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  • Resenha | Hell NO!: Uma Busca dos Diabos – Bem-vindo ao Inferno

    Resenha | Hell NO!: Uma Busca dos Diabos – Bem-vindo ao Inferno

    Hell NO!, do autor brasileiro Leo Finocchi, é uma HQ independente produzida graças a um financiamento coletivo. A trama se desenvolve em apenas quatro volumes que foram produzidos pouco a pouco. Quando analisamos os dois primeiros volumes, o terceiro ainda estava em produção. Finalmente poderemos falar do desfecho deste épico (?) quadrinesco saído de uma mente de sanidade duvidosa e lançado em duas partes pela Balão Editorial.

    Vamos relembrar o enredo? O Diabo reinava normalmente no Inferno até que um de seus aliados próximos decide tomar o poder. Para evitar essa tentativa de golpe infernal, os três filhos do Diabo partirão em uma grande aventura em busca de relíquias que têm poder suficiente para fazerem frente ao subversivo demônio.

    A interação entre os irmãos continua a mil por hora. Lúcio tenta levar as coisas da maneira mais lúcida possível, até porque é o único que possui mãe humana, então não possui uma alma completamente diabólica. O brucutu Satã, por outro lado, é um lunático que age por impulso. Por isso que Bel vive mediando as encrencas e brigas entre Lúcio e Satã, mas nem sempre ela é tão equilibrada.

    Nossos “heróis” percorrerão vários locais para coletar as relíquias capazes de fazer frente ao poder do Tridente do Diabo, poderosa arma que está em posse do “vilão” que pretende tomar o poder no Inferno. No final do segundo volume, os irmãos chegam em uma igreja e possuem o corpo de um padre. O resultado disso está no início do terceiro volume em que já conhecemos uma das poderosas relíquias.

    Depois eles vão até um templo isolado e lá conhecem alguém bem inusitado: Deus. O Todo-Poderoso, inclusive, tem uma ligação inesperada com eles. Ali conseguirão outra relíquia que, digamos, é esdruxulamente blasfêmica. Deus é retratado como um tiozão do churrasco, todo gente boa mas um tanto bobão.

    Em seguida, os irmãos finalmente enfrentarão o demônio usurpador do trono demoníaco, voltando ao Inferno (o que justifica o nome do quarto volume, Bem-vindo ao Inferno).

    Confesso que o desfecho da trama dividiu minha opinião sobre a obra. Obviamente não irei revelar o desfecho, mas tentarei explicar sem revelar nada. Houve uma espécie de anticlímax bobo, bem esdrúxulo, que praticamente tornou aquela aventura inútil. Ao mesmo tempo, isso até que faz sentido tendo em vista a pegada desta obra. O fator inusitado foi um ponto positivo, e por isso fiquei dividido quanto ao final. Isso faz com que eu recomende a leitura, pois é garantia de diversão, e presumo que essa é a principal missão desta HQ.

  • Resenha | Máquinas Não Choram

    Resenha | Máquinas Não Choram

    Em tempos de smart houses, smartphones, alexas e dispositivos tecnológicos dos mais diversos, nossas vidas estão cada vez mais automatizadas, constantemente assessoradas pela tecnologia. Se por algum motivo tais recursos se esgotassem, teríamos enorme dificuldade para nos readaptarmos à vida analógica, não é verdade?

    Pois então, em Máquinas Não Choram somos apresentados a um futuro próximo nos quais robôs são produtos massificados e já integrados de forma profunda na sociedade, acompanhando seus donos e os auxiliando em tarefas diárias. Após supostos problemas com o ifeel,  upgrade que possibilitou aos robôs desenvolver sentimentos, as fábricas anunciaram downgrade obrigatório, desabilitando a capacidade de sentir dos mesmos.

    Por sorte, Boy e Girl, dois robôs que desenvolveram forte laço de amizade ao longo do tempo, estavam sem conexão à hypernet no momento em que o downgrade foi realizado, e agora se tornaram párias a serem caçados e temidos pelas autoridades. O acontecimento modifica para sempre as relações entre os dois e seus respectivos donos, e os leva a uma jornada de sobrevivência e de reafirmação de valores como amizade e lealdade.

    Concebido por André Turtelli Poles e Renato Quirino, Máquinas Não Choram vai de referências como Wall-E e Blade Runner para desenvolver uma história leve e descompromissada que discute sobre vidas artificiais, construções sentimentais e até mesmo sobre liberdade. Com traço cartunesco e prosa ágil, a HQ alterna focos dramáticos a todo instante e dinamiza seu desenvolvimento ao entrecortar flashbacks e digressões com sutileza.

    Expressiva, a narrativa visual remonta ao traço cartunesco para transmitir leveza e descontração para um roteiro que, em uma segunda olhada, se mostra mais sério do que se poderia esperar. Com uma conclusão anticlimática e um uso criativo para a “trilha sonora” da história, mesclando-a com as onomatopeias e lançando-as de forma mais solta através dos requadros, Poles e Quirino discutem livre arbítrio e autoritarismo sem maiores cerimônias, fazendo dessa pequena fábula não convencional um conto ligeiramente maior do que se supunha inicialmente.

    Finais abertos carregam consigo o ônus e o bônus da controvérsia: muitos gostam, muitos desgostam, e ao se optar por algo nesse sentido, o risco se torna calculado da parte da equipe criativa. Assim, o final pode soar abrupto demais, caso se espere por um fechamento padrão para a narrativa. Essa sensação de conclusão aqui não aparece, o que deixa em aberto possibilidade de continuidade, mas também não possibilita opções imediatamente críveis para qualquer que seja o desenlace da história de Boy e Girl enquanto fugitivos da lei e sentimentais clandestinos.

    Publicado via catarse, o quadrinho possui lombada quadrada, capa cartonada e cinquenta e seis páginas em papel pólen.

  • Resenha | O Entediante Trabalho de Morte Crens

    Resenha | O Entediante Trabalho de Morte Crens

    Engana-se quem enxerga O Entediante Trabalho de Morte Crens por um viés infantil, devido sua forma colorida e cartunesca, bem ao estilo “quadrinho de jornal de domingo”. A temática, porém, revela o contrário, já na primeira tirinha desta websérie criada lá em 2012, por Gustavo Borges. E se você tivesse um acordo, O Acordo, com a existência, e nunca pudesse quebrá-lo? Bom, a morte sabe o que é isso, e sente na pele que a eternidade pode ser bastante… fúnebre, ou divertida, depende do ponto de vista. Mas Morte Crens é inseguro, e ainda precisa aprender a ser feliz. Ser mais leve.

    A sensação aqui, vívida até não poder mais nesses quadrinhos tão simples, e eloquentes, é uma só: o ser-humano está fadado a existir entre a Vida e Morte Crens, e não podemos evitar esse cabo de guerra. Há, porém, beleza e fascinação nesta nossa sentença tão mundana: as maravilhas da mortalidade, não precisamos ser eternos. Morte Crens sabe disso, e cumpre seu papel: tira a vida, na hora exata, no prazo do homem, da mulher, dos animais. Coitado, ele não tem o mesmo luxo que a gente: será para sempre a morte, no trabalhar incessante dos que nunca podem parar. Não é à toa que sempre está irritado, em contraponto à Vida, a menina animada de cabelos verdes. Mais parecem a neta, e o avô. Ela, só vê novidade, as faíscas! Ele, só vê o desfecho, as cinzas.

    O cartunista Gustavo Borges não renega a carga filosófica desses personagens e suas condições, e insere um humor negro nas suas deliciosas tirinhas para aproveitar, ao máximo, a sua pequena grande criação cuja inspiração parece ter saído de um monólogo de O Auto da Compadecida, e que, curiosamente, faz alusão ao ciclo das coisas, acolhendo o que há de melhor na vida, e no seu fim – que pode ser um alívio ou um transtorno para cada um. De quebra, a coletânea ainda traz uma história especial, e extremamente simbólica sobre o medo de viver. A covardia do homem, assumida apenas quando a morte diz Oi. Ela é o nosso prazo. Eis uma obra para nos lembrar de viver o tempo que temos. E com coragem, de preferência. Muita coragem.

  • Resenha | O Filho Mau

    Resenha | O Filho Mau

    Rui Barbosa certa vez afirmou que “família é a célula mater da sociedade”, e em torno dessa estrutura nossa civilização se construiu e se desenvolveu. Invariavelmente, todos somos afetados, positiva ou negativamente e em maior ou menor medida, por toda a carga histórica e psicológica que nossas famílias nos trazem. Ninguém consegue escapar inteiramente dessa bagagem.

    Histórias de cunho familiar estão por aí desde que o mundo é mundo, e O Filho Mau não foge dessa tradição ao se debruçar sobre o diálogo desenvolvido entre uma neta e sua avó, no presente, acerca de uma tragédia que se abateu sob sua família, num passado já distante, mas que impactou sobremaneira todos dali em diante: o parricídio cometido pelo primogênito da casa, Manuelzinho.

    Alternando temporalidades, a história concebida por Carol Sakura e Walkir Fernandes explora vivências e trabalha com maestria pelos silêncios. choques e falhas de comunicação existentes no seio familiar, trabalhando a dificuldade muitas vezes existente para se expressar determinados sentimentos, anseios e angústias, quando em família.

    Se, em um ambiente pautado pelo diálogo claro e límpido, lidar com o trauma de toda uma família já seria complicado, imagine o tamanho do problema ao se enfrentar barreiras por vezes intransponíveis que separam pessoas unidas pelos laços familiares, mas involuntariamente distantes, seja por dilemas do passado ou mesmo por medo de lidar com o peso do presente.

    Como resgatar uma memória dolorosa sem trazer gatilhos, mágoas ou mesmo desconforto em uma relação na qual se espera amor incondicional? O ideal de família perfeita é não somente questionado em O Filho Mau, mas estilhaçado, dilacerado, no momento em que as rachaduras são expostas e as feridas não podem mais ser ocultas por um véu de perfeição que raramente se comprova de fato. Há amor incondicional em família? Há perdão? Ou o seio familiar não seria simultaneamente um solo fértil para expectativas e decepções, um mar repleto por promessas muitas vezes não cumpridas?

    O Filho Mau apresenta um roteiro claro, direto e muito bem desenvolvido, que trafega entre o realismo psicológico e o impressionismo, criando uma relação intertextual bem elaborada com a natureza cínica dos contos de fada. O texto dialoga perfeitamente com a narrativa visual fluida e expressiva, potencializada pelo traço cartunesco e ágil de Fernandes, encontrando na cor roxa uma ferramenta de diferenciar as cenas do presente e as do passado, sem deixar de conferir profundidade para os personagens, mesmo em um conto tão breve.

    Falando muito através do silêncio, o roteiro de Sakura acerta em cheio ao costurar uma reflexão sobre dinâmica familiar e toda sorte de eventos que afetam o modo como as pessoas se percebem em relação à família, diante do avançar inclemente da vida. As quebras discursivas e as sequências conversacionais chamam a atenção pela naturalidade com que são dispostas, reproduzindo a complexidade existente em qualquer papo em família, evidenciando atritos e incômodos geracionais e perceptivos entre as duas protagonistas. A trama evidencia a fragilidade inerente aos diálogos delicados e inescapáveis travados no seio familiar, aqueles nos quais qualquer passo em falso pode gerar um conflito maior, envenenando as relações de todos como um todo.

    Organicamente o enredo dialoga com a narrativa visual fluida e ágil empreendida pelo traço cartunesco de Fernandes, encontrando na cor roxa uma ferramenta para diferenciar as cenas do presente e as do passado, sem deixar de conferir profundidade para os personagens. O uso de cores chapadas, com parco emprego de sombras e texturas, entrega ao plano narrativo uma dinâmica que remete à sutileza das histórias infantis, em um contraponto interessantíssimo com a temática séria que norteia o enredo.

    Conciso e profundo, O Filho Mau entrega um trabalho que envolve o leitor ao versar sobre um tema universal, sem deixar de operar de forma intimista e melancólica, exibindo um elevado grau de sofisticação e sincronia na construção diegetica. Ter apenas 104 páginas é um ponto negativo, pois a história é tão bem desenvolvida que não conta com qualquer tipo de barriga, deixando no leitor aquele gosto de “quero mais” que todo grande conto deixa.

    A obra de Carol Sakura e Walkir Fernandes foi publicada de modo independente em 2020, em capa cartonada e com orelhas. A graphic novel pode ser considerada, com o perdão do trocadilho, um Quadrinho para todas as famílias!

    Compre: O Filho Mau.

  • Resenha | Quadrinhos A2 – 4ª Temporada

    Resenha | Quadrinhos A2 – 4ª Temporada

    Um dia de ócio para uma mente absurdamente criativa, pode produzir coisas fantásticas – e premissas mirabolantes. Em Quadrinhos A2, todo dia parece ser dia de uma grande ideia, mesmo que ela possa ser descartada após uma boa noite de sono. Mas a oficial mental nunca para de trabalhar, e nosso casal Paulo Crumbim e Cristina Eiko são reféns da própria imaginação, e da necessidade artística de criar, e expressar seus mundos interiores. O fardo, esse sim, precisa ser repassado para as outras pessoas, levando-as também a criação. Por que não? Não há nada mais lindo que a inspiração. E o Pino.

    Eis a testemunha do dia-a-dia dos cartunistas, que neste Volume 4 da série autobiográfica, precisam dar cabo de um projeto, o quanto antes! E enquanto Cris arrasa com seus lápis e papéis, Paulo viaja mais longe que a Enterprise, no cúmulo da procrastinação – palavra tão popular na era da internet. Tramas e monstros ganham vida, e logo em seguida nós (e Pino) somos a plateia curiosa para as loucuras de Cris e seu marido, orgulhosamente tagarelas, virem à tona. Nada mais será como era antes, não depois que um limão do espaço cai na Terra, e inteligente, planeja sua vingança à humanidade por 17 anos, após ser descartado em uma feira, na cidade de São Paulo.

    Em meio ao brainstorm da dupla de artistas, o novo se forma e se alimenta pela empolgação do outro – ele sempre mais impulsivo que ela, o que rende boas risadas. Os autores aproveitam uma tarde normal (que era para ser produtiva para ambos, na teoria), e abusam de traços próprios do gênero mangá, em ótimas cenas preto e branco que jamais carecem de um apelo colorido para nos divertir, encantar ou emocionar. Do ócio veio a catarse, mas não é legal ir dormir sem bolar o final da história. O fardo precisa ser repassado, na dor e na delícia de ser quem é.

    Compre: Quadrinhos A2 – 4ª Temporada.

  • Resenha | O Martírio de Joana Dark Side

    Resenha | O Martírio de Joana Dark Side

    Consagrada como heroína na França por seus feitos durante a Guerra dos Cem Anos, Joana d’Arc foi capturada, julgada e condenada à morte na fogueira, o que ocorreu em 1431.

    Amplamente conhecida, a trajetória de vida da jovem que ousou romper com os padrões da época já rendeu centenas de adaptações para os mais diferentes meios narrativos. Assim, contar qualquer aspecto de uma história tão famosa após tantos projetos bem sucedidos no passado torna-se um grande desafio.

    Que bom que quem se encarregou da inglória tarefa dessa vez foi o quadrinista brasileiro Wagner Willian.

    Em O Martírio de Joana Dark Side, o versátil artista se propõe a contar sobre o processo inquisitório pelo qual passou Joana, subjugada e humilhada pelo clero, até culminar com sua terrível execução na fogueira.

