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  • Resenha | Eles Nos Chamavam de Inimigo

    Resenha | Eles Nos Chamavam de Inimigo

    O ator George Takei ficou mundialmente conhecido por seu personagem Hikaru Sulu, na franquia Star Trek, um fenômeno da ficção científica referenciado nos mais diversos produtos culturais ao longo das últimas décadas, sempre presente no imaginário popular através de filmes e séries dos mais diversos.

    O que a maioria das pessoas não sabem, contudo, é que antes de se tornar um ator e ativista mundialmente reconhecido, o longevo ator enfrentou o preconceito e a discriminação racial em níveis cavalares, logo após o ataque japonês a Pearl Harbor, no final de 1941.

    Na histeria que varreu a Costa Oeste dos Estados Unidos após o atentado, tanto os japoneses residentes nos EUA quanto seus descendentes foram levados para campos de detenção, injustificadamente listados como suspeitos de associação e fidelidade ao Império Japonês, em plena Segunda Guerra Mundial.

    Desapropriados de tudo que haviam conquistado honestamente ao longo dos anos e deixados em um campo severamente vigiado no meio do Arkansas, os Takei percorreram uma longa jornada até a recuperação de sua liberdade, com consequências que perduraram através das décadas para a população nipo-americana e que influenciaram sobremaneira a forma como o primogênito George viria a enxergar o mundo.

    Em um relato sensível e detalhado, Takei conta a história de sua família de forma tocante e intimista. Contando com Justin Eisinger e Steven Scott nos roteiros, as reminiscências do octogenário ator percorrem tanto sua infância quanto sua vida adulta, explorando não só o trauma do encarceramento injustificável quanto as reverberações desse absurdo institucionalizado pelo Estado.

    A impressionante narrativa visual de Harmony Becker dialoga com as facetas do roteiro ao apresentar um traço camaleônico que se adapta às sequências propostas, ora apresentando um aspecto mais cartunesco, ao explorar as aventuras do pequeno George e seus irmãos, ora dispondo de uma narrativa mais detalhada e menos descontraída, para trabalhar a passagem dos anos e os momentos marcantes da trajetória de Takei pós campo de detenção.

    A tradução de Érico Assis logra êxito ao reproduzir os costumes e maneirismos da fala de japoneses se comunicando em uma língua que não é a sua, gerando efeitos cômicos em alguns momentos mais lúdicos, mas sem perder a seriedade exigida pelos momentos mais tensos da história.

    A leveza da visão infantil é contrastada a todo instante pelos autores com o absurdo cometido contra a população nipo-americana em um evidente movimento racista institucionalizado pelo Estado. As discussões políticas travadas pelos pais do intérprete de Hikaru Sulu são a todo tempo colocadas em perspectiva com as recordações de momentos divertidos e lúdicos do próprio George e seus irmãos em meio ao total e completo absurdo.

    Seguindo o relato do Takei mais famoso da família, a obra carrega consigo a observância de todo o disparate ocorrido junto de um otimismo marcante do ator em relação à democracia e à ideia de liberdade que ele próprio imagina sobre os EUA. Esse viés entusiasta e patriótico acaba evidenciado e gera incômodo na medida em que se percebe que há mais idealização do que constatação factual sobre as estruturas democráticas dos EUA.

    Nessa obra, indicada ao prêmio Eisner 2020 na categoria de obras baseadas em fatos reais, as contradições e os equívocos dos EUA não são mencionados diretamente por Takei, mas podem ser inferidos pelos leitores mais atentos através da construção de roteiro elaborada por Eisinger e Scott, apesar do tom positivo com que George Takei, do alto de suas mais de oito décadas de vida, consegue manter sobre sua longa e próspera vida.

    Publicada pela Editora Devir no final de 2019, “Eles nos chamavam de inimigo” conta com 208 páginas, capa cartonada com orelhas e um design de edição que torna a leitura ainda mais satisfatória e envolvente.

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  • Resenha | Instrumental – James Rhodes

    Resenha | Instrumental – James Rhodes

    “Mas ouça o seguinte: pergunte a um cara que usou heroína durante anos e depois parou como foi que ele fez para conseguir parar, e isso será muito mais elucidativo que o conselho de algum clínico geral que se quer sabia como aplicar uma dose.” (p. 236)

    Lançado pela Rádio Londres, Instrumental é uma narrativa equilibrada entre a biografia e um talentoso relato sobre uma difícil trajetória. Escrito pelo músico britânico James Rhodes, a polifonia se apresenta desde o título, remetendo-se tanto a música clássica, que não utiliza nenhum vocal, como aos conjunto de instrumentos necessários que compõe o próprio James Rhodes. Um homem de uma trajetória tortuosa, com marcas que lhe acompanharam a vida toda e foram reinterpretadas somente em fase adulta.

    Estuprado quando criança, viciado em álcool e, posteriormente, drogas, e internado, por mais de uma vez, em um hospital psiquiátrico com um histórico de cinco tentativas de suicídio, o livro é parte do processo de cura do pianista, exibindo com autentica crueza suas dores em uma tônica em que a ironia se sobrepõe a comiseração. Rhodes dialoga com o leitor como um velho amigo, um homem que se sente confortável para expor sua alma, o trauma que lhe causou profundas marcas psicológicas e físicas, bem como apresentar a tábua de salvação de sua dor: a música clássica.

    A música entrou em sua vida como um golpe luminoso, um processo catártico que, inicialmente, reconecta a sensibilidade perdida pela dor. Cada capítulo do livro cita uma importante peça clássica para o autor. Dessa forma, além de exibir parte de seu conhecimento sobre o tema, o músico também pontua brevemente sobre tais grandes autores, miseráveis na vida, geniais nas composições, um contraponto entre o trabalho árdua e a loucura. Um fator preponderante a muitos músicos clássicos que viveram em condições duras, doenças incuráveis, pesados problemas familiares, mas fizeram da música um ponto de redenção e força.

    Rhodes é um pianista jovem que vem tentando aproximar a música clássica de um novo público, afinal, a música clássica é, por natureza, um grupo seleto na música, diz. Como parte de agregar o novo público, o músico convida o leitor a conhecer as músicas citadas e há até mesmo uma playlist oficial para ser ouvida online (imperdível), compartilhando anonimamente com o autor um amplo leque musical que foi responsável por ajudar a superar seus traumas.

    Instrumental foi lançado quando o autor tinha apenas 38 de idade. O próprio autor questiona porquê um homem com uma longa vida pela frente escreveria uma biografia a esta altura mas, em seguida, justifica demonstrando que sua história com cicatrizes de um estupro, sequências de auto-destruição e loucura pacificada pela música fazem-no alguém ideal para rir de sua própria dor e, iconoclasta, mostrar que pode superá-la pela música, narrando uma história oficial e rindo dela ao mesmo tempo, sem auto comiseração. Um homem em harmonia com a própria trajetória.

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  • Resenha | Rocks – Joe Perry

    Resenha | Rocks – Joe Perry

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    Dois anos após o lançamento de O Barulho na Minha Cabeça Te Incomoda? – Uma memória feita de Rock´n Roll, autobiografia de Steven Tyler, frontman do Aerosmith, chega a vez do guitarrista Joe Perry lançar suas memórias, adicionando novo combustível a carreira sempre implosiva da banda conhecida, não a toa, como os bad boys de Boston.

    Lançado em janeiro pela Benvirá, Rocks – Minha Vida Dentro e Fora do Aerosmith apresenta uma nova versão de fatos conhecidos pelos ouvintes da banda, trazendo a tona a outra figura que, ao lado do cantor, configura os Toxic Twins – alcunha dada pela mídia à amizade explosiva e ao contínuo uso de drogas dos parceiros musicais. Seguindo a fórmula tradicional de uma biografia, o músico apresenta a trajetória de sua vida, tanto antes da consagração como no estrondoso sucesso da banda, mantendo a mesma franqueza agressiva de Joey Kramer e Tyler em suas memórias. Afinal, após quase 40 anos juntos, os atritos da banda são tão fundamentais quanto seu rock´n roll.

    Embora tenha convivido na mesma região de Tyler – um garoto da cidade que passava o verão na pensão de seus pais no campo – a trajetória de Perry é mais humilde. Os valores que fundamentariam sua carreira como a dedicação passional à guitarra e um louvável senso familiar diante da vida de um rockstar foram ensinamentos aprendido com os pais, responsáveis por presenteá-lo com seu primeiro instrumento musical. Desde este inicio precoce, o contraste entre os gêmeos tóxicos está presente. Steven já era conhecido na região devido a outras pequenas bandas, enquanto o guitarrista buscava trilhar seu caminho profissional. O encontro definitivo da dupla aconteceria somente em Boston quando, primeiro Perry, depois Tyler, rumariam para a capital e, todos sob o mesmo teto, fundariam o Aerosmith.

