de perigo ou naquele último instante antes da morte. Vendo por esse lado, faz sentido a não-linearidade da história, uma vez que em situações extremas é implausível que as recordações se organizem em ordem cronológica, aliás, é improvável que sequer se organizem.

    Além da narrativa não linear, há várias digressões do protagonista, que começa a conversar com um amigo imaginário – uma personificação daqueles diálogos internos que todos nós temos. Demora um pouco até o leitor perceber que é disso que se trata – mais um bom motivo para investir numa segunda leitura.

    Sobre o desenho, vale reparar como Diego Sanchez conduz o olhar do leitor. Mesmo se em alguns momentos o conteúdo seja confuso, não se pode responsabilizar a disposição dos painéis, que dá fluidez e, ao mesmo tempo, agilidade à leitura.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

    PerpetuumMobile