    Inspirado pelas diversas adaptações cinematográficas da história de Joana, como os filmes de Victor Fleming (1948), Robert Bresson (1965) e principalmente a versão de Carl Dreyer (1928), Wagner Willian opta por destrinchar o julgamento de Joana em toda sua carga dramática, apostando em planos fechados que ressaltam a agoniante condição da mártir diante de algozes que a todo momento debocham e vociferam contra suas convicções.

    Desenvolvida em preto e branco, a arte de Willian explora o suplício psicológico da personagem, e mesmo que se baseie em A Paixão de Joana d’Arc e em uma entrevista da protagonista do filme, Jeanne Falconetti, a abordagem escolhida pelo quadrinista remonta em grande medida os melhores momentos da cinematografia de Ingmar Bergman, ao contrapor a fé de Joana com sua angústia diante da iminência da morte.

    O realismo colocado em prática durante o julgamento é por vezes deixado de lado na progressão do roteiro, abrindo espaço para sequências que mesclam real e imaginário, num processo que reflete a mistura entre os anseios de Joana com a aceitação de seu fatídico e cruel destino.

    Incorrendo numa abordagem que remonta à metaficção historiográfica, Willian investe em um final poético para a história, que subverte o real encerramento da vida de Joana, numa tentativa de sublimar e redimir a injustiçada mulher, que desafiou as convenções e os preconceitos da época em nome de uma missão que considerava tão importante ao ponto de valer a sua vida.

    Com um roteiro conciso, O Martírio de Joana Dark Side apresenta uma história trágica e dura, cujo ritmo poderia se dar de forma mais ágil caso não se prendesse tanto nas referências que norteiam a concepção da trama como um todo, para assim poder explorar a inventiva e dinâmica narrativa visual que marca os trabalhos do autor de Bulldogma, O Maestro, o Cuco e a Lenda e Silvestre, esta última ganhadora do Prêmio Jabuti de 2020.

    Publicada de forma independente pelo próprio Willian, através de sua Editora Texugo, O Martírio de Joana Dark Side conta com 76 páginas, capa cartonada e papel Pólen Soft de 80g, como parte da Coleção Cine Qua Non Vol I.

    O potencial dramático do traço do quadrinista foi colocado à prova nesse Quadrinho, que conta com prefácio de Gabriela Franco (criadora do Minas Nerds), e resultou em uma grande homenagem ao ícone feminista que Joana d’Arc representa.

    Compre: O Martírio de Joana Dark Side.

  • Resenha | Quadrinhos A2 – 3ª Temporada

    Resenha | Quadrinhos A2 – 3ª Temporada

    A autobiografia do casal Paulo Crumbim e Cristina Eiko nunca foi tão forte. Sempre amigos íntimos deles, já que essa sempre foi a nossa sensação em Quadrinhos A2 (leia nossas resenhas sobre a primeira e a segunda temporada), nem todo dia é um dia especial na vida das pessoas, com segundas-feiras e tardes monótonas de sábado compondo o cotidiano. Nesta terceira temporada da série, o normal não lhes é destruidor, e muito pelo contrário: há algo de delicioso no banal, no silêncio, na volta pra casa nas avenidas caóticas de São Paulo. Ok, não há nada de “delicioso” nisso, mas graças aos traços e a narrativa (essa, sim) inebriante dos autores, tudo parece ficar bem melhor através do filtro da arte, do bom-humor e da sagacidade dessa dupla de artistas apaixonados.

    Porque a realidade é chata, e insuficiente. Assim, o fluxo de consciência ganha vida nas imagens em preto e branco, entre memórias e desejos pulsantes de um dia assíduo de trabalho para Paulo e Cris. Somam-se a isso antigos traumas, sonhos delirantes de uma tarde de verão de quem está sucumbindo ao stress de São Paulo, e, é lógico, a almejada irresponsabilidade de não precisar limpar o apartamento – quem dera! Além da louça suja na pia e os arquivos espalhados na tela do computador, Paulo e Cris são dois artistas cujo trabalho faz parte de seus dias e noites, de muito esforço criativo, e com uma imaginação tão viva, é uma aventura para qualquer leitor acompanhá-los bem de perto neste convite à sátira, explorando com um êxito já demonstrado, nos outros volumes, o dinamismo da linguagem dos quadrinhos.

    Traz à tona, portanto, o domínio dos autores em narrar uma boa história junto de seu cachorrinho, Pingo, e seus devaneios bastante aleatórios, mas falta aqui um propósito verdadeiro para este terceiro volume, um tanto dispensável para com a série inteira. Talvez o lado pessoal da publicação seja tão forte, que não sobrou espaço para avançar, acrescentar (ou refletir sobre) alguma relevância episódica na história crescente dos autores. Mesmo assim, as ideias visuais e o carisma da dupla garantem uma paixão nossa pela leitura que nos fazem torcer para não terminar – senão para retornar à experiência, várias vezes. Quadrinhos A2 continua sendo uma das melhores pedidas para uma leitura no ônibus, ou de pé no metrô, rindo no meio da multidão enfadonha.

    Compre: Quadrinhos A2 – 3ª Temporada.

  • Resenha | Quadrinhos A2 – 2ª Temporada

    Resenha | Quadrinhos A2 – 2ª Temporada

    É realmente raro, raro demais, saber que vamos nos apaixonar por um livro antes mesmo de abri-lo. Este segundo volume de Quadrinhos A2 é um anzol que nos arrebata só pela capa, pela primeira página, ou pelas boas memórias que o primeiro volume deixou. Agora, os cartunistas Paulo Crumbim e Cristina Eiko continuam a ser ilustrados por eles mesmos, de uma maneira deliciosamente surrealista, em sua rotina bem paulistana de apartamento, estresse, muito trânsito e um fetiche bem típico por tudo o que envolve praia – há de se estudar isso. Mas, se continuamos íntimos dessa dupla (quem não quer ser amigo deles?), agora há um novo marujo nessa nau dos loucos por quadrinhos e praia. Um marujo peludinho.

    Pino veio para ficar, elemento centralizador de (quase) tudo que há de bom em quem daria ótimos pais, para a sorte do Pino. Já que eles não queriam um gatinho (atenção adoradores de gatos, é tudo uma brincadeira, viu?), o doguinho Dachshund foi a escolha ideal para agitar a normalidade do dia a dia, enquanto Paulo, feito criança no natal, anseia pela chegada do seu trabalho, impresso, embrulhado e com cheirinho de novidade – por que nessa hora, as horas passam tão devagar? O que mais impressiona nesta “sátira da vida real” é o naturalismo das situações e diálogos, já que até nos exageros de uma noite mal dormida os quadrinhos expressam uma sensatez que faz o leitor se identificar com o drama, o ridículo, a comédia. É tudo verdade.

    O segundo volume poderia se dar ao luxo de mostrar mais aventuras de Pino com seus donos, mas ao invés disso, prefere seguir a mesma linha narrativa de antes (o que torna a série coerente), apostando tudo numa viagem de Paulo e Cristina ao 7º Festival Internacional de Quadrinhos, em Minas Gerais (FIQ). É claro que lá eles irão sentir saudades do filhote, mas mesmo assim não deixam de sentir o medo de distribuir autógrafos numa mesa bastante concorrida. Eis aqui mais uma alegoria adorável da vida pessoal e profissional de uma imaginação compartilhada, A2, cujo coração também encontra, no peito do outro, um porto seguro para afincar raízes, e brilhar. E que venha a parte três (será que o Pino ainda é filhote?).

    Compre: Quadrinhos A2 – 2ª Temporada.

  • Resenha | Quadrinhos A2 – 1ª Temporada

    Resenha | Quadrinhos A2 – 1ª Temporada

    Quem nunca passou por um perrengue a dois, numa viagem? Aos que já, vão se identificar na hora com os problemas de um casal tentando chegar a ‘Comicon’ de um Rio de Janeiro cheio de praias, restaurantes e outras atrações tão sedutoras, quanto. Rumo a esse badalado evento de quadrinhos, Paulo e Cristina enfrentam todo tipo de imprevisto enquanto percebem que um é o melhor parceiro do outro para todas as horas – exceto quando Cristina começa a duvidar que alienígenas estão invadindo a Terra, as três da madrugada.

    Alguém anda lendo e escrevendo muito gibi… e aos que nunca tiveram uma viagem conturbada, vão experimentar com perfeição e um humor delicioso o que acontece quando um quer correr e nadar na praia, e a outra quer ir para uma convenção de gibis. Nem sempre os desejos são iguais, e ai o mais ensolarado domingo pode virar uma segunda-feira chuvosa (fato é que o stress do paulista nunca o abandona). Quadrinhos A2 é uma celebração biográfica de uma aventura cheia de altos e baixos, cuja única pretensão é nos fazer sentir amigos íntimos e de longa data desse casal.

    Indo além, os quadrinhos de Paulo Crumbim e Cristina Eiko combinam com gosto ficção e realidade, dando aquele toque surreal que só a nona-arte consegue inserir no cotidiano das pessoas, ao transformar uma simples ida na praia do Botafogo numa jornada maluca na areia para encontrar a pessoa perdida, por exemplo. Desta forma, a Comicon torna-se um mito quase inalcançável em meio as peripécias de um casal tão discreto quanto divertido, e que só queria aproveitar a capital carioca com o máximo de descobertas possíveis, e um tiquinho de romance – destruído, é claro, pelo taxista malandro e as baratas no restaurante.

    Quadrinhos A2 prova como qualquer passeio, com a pessoa certa, vale a pena e torna-se memorável a ponto de merecer um adorável gibi, apenas sobre isso. Ilustrado em preto-e-branco e com diálogos hilários, temos uma epopeia tropical de dois nerds que abandonaram São Paulo para explorar a cidade maravilhosa por seis dias, aceitando o chamado do destino e a certeza que não seria uma viagem perfeita, e por isso mesmo, digna de vivê-la. E alguém avisa a Cristina que etês barulhentos não vão abduzi-la, enquanto o Paulo ronca do seu lado? Agradecido.

    Compre: Quadrinhos A2 – 1ª Temporada.

  • Resenha | Topografias

    Resenha | Topografias

    Ao se deparar com uma coletânea gráfica de contos, tal como essa Topografias, com suas seis histórias curtas, o leitor deve se achar incumbido de uma corajosa missão, a frente: submergir em um mar de sensações inconfessáveis e deixar-se contaminar por um silêncio tão revelador, quando íntimo.  Empresa esta que se alastra por meio de toda uma leitura lúdica, afim de aproveitá-la como se deve, sucumbindo então aos estímulos sensoriais propostos por seis autoras num esforço coletivo, cada uma a sua maneira. Cada uma com sua visão.

    Com estilos e narrativas gráficas absolutamente distintos, eis uma obra imponente em meio a sua sensibilidade exuberante, suas cores e formas tão contemplativas. É notável como o sexteto de autoras aqui se impôs ao nobre desafio de serem absolutamente honestas às suas próprias perspectivas essenciais, e estéticas, na composição de contos acerca do papel e dos efeitos das mudanças, das descobertas, e das transformações na experiência humana dos seres – em especial, o ser feminino.

    Para tanto, o apelo surreal é forte. De primeiro, sentimos (e o verbo é esse) o impacto da mudança de ambientes para duas jovens mulheres; em seguida, e não muito além, experimentamos visualmente as transformações inevitáveis que moldam nossa consciência, e o que construímos ao redor, nos traços e matizes espetaculares das autoras Bárbara Malagoli, Julia Balthazar, Mariana Paraizo, Lovelove6, Puiupo e Taís Koshino. De mutações biológicas bizarras, a transição do ciúme ao amor entre duas garotas (o primeiro tido como um sentimento primitivo de pertencimento predatório, e o segundo já encarado pela visão mais altruísta e ágape do mesmo), o leitor é conduzido a um mar de sensações catárticas em cada história na qual se permite afundar, desde a primeira e sugestiva página.

    O delírio de um traço promove aqui a epifania pretendida em certos momentos, ou ainda, a melancolia poética de outros instantes, sempre invariavelmente vibrantes como se o desejo desses seis contos fosse o de explodir, página afora, com vida, alegria e tristeza próprias, e sem precisar de muitas palavras para isso. É fato que a pujança desses contos nos chega intacta, impressa e acessível até aos menos sensíveis de nós (e acredite, são muitos), mas também nota-se o quanto a falta de harmonia não apenas visual, mas na falta de uma concordância narrativa mais forte, e contínua, consegue impactar negativamente na transição de uma história para a outra.

    Assim, a sensação final (logo após a última história, talvez a mais poderosa, bela e sensual de todas) é a de que Topografias, lançada em junho de 2016 pelo Selo Piqui, mesmo que fadado as mais extensas interpretações simbólicas, quase conseguiu ser tão marcante quanto talvez pretendesse ser, desde o início. Se o projeto gráfico de 2016 não atinge plenamente tal objetivo, de certo chega próximo, bem próximo, em suas claras e francas ambições de potência sensorial e pura exuberância estética para todos os gostos – e sensibilidades.

    Compre: Topografias.

  • Resenha | Enxaqueca

    Resenha | Enxaqueca

    Enxaqueca é fruto da epifania criativa de um autor ao abraçar sua arte, a fim de refletir as angústias da vida cotidiana com muito humor escrachado e uma irreverência típica das belas HQ’s independentes do Brasil. A partir de um financiamento coletivo (agradecido logo no final da obra) e muita imaginação, temos um conto que nos faz rir sem limites tendo como base apenas os infortúnios que brotam no nosso caminho, e nos impedem de viver uma vida tranquila, ou como muitos apontam, “perfeita” – no caso, uma terrível dor de cabeça no mais banal cidadão brasileiro, e de origem inacreditavelmente fantástica.

    Quando uma entidade interestelar chamada Iamandugarai descobre o planeta Terra, em meio a vastidão espacial, a criatura gigantesca não se aguenta diante da pequenez do globo terrestre, sua fragilidade, e principalmente, seus vampirescos e escrotos habitantes chamados ‘humanos’. Possesso por um ódio infinito, Iamandugarai decide punir a humanidade escolhendo Robson, um pobre desenhista de cobaia, para implantar nele uma onipresente dor que jamais abandona o seu pobre crânio – uma possível metáfora das preocupações que o autor enfrenta, ou que todo artista tem de lidar como qualquer outra pessoa.

    Assim, o escolhido não consegue mais trabalhar, tampouco viver mais sua vida, enquanto as estrelas rondam sua cabeça, de maneira e intensidade latentes. Até que, num belo dia, o cara está andando numa calçada quando é atacado pela odiosa entidade e seus soldados em forma humanoide, tendo literalmente as dores da vida materializadas na sua frente num dia de sol – e de uma forma diabólica, e horrenda. Nisso, percebemos como Enxaqueca reproduz em suas alegorias surreais o lado ruim da vida, os desafios e as surpresas aleatórias que nos atacam sem dó nem aviso, e aparentemente, sem um motivo claro também.

    O curioso é que Robson, mesmo com todos os seus problemas, jamais olha para cima e pergunta “Por que eu?!”, já que ele acorda e tem que viver o pior dia de sua vida, sob seus possíveis karmas ou seu azar – seja lá como cada um chama as lástimas que nos aparecem, e nos fazem crescer e perceber o valor do otimismo, da força e do sorriso como melhor remédio que existe. Felipe Parucci é sagaz em sua criação, contanto com boas referências da cultura pop e guardando boas surpresas ao longo da história, com um estilo ilustrativo bem expressivo dando o tom de um belo entretenimento, bastante reflexivo, no final das contas.

    Compre: Enxaqueca.

  • Resenha | Fugir: O Relato de um Refém

    Resenha | Fugir: O Relato de um Refém

    Ao longo das décadas, histórias reais sempre proporcionaram excelentes narrativas em quadrinhos. Maus, Persepolis e Pílulas Azuis estão aí que não me deixam mentir. Entrar na mente de outras pessoas e desbravarmos suas memórias para emularmos suas vivencias se configura, indubitavelmente, como uma experiencia catártica com a qual muitos de nós se identificam.

    Do alto de nossas vidas muitas vezes ordinárias e banais, torna-se uma poderosa válvula de escape o contato com experiencias de vida muito distintas do que as nossas jamais serão. Quem conseguiu ler Maus e não pensar nas agruras pelas quais passou Vladek Spiegelman? Quantos conseguiram ler Persepolis e não se colocaram no lugar de Marjani Satrapi, em sua jornada de amadurecimento em meio ao mar de transformações pelos quais poderia passar uma jovem iraniana em sua vivencia (inter)nacional? Pois é, a realidade continua sendo um celeiro de boas e ricas histórias.

    Em Fugir: O Relato de um Refém, o canadense Guy Delisle se coloca como um microfone para o relato de Christophe André, fazendo de seu traço um palco para o depoimento do francês, que trabalhava com os Médicos Sem Fronteiras na Cidade de Nazran, na Inguchétia, quando foi sequestrado por homens de uma milícia chechena, em 1997. Pego de surpresa e sem quaisquer explicações para o rapto, André passou cerca de 111 dias em cárcere privado, sob o controle e observação de insurgentes armados e perigosos, sempre algemado e parcamente alimentado.

    Seu relato, trazido ao público por Delisle, obtém êxito em sua empreitada narrativa ao envolver o leitor naquela esfera de perigo e risco de vida iminente, colocando André no foco, cercado por paredes claustrofóbicas e rotineiramente visitado por silenciosos sequestradores, homens que, ao falarem uma língua à qual ele não compreende, o colocaram em completo isolamento, sem qualquer tipo de contato comunicacional que não o por meio de pequenos e contidos gestos. Esse processo de animalização de André por parte dos sequestradores é colocado em perspectiva pelo protagonista a todo momento, uma vez que este acaba por passar toda sua jornada tentando fazer a leitura da situação na qual se encontra, mesmo com poucas pistas.

    Um grande mérito dessa história em quadrinhos reside na potência dos fluxos de pensamento de André, pincelados por Delisle à partir dos depoimentos colhidos pelo autor com o protagonista da narrativa. Silenciado, retirado do convívio em sociedade, André só possui a própria mente para contar e interagir, o que o faz se preocupar incessantemente com a contabilidade dos dias de cárcere e do calendário como um todo, bem como levam o homem, um aficionado por histórias de guerra, a listar personagens e batalhas históricas em suas divagações. André utilizou de todo e qualquer meio para evitar o descontrole mental que o aguardava, diante de tantas barreiras.

    A arte de Guy Delisle tem clara influência da linha clara franco-belga, o que confere limpidez para as ambientações do artista, bem como contrastam com a seriedade do fato ali relatado. A estruturação narrativa do autor é eficaz em envolver o leitor no drama pelo qual André passa, construindo um retrato psicológico do protagonista, ao passo em que faz um uso até mesmo rítmico da rotina do cárcere ao qual o homem se encontra imposto. Suas incontáveis idas ao banheiro, os raros banhos, as refeições… todos os eventos que compunham o dia a dia de André em seu período sequestrado acabam por construir o envolvimento emocional do leitor com o protagonista, de modo que o encerramento da história se constrói em um ritmo alucinante, tenso e repleto de adrenalina, fazendo com que nos coloquemos na situação do protagonista, torcendo por sua fuga e subsequente busca pela liberdade.

    A história de Fugir faz lembrar a HQ autobiográfica Uma Metamorfose Iraniana, de Maya Neyestani, cartunista iraniano que foi preso em seu país após uma charge sua tomar conotações políticas perigosas para o regime que vigora(va) no país. A diferença, contudo, se encontra nas palavras do próprio André e, “Fugir”, quando este afirma que ser refém é pior do que estar na prisão, pois na cadeia você tem data e hora para sair, enquanto no sequestro não se possui essa garantia. Isso, é claro, em um Estado Democrático de Direito, algo que passa longe do regime iraniano. A incerteza quanto ao próprio futuro é um traço marcante dos pensamentos de André expostos por Delisle, um artista vibrante e que extrai de seus econômicos traços uma infinidade de significações.

    Grandes histórias são aquelas que nos fazem embarcar em suas tramas, e a HQ atende a qualquer requisito necessário para se instalar no hall das grandes histórias em quadrinhos baseadas em fatos reais. A busca de Christophe André por sua liberdade é daqueles relatos que revigoram os ânimos e aquecem os corações daqueles que se dispõem a lutar pela manutenção da paz e da garantia das liberdades individuais a todos os povos, indistintamente. Mais do que uma história pessoal, a obra é marcante também como um retrato histórico do mundo pós queda do muro de Berlim e fim da URSS, uma representação do caos étnico e social que restou em meio aos diferentes povos daquela região.

    É uma tarefa árdua encerrar a leitura dessa história sem algumas lágrimas nos olhos, sem um reconhecimento à resiliência de um homem colocado em uma situação absurda, indefeso, mas que não se dobrou à barbárie, mas permaneceu digno em seu anseio por liberdade.

    A história em quadrinhos Fugir: O Relato de um Refém foi publicada no Brasil pela Zarabatana Books em 2018, e conta com 432 páginas e capa cartão, em uma belíssima e impecável edição.

    Compre: Fugir: O Relato de um Refém.

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  • Resenha | Abrigo

    Resenha | Abrigo

    Incrível como a vida nos prega peças, muitas vezes (para não dizer sempre), e Abrigo logo trata de retratar essa dinâmica do destino para aqueles que acreditam, ou não, que tudo está determinado para todos(as). Ao seguir os passos de uma garotinha aventureira no meio de uma floresta, lavada por belos tons outonais, e uma paz e aconchego que só o campo afastado da civilização oferece, percebemos que ela não está sozinha justamente quando, de repente, um chamado fantástico surge em seu caminho.

    Com medo, ela reage como qualquer um: assustada, grita, mas a alma angelical e florescente que a assola sabe que seria bem interpretada por uma criança – muito melhor que por um adulto. O leitor, em momento algum, fica sabendo o que aquela menina faz entre as árvores, apenas que ela está ali, o que reforça a sensação de ela ser um instrumento da mãe natureza para algo muito mais nobre do que uma reles aventura, a procura de adrenalina, e sem mais nenhum propósito, aparente.

    Seu abrigo está garantido, sim, pois ela já traz consigo uma barraca e sanduíches, mas sem saber, a garota precisa assegurar o de uma raposa perdida, numa caverna, no alto de uma montanha, com frio e fome. Se as coisas se desenrolam por linhas tortas, Abrigo reforça esta velha tese e, com a ajuda das forças do bem, e com um empurrãozinho das forças do mal (“tudo o que é feito na escuridão será trazido para a luz”, já dizia o cantor Johnny Cash), a garota é levada ao encontro do seu propósito indefinido, até então, com calma e muita bravura.

    A publicação encanta por sua graciosidade e formosura, combinando belas mensagens, em cada um de seus 31 quadrinhos, ao traço fabulesco da dupla brasileira de artistas Melissa Garabeli e Phellip Willian. Impossível é não sorrir ao longo e no término desta curta revistinha, infantil e agradável a todas as idades, sendo claramente feita com muito amor e paixão reinantes pela arte que faz parte, e ajuda a embelezar.

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  • Resenha | Mikrokosmos

    Resenha | Mikrokosmos

    “Todos temos uma música silenciosa, e que só percebemos no silêncio absoluto.”

    Astronautas perdidos no espaço dão ótimas histórias, e é muito difícil estragar alguma trama que envolva, por quaisquer razões, um profissional de astronomia vagando a esmo entre as estrelas, lá em cima, envolto numa escuridão e aquietação sem fim. Disso, surge a inquietação: De onde vim, e para onde vou? Adicione a isso dilemas existenciais que vem à tona seja pela reclusão, seja pelo o que a figura deixou pra trás na Terra, e a fórmula para um bom conto desabrocha, feito lírio na primavera. O cinema sempre fez isso, a literatura também, mas Mikrokosmos, a curta e poética publicação de Thiago Souto, tenta ir muito além em um aspecto: investigar o limite da linguagem da mídia a qual pertence, e faz vibrar.

    Logo de cara, o prefácio do psicanalista e escritor Diego A. Penha já nos remete a lógica das histórias em quadrinhos, meros quadros empilhados que buscam a sensação rítmica de continuidade entre suas imagens; planos estáticos em que, numa comparação sistemática com o vácuo espacial, seria realmente impossível transmitir o som? Ao narrar a história de um astronauta, já em idade avançada e assombrado por suas raízes, e a influência musical que sua mãe lhe passou desde a infância, Souto utiliza dessa trama para literalmente explorar se a continuidade visual pode levar, consigo, a sensação de ritmo musical que uma sinfonia preserva em todo o seu andamento.

    Pois ele nunca esqueceu o piano da mãe, chegando até mesmo a imaginá-lo, peça icônica e sugestiva como só, dentro de sua espaçonave – o rústico e o futurístico juntos, um grande fetiche visual. Agora, preso nos confins do espaço numa missão exploratória para a ciência do seu país, o indivíduo solitário de capacete se pega embriagado em nostalgia – e não é pra menos. Afinal, como alguém poderia ir tão longe e não retornar ao ponto inicial? Mikrokosmos expõe a pequena realidade antiga do homem em conflito perturbador com a sua pequena realidade de hoje, numa relação ambígua vista muito menos como fantasmagórica e mais onipresente, mesmo, tal a influência inevitável do que nos faz chegar aonde chegamos.

    Assim, Souto tem como missão emprestar a harmonia de uma obra sinfônica, a uma mídia fadada ao silêncio de suas imagens que necessitam de uma expressão mais afiada que o Cinema, por exemplo. Seus quadrinhos então, falam e por vezes exclamam impressões que só os melhores trabalhos da nona-arte conseguem transmitir, com gráficos abstratos que garantem uma poesia inerente a poucas páginas, de grande apreciação. E mesmo que seu final seja previsível, e coerente aos impulsos de nosso astronauta a boiar nas veredas celestiais próximas a constelação de Sirius, eis um trabalho que existe, acima de tudo, para insinuar e nos mostrar outras oportunidades de se ler, sentir, experimentar (e quase ouvir) uma história em quadrinhos.

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  • Resenha | Hitomi

    Resenha | Hitomi

    Hitomi é a típica obra de arte que, através de seus gráficos e toda a poesia que exclama de sua simplicidade, celebra o lado simples das coisas em uma rápida leitura, para todas as idades, e tipos de público. A trama, a mais sugestiva possível: sozinha em sua casa, morando com sua mãe que parece não fazer parte do seu mundo infantil e cheio de imaginação, e ambas abandonadas pela figura paterna que só faz trabalhar, a garota título precisa de um escapismo. Um abrigo contra o tédio.

    Da casa para a escola, e vice-versa, todo dia, eis um ciclo monótono quebrado por uma briga dos seus pais no telefone – algo realmente marcante para uma criança. Para fugir de um conflito pesado demais para ela, a garota corre para o sótão, onde encontra uma máquina fotográfica capaz de congelar o tempo. Era uma vez o gatilho para uma aventura, e sua pequena vila japonesa ganha outros contornos para nossa heroína mirim, uma nova intensidade, além de oportunidades inéditas de usar sua curiosidade natural para novos fins – muitos mais interessantes.

    Sobre Ricardo Hirsch e George Schall, a formação em cinema e histórias em quadrinhos dos autores de Hitomi não nega as verdadeiras inspirações sensíveis e transgressoras da trama. O nobre e utópico desejo de um artista de usar a arte para fins práticos, e o de parar a realidade nem que seja por uns segundos, sequer, e observá-la, senti-la, alheia aos efeitos do tempo, é metaforicamente implícita no papel da descoberta da garota. Ela chega a salvar uma vida com sua fantástica ferramenta, mas também aprende que nem ela brincando de Cronos, o deus grego do tempo, pode controlar o curso natural da vida.

    A universalidade desta publicação da Balão Editorial é total, apostando em poucos diálogos para expressar suas necessidades e mensagens mais sinceras cujo visual da obra, por si só, já dá conta do recado na maior parte da leitura – e bem, por sinal. Hitomi não alça grandes voos, tendo poucas ambições além de ser uma pequena grande ode à candura, ao poder transformador da arte, e a descomplicação de um mundo cada vez mais complicado. Afinal, se você pudesse parar as horas, qual situação iria congelar sob a tentação de nunca mais vê-la acontecer, de novo?

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  • Resenha | A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar

    Resenha | A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar

    “Cheguei à conclusão que há dois tipos de pessoas. Os bem fodidos e os totalmente fodidos” – Seth

    Há certa beleza poética na melancolia com a qual Seth carrega as páginas de A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar. O volume reúne as edições originalmente publicadas nas edições #04 a #09 da série em quadrinhos do autor, Palookaville, bem popular durante os anos 90.

    O anacrônico quadrinista canadense, de exótico estilo e um nostálgico inveterado, se insere no centro da narrativa ao desempenhar o papel de protagonista de uma insana e, à primeira vista, incompreensível busca por um misterioso cartunista dos anos 40 e 50, do qual ninguém sabe muita coisa ao certo.

    Contando com seu inabalável amigo Chet para se lamentar e divagar sobre o tempo, a vida e as pessoas, Seth atravessa os anos nessa jornada em direção ao passado, encontrando nessa empreitada uma fuga de sua própria realidade medíocre e triste.

    A fixação do protagonista/autor com a primeira metade do século XX se descortina ao longo da narrativa em uma verdadeira incapacidade de enfrentar os próprios problemas, as próprias imperfeições, buscando em um passado idealizado e irrecuperável uma âncora que lhe dê significado e propósito no mundo. Avesso às mudanças que a vida impõe, o protagonista se vê perdido e sem rumo, enquanto observa os anos passando e tudo à sua volta se modificando.

    A busca pela história ordinária de Kalo – um cartunista canadense que logo abandonou a carreira promissora e encarou outra profissão para sustentar a família, se adequando às mudanças que a vida impôs –, acaba se mostrando um trabalho de reflexão do próprio Seth em sua relação com o passar do tempo, não rendendo qualquer clímax arrebatador, de forma que a história se finda tão monótona quanto começou.

    Contudo, não se engane. Tal monotonia é um excepcional acerto dentro da composição diegética do quadrinista. O tom melancólico com o qual autor concebe a narrativa não poderia ter outro resultado senão o anticlimático final que possui. A forma como o autor aborta esse descompasso e desconforto com a vida acaba gerando certo efeito cômico, que equilibra as nuances do quadrinho, sem que este se enverede pelo dramalhão ou para o nonsense. Há muito humor por trás da aparente tristeza com a qual Seth lida na história.

