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  • Crítica | Vivendo no Limite

    Crítica | Vivendo no Limite

    “Cala a boca, você vai morrer, mas ele não, entendeu?!”

    A dona morte sempre rondou os filmes de Martin Scorsese, espectro onipresente e visível nas ações de todos, e por trás de tudo que faz parte do cosmos urbano e violento que o cineasta naturalmente adotou, para si. Aqui, é possível notar uma certa redenção para esse espírito de decadência física e moral que os filmes do diretor de Cabo do Medo e Depois das Horas tanto debateram. É como se, pela primeira e possivelmente única vez, Scorsese fosse investigar os efeitos de um anjo vindo salvar as almas perdidas de Nova York, transitando incólume (ou nem tanto, assim) numa exígua viatura paramédica entre a podridão, a escuridão, e a danação que existe nas ruas e esquinas da maior selva de pedra desse mundo.

    Vivendo no Limite é sobre uma espécie de salvação religiosa que pode ou não resistir, bravamente, fora de um âmbito católico. Jogados ao mundo, as esquinas encardidas e a pessoas que carregam “problema” escrito nas suas testas, pergunta-se: é possível salvar alguém? Essa dúvida é personificada nos olhos de Nicolas Cage, numa das suas melhores atuações da carreira do famoso ator, e aqui metaforizada na sua profissão: salvar vidas dentro e fora de uma ambulância, na fornalha nova iorquina do começo dos anos 90. Desta vez, em meio as andanças da viatura que só avança pela noite, entre vivos e mortos, a cidade é retratada como uma versão mais fria e menos perturbada que a metrópole sem leis e prostituída dos anos 70. Scorsese parece entender as diferenças e as abraça, então, sem nenhuma nostalgia aparente.

    Sofrendo com a pressão do trabalho, e deixando-se impactar por ele em sua vida pessoal, Frank Pierce faz a ronda noturna enquanto se pergunta a finalidade do seu trabalho. O divino está na sua visão, não como esperança para o homem do desfibrilador, mas como algo que está à espreita das almas perdidas que vagam pelas ruas, e que não se mostra devido o véu da perdição que assola as áreas violentas de Nova York. Logo, logo, eles vão precisar de Frank para checar seus batimentos, quando a vida se provar frágil e não mais imbatível para drogados, e prostitutas. Eles só andam, gente da comunidade, gente de uma noite comum; almas penadas que Scorsese filma como contraponto a missão altruísta de Frank: salvar. Quem, ele não sabe, mas lembra-se de todos – principalmente daqueles que não conseguiu resgatar dos mortos.

    Por 48 horas, na trama, ele e seu amigo de ambulância Larry Verber (John Goodman, sempre um prazer) compartilham das dores e loucuras do projeto sarcástico e dramático de Cinema de Scorsese, mas desta vez com a garantia de que as mortes violentas de uma história serão combatidas não apenas pelo dever de uma equipe médica, mas pela nobreza de uma vida que precisa ser lembrada, principalmente numa selva impiedosa com os seus animais. Se Frank atendesse Travis Bickle após o tiroteio final em Táxi Driver, por exemplo, Frank deixaria o motorista punk falecer, engasgado no próprio sangue? E se a ambulância chegasse ao clímax de Os Infiltrados, logo após a chacina do filme de 2006, suas vidas seriam salvas? Se dependesse dele, sim, pois esse é o certo, o humano, o justo, independentemente dessa ser uma moral cristã, ou não.

    Do primeiro ao último atendimento, geralmente frenéticos e bem-humorados, a fotografia de Vivendo no Limite deixa seus tons brilhantes explodirem na tela, sendo o branco a cor mais presente nesse mural explícito e objetivo sobre o sentido da vida urbana, e a fragilidade dela quando encarada pela ceifa da morte. Num hospital que parece um purgatório em que almas, várias, chegam e retornam em desespero, rebeldes e errantes como só, com novos casos rolando a cada dia, ou melhor, a cada noite, ninguém garante que o cenário existe numa outra dimensão, espiritual talvez, ou mesmo na nossa, aonde a realidade das ruas dá licença a preservação da vida; aonde o som de um tiro, dá lugar ao bipe de um batimento cardíaco. E não se engane: Nicolas Cage é o cara, sempre foi, e junto de Scorsese realizaram aqui um dos melhores filmes americanos dos anos 90. Peça rara e que só melhora ao passar dos anos.

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  • Crítica | Ed Wood

    Crítica | Ed Wood

    Nenhum cineasta que amou de verdade o cinema pode ser o pior dos piores. Todavia, amor não coloca comida na mesa, e as vezes uma certa dose de talento e precisão são necessários para o coração devotado. Entre todos os Tim Burton’s que já tivemos, em mais de quatro décadas de sua carreira,revisitando-se e reafirmando a cada passo dado sua identidade, o Tim Burton pós Alice no País das Maravilhas virou o que muitos profetizaram quando foi divulgado o primeiro trailer da aventura feita sob medida para a Disney: um lego flexível, precificado e que se encaixa fácil, fácil nas diretrizes de um vasto cinemão americano, cheio de intenções e vícios de linguagem. No jogo de Hollywood, e estamos falando especificamente sobre ele, poucos sabem manter casados os fatores qualitativos e identitários a ponto de sua paixão primordial pelo Cinema se manter intacta por todo o caminho, este longo e penoso como sabemos ser para todos os(as) envolvidos(as).

    Olhando para esta pérola, filmada em um belíssimo e invejável preto e branco que lava o mundo das filmografias americanas de tons prata e grafite de forma quase ímpar, o Burton raiz ainda estava vivo, ou melhor, nascendo, no que pode ser chamado seu melhor filme sob a teimosia alucinante dos fãs em eleger Edward Mãos de Tesoura para este pódio. O cineasta ainda foi zeloso o suficiente, após o enorme sucesso de Batman e Batman: O Retorno, para não sobrepor a estética a essência da história por trás da figura amalucada e naturalmente esquisita do “pior cineasta de todos”, Edward Davis Wood Junior, e que por isso mesmo se tornou inesquecível, tal Tommy Wiseau do infame The Room para as audiências modernas, e homenageado em 2017 em O Artista do Desastre. Ed pode ser visto até hoje, e de forma reiterada, como “o alfa e o ômega do subgênero trash”. Filmes que, de tão ruins, ganham uma legião de fãs justamente por seu apelo ridículo, péssimo gosto em todos os sentidos e humor desproposital e insano.

    Sua trajetória na máquina hollywoodiana de sonhos não foi nada engraçada, porém, com Ed experimentado toda a sorte de pesadelos possíveis para realizar suas ‘obras-primas” na Era de Ouro dos grandes estúdios do passado,mas extremamente (no sentido literal da palavra) massacradas e marginalizadas pela crítica especializada e um público que o desprezava, colocando clássicos trash como Glen e Glenda, A Noiva do Monstro, e o mais famoso e ambicioso de todos, Plano 9 do Espaço Sideral (todos disponíveis no YouTube), abaixo de tudo o que se pode imaginar. Amante do macabro e do desconhecido tal qual o seu velho ídolo, Burton viu nos anos 90 a chance perfeita de edificar a cinebiografia do gênio dos anti-sucessos, devotando para isso toda a sua paixão pelos aspectos que o tornaram tão reconhecido, após ter morrido no mais completo e pesado ostracismo nos anos 50, mas não sem antes encontrar sua maior inspiração, um outro gênio da lâmpada, esse sim reconhecido ainda em vida: Orson Welles, o menino prodígio que aos 26 anos rodou Cidadão Kane e reinventou a roda.

    Ironicamente, temos aqui um filme sobre um dos maiores vira-latas de Hollywood em que Burton e Johnny Depp usam de suas charmosas peculiaridades notórias a fim de recriarem, juntos, com toda a elegância e o dinamismo possíveis, uma época onde sonhos ainda eram possíveis e eram mais fortes que tudo, dialogando sobre a própria vontade de produzir esses sonhos de uma maneira tão sólida e bem resolvida que fica difícil encontrar um candidato à altura, desde 1994, dentro ou fora do cinema americano, que nos faça cair inadvertidamente de amores pelo amor de lutar, contra todo um sistema, para se contar história sobre travestis, policiais ou alienígenas – ou tudo junto, misturado, porque não? Depp, um grande ator quando quer ser, e na época mais ator que celebridade, exala a paixão de Ed Wood pela câmera, pela luz, pela ação que movia seus atores; lendas como Bela Lugosi, o primeiro Drácula, do longínquo ano de 1931.

    Wood apenas queria trabalhar, sob o pecado de ser uma criança perdida numa loja de doces – e como ele amava doces, um mais do que o outro. Wood atuava como cineasta de um tempo mais inocente, que Charles Chaplin ainda era um malandro, Walt Disney ainda lutava para ser o mito que é, e tudo não passava de um exercício caro mas unilateral, sem grandes intenções por trás de nada. Cena após cena, Burton e Depp, no auge de ambos, mostram o lado sombrio, ganancioso e duro de se trabalhar na ilusória Hollywood, pois sabiam, após várias experiências, que nos anos 90 o jogo já era outro, completamente oposto ao mundo de sonhos e diversão de um homem que acreditava em seu coração para guiá-lo com suas lentes em um campo cada vez mais tomado por lobos, e que não aceitam ovelhas sentimentais. Ao recriar uma época, Ed Wood recria com força impressionante o espírito de se fazer filmes, sendo um respiro, uma dose de reflexão, e/ou uma ode para qualquer um que sonha em fazer o mesmo, ou que apenas admira os que tem coragem para tanto.

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  • Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    boyhood pic

    Boyhood tem tudo – tudo sob medida – para ser um clássico da Sessão da Tarde. Infelizmente, o espaço vespertino de filmes na programação da emissora é de péssima qualidade, há muito alheio a apostar no êxito de outrora, como com A Lagoa Azul, Elvira ou Uma Babá Quase Perfeita. Filmes família (Lagoa já não é mais visto inocentemente como antes) que todo mundo curte e curtia, principalmente se houver um cachorro como cereja do bolo; se for falante, melhor ainda. No filme de Richard Linklater, filmado em 39 dias (1 mês e pouco) ao longo de 12 anos (1 ou 2 dias pra cada cena, talvez), não há animais nem nada “do barulho” que desde a época que começou a ser gravado já não funcionava mais com a plateia. A obra carrega em si, por excelência, no tratamento da narrativa, a alma leve dos anos 80 que fascina o espectador (sempre carente de modéstia) dos anos 2000, tempos complexos em que desejamos cada vez mais a simplicidade, o alívio, o despretensioso. Num mundo cheio de segundas e décimas intenções, quando encontramos um filme, livro ou música que invoca um quase extinto frescor lenitivo, a problemática teia social vigente, ah… Brisa no deserto.

    Só que os méritos do filme de Linklater param por aí. O cara merece aplausos pela iniciativa de tornar o sonho real? Sem dúvida! Mas a tal da profundidade que muitos apontam em sua obra mais ambiciosa (e incomparável diante do valor de qualquer filme de sua trilogia romântica) não afunda muito na superfície da simplicidade do tempo, numa rasa exaltação da família e da riqueza da entidade familiar, como se uma homenagem a Era Uma Vez em Tóquio ou Pai e Filha – ópios soberbos sobre laços étnicos – ganhasse território americano nos moldes épicos do cinema de Yasujiro Ozu, impraticável por qualquer cineasta que não seja o próprio, tamanha a força de seu talento, sabedoria e leveza artística que nenhum outro, oriental ou não, conseguiu repetir até então. Linklater homenageia mesmo sem querer (querendo) a pureza de um Cinema leve e emocional ao extremo, mas acha contradição ao resgatar valores que já se repetiu em resgatar antes, e ao (simplesmente) focar 12 anos mundanos de uma família branca de classe média em fórmulas de publicidade que vendem a obra a partir de sua forma, e não do seu conteúdo, do recheio que iria, por fim, perfurar a validez do filme no tempo.

    James Cameron levou de 10 a 15 anos para rodar Avatar, mas foi na sua revolução tecnológica e no seu conteúdo 3D puramente técnico que o filme honestamente se apoiou, e não no seu arremedo de história. Boyhood só é levemente mais nobre por transcender e preferir a carga dramática ao aspecto técnico, mas cujo status de proeminência da tola história de um menino e sua família chega a ser tão leve quanto uma formiga se comparada à grandeza dos longos anos de produção, tal um elefante numa balança desigual de destaques relevantes. Um filme que exalta e, devido à longa duração, superestima as digressões em uma história, pois vai e volta, vai e volta, entre o limite do agradável e descartável, o rico e o gratuito, coisa típica da Sessão global, também.

    Na verdade, o que mais vale na obra não é nem a história, nem a duração das filmagens, mas sim o que de ambos os aspectos se pode extrair da plateia: o exercício da interpretação individual. O que mais cada um gosta em um filme e desgosta, se inspira para recriar na arte ou na vida, admira, reflete, se espelha ou repreende na tela é tão relativo quanto o gosto duvidável da direção irregular de Linklater, no começo compatível a um diretor de filmes amadores, ainda nos anos 90, terminando o filme de um jeito 100% carinhoso e paternal ao material que cultivou com tanto esmero, por mais de uma década. Certeza mesmo vem da ótima montagem em torno da obra, e acima de tudo, do talento à prova do tempo de Patricia Arquette, ótima como a matriarca que, quando vê barba no rosto do moleque, trava um diálogo emocionante sobre a brevidade das coisas, espécie de resumo do filme e a melhor cena de uma bijuteria que brilha, mas não é ouro. Deixemos ao tempo mostrar até aonde o brilho chega.

  • Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    Crescer é uma das poucas experiências biológicas e cognitivas que une todos os seres vivos da Terra. Para os humanos, dentro de uma sociedade tão complexa, a tarefa é ainda mais complicada frente a tantos desafios que o mundo moderno impõe às crianças, por exemplo, em que cada uma vai reagir de forma própria a todos os estímulos, positivos e negativos, que recebe. Foi dentro dessa lógica que, 12 anos atrás, o cineasta Richard Linklater decidiu realizar um ousado projeto, o de filmar uma história sobre a vida de uma criança enquanto cresce até ela se tornar um adulto, mas utilizando com isso um ator só durante esse processo.

    Boyhood trata a vida de Mason (Ellar Coltrane), uma criança introspectiva que vive com sua Mãe (Patricia Arquette) e sua irmã Samantha (Lorelei Linklater), enquanto tem contatos esporádicos com o Pai (Ethan Hawke). Sua jornada pelo final da infância, adolescência e início da juventude nos será mostrada, assim como a de sua família e todas as situações que dali resultarão.

    Se o maior mérito desse novo e já cultuado filme de Linklater reside no conceito inovador por trás da filmagem, o mesmo não se pode dizer da história e dos personagens nela retratados. Ao focar Mason, a história tem problemas sérios de ritmo em razão de não conseguir imprimir na narrativa nenhum evento catalisador de mudanças na personalidade dele ou da família, ou mesmo o efeito disso em suas vidas. Apesar de passarem por várias dificuldades, como o convívio com novas famílias e padrastos com problemas de uso de álcool, nada parece afetar suas vidas de forma significativa.

    Mason é retratado com uma apatia irritante. A todo o instante, parece espectador do mundo para, de repente, já na juventude, saltar ao posto de filósofo do mundo contemporâneo. Por vários momentos, seus diálogos não representam nada. Há uma ocasião clara em que ele, adolescente, chega de uma festa e assume que fumou maconha e bebeu álcool com uma série de “sim” para a sua mãe, a qual aceita prontamente todas as respostas, e nada acontece. O mesmo quando ele está com uma turma de amigos discutindo mulheres, festas e bebidas como adolescentes comuns. Nenhuma pista estabelecida possui recompensa.

    Se Mason não garante emoção alguma, o mesmo não se pode dizer de sua família, em especial sua mãe, em bela interpretação de Arquette. Saindo da posição de mãe solteira com subemprego, a batalhadora que estuda e melhora de vida, suas más escolhas na vida pessoal contrastam com a ascensão na vida profissional, que garante uma melhoria de vida para ela e seus filhos (algo que o filme não explora em nada, como se o contexto social da família e do país não importassem). Com uma duração tão longa, de aproximadamente 2h45 minutos, tempo há de sobra para se desenvolver qualquer coisa que saísse da linha reta de emoções representada por Mason. Mas nada disso é feito, infelizmente.

    O pai de Mason, uma figura interessante, também é mal aproveitado. Apesar dos erros cometidos em sua vida, tenta dar o máximo de si ao educar os filhos, falando desde sobre o incômodo tema das relações sexuais na adolescência até conselhos sobre relacionamentos que não deram certo. Mas os diálogos não ajudam a tirar os personagens e suas relações do lugar comum e dos clichês do gênero.

    O que sobra em Boyhood são três horas de eventuais boas passagens e boas sequências de câmera, mas que não dizem a que veio. O hype em cima de sua produção parece explicar seu sucesso atual, e as relações ali representadas falam com os fãs de filmes indie e intimistas, os quais disfarçam a pobreza de seu discurso com momentos que simulam profundidade, mas que, na verdade, não representam nada. Caso houvesse ali uma escolha por um drama familiar clássico, mesmo que se às vezes derrapasse e fosse levado para o melodrama, ao menos teria sido uma escolha e haveria descarga de sentimentos com os quais poderíamos lidar. A obra infelizmente não é nem isso. São aproximadamente três horas de quase nada, mas muito bem disfarçadas.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Procurando Encrenca

    Crítica | Procurando Encrenca

    flirting with disaster

    O texto de Procurando Encrenca é iniciado de forma nonsense, com uma discussão sobre a descoberta da verdadeira mãe de Mel Coplin, personagem de Ben Stiller. O método escolhido e a série de eventos que ocorre logo após isso é uma ótima forma de demonstrar o quão bagunçada é a vida do personagem e justifica toda a sua neurose, insegurança e conservadorismo em relação ao sexo. A inserção por parte do público é automática.

    O elenco semi-estelar a época – com Tea Leoni, Patricia Arquette, Josh Brolin, etc – não esconde o caráter artesanal e barato da produção, tampouco o clima de comédia de situação, pervertida em muitos pontos, mas que transpira naturalidade e lugar comum: toda essa familiaridade aumenta o escopo do inesperado e faz as piadas inesperadas funcionarem ainda melhor.

    Tudo é tosco, até a forma de Mel flertar com outrem é rudimentar e grosseira, além disto, as indiscrições ocorrem nos locais menos apropriados possíveis. Além do caráter proibitivo do namorico em primeira instância, o evento ainda é feito de forma agressiva e desmoderada – os filmes de Russell neste início de carreira têm uma temática em comum, grifando demais as tensões sexuais entre “entes proibidos”.

    A busca de Mel por sua origem genética é uma manifestação da avidez que sente por fugir de sua antiga vida, repleta de neuroses e algumas outras anomalias mentais, mas nada poderia prepará-lo para a odisseica aventura que sofreria ao atravessar o país atrás de seus pais. Os múltiplos enganos ao tentar achar a real identidade de seus genitores é confusa, mas não é nada comparada ao road movie carnavalesco de relacionamentos ilícitos e inter-sexuais, a maneira como cada uma das pontas do “pentângulo” amoroso reage é diversa, mas o tom de quase todas elas é muito regado de cinismo e desfaçatez. O curioso é que o grito de moralidade que ocorre dentro dessa situação é de Paul (Richard Jenkins), um personagem que deveria ser a antítese disto, visto que é um homossexual que vive dentro de seu armário e que tem muito receio de se expor graças a profissão que exerce como policial – o que demonstra que apesar de sua orientação sexual, não é muito diferente de seus colegas de farda quanto ao conservadorismo em relação a questões ligadas a monogamia.

    Os Schliting, verdadeiros pais de Mel – feitos pelos ótimos Alan Alda e Lily Tomlin – são absolutamente desequilibrados. A capa de superficial felicidade familiar esconde um passado marginal e uma rotina ainda pautada na ebriedade, no ácido, boemia e falta de lucidez mesmo nas atividades corriqueiras. O desequilíbrio que impera na vida de seus progenitores reflete nas atitudes de Mel, mesmo sem ter tido contato com eles durante sua vida, a insanidade parece estar impressa no DNA deles e cada um dos indivíduos enfrenta isso a sua maneira.

    Ao final, a mãe adotiva de Mel vê com maus olhos a possibilidade de um casal gay criar uma criança, argumentando que tal cópula traria um conjunto de neuroses desnecessárias para um infante – o que é no mínimo curioso, diante do desequilíbrio emocional que ocorre com a matriarca dos Coplin. O tempo todo David O. Russell brinca com os estereótipos familiares e critica a hipocrisia ocidental, especialmente quando comparados os homens de família com os ditos desajustados. O guião comprova que a pretensa normalidade pregada pelo americano médio não garante uma psiquê saudável e livre das inconveniências da insanidade “moderada”.

    Ouça nosso podcast sobre a filmografia de David O. Russel.

  • Crítica | Amor à Queima-Roupa

    Crítica | Amor à Queima-Roupa

    Amor à Queima-Roupa

    Em 1993, Tony Scott assinou seu nome na indústria do cinema ao dirigir Amor à Queima-Roupa, uma história de amor pra lá de distorcida, que contava com um elenco impecável e um roteiro original em mãos. O dono desse roteiro era um certo atendente de locadora, fascinado por cinema e aspirante a diretor. Quentin Tarantino.

    Tarantino já havia dirigido Cães de Aluguel em 1992, que não foi tão bem de bilheteria, mas muito bem aceito pela crítica e pelos astros de Hollywood, que ficaram impressionados com o trabalho do diretor e estavam ávidos para trabalhar com ele, deixando de lado até mesmo os cachês exorbitantes que recebiam, apenas para trabalhar com o homem.

    Porquê estou dizendo tudo isso? Porque o roteiro de “Amor à Queima-Roupa” proporcionou ao Tarantino filmar seus “Cães de Aluguel” e como dizem, o resto é história. O fato é que na época em que o roteiro foi vendido, ninguém deu muita importância para ele, até que acabou nas mãos do diretor de Top Gun.

    O filme conta a história de Clarence (Christian Slater), um vendedor solitário que mora em uma loja de quadrinhos e que sua rotina se resume a assistir filmes de artes marciais e passar a noite em lanchonetes. Em uma dessas noites, ele encontra Alabama – interpretada por Patricia Arquette (simplesmente linda) – em uma sessão de filme de Kung-Fu. Alabama é recém chegada na cidade, partiu do interior para conseguir um lugar ao sol na cidade grande.

    A intensidade do amor dos dois é tamanha que ambos decidem se casar no dia seguinte. Porém, Clarence fica incomodado com o passado da garota, que tinha se tornado prostituta a mando de Drexl (Gary Oldman), e Clarence seria seu primeiro cliente. O recém-noivo decide dar às caras ao antigo “patrão” de Alabama, e a coisa termina em massacre e uma mala cheia de cocaína para Clarence, que decide partir rumo a Hollywood para vender toda essa droga para algum grande astro do cinema. Só que essa cocaína tem dono, e são ninguém menos que a máfia italiana.

    Após esse pequeno resumo da trama do filme, é fácil notar o porque ele tem a assinatura de Tarantino. Amor à Queima-Roupa tem todos os elementos que veríamos em seus filmes futuros: Sua paixão por filmes asiáticos e western spaghetti, referências aos quadrinhos de super-heróis, violência desenfreada, diálogos marcantes e sua paixão quase adolescente pelo cinema. A princípio, o roteiro era fragmentado, outra característica típica do Tarantino, mas Tony Scott preferiu deixá-lo linear, o que funciona muito bem. As referências que Tarantino visitaria novamente são inúmeras.

    No longa ainda temos as participações de James Gandolfini, Dennis Hopper, Samuel L. Jackson, Val Kilmer, Brad Pitt, Christopher Walken, apenas para citar alguns. É fácil notar que todos estavam se doando para suas personagens e se divertindo muito com isso. As sequências de diálogos são memoráveis, entre o ponto forte está uma cena onde o pai de Clarence (Hopper) se encontra com o mafioso siciliano (Walken). Brilhante.

    É interessante notar que sempre que comentado sobre Amor à Queima-Roupa, muito se é falado sobre o roteiro de Tarantino e pouco sobre a direção de Tony Scott, porém, isso acaba desmerecendo o trabalho de Scott, que faz uma direção com grandes tomadas e um ótimo trabalho do elenco, é claro, que o roteiro ajuda muito, mas outro diretor poderia destruí-lo, o que não é o caso de Tony Scott.

    Obrigatório para quem quiser entender um pouco do Tarantino antes de ser aclamado pelo mundo como diretor e confirmar que a genialidade do cara, já estava ali desde sempre, repleto de referências que só ele mesmo saberia utilizar por muito tempo.