Tag: Ethan Hawke

  • Crítica | No Coração da Escuridão

    Crítica | No Coração da Escuridão

    Paul Schrader, escritor de filmes como Táxi Driver e Touro Indomável, conquistou Veneza em 2017 com o que sabe fazer melhor, um estudo de personagem, mas dessa vez se provam na direção. No Coração da Escuridão traz consigo vislumbres dos outros trabalhos de Paul, mas se destaca por tratar de temáticas de fé e meio ambiente, explorando os limites e a finitude da raça humana em relação a ambos.

    Ethan Hawke é Toller, um padre inabalável que cuida da Primeira Reformada, uma igreja que já passa dos duzentos anos. Perturbado por um passado trágico, sem grandes esperanças em si próprio e com problemas alcoólicos, Toller passa a narrar teus pensamentos em um diário durante um ano, até que um jovem casal –  formado por atuações altamente sensíveis de Amanda Seyfried e Philip Ettinger – lhe solicita conselhos que refletirão na vida dos três.

    Com um formato de tela 4:3 e planos sempre estáticos e friamente compostos, a perspectiva da personagem de Hawke é muito efetiva em transmitir as suas grandes questões, parado no lugar tendo seus pensamentos ricocheteando e sempre voltando para si. Muitas vezes com a câmera extremamente próxima a teu rosto, como uma testemunha, Hawke entrega uma das melhores performances do ano, o passado é marcado em tuas falas limitadas ao necessário e sua desesperança é gritante no olhar.

    Através dos olhos de nosso anti-herói, Schrader conduz o filme em meio a imprevisibilidades e duras reflexões sobre o futuro do planeta Terra, primeiro assusta e aos poucos nos acostuma com a ideia de que a própria existência humana já é duvidosa, assim como nossa fé, nosso sistema e nossos próprios esforços para ignorar tudo isso. E conduz isso em meio ao cinza de igrejas e chãos extensos de uma madeira marrom polida que parecem ter se perdido no mundo dos negócios. Não há mais onde se buscar ajuda.

    De forma niilista, No Coração da Escuridão caminha a passos calmos para um final intrigante e belamente, em meio a certas circunstâncias, compreensível. Schrader traz a reflexão dos tempos e toca em feridas entreabertas que nem nós, nem o cinema, temos coragem de mostrar.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

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  • Crítica | Um Dia Para Viver

    Crítica | Um Dia Para Viver

    Não se enganem: Quando Hollywood quer ser original, ela é. Inventa novas regras, reinventa expectativas, acha novos talentos dentro e fora da indústria americana, enfim, ela se vira. Como bem falava o finado educador brasileiro Rubem Alves, ‘ostra feliz não produz pérola’. É preciso algum impulso para querer o novo em meio ao comodismo das fórmulas de sempre, mesmo num gênero tão carente de renovação como o da ação, cada vez mais dividida entre o fiscalizar dos seus elementos, como no caso dos filmes recentes do John Wick, e a plasticidade tecnológica que diretores como Zack Snyder e J.J. Abrams tanto se apoiam para explorar seus mundos de aventuras exageradas.

    O negócio aqui, contudo, é pé no chão e ação física mesmo. Um Dia Para Viver jorra testosterona até no olho do gato, abusando de mil golpes entre machos, emboscadas violentas, reviravoltas inesperadas e fajutas e outros arquétipos clássicos de qualquer filme do Super Cine com Van Damme, ou Stallone. A diferença, aqui? Nenhuma, sendo a reciclagem que é, a não ser pelo mergulho frenético que o ex-coordenador de dublês, Brian Smrz, aqui bancando o cineasta, nos proporciona dentro da ação desmedida e um tanto bem coreografada (é Hollywood, não Coréia do Sul) no desenrolar minimamente dramático das loucas horas de Travis Conrad, um ex-assassino mercenário que, sendo finalmente capturado e “morto” em missão, é revivido por ter informações valiosas demais para ir embora com elas.

    “Você é uma arma dos infernos”, diz o chefe da organização que o traz de volta dos mortos só para despachá-lo em seguida, sem saber que ele e seu exército de capangas iriam penar para exterminar o mais novo zumbi do mundo do crime. No seu pulso, brilha sob a pele a contagem regressiva para a droga parar de fazer efeito, e suas 24 horas de fuga e corre-corre entre contêineres, e prédios lotados de homens letais é o que vamos acompanhando. Só que Brian Smrz  não é Paul Greengrass, e na tentativa de “enxugar” a trama para deixá-la o mais simples possível e poder entrar de cabeça na ação brutal e sanguinolenta, também é enxugado parte do nosso interesse pelo dia mais longo da “vida” de Travis, num filme que significativamente quer dizer muito pouco, e no fim, apenas entreter.

    Ethan Hawke, quando não está brigando com a esposa nos filmes de Richard Linklater é uma boa figura do gênero, e convence sendo o casca-grossa com sangue nos olhos, e que atira com uma mão só. É fácil, todavia, dizer que seu Travis Conrad é uma inspiração direta do John Wick de Keanu Reeves, mas há mais comparações plausíveis com o Travis Bickle de Robert de Niro, do clássico Taxi Driver, que ao matador de aluguel vingativo e apaixonado por cachorros. Ambos os Travis, cujo nome em comum não é uma coincidência, são homens absolutamente sem futuro, amargurados até o talo, intimamente ligados aos seus ambientes mas que ainda têm alguém, alguma pessoa no mundo para lutar e enxergar algum resquício de felicidade; um resto sequer de esperança.

    Isso porque o Travis de Hawke tem um filho, e se é ele o que motiva o assassino a não aceitar sua morte até o fim das 24 horas que lhe restam, é também a presença do garoto o grande calcanhar de Aquiles desse Um Dia Para Viver. Esperamos então que Brian, dirigindo emoções reais e não apenas piruetas de dublês, não aposte tanto no drama familiar no seu próximo filme, já que o cara não tem a mínima ideia de como filmar uma lágrima, sendo perito nas cenas de lutas e tiroteios, resultando num filme desequilibrado e tão frenético que se perde entre suas intenções primárias, e o entretenimento que bastava por si só no começo, de repente fica chato (também por conta da montagem ruim), e logo queremos que as 24 horas dele acabem rápido. Mas não se enganem, mais uma vez: O verdadeiro John Wick ia chutar o traseiro desse Travis fácil, fácil.

    https://www.youtube.com/watch?v=erPdfUY-cf8

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  • Crítica | Sete Homens e Um Destino (2016)

    Crítica | Sete Homens e Um Destino (2016)

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    Antoine Fuqua tem uma carreira cinematográfica é pautada basicamente em dramas policiais e de ação, alternando a qualidade em extremos, reunindo obras que normalmente variam em episódios interessantes do gênero e outros simplesmente execráveis. Após ter uma parceria com o criador de Sons of Anarchy Kurt Sutter, no roteiro do drama de boxe Nocaute, o diretor resolveu repetir a dobradinha com outro escritor de um programa bem sucedido, chamando o escritor de True Detective Nic Pizzollatto para redigir o argumento da nova versão de Sete Homens e um Destino.

    Novamente a trama segue uma cidade do oeste dos Estados Unidos que é atacada por um tirano, sendo Bartholomew Bogue (Peter Sarsgaard) o atual facínora. Seu personagem é performático e imperialista, mostrando sua crueldade assim que põe os pés no vilarejo, tratam de assassinar os poucos homens que apresentam resistência aos seus domínios. Cabe a Emma Cullen (Haley Bennett) pedir o auxílio ao pistoleiro Sam Chisolm (Denzel Washington) para que resgate a dignidade do lugar. A partir daí, o sujeito reúne justiceiros em torno de si para combater a figura de ódio, que tem um fato no passado em comum com o cowboy negro.

    As interações entre os heróis parece demais com o visto nos filmes da Marvel, no sentido de entregar um grupo repleto de alívios cômicos. O Josh Faraday de Chris Pratt é o principal dele, com o papel clássico do engraçado homem espirituoso e piadista, mas até Ethan Hawke e seu traumatizado Goodnight Robicheaux contém uma rotina de piadas, bem como o mexicano Vazquez (Manuel Garcia-Rulfo) e Jack Horne (Vincent D’Onofrio, mais uma vez inspirado). Essa pouca variação de arquétipos faz estranhar um pouco o tom sombrio da fotografia.

    Não há pretensão de Fuqua em apresentar um faroeste sombrio, como A Proposta de John Hillcoat, mas há elementos claros de reverência a Os Imperdoáveis. Em comparação com o Sete Homens e Um Destino de John Sturges há uma melhor elaboração da química entre os justiceiros do oeste, desde a ligação entre eles até a motivação de cada um. Gasta-se um tempo demasiado nestes.

    As cenas de ação tem o apuro comum aos produtos do diretor, repetindo com êxito o que fez sucesso em O Protetor. Os closes e variações rápidas de ângulos inseridas no final do longa são um diferencial, relembrando as obras mais famosas de Sergio Corbucci e Sergio Sollima, em especial Django e Sabata.  A nova versão de Sete Homens e Um Destino consegue soar interessante, apesar de todo o western exploitation recente, tendo boas sequências de ação e um ritmo interessante, não soando cansativo como o recente Django Livre e com um resgate de tema de vingança que remonta aos clássicos de gênero, além de deixar o aficionado pela trilha de Elmer Bernstein, no anúncio dos créditos.

  • Crítica | Born To Be Blue

    Crítica | Born To Be Blue

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    – Te pagam dois mil dólares por um beijo e dois dólares pela sua alma. Sabe quem disse isso?

    – Não.

    – Marilyn Monroe.

    Através de diálogos assim, econômicos e não menos vorazes, que logo notamos o tom de Born to te Blue, uma obra não de primórdios, mas sim de recortes.

    Procurando retratar um momento, a obra usufrui de todo intimismo possível para nos situar dentro do controverso e genial mundo do lendário trompetista de Jazz Chet Baker.

    É sabido que o cultuado e problemático músico, que sempre oscilou entre seu brilhantismo dom e momentos auto-destrutivos, acarretados principalmente por seu envolvimento com heroína. Fruto de uma geração transgressora e, portanto, cheia de excessos é importante salientar que a heroína infelizmente assolou grande parte dos integrantes do movimento artístico-musical originado nos E.U.A.

    Aqui encontraremos um Chet em processo de recuperação, confrontando seu demônios, pagando por seus erros passados e tentando ressurgir mental e estruturalmente, buscando se desvencilhar do ostracismo e novamente se firmar no Hall que sempre lhe pertenceu, ou seja – em um palco com holofotes e plateia.

    O filme dirigido por Robert Budreau (produtor e também assinante do roteiro), mesmo não se arriscando, segue uma cartilha precisa e entrega ao público um bom material. Assumindo um caráter minimalista, as tensões se revelam contidas, porém não menos ‘explosivas’, ao contrário, denotam uma angústia que casa bem com o ritmo proposto.

    Abro um parênteses e aponto que, de todos os acertos do filme, indubitavelmente está principalmente a performance de Ethan Hawke que, assumindo a persona de Chet, acerta em cheio. Neste trabalho, o ator vai além do notório arquétipo e constrói uma sutil interpretação merecedora de todos aplausos possíveis. A força de sua interpretação fica mais evidente em seu olhar do que propriamente em seus diálogos, algo que se escancara em um notório momento chave da trama, que se dá entre o diálogo de Chet com seu pai. Há de se apontar também o belo trabalho de Carmen Ejogo (Jane) companheira de Chet que lhe dá bastante força em sua jornada, sendo para o artista uma âncora em seu momentos mais sombrios.

    Não obstante todos os fantasmas acarretados, acompanharemos um outro forte drama do músico que, após perder os dentes em uma briga de rua, deverá encontrar forças para reverter esse quadro, reformulando até sua embocadura se assim for necessário, superando s si mesmo e tudo o que um dia fez dele uma estrela.

    Afiado o cálamo, o garoto da Costa Oeste se encontrará em um complexo dilema de suas escolhas, em que se verá confrontado e advertido sobre isso, pois sabe que, mesmo que “cante com a língua dos anjos, se não tiver amor, será apenas um címbalo que retine”.

    Sobre a efígie de um Fauno, que deixa um rastro de poeira a cada movimento de seu percurso, entre encontros e desilusões, Chet volta aos palcos com seu atípico swing, e é então que as luzes se acendem, as cortinas se abrem e surge pro mundo My Funny Valentine e Born to Be Blue – canções extremamente românticas sublimadas por uma indomável angústia sem fim.

    O que fica evidente, não só ao desfecho mas ao longo de todo o filme, é que o maior inimigo da vida Chet sempre foi “seu eu”, que por muitas vezes, na busca por uma libertação, acabou se tornando refém de si mesmo.

    Texto de autoria de Tiago Lopes.

  • Crítica | A Entidade

    Crítica | A Entidade

    A Entidade - Poster

    O terror psicológico se tornou a principal demanda no gênero de terror no cinema americano, com uma gama de lançamentos anuais que transitam pelo mesmo tema de sustos fáceis com argumentos semelhantes entre si. Dirigido por Scott Derrickson, cuja carreira é predominantemente dedicada ao gênero com Lenda Urbana 2, O Exorcismo de Emily Rose e uma sequência de Hellraiser no currículo, A Entidade obtêm certo destaque devido a presença de Ethan Hawke.

    Na trama, Ellison (Hawke) é um escritor de romances policiais baseados em casos reais de assassinato. Há anos sem lançar um best seller, o autor se muda com a família para um casa que foi palco de um crime. No sótão da casa, descobre antigos rolos de filmes com rituais de assassinato em que um estranho símbolo está presente em todas as cenas.

    A primeira metade da produção se desenvolve mais próxima de uma investigação com um escritor a procura de seu novo romance de ficção explorando uma série de crimes interligados. A história que entrelaça-os é bem conduzida pelo estranhamento da situação e os registros antigos de cada crime, possibilitando uma boa trama policial se esta fosse a intenção. Como se trata de um filme de terror, o espaço para o misticismo entra em cena ao abordar um deus pagão da Babilônia que se alimenta da alma de crianças.

    Com um figurino que não deve nada a um vocalista de Death Metal, a personagem é inferida para causar o medo sobrenatural na trama, uma entidade de condução que surge aos poucos até arrebatá-las, dando margem para as cenas padrão de portas se movimentando, crescente paranoia da personagem central até o momento dramático das mortes.

    A produção demonstra que o cinema de terror atual está longe de preferir predadores reais mesmo que o argumento possa ser crível para tal – um assassino serial ou uma seita assassina, por exemplo. A tendência evidencia que é preferível inserir elementos mitológicos e malévolos para que o medo venha do desconhecido que deturpa a realidade. Até mesmo a execução das fitas antigas é outra tendencia atual, fazendo dos registros amadores uma espécie de plot twist, revelando assassinatos, possessões e afins.

    Como o impacto é sempre necessário, a trama fecha seu enredo mas também insere um possível argumento para uma sequência, um plano estabelecido para, caso o público receba bem a produção, seja mais fácil realizar um segundo filme.

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  • Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

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    Boyhood tem tudo – tudo sob medida – para ser um clássico da Sessão da Tarde. Infelizmente, o espaço vespertino de filmes na programação da emissora é de péssima qualidade, há muito alheio a apostar no êxito de outrora, como com A Lagoa Azul, Elvira ou Uma Babá Quase Perfeita. Filmes família (Lagoa já não é mais visto inocentemente como antes) que todo mundo curte e curtia, principalmente se houver um cachorro como cereja do bolo; se for falante, melhor ainda. No filme de Richard Linklater, filmado em 39 dias (1 mês e pouco) ao longo de 12 anos (1 ou 2 dias pra cada cena, talvez), não há animais nem nada “do barulho” que desde a época que começou a ser gravado já não funcionava mais com a plateia. A obra carrega em si, por excelência, no tratamento da narrativa, a alma leve dos anos 80 que fascina o espectador (sempre carente de modéstia) dos anos 2000, tempos complexos em que desejamos cada vez mais a simplicidade, o alívio, o despretensioso. Num mundo cheio de segundas e décimas intenções, quando encontramos um filme, livro ou música que invoca um quase extinto frescor lenitivo, a problemática teia social vigente, ah… Brisa no deserto.

    Só que os méritos do filme de Linklater param por aí. O cara merece aplausos pela iniciativa de tornar o sonho real? Sem dúvida! Mas a tal da profundidade que muitos apontam em sua obra mais ambiciosa (e incomparável diante do valor de qualquer filme de sua trilogia romântica) não afunda muito na superfície da simplicidade do tempo, numa rasa exaltação da família e da riqueza da entidade familiar, como se uma homenagem a Era Uma Vez em Tóquio ou Pai e Filha – ópios soberbos sobre laços étnicos – ganhasse território americano nos moldes épicos do cinema de Yasujiro Ozu, impraticável por qualquer cineasta que não seja o próprio, tamanha a força de seu talento, sabedoria e leveza artística que nenhum outro, oriental ou não, conseguiu repetir até então. Linklater homenageia mesmo sem querer (querendo) a pureza de um Cinema leve e emocional ao extremo, mas acha contradição ao resgatar valores que já se repetiu em resgatar antes, e ao (simplesmente) focar 12 anos mundanos de uma família branca de classe média em fórmulas de publicidade que vendem a obra a partir de sua forma, e não do seu conteúdo, do recheio que iria, por fim, perfurar a validez do filme no tempo.

    James Cameron levou de 10 a 15 anos para rodar Avatar, mas foi na sua revolução tecnológica e no seu conteúdo 3D puramente técnico que o filme honestamente se apoiou, e não no seu arremedo de história. Boyhood só é levemente mais nobre por transcender e preferir a carga dramática ao aspecto técnico, mas cujo status de proeminência da tola história de um menino e sua família chega a ser tão leve quanto uma formiga se comparada à grandeza dos longos anos de produção, tal um elefante numa balança desigual de destaques relevantes. Um filme que exalta e, devido à longa duração, superestima as digressões em uma história, pois vai e volta, vai e volta, entre o limite do agradável e descartável, o rico e o gratuito, coisa típica da Sessão global, também.

    Na verdade, o que mais vale na obra não é nem a história, nem a duração das filmagens, mas sim o que de ambos os aspectos se pode extrair da plateia: o exercício da interpretação individual. O que mais cada um gosta em um filme e desgosta, se inspira para recriar na arte ou na vida, admira, reflete, se espelha ou repreende na tela é tão relativo quanto o gosto duvidável da direção irregular de Linklater, no começo compatível a um diretor de filmes amadores, ainda nos anos 90, terminando o filme de um jeito 100% carinhoso e paternal ao material que cultivou com tanto esmero, por mais de uma década. Certeza mesmo vem da ótima montagem em torno da obra, e acima de tudo, do talento à prova do tempo de Patricia Arquette, ótima como a matriarca que, quando vê barba no rosto do moleque, trava um diálogo emocionante sobre a brevidade das coisas, espécie de resumo do filme e a melhor cena de uma bijuteria que brilha, mas não é ouro. Deixemos ao tempo mostrar até aonde o brilho chega.

  • Crítica | O Predestinado

    Crítica | O Predestinado

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    Clamando pelos clássicos filmes de ação focados na vingança, com um visual que mistura elementos noir e aspectos visuais e estilísticos steampunk, O Predestinado começa violento, com uma câmera inquisitiva, investigando os meandros do modus operandi de um exímio assassino que teria feito um mal terrível por seus rivais. Baseado em um conto de Robert A. Heinlein, a fita desconstrói alguns dos recursos típicos dos filmes sci-fi.

    O ofício detetivesco é o aspecto policial mais evidente na rotina do personagem anônimo de Ethan Hawke, ferido gravemente por queimaduras, causadas logo no início da fita, marcas que deixaram seu rosto deformado, e seu espírito, ainda mais desejoso por um revés. Logo, o agente retorna ao passado, quando atuava como um competente agente de campo, munido de dons físicos e de um arsenal vasto que faziam dele o espécime perfeito para o tipo de trabalho que exercia.