    A personalidade de Joe ecoa pela biografia realizada em parceria com o crítico David Ritz. Uma narrativa mais calma e notadamente mais afiada na linearidade dos fatos do que a do companheiro. Perry se contrapõe ao cantor na timidez mas explode sintonia musical em uma potente guitarra mergulhada no blues. Mesmo mais calmo que o parceiro, compartilhou a jornada rumo à destruição através das drogas. A música, porém, falou mais alto e, em momentos quando o Aerosmith dava sinais de cansaço devido a uso excessivo de qualquer tipo de droga, Perry soube se lançar em uma bem sucedida carreira solo que ainda mantém entre um álbum e outro dos bad boys.

    Se na carreira de um roqueiro há sempre um ponto de redenção que o faz repensar sua jornada, a família foi a sustentação de Perry. Ao vê-la quase colapsar devido ao uso das drogas, tentou ao máximo se abster, ainda que em inevitáveis recaídas. Em um universo mítico em que o sexo, a drogas e o rock´n se mantém como dogmas, o guitarrista soube compartilhar o melhor de dois mundos: a frente da guitarra é um dos deuses eternos do rock. Quando o espetaculo se encerra, é apenas um homem comum que mantém um legado de amor com esposa e filhos.

    Rocks: Minha Vida Dentro e Fora do Aerosmith – Joe Perry

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  • Resenha | O Barulho na Minha Cabeça Te Incomoda? – Steven Tyler

    Resenha | O Barulho na Minha Cabeça Te Incomoda? – Steven Tyler

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    Steven Tyler está confortavelmente sentado ao seu lado. Você não se recorda há quanto tempo o conhece, embora se lembre das histórias que lhe contou, sem filtro, dando vazão a uma verborragia tão intensa quanto sua voz. Tyler relata sobre mulheres, o impulso pela experimentação – tanto na vida, quanto nas drogas – sem perder a pose. É como se ele sempre fosse um protagonista e, mesmo fora dos palcos, usa as calças com pintas de onça, diversos colares e mantém as unhas pintadas – mal pintadas, diga-se. Você pensa o quanto este figurino seria cafona se ele não fosse Steven Tyler. “estilo, cara, estilo é tudo”, ele diz.

    Lançado pela Benvirá em 2013, O Barulho na Minha Cabeça Te Incomoda? – Uma memória feita de Rock´n Roll é a segunda biografia de um Aerosmith lançada no mercado editorial, porém, a primeira a chegar em terras brasileiras (o livro de Joey Kramer ainda não chegou no país). Com título extraído da canção Something´s Gotta Give, do álbum Nine Lives (1997), a biografia entrou na lista de mais vendidos do New York Times, representando o sucesso da banda e refletindo com exatidão a aura desenvolvida pelo frontman desde o início da banda como um talento excêntrico.

    Com uma linguagem simples e um estilo franco, a biografia vai direto ao ponto sem nenhum receio ou filtro. Em narrativa bem humorada, não há nenhum refreio para contar os altos e baixos de sua vida e dos problemas envolvendo o Aerosmith, a banda formada pelos bad boys de Boston. Sem abrir espaço para modéstia, Tyler se debruça na própria memória, abrindo o coração ao leitor, destacando seus feitos como heroicos e responsáveis pelos ápices da banda que co-fundou ao lado de Joe Perry. A família de classe média alta que fundamentou seu amor pela música, o apetite por explorar qualquer tipo de droga sempre reconhecendo suas modificações mentais, as mulheres que a música lhe proporcionou, tudo é transmitido ao leitor como se ele fosse um velho amigo confidente e estivesse visitando sua casa para uma noite regada de bebida e blues.

    Ciente de sua própria potência, Tyler rouba a cena em todas as histórias, provavelmente distorcendo algumas aventuras para demonstrar sua força. Uma verdade que parece tão forte que se torna coerente, sem se importar ao leitor se as história foram, de fato, como relata. Sem papas na língua, desagua as mágoas da vida, sem perdoar nem mesmo os parceiros de banda. Todo o misto de violência e amor que sustenta a visceralidade insana do Aerosmith está presente, muitos relatos são dolorosos mas vistos com um carinho impar pela trajetória conquistada de uma banda que ainda permanece na ativa.

    O Barulho na Minha Cabeça Te Incomoda? É um passeio pela trajetória da banda e uma história vivida no limite por um homem sempre criativo e tempestivo. Se o Steven Tyler é um personagem, não interessa ao leitor, trata-se de um cantor autêntico que permanece em uma trajetória a procura do sucesso, como se ainda não estive ciente de que é um ícone do rock´n roll americano desde a década de 70.

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    performs onstage during Pilgrimage Music & Cultural Festival on September 27, 2015 in Franklin, Tennessee.
    performs onstage during Pilgrimage Music & Cultural Festival on September 27, 2015 in Franklin, Tennessee.

     

  • Crítica | Born To Be Blue

    Crítica | Born To Be Blue

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    – Te pagam dois mil dólares por um beijo e dois dólares pela sua alma. Sabe quem disse isso?

    – Não.

    – Marilyn Monroe.

    Através de diálogos assim, econômicos e não menos vorazes, que logo notamos o tom de Born to te Blue, uma obra não de primórdios, mas sim de recortes.

    Procurando retratar um momento, a obra usufrui de todo intimismo possível para nos situar dentro do controverso e genial mundo do lendário trompetista de Jazz Chet Baker.

    É sabido que o cultuado e problemático músico, que sempre oscilou entre seu brilhantismo dom e momentos auto-destrutivos, acarretados principalmente por seu envolvimento com heroína. Fruto de uma geração transgressora e, portanto, cheia de excessos é importante salientar que a heroína infelizmente assolou grande parte dos integrantes do movimento artístico-musical originado nos E.U.A.

    Aqui encontraremos um Chet em processo de recuperação, confrontando seu demônios, pagando por seus erros passados e tentando ressurgir mental e estruturalmente, buscando se desvencilhar do ostracismo e novamente se firmar no Hall que sempre lhe pertenceu, ou seja – em um palco com holofotes e plateia.

    O filme dirigido por Robert Budreau (produtor e também assinante do roteiro), mesmo não se arriscando, segue uma cartilha precisa e entrega ao público um bom material. Assumindo um caráter minimalista, as tensões se revelam contidas, porém não menos ‘explosivas’, ao contrário, denotam uma angústia que casa bem com o ritmo proposto.

    Abro um parênteses e aponto que, de todos os acertos do filme, indubitavelmente está principalmente a performance de Ethan Hawke que, assumindo a persona de Chet, acerta em cheio. Neste trabalho, o ator vai além do notório arquétipo e constrói uma sutil interpretação merecedora de todos aplausos possíveis. A força de sua interpretação fica mais evidente em seu olhar do que propriamente em seus diálogos, algo que se escancara em um notório momento chave da trama, que se dá entre o diálogo de Chet com seu pai. Há de se apontar também o belo trabalho de Carmen Ejogo (Jane) companheira de Chet que lhe dá bastante força em sua jornada, sendo para o artista uma âncora em seu momentos mais sombrios.

    Não obstante todos os fantasmas acarretados, acompanharemos um outro forte drama do músico que, após perder os dentes em uma briga de rua, deverá encontrar forças para reverter esse quadro, reformulando até sua embocadura se assim for necessário, superando s si mesmo e tudo o que um dia fez dele uma estrela.

    Afiado o cálamo, o garoto da Costa Oeste se encontrará em um complexo dilema de suas escolhas, em que se verá confrontado e advertido sobre isso, pois sabe que, mesmo que “cante com a língua dos anjos, se não tiver amor, será apenas um címbalo que retine”.

    Sobre a efígie de um Fauno, que deixa um rastro de poeira a cada movimento de seu percurso, entre encontros e desilusões, Chet volta aos palcos com seu atípico swing, e é então que as luzes se acendem, as cortinas se abrem e surge pro mundo My Funny Valentine e Born to Be Blue – canções extremamente românticas sublimadas por uma indomável angústia sem fim.

    O que fica evidente, não só ao desfecho mas ao longo de todo o filme, é que o maior inimigo da vida Chet sempre foi “seu eu”, que por muitas vezes, na busca por uma libertação, acabou se tornando refém de si mesmo.

    Texto de autoria de Tiago Lopes.

  • Crítica | A Garota Dinamarquesa

    Crítica | A Garota Dinamarquesa

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    E se a Viúva Negra dos Vingadores se assumisse lésbica no meio do filme? Imagina a confusão depois da sessão, e a discussão na fila do McDonald’s, dialogando sobre o que, de fato, quase não se discute. São filmes bonzinhos e comportadinhos como A Garota Dinamarquesa que obrigam a levantar uma pergunta básica: Qual o lugar do “diferente” no cinema comercial? Vamos supor que seja nenhum (a menos que o filme use de esteriótipo para criar polêmica e lucrar com isso), mas então onde, em que lugar um casal gay pode ter sua história contada? Nos filmes de sub-gênero, ou em livros de sebo, tipo O Terceiro Travesseiro e Bom Crioulo, só pra citar um pouco de literatura brasileira LGBT e contemporânea. Basicamente, hoje em dia, a Marvel ainda não lançou um(a) protagonista negro e gay porque o diferente só ganha lugar para uma plateia diferente. Ou quando a Globo abre quotas e encaixa o Félix na novela.

    O universo LGBT luta para não ser heteronormativo, pois luta a favor das diversidades. E não é que no ano do espetacular Tangerina, de Sean Baker, somos obrigados a engolir um filminho brando de Tom Hooper sobre diversidade sexual? Nas mãos sem vida de Hooper, a história da primeira transex do mundo (reconhecida assim, melhor dizendo) foge de qualquer militância, de qualquer riqueza documental sobre o assunto ou estudos estruturais sobre orientação de gênero e identidade sexual, beirando o medo de levantar qualquer interpretação sobre os tópicos, beirando a indiferença, e faz apenas alimentar todos os mitos e todos os vícios baratos do público sobre esse universo, ainda muito, mas muito pouco explorado no Cinema. Um olhar como de Pedro Almodóvar faz falta, já que com Hooper a tal ideologia de gênero, um assunto tão vasto e interessante quanto nossa própria sexualidade, a sexualidade humana, vira quadrinho de feira com moldura chique, toda blasé.

    A pessoa nasce com um pênis e não se vê como homem. Não age e não se sente, pois sabe que o drama dos cowboys de Brokeback Mountain é pequeno perto do dele, numa época que nem o racismo ainda não se discutia, amplamente. A Garota Dinamarquesa é de pobrezas contextuais, referente a seu tempo, costumes datados e ideologias que surpreendem muito mais que suas boas atuações, além de beirar ser um desserviço à representatividade honesta e plural de um recorte social eclipsado o tempo todo. É claro que o casal principal está excelente, dois atores impecáveis atuando com corpo e alma por baixo de belos figurinos, esvoaçantes, sensibilidade no ar, mas que não se vê, se sente. Hooper extrai o sensível de uma situação sensível, ou seja, o óbvio, filmando o superficial (como se essa não fosse sua especialidade) em direção ao lugar-comum. Como cineasta, é um estilista, só que Tom Ford fez um trabalho mais interessante em 2011.

    […] pois, no cinema, não se pode interpretar o papel de um judeu, é preciso ser um!”, esclareceu Carl Dreyer, um dos pais do Cinema falado numa entrevista de 1933. Pois imaginemos um ator transgênero no papel principal feito por Eddie Redmayne, nas vias do cinema naturalista de uma indústria que não exclui as diferenças, mas jamais sai da linha “burguesa-heterossexual-branca”. Por essas e por outras, a partir da impossibilidade escolhida de uma representação social justa e diversificada, A Garota Dinamarquesa é uma caricatura que desconstrói qualquer possibilidade de amplos debates em torno do assunto, maquiando as facetas da sexualidade aquém dos devaneios mais ralos e primários de Sigmund Freud e de seus devotos, todos tateando na escuridão da ignorância.

    Cópia irregular de Laurence Anyways, de Xavier Dolan, numa visão britânica e mais correta, de época, copiando na tela o que é esperado de bonitinho, num mural de tons pasteis e de preguiça, o filme irrita quem não deixa o espírito crítico de lado. Pois sempre se espera mais de um bom livro quando este é adaptado ao Cinema. Porque extrair o elemento frágil de uma natureza em conflito é tão injusto, e insensível, quanto dar ênfase ao lado preto-e-branco das cores. Exceto os poucos bons momentos pincelados que, curiosamente, não dependem de uma trilha-sonora, sorrindo feito imagens livres, o filme joga na senzala dos clichês os destaques que formam a nossa individualidade, e como esses destaques, como esses aspectos sempre vêm à tona, ao longo de uma vida vivida.

    Tom Hooper é a figura típica de uma classe média que defende a consciência humana, ao invés do Dia da Consciência Negra, sem contar o fim das paradas gays. Isso é tão interessante e digno de conversa quanto a hipocrisia de “certos filmes” em relação a temas que nunca alcançam a plenitude total de seu potencial, onde por mais que obras recentes sobre AIDS ou racismo falhem nas suas concepções, nunca que deixam a peteca cair, representando fragmentos de uma sociedade irrevogavelmente fragmentada. Assim, enquanto alguns enxergam a busca por igualdade a favor do respeito aos nossos direitos como motivo de lágrimas, como no filme, numa perspectiva fria e limitada até mesmo sobre a transfobia que o transexual sofre ao ser atacada por homens simplesmente por existir, para muitos é um esforço que merece festa e celebração por não sermos iguais, num mundo de tonalidades, livre de homogeneidades e cheio de diversidades e filmes melhores do que esse. Minha sinceridade também anda de salto.

    – Escrito no Dia Nacional da Visibilidade Trans, dia 29 de janeiro.