    A coloração amarelada das páginas, aliadas às pinceladas de azul em meio ao preto do nanquim, reforçam o desalento com o qual o protagonista se depara em sua vida. A paleta, inclusive, se assemelha em certa medida a Fun Home, de Alison Bechdel, ainda que o expressivo traço da quadrinista norte-americana em muito se diferencie da minimalista arte de Seth, que parte da inexpressividade para transpor ao máximo a indiferença e o marasmo com os quais o protagonista enxerga o mundo à sua volta.

    A diagramação das páginas obedece a uma aparente simplicidade e organização fixa, sem fuga dos padrões de requadros tradicionais, exceto quando Seth entra em suas rememorações de tempos idos, contemplando seu próprio passado inatingível.

    A obra se trata, dessa maneira, de uma excelente e em igual medida incômoda narrativa gráfica, com a qual Seth toca poderosamente o leitor, expondo suas incongruências particulares em uma viagem ficcional de autoconhecimento e autorreflexão, tanto para o próprio autor quanto para quem se aventure a desbravar as páginas de sua “novela em quadros”.

    “A vida é boa, se você não fraquejar” saiu aqui no Brasil publicada pela editora Mino, em 192 páginas e capa cartão, em uma belíssima edição. A narrativa se insere dentro do hall das grandes histórias em quadrinhos indie dos anos 90, prato cheio para quem se interessa por narrativas que fujam do padrão publicado no mainstream.

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  • Resenha | Eventos Semiapocalípticos: Eduardo e Afonso

    Resenha | Eventos Semiapocalípticos: Eduardo e Afonso

    Eventos Semiapocalípticos: Eduardo e Afonso é uma obra recente de Yoshi Itice, autor de quadrinhos desde 2010 e fundador do site/estúdio LoboLimão, no qual trabalhou até 2014, para pouco tempo depois se envolver com trabalhos em outros dois projetos de quadrinhos: Manjericão e La Gougoutte – sendo o primeiro, seu estúdio próprio, e o último, um selo de quadrinhos que mantém ao lado de Bianca Pinheiro, Alexandre Lourenço e Greg Stella. Itice foi responsável pelo quadrinho independente Batsuman: Ano Um (e dois também), financiado coletivamente através do Catarse, em 2016. Eduardo e Afonso surge da mesma forma, e a ideia da dupla de personagens que serve de subtítulo para a publicação aconteceu de forma simples, quando o autor voltava do trabalho, evoluindo pouco a pouco todo o conceito da trama com o mundo devastado, ou melhor, semi-devastado.

    Eduardo anda por um cenário desolado, arrastando com uma corda amarrada em sua cintura um objeto estranho, parecido com uma máquina de lavar. É na verdade Afonso, uma secadora elétrica. A referência ao mangá/anime Fullmetal Alchemist, aparentemente, vai além do título do quadrinho. As conversas entre os dois são engraçadas e repletas de tiradas com humor ácido, simples e direto. Eduardo é um sujeito amoroso e paciente, enquanto Afonso é chato, boca suja e um tanto niilista. A química entre os dois funciona, e é curiosa por isso, pois são pessoas tão diferentes entre si. Até quando ha o acréscimo de um terceiro elemento, a jovem Gabriela, a interação dos personagens muda, com Afonso se tornando ainda mais temperamental, orgulhoso e ciumento.

    O traço de Itice é simples, remetendo as tiras de humor que saiam nos jornais, na seção infantil das antigas versões do Globinho impresso, e esse estilo de desenho cabe muito bem com o roteiro proposto. A forma como o lúdico e o caráter irônico se misturam na trama impressiona, dado que há espaço para o desenvolvimento de ambos os aspectos. Além disso, os personagens compensam com humor o fato das poucas páginas desse primeiro volume não ter muito tempo para desenvolver todas as suas características.

    O final soa agridoce, relatando um pouco da origem de Afonso e de sua transformação em uma secadora, abrindo possibilidades de diversas interpretações e teorias. O desfecho desse primeiro volume tem uma certa melancolia, mas o autor equilibra esse ponto no bom humor da obra e ainda desenvolve um herói rico em bondade e perseverança. Eventos Semiapocalípticos: Eduardo e Afonso termina com um vislumbre de um futuro sem soluções fáceis, mas ainda com uma ponta de solidariedade e otimismo.

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  • Resenha | A Arte de Charlie Chan Hock Chye

    Resenha | A Arte de Charlie Chan Hock Chye

    De quantas maneiras pode-se contar uma história? Em A Arte de Charlie Chan Hock Chye, o quadrinista Sonny Liew, nascido na Malásia e radicado em Singapura, mostra que não existem limites narrativos quando há um domínio pleno do meio escolhido para se transmitir uma mensagem.

    A partir dos olhos do fictício quadrinista singapurano Charlie Chan, Liew se propõe a contar a história política de Singapura, desde os anos 50 até os dias atuais. Criando a narrativa através de uma espécie de acervo documental da trajetória de Chan como artista de quadrinhos, o autor concebe uma espécie de metaficção historiográfica, ficcionalizando em cima de fatos da história singapurana, ilustrando passagens complicadas do processo de formação do país através da subjetividade do trabalho de um artista já idoso e reflexivo quanto a sua trajetória. Em um exercício espetacular de metalinguagem, Liew brinca com os limites entre real e imaginário, ao navegar simultaneamente pela história de seu país e dos quadrinhos propriamente ditos.

    A forma como Chan escolhe para contar suas histórias, repletas de subtextos políticos e pertinentes aos delicados eventos históricos de Singapura, dialoga fortemente com a tradição dos quadrinhos ao redor do mundo. O uso de funny animals, de traços mais infantis, estilizados, variando entre histórias de selvas, guerras e até tokusatsus, evidencia uma preocupação de Charlie Chan em se mostrar versátil ao longo dos anos, na busca pelo sucesso enquanto quadrinista. De Osamu Tezuka a Frank Miller, o autor passa por diferentes estilos de traços e enquadramentos, estabelecendo diferentes níveis de percepção do trabalho, para além do campo diegético. A busca pelas referências históricas dentro da narrativa é um deleite para quem pesquisa e se interessa pelo processo de desenvolvimento dos quadrinhos em si.

    Liew demonstra com esse trabalho um domínio não só artístico quanto histórico em relação à narrativa gráfica propriamente dita, fazendo uso de montagens de páginas extremamente inovadoras, emulando ao longo das páginas papéis antigos e desgastados pela ação do tempo, recortes colados com fita em páginas em branco, concebendo dessa forma a ideia de um arcaico acervo do trabalho de Chan, que dialoga com seu leitor a todo instante, enquanto comenta sua vida e obra. É interessante perceber como o autor acaba se inserindo na própria trama e fazendo de si um ator, ao “interpretar” o virtuoso Charlie Chan, empregando diferentes traços e estilos, conferindo verossimilhança para sua proposta, levando muitos a acreditarem erroneamente que existe de fato um quadrinista singapurano chamado Charlie Chan. As fronteiras entre ficção e realidade encontram-se extremamente diluídas e confrontadas, nesse brilhante trabalho de Liew.

    A Arte de Charlie Chan Hock Chye rompe com as fronteiras da narrativa gráfica tradicional, tecendo um cuidadoso panorama das tensões inerentes ao desenvolvimento de Singapura, passando pelas questões de classe e pelo dualismo de um mundo fragmentado entre capitalismo e comunismo, sob o mar de incertezas da Guerra Fria.

    A obra, trazida ao Brasil pela editora Pipoca & Nanquim, conta com 320 páginas em papel offset e capa dura em alto relevo. Prestigiada internacionalmente, a obra ganhou três prêmios Eisner no ano de 2017. Sua trama foge do padrão e entrega uma poderosa e metalinguística narrativa, que funciona tanto como experimentalismo estético quanto como relato histórico de toda uma nação.

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  • Resenha | Dora

    Resenha | Dora

    De Bianca Pinheiro, Dora é uma história de mistério que explora o depoimento de uma mãe que tenta em seu testemunho provar a inocência de sua filha, acusada de crimes hediondos. Os desenhos minimalistas reforçam a ideia de isolamento, durante o interrogatório em que a mãe tenta construir uma imagem de inocência para sua “criança”, Dora, que era calada e tímida desde sempre.

    Logo no capítulo um, Choro, se nota que ela ainda bebê não chora, não emite som algum e é dona de um estranho olhar penetrante. Desde pequena havia dificuldade de encontrar babás. Até por conta dessa fuga de cuidadoras, os vizinhos tinham curiosidade em ver a menina, e na sua festa de um ano, um acontecimento catastrófico é atribuído ao tal bebê. Há semelhanças envolvendo o tema com filmes cujas crianças tem a raiz do mal em si, como A Profecia e A Infância de um Líder, e até um pouco de Bebê de Rosemary, no sentido de a geração anterior à vinda do mal não assumir que algo está errado com o seu descendente.

    Bianca Pinheiro também é autora da série Bear, Alho-Poró e também da graphic novel Mônica Força, da iniciativa da MSP de releituras das obras de Maurício de Souza e apreciar Dora dá uma boa ideia do quão eclética é sua obra e criatividade. A história é simples, não tem rodeios em explorar suas próprias tramas e é equilibrada nessa exploração, apelando pouco para a dubiedade, só utilizando quando é necessário. Destaque para o trabalho da autora por meio de um traço simples e expressivo, utilizando com maestria o preto e branco para criar ambientações e climas.

    Aos poucos, o horror toma conta das páginas em uma crescente já esperada. A riqueza no trabalho de Pinheiro consiste na construção da alienação que a mãe se auto-impõe, pondo à prova o tempo inteiro a questão básica do amor materno ser incondicional ou não, e quais são os limites dentro desse clichê.

    Dora é uma revista simples, com uma história direta mas ainda assim muito inventiva, sem receios de assumir seus referenciais, como a literatura de horror de autores como Stephen King e o cinema de John Carpenter e David Cronenberg, e em especial no quesito de tratar da puberdade como uma época tão confusa e turva, que abre possibilidade da manifestação do mal antigo, unido é claro a aura de mistério secular, já que as manifestações ocorrem desde muito cedo, no nascimento da menina. Apesar de não se tratar de um roteiro original, a versão que Pinheiro dá para o mito da criança assustadora tem sua própria identidade e caráter, tendo uma abordagem universal e que funcionaria com a maioria dos públicos, exatamente por se empossar de elementos impressos na cultura popular.

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  • Resenha | Bilhetes

    Resenha | Bilhetes

    Bilhetes é um quadrinho independente que tem como premissa uma interação diferenciada com seu leitor, exibindo seis mensagens anônimas, cujo objetivo é descobrir quem escreveu cada um dos tais bilhetes. Todo esse esquema interativo é muito bem explicado em um pequeno texto, que vem logo após o prefácio se Sidney Gusman, e cada uma das mensagens tem seu próprio espírito e caráter.

    O primeiro segmento mostra um trabalhador a beira de um suicídio, seu nome é Claudiney, e ele faz um pedido a uma colega de trabalho para que entregue sua mensagem de despedida. A história é curta, não faz praticamente introdução nenhuma de personagens, e isso somado a abordagem direta e crua, dá a existência de Claudiney uma condição-ate aqui ao menos, sem saber o conteúdo da carta – de universalidade. Mesmo em sua simplicidade, há uma riqueza na exploração dos personagens mostrados nas curtas passagens.

    Este primeiro, Harakiri Kamikazi tem arte do idealizador do projeto Paulo Borges, com roteiros de Marcelo Marchi, que segue escrevendo todos os outros textos.. Os outros desenhistas são Jean Diaz, Laudo Ferreira, Marco A. Cortez, Augusto Minighitti e Julius Ohta. A Rainha da Penitenciária, com arte de Minighitti tem traços característicos dos quadrinhos dos Estados Unidos mais adultos, com hachuras nos corpos dos surrados personagens e com um trabalho de sombra belíssimo, que lembra um pouco o trabalho de Frank Miller em Sin City, embora não seja muito semelhante. Aliás , o material gráfico ressalta bem o trabalho do desenhista, que não abdica de pessoalidade e personalidade mesmo sem ter cor. Este segundo capitulo também é curto e é visceral, conseguindo traduzir bem o ambiente das penitenciarias para o publico médio.

    Tanto Na Pista, com desenhos de Ohta quanto Hora da Saída de Laudo Ferreira não são tão inspiradas quanto as primeiras, mas o resultado em Bichas é surpreendente, ainda mais por conta do tom macabro, que difere muito do traço estilizado de Marco Antonio Cortez. Caso se aprecie as imagens sem a leitura dos balões há a falsa impressão de se tratar de uma história fofa, no entanto, essa deve ser mais cruel delas.

    A última história é Santa Clausura, um conto de vingança que inverte expectativas sobre mitos natalinos, violento e misterioso, pontuado pelo traço característico de Jean Diaz. Essa quebra de expectativa serve bem ao compilado e fecha bem esses especial financiado coletivamente. Por mais que um dos motivos para esse Bilhete seja apreciado more no mistério em associar os bilhetes as historias, os pequenos capítulos tem uma leitura bem desenvolvida, com alguns momentos não tão bons e outros excelentes, resultando em um trabalho de coletânea cuja leitura é fluida e repleta de discussões bastante profundas, apesar de não ter tantas páginas em sua composição.

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  • Resenha | Anésia

    Resenha | Anésia

    Logo no início do encadernado Anésia, do cartunista Will Leite, descobrimos que a ideia sempre foi fazer uma série de quadrinhos publicados na internet com uma personagem toda especial, e bem familiar a quem lhe deu vida por meio de traços bem peculiares, e indiscutivelmente habituais a todos. Afinal, ao folhear um jornal ou uma revista, ou mesmo em algum site de cultura pop, feito o willtirando.com.br, quem nunca passou o olho por uma tirinha da vovó mais rabugenta e hilária do Brasil?

    Ela não tá pra brincadeira! Will Leite consegue injetar uma força representativa e um carisma todo próprio para uma senhora que todos adoram odiar, com 65 páginas do mais puro suco do mau humor que temos notícia. Fofa, do lar, e nada recatada, Anésia vive mil e uma aventuras dentro e fora de sua casa, geralmente envolvendo sua família e sua inseparável e antiga amiga Dolores, seu exato oposto, cheio de otimismo e amor para dar – o que definitivamente não tem nada a ver com a nossa protagonista.

    Eis um exercício difícil de fazer, e que Leite nos torna acessível através de sua criação com uma facilidade impressionante: Como tornar alguém detestável, uma figura irresistível? Na receita do cartunista, o truque é colocar Anésia em situações perfeitas a tanto, como por exemplo perdida num asilo cheio de idosos malucos, numa perfeita referência a jornada de Dorothy, em O Mágico de Oz, ou inserindo a vovó em história reais que merecem ser caricaturadas de um jeitinho todo especial, fazendo-nos gargalhar do começo ao fim.

    O curioso é como todos nós conhecemos uma Anésia, seja da nossa família, ou não. Fica fácil perceber o quanto essa senhora que nunca sorri (nunca, mesmo!) é uma homenagem do artista as avós com quem cresceu, examinando seus costumes, sua forma de falar e agir, o humor característico de quem não tem mais nada a perder – muito menos a chance de mandar Dolores calar a boca. A ironia mora nessa análise transvestida, aqui, numa compilação de mais de cem tirinhas de grande irreverência e energia humorística, em tons de rosa propícios para espantar as energias negativas. “Quanta ironia”, diria Anésia.

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