    Trabalhando como bartender, o personagem principal encontra uma contadora de histórias vivida por Sarah Snook, que, no balcão de bar, movida pelo tédio, começa a remontar sua história, como uma órfã tradicionalmente rejeitada por figuras superiores e por aqueles que deveriam ser seus amigos. A aflição de sua alma, a instabilidade emocional, o pouco traquejo social, além da capacidade de observação bastante avançada fazem dela a escolha ideal para o ofício de agente governamental, servindo a uma filial que controla ações no espaço.

    Em comum com as histórias que conta, a personagem antes chamada Jane focaliza as rejeições amorosas que sofre, repetindo o paradigma exaustivamente, fato que a torna ainda mais vulnerável às propostas indecentes do braço podre do governo, o qual faz experiências com seu corpo, dando-lhe uma chance de sucesso quase nula. Ao se aproveitarem da moça partindo de sua principal característica, a carência, de certa forma até amenizam-se os desmandos que a “organização” faz com ela, quase justificando a mudança clínica – e pouco ética – pós-parto. A mudança clínica realizada a desfigurou tanto que uma mudança de identidade se fazia necessária, algo semelhante processo ocorreu com o funcionário do bar, no preâmbulo do filme.

    Logo, o destino dos dois personagens se mostra cruzado tempo demais antes do encontro casual, interligado por uma questão que flerta com teorias da conspiração, sociedades secretas e clichês de ficção científica, mas apresentados de modo hermético e muito natural. As mudanças feitas no espaço-tempo fazem lembrar belas referências a filmes laureados, os recursos narrativos presentes em 12 Macacos, claro, com um significado bastante diferente, catastrófico em essência.

    O conceito de predestinação é corrompido, mostrado nos últimos momentos como algo literalmente arquitetado, e não como um talento natural. Cada gama desse destino construído é explicado de um modo esmiuçado, mas não exageradamente didático. A rede de acontecimentos faz com que a linha temporal se assemelhe a uma intrincada rede de eventos que devem ser seguidos, ou ao menos algo a se buscar, mesmo a custo da sanidade daqueles que viajam por tais vias.

    A ética e responsabilidade de quem tem acesso a informação são questões levemente discutidas pelo encontro do protagonista com o Detonador Sussurrante, que, além de escancarar um fato que era prenunciado há tempos, exibe outro paradoxo, no qual consiste em mais chamar atenção por sua moralidade do que pelo fato de reprisar as questões de enfrentamento das contrapartes.

    A questão fundamental da inexorabilidade da existência é mantida, mesmo com tantas idas e vindas no espaço-tempo, acrescentando um viés bastante filosófico ao competente filme de Michael e Peter Spierig, que conseguem reunir ação frenética a um roteiro cativante. Apesar da fórmula redundante em si e dos furos, não cansa, até por seu caráter de absoluta despretensão.

  • Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    Crescer é uma das poucas experiências biológicas e cognitivas que une todos os seres vivos da Terra. Para os humanos, dentro de uma sociedade tão complexa, a tarefa é ainda mais complicada frente a tantos desafios que o mundo moderno impõe às crianças, por exemplo, em que cada uma vai reagir de forma própria a todos os estímulos, positivos e negativos, que recebe. Foi dentro dessa lógica que, 12 anos atrás, o cineasta Richard Linklater decidiu realizar um ousado projeto, o de filmar uma história sobre a vida de uma criança enquanto cresce até ela se tornar um adulto, mas utilizando com isso um ator só durante esse processo.

    Boyhood trata a vida de Mason (Ellar Coltrane), uma criança introspectiva que vive com sua Mãe (Patricia Arquette) e sua irmã Samantha (Lorelei Linklater), enquanto tem contatos esporádicos com o Pai (Ethan Hawke). Sua jornada pelo final da infância, adolescência e início da juventude nos será mostrada, assim como a de sua família e todas as situações que dali resultarão.

    Se o maior mérito desse novo e já cultuado filme de Linklater reside no conceito inovador por trás da filmagem, o mesmo não se pode dizer da história e dos personagens nela retratados. Ao focar Mason, a história tem problemas sérios de ritmo em razão de não conseguir imprimir na narrativa nenhum evento catalisador de mudanças na personalidade dele ou da família, ou mesmo o efeito disso em suas vidas. Apesar de passarem por várias dificuldades, como o convívio com novas famílias e padrastos com problemas de uso de álcool, nada parece afetar suas vidas de forma significativa.

    Mason é retratado com uma apatia irritante. A todo o instante, parece espectador do mundo para, de repente, já na juventude, saltar ao posto de filósofo do mundo contemporâneo. Por vários momentos, seus diálogos não representam nada. Há uma ocasião clara em que ele, adolescente, chega de uma festa e assume que fumou maconha e bebeu álcool com uma série de “sim” para a sua mãe, a qual aceita prontamente todas as respostas, e nada acontece. O mesmo quando ele está com uma turma de amigos discutindo mulheres, festas e bebidas como adolescentes comuns. Nenhuma pista estabelecida possui recompensa.

    Se Mason não garante emoção alguma, o mesmo não se pode dizer de sua família, em especial sua mãe, em bela interpretação de Arquette. Saindo da posição de mãe solteira com subemprego, a batalhadora que estuda e melhora de vida, suas más escolhas na vida pessoal contrastam com a ascensão na vida profissional, que garante uma melhoria de vida para ela e seus filhos (algo que o filme não explora em nada, como se o contexto social da família e do país não importassem). Com uma duração tão longa, de aproximadamente 2h45 minutos, tempo há de sobra para se desenvolver qualquer coisa que saísse da linha reta de emoções representada por Mason. Mas nada disso é feito, infelizmente.

    O pai de Mason, uma figura interessante, também é mal aproveitado. Apesar dos erros cometidos em sua vida, tenta dar o máximo de si ao educar os filhos, falando desde sobre o incômodo tema das relações sexuais na adolescência até conselhos sobre relacionamentos que não deram certo. Mas os diálogos não ajudam a tirar os personagens e suas relações do lugar comum e dos clichês do gênero.

    O que sobra em Boyhood são três horas de eventuais boas passagens e boas sequências de câmera, mas que não dizem a que veio. O hype em cima de sua produção parece explicar seu sucesso atual, e as relações ali representadas falam com os fãs de filmes indie e intimistas, os quais disfarçam a pobreza de seu discurso com momentos que simulam profundidade, mas que, na verdade, não representam nada. Caso houvesse ali uma escolha por um drama familiar clássico, mesmo que se às vezes derrapasse e fosse levado para o melodrama, ao menos teria sido uma escolha e haveria descarga de sentimentos com os quais poderíamos lidar. A obra infelizmente não é nem isso. São aproximadamente três horas de quase nada, mas muito bem disfarçadas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Sociedade dos Poetas Mortos

    Crítica | Sociedade dos Poetas Mortos

    Sociedade dos Poetas Mortos

    Ao conceituar a Jornada do Herói, Joseph Campbell resumiria a trajetória básica do protagonismo em seu livro O Herói de Mil Faces, o qual apresenta o arquétipo de personagens. Dentre eles, a figura de mentor caracteriza-se por uma das mais carismáticas, possivelmente até roubando do herói os holofotes da trama. São poucos momentos no cinema que esta possibilidade se mostrou tão concreta e emotiva quanto foi em Sociedade dos Poetas Mortos.

    Robin Williams vive o professor John Keating, um docente que, em 1959, decide lecionar novamente no internato tradicionalíssimo Welton Academy, ministrando inglês aos seus pupilos. O diretor da obra, Peter Weir, usa os primeiros minutos de exibição para assinalar o quão arcaica era a instituição, presa a dogmas religiosos e conservadores e portadora de uma sisudez muito diferente do sorriso franco que o Mestre Keating, inserido em uma instituição onde as únicas demonstrações de riso eram amarelas e mecânicas, ostentava.

    O foco narrativo está na contestação do futuro, mostrando os jovens estudantes se preparando para a vida adulta, fazendo escolhas que não necessariamente coincidem com seus desejos próprios. No início, Neil Perry, personagem de Robert Sean Leonard, é quem personifica este descontentamento em relação ao seu pai, uma figura atenta e opressora que representa um chamado ao capitalismo exacerbado, cujo enfoque é o pensar normativo, e nunca na diversão. Neil é colocado para dividir o quarto com Todd Anderson, personagem de Ethan Hawke, um menino tímido recém-chegado à escola. A classe de aspirantes, incluindo os dois garotos, tem uma surpresa ao adentrar a primeira aula do Senhor Keating, que os leva para conhecer um pouco a origem do colégio e apresenta-lhes uma nova interpretação de toda a rigidez que permeia a história da instituição, dizendo que dos pulmões dos alunos do Hall da Fama vem o suspiro em latim, Carpe Diem, e mostrando a otimista mensagem de aproveitar o tempo que os acomete.

    Esta breve introdução produz em muitos alunos uma vontade de explorar um mundo desconhecido. O desbravar se agrava com a segunda aula, na qual o Capitão divaga sobre poesia, ensinando que esta não é algo morto, insosso e ausente de vida, mas sim vívido, radical, agressivo e, sempre que possível, transgressor. Os meninos são convidados a rasgar páginas de seus livros, um símbolo daquele regime ditatorial obsoleto. O ato contestador gera nos alunos a curiosidade e, investigando o passado de John, descobrem que ele fez parte da Sociedade dos Poetas Mortos, um lugar livre, onde se podia estudar a beleza dos contos de Thoreau , Whitman e Shelley, e um espaço predominante do romance, da magia e da doçura de espírito. Uma chama é despertada em Neil, enquanto Todd se mostra confuso, aturdido pela fala do mentor.

    O desafio do orientador é fazer com que os moços tenham a sua própria voz, que deem vazão a sua vontade, sem medo de se expor e sem receio de viver. Suas atividades extra-sala maximizam essas sensações, e os fazem enxergar quais os limites de seus atos e até de seus potenciais. A validez de seu discurso passa por não ignorar a necessidade de aceitação que o homem frequentemente tem, especialmente em uma fase tão conflituosa e aviltante como é a puberdade, na qual a maioria dos destinos é escolhida como base para uma vida.

    Charlie Dalton (Gale Hansen) parece ter aprendido a lição mais rápido, tornando-se a voz rebelde mais ativa dentro da escola, questionando a autoridade até mesmo do diretor colegiado e à frente de todos os alunos e docentes. O reclame é destacado pelo professor, que o instrui a ir devagar em sua postura, mostrando que a audácia não deve dar lugar à estupidez.

    Logo Neil tenta dar vazão ao seu sonho, o de ser ator, o que incomoda o pai, o senhor Perry (Kurtwood Smith), que pensa ser o melhor para o filho estudar Medicina e ter uma educação militar, regrada e normativa, como deveria já ter sido. O sufocamento de suas ideias cobra um alto preço: a vida.  Com o direito de se expressar cerceado, o sentido de viver também se perdeu na mentalidade pueril de Neil. A severidade do pai castigador não é aliviada nem mesmo na caminhada rumo ao seu escritório, onde seu herdeiro descansa após a recusa em existir.

    Todd caminha sozinho pela neve ao saber da fatídica notícia. Prefere se isolar para chorar a sua tristeza e lamentar a ida daquele que o ajudou a superar a solidão e a enfrentar os poderosos pais. Keating, não suportando as lágrimas, desabafa em cima do livro com anotações do menino, sentindo-se parcialmente culpado, imaginando que se tivesse dado maior apoio ao garoto, este não desistiria de lutar contra a repressão do pai. O inquérito aberto é mais um golpe, tanto no professor quanto nos alunos, que mal conseguem enxugar as lágrimas e têm de lidar com o fato de Keating ser o alvo das investigações.

    A nova Sociedade perde seu orientador e não consegue encontrar uma maneira de reverter o processo. Suas mãos estavam atadas e o poder de fogo era diminuto, pois no mundo dos adultos as crianças não podem opinar. O destino do Professor John estava selado; os rapazes nada puderam fazer para modificá-lo. No último momento, na lendária cena em que Keating tem de entrar na sua antiga sala, tomada por seu substituto, os pupilos assumem seu lugar de direito com os pés sobre as mesas escolares, saudando o valoroso capitão, a despeito da ordem do diretor e de qualquer figura de autoridade. O contato que há entre o mentor e seus discípulos é essencialmente emocional, mas também demonstra a maturidade de moços que descobriram o sofrimento íntimo. A cena contém tantos signos visuais ricos que uma análise periga ser pobre, além de correr o risco de negligenciar qualquer aspecto.

    O modo como a direção de Peter Weir e o roteiro de Tom Schulman conduzem a película remete à nostalgia, ao doce sabor da juventude e dos anos áureos de quem se permitiu conduzir por belos ensinadores. A obra, ao mesmo mesmo tempo em que valoriza outros muitos préstimos, como amizade, companheirismo, fidelidade e liberdade, claro, utilizando períodos tão ternos como a infância e adolescência, é um louvor à obra artística de Robin Williams.

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  • Crítica | Uma Noite de Crime

    Crítica | Uma Noite de Crime

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    A escalada da violência nos Estados Unidos culminou em uma lei radical que, durante 12 horas a cada ano, legaliza os assassinatos para que a população possa externar suas frustrações através da violência física. Durante este período, polícia, médicos e bombeiros cessam as atividades, deixando a população sem nenhum suporte.

    O interessante argumento de James DeMonaco, roteirista e diretor de Uma Noite de Crime, permanece na prateleira de histórias com potencial mal aproveitado. Ao fazer desta trama uma narrativa de suspense, a possível crítica a uma sociedade radical que abre mão de suas próprias leis como contenção da violência, transforma-se em mais uma história sem graça e sem nenhum susto.

    Os 30 minutos iniciais apresentam a família Sandin se preparando para a noite em questão. James, o patriarca, é um vendedor de sistemas de segurança que comemora as boas vendas para o evento anual. A família vive em uma região abastada, formada por uma população que é favorável à sanção da violência e tratam-na como uma mudança importante na sociedade.

    Nas doze horas referentes ao Expurgo, a família protegida em uma casa enclausurada vive seu cotidiano enquanto, na televisão, especialistas analisam o efeito da noite de violência e os reflexos positivos em relação às quedas de violência no país, explicando a necessidade animalesca interiorizada pelos humanos e a possibilidade de externá-la. Mais do que uma vazão a um sentimento agressivo, a noite funciona como uma limpeza da pobreza do país, já que somente os mais ricos são capazes de pagarem pela própria segurança.

    A crítica social se dissipa quando o filho da família oferece asilo a um homem machucado pedindo ajuda. O que se segue é uma sucessão exagerada que destrói um possível bom argumento, quando surge um grupo de adolescentes ameaçando a família para que devolvam o homem para que possam purificar suas almas de acordo com a lei.

    O expurgo é visto como uma absolvição quase divina. Sendo um ato oficial do governo, é direito dos cidadãos usufruírem a noite de liberdade. Fato que torna injustificável o uso de máscaras pelos jovens, se não como uma carga de efeito para plastificar ainda mais a violência  e produzir uma sensação aterrorizante.

    Na tentativa de obrigar a família a devolver o fugitivo, a energia elétrica é desligada e observamos um grupo capaz de se perder na própria casa. Mesmo que uma casa possua diversos cômodos e ambientes, é inverossímil que seus quatro integrantes se percam de maneira tão estúpida e não se comuniquem para encontrar um ao outro.

    Como a intimidação vinda de fora parece patética – adolescentes obrigando uma família, protegida por um caro sistema de segurança, a se render – o roteiro exagera na tensão dentro da casa ao fazer do homem abrigado uma possível ameaça. Como é necessária uma ação para desenvolver a história, o grupo de adolescentes adentra a residência destruindo o sistema de segurança com correntes e um carro potente. Uma solução esdrúxula.

    A curta duração da história ao menos não se estende além do que deveria, mas se desenvolve em elementos tão absurdos que em nenhum momento parecem ameaçadores. A violência que no interior do filme é banalizada também não causa nenhum incômodo para o espectador. A noite de crimes é fria, gratuita e mal construída.

    O baixo custo da produção e o sucesso de bilheteria garantiram uma sequência programada para o próximo ano. É possível prever que a história não apresentará nada de novo em relação a esta primeira produção que retira o único talento do argumento, a crítica contra a opressão invisível do sistema governamental, para entregar uma história de agressão e violência sem nenhum atrativo.

  • Crítica | Antes da Meia-Noite

    Crítica | Antes da Meia-Noite

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    Em 1995, Richard Linklater conquistou uma legião de fãs com um filme delicado, singelo, em que um casal passeava pelas ruas de Viena enquanto se apaixonava. Em 2004 ele revisitou seu casal e entregou um dos mais belos finais do cinema. Agora, novamente 9 anos depois, Linklater vem responder se Jesse perdeu ou não seu avião.

    Eu confesso que quando vi pela primeira vez o Anúncio de Antes da Meia-Noite fui contra a ideia, o final de Antes do Pôr-do-Sol funcionava por seu mistério e eu não via sentido em fazer o casal se encontrar por acaso mais uma vez, nem acreditava na capacidade do diretor de realizar um filme sobre um relacionamento estabelecido. Mas Linklater me provou errada e construiu um filme maravilhoso que já não é sobre se apaixonar, mas sobre manter o amor.

    Antes da Meia-Noite é ao mesmo tempo o mais maduro e o mais falho dos três filmes. Por um lado, Linklater cresceu como diretor e conseguiu finalmente comunicar coisas naquilo que não é dito, os silêncios e a escolha de planos nesse filme são repletos de sutilezas e significados, algo ausente nos dois anteriores. Por outro, o roteiro (escrito por ele em pareceria com Julie Delpy e Ethan Hawke) às vezes desliza e torna seus personagens, especialmente Céline, uma caricatura deles mesmos.

    Jesse, afinal, perdeu mesmo seu avião. Ele e Céline vivem juntos em Paris com duas filhas gêmeas, nesse verão, foram convidados por um renomado escritor a passar algumas semanas em sua casa na Grécia e o filme acompanha a última noite deles ali. A primeira cena mostra Jesse mandando Hank, seu filho do primeiro casamento, de volta para os Estados Unidos e funciona quase como um curta dentro do filme, estabelecendo os temas que serão explorados: incomunicabilidade e a dificuldade do amor.

    Depois dessa cena, Jesse entra no carro e ele e Céline dão início ao diálogo que perpassa o filme todo. Diferente dos anteriores, esse apresenta mais personagens, que enriquecem a discussão a respeito do que é o amor e as diferenças entre homens e mulheres que o diretor estabelece. No entanto, em alguns momentos tanto os personagens extras (especialmente Stefanos, o grego que só pensa em sexo) quanto a discussão sobre gêneros esbarra em clichês e obviedades quase machistas.

    Também tem uma ponta de machismo na personagem feminina: Céline sempre foi a jovem enroscada entre seu feminismo e sua vontade de ser amada, mas agora ela assume o papel da mulher histérica, que quase quer ser uma vítima da sociedade machista opressora. O discurso de Jesse ameniza o que poderia ser muito incômodo e suas queixas não deixam de ter dimensão real, mas o filme vai perto demais de um estereótipo feminino negativo para que isso passe em branco.

    Apesar desses momentos, o que mais chama a atenção em Antes da Meia-Noite é sua realidade: as queixas, a dor e a briga entre Jesse e Céline são profundamente verdadeiras, um olhar agudo sobre o que é um relacionamento e todo o trabalho e sofrimento que acompanham viver com quem parece ser sua alma gêmea. A sequência em que os dois discutem em um quarto de hotel é cruel, sufocante e ao mesmo tempo terna, o mais perto que o cinema chegou do casamento verdadeiro desde que Bergman filmou Cenas de Um Casamento.

    Mas o filme não é real apenas na dor, a conversa no almoço flue tão naturalmente que é quase como se o espectador estivesse sentado ali com aquelas pessoas. Assim como o carinho e a intimidade entre Jesse e Céline (e a única cena de sexo) é tudo tão fluído, tão natural que a primeira uma hora e meia de filme é absolutamente deliciosa.

    Antes da Meia-Noite é o mais melancólico e dolorido dos três filmes, mas é ao mesmo tempo o mais otimista, ao reafirmar a possibilidade concreta do amor apesar das dificuldades. É um exemplo de bons diálogos e atuações precisas, um filme minimalista, mas cheio de nuances quase como o relacionamento que procura retratar.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.