Tag: steampunk

  • Resenha | Silas

    Resenha | Silas

    Em Salto, Rapha Pinheiro apresentou ao público um primeiro vislumbre da cidade subterrânea de Intos, destacando a coragem e o ímpeto do jovem Nü, que se impôs diante das mentiras e desmandos que mantém o Barão no controle de toda a população.

    Se colocando em um papel de arauto da verdade, após descobrir que o mundo da superfície é seguro e o povo tem vivido e morrido em meio às claustrofóbicas paredes das cavernas, Nü parte com Jules e Mae, frustrado por não conseguir convencer a população acerca da vilania do líder da cidade, mas não sem tocar ao menos uma pessoa, o misterioso capitão da polícia de Intos, Silas.

    Nesse spin-off, Pinheiro se propõe a contar a vida do silencioso e enigmático personagem, em paralelo com a trajetória de Nü, narrada em Salto. Com precisão, o quadrinista mostra a sofrida vida de Silas, que desde pequeno se viu sozinho, após um terrível e misterioso acidente, precisando de uma engenhosa armadura para conseguir sobreviver na cidade.

    Criado pelo Barão, Silas cresceu e se destacou vivendo isolado das pessoas, sem demonstrar emoções nem quaisquer preocupações que não tivessem relação com sua atuação profissional. Intransigente e impiedoso, Silas passa por uma crise de consciência após ser interpelado por um beberrão na rua, e posteriormente conhecer Maud Rockwell.

    Na idosa, também afligida por um acidente durante a infância, Silas encontra uma figura materna, e começa a repensar suas atitudes e sua devoção cega ao Barão, enquanto surge na cidade o burburinho resultante das aventuras de Nü. Tendo de conviver com a tragédia da perda e com sua consciência lhe mostrando que há algo de errado na história que vem lhe sendo contada ao longo dos anos, Silas parte para descobrir a verdade, o que resulta nos eventos mostrados em Salto, e nos leva ao confronto entre o capitão arrependido e seu mentor corrompido.

    De forma inventiva, Rapha Pinheiro faz de Silas um complemento para o entendimento de Salto, mostrando facetas da história que não poderiam ser observadas em um primeiro momento, em uma perspectiva unidimensional. Em um recurso típico das séries de TV e do cinema, essa montagem das cenas já vistas anteriormente sob uma outra perspectiva confere requinte para a narrativa.

    Nessa nova HQ, o quadrinista expande os conceitos que apresentou em seu trabalho anterior e fecha algumas pontas, deixando outras em aberto para uma possível – e desejável – continuação, dando conta dos desdobramentos resultantes dos eventos narrados nesse conto sobre escolhas e mudanças de rota.

    Pinheiro demonstra sensibilidade ao construir a personalidade de um personagem que não pode falar, e cujas feições se encontram escondidas por baixo de uma inflexível máscara protetora. Por trás de todo o aparato tecnológico, Silas apresenta complexidades, traumas e valores, demonstrados através de um competente trabalho de composição narrativa por parte do autor.

    Ao não fazer uso do suporte verbal, Silas atua em uma narrativa contada por seus coadjuvantes, o que faz com que estes também precisem ser bem construídos e desenvolvidos, para não soarem rasos e descartáveis. O amadurecimento da escrita de Rapha Pinheiro é flagrante entre Salto e Silas, enquanto a arte continua um ponto de destaque na trama, conduzindo visualmente o leitor por caminhos que as palavras muitas vezes não dão conta de revelar.

    Em relação ao letreiramento dos balões e caixas de texto, a HQ comete alguns deslizes de ordem revisional, mas nada que interfira na experiência de leitura.

    Com Silas, Pinheiro dá mais um passo em seu universo steampunk, tecendo metáforas com o mundo real e dando alma e personalidade para suas criações. Fica a esperança de uma continuação, pois o universo ficcional criado pelo quadrinista ficou ainda mais interessante.

    Publicado pela Avec Editora, Silas conta com 96 páginas em papel couché de boa gramatura e capa cartonada, sem orelhas.

    Compre: Silas.

  • Resenha | Salto

    Resenha | Salto

    Com a chegada de uma terrível e persistente chuva, os habitantes flamejantes de Edos partiram para as cavernas, se estabelecendo e criando a cidade subterrânea de Intos. Durante anos e anos a sociedade se organizou por ali sob a égide do Barão, que alegadamente possibilitou ao povo as condições para que a vida nas profundezas da caverna fossem possíveis.

    Essa “verdade”, amplamente difundida para a população, sempre foi tida como inquestionável, e o poder do Barão permanecia incontestável, até que o tímido e inquieto Nü, o único rapaz azul no meio de uma cidade povoada por pessoas laranja, começa a desconfiar de que há algo de estranho no ar, e decide investigar. Saltando por entre os telhados das casas de Intos, o jovem acaba descobrindo detalhes inconvenientes acerca do venerado Barão, e passa a ser perseguido pela cidade.

    Ao fugir dali para preservar sua vida, Nü salta pelos labirínticos caminhos das cavernas, até descobrir a assustadora verdade: o mundo lá fora está normal, sem chuvas, e o Barão tem usado o medo para manter a população sob seu controle durante todos esses anos.

    Partindo para uma jornada de revelação e de contra-ataque diante das mentiras com as quais conviveu durante todos esses anos, Nü se propõe a revelar toda a verdade para a população, mesmo que sua vida seja colocada em risco no processo.

    Em uma releitura interessante e criativa do Mito da Caverna, de Platão, Rapha Pinheiro constrói uma narrativa de aventura calcada em uma estética steampunk, com forte teor de crítica social, em uma abordagem que lembra em alguns momentos a aclamada série Bone, de Jeff Smith.

    Com grande domínio da narrativa visual, o quadrinista carioca investe em angulações ousadas e opta por um enquadramento dinâmico, alternando entre planos fechados e panorâmicos, dando solidez e identidade para o universo que criou. O uso de cores digitais acrescenta em muito a esse senso de identificação e pertencimento da obra, chamando a atenção em diversos momentos pelo contraste entre as cabeças flamejantes dos habitantes de Intos e as paredes escuras das cavernas. Os personagens apresentam carisma e expressividade marcante, todos bem caracterizados e distintos em cena.

    Apostando em diagramações inteligentes, contando com rimas visuais e jogos de sentido através da relação entre forma e conteúdo, Rapha Pinheiro dá consistência e profundidade para a angústia de um Nü, já consciente da verdade, que se vê impotente e frustrado diante da letargia e do medo que fazem com que a mentira do Barão se torne mais confortável para a população do que o inexorável peso da verdade.

    Com um roteiro irregular, mas bem amarrado, e uma arte muito interessante, a obra derrapa ligeiramente em suas primeiras páginas, no que se refere à naturalidade do texto. Em um primeiro momento, as conversas soam um pouco artificiais e expositivas, mas logo esse desalinho se ajeita e a trama encontra seu equilíbrio entre texto e arte, comungando os dois eixos da narrativa gráfica de forma coesa e coerente dentro da proposta narrativa.

    Com Salto, Rapha Pinheiro apresenta uma história bem planejada e executada, uma metáfora universal com soluções interessantes em sua narrativa visual e apenas algumas inconsistências de roteiro, mas nenhum problema que seja realmente digno de nota.

    O encerramento, que inicialmente pode soar apressado para muitos, acaba por ser o fechamento ideal para um conto sobre insurgência e indignação diante das mazelas que acometem o mundo diariamente.

    A HQ foi publicada no Brasil pela Avec Editora, em 2017, em capa cartão e com 96 páginas em papel couché de boa gramatura.

    Compre: Salto.

  • Review | Bioshock

    Review | Bioshock

    Bioshock, lançado em 2007, é um jogo narrativo que, por acaso, se valeu das mecânicas de FPS (first person shooter – vulgo “jogos tipo Doom”). Não por acaso, afinal ele é uma continuação espiritual de outro FPS com grande foco em narrativa, System Shock. Diversos aspectos em Bioshock impressionam, já outros tornaram-se falhos após uma década. Vou explicar, então por gentileza, me acompanhe.

    Andrew Ryan acreditava na máxima liberdade das pessoas, e resolveu criar uma sociedade nestes moldes. Para isso, fez o impossível (nas palavras do próprio) e construiu uma imensa cidade no fundo do mar batizada de Rapture. Ele convidou os mais notáveis intelectuais, artistas e profissionais do mundo inteiro para compor esta nova sociedade, e por certo tempo tudo correu bem.

    Dentre as várias inovações científicas desenvolvidas no local, a maior delas foi a descoberta de Adam, uma substância que permite modificações genéticas. Ao mesmo tempo que várias coisas foram inventadas, o Adam começou a degenerar a mente das pessoas, tornando-as viciadas e loucas. Este foi um dos vários estopins para a derrocada de Rapture, que mergulhou no absoluto caos e destruição.

    O jogo começa em 1960, com seu personagem, Jack, dentro de um avião sobrevoando o oceano. Porém, uma pane derruba a aeronave, e Jack se vê no oceano cercado de fogo e escombros do avião.  Por coincidência (?), à sua frente está um grande farol. Ele nada até lá e entra. Não é um farol qualquer. Ali dentro há uma grande estátua com os dizeres “NO GODS OR KINGS, ONLY MAN” (“sem deuses ou reis, apenas homem”, em tradução livre). Jack explora o lugar e encontra uma espécie de capsula. Ele entra, puxa uma alavanca dentro dela e então começa a descer. Durante a descida, um pequeno filme é passado, onde Andrew Ryan fala um pouco sobre seus pensamentos e apresenta sua grande criação: Rapture.

    Este início de jogo é fabuloso, tendo influências claras do estilo narrativo de Half-Life (outro início que fez história nos videogames). O acidente aéreo, a descoberta do farol, a primeira visão de Rapture com a voz de Andrew Ryan… continua primoroso uma década depois.

    Desde o primeiro contato, Rapture intriga. Todo aquele visual dos anos 1950, tecnologias steampunk, é muito interessante. Ao longo da jornada, Jack descobrirá mais sobre a causa de todo esse caos. Rapture está bagunçada, ensanguentada, quebrada. O cenário também contará muito da história, juntamente com arquivos de áudio, nos mesmos moldes de System Shock. Isso faz com que a compreensão das coisas não seja fácil, uma vez que as informações estão esparsadas e nem sempre tão diretas. É um longo quebra-cabeça que será montado ao longo das aproximadas 10 horas de jogo.

    Por se tratar de um FPS, é claro que haverão diversas armas, todas com visual retrô. As armas terão diversos tipos de munição, e será muito importante utilizar cada uma nos inimigos certos, caso contrário haverá gasto excessivo de munição.

    Para auxiliar suas armas de fogo, teremos os plasmids, poderes adquiridos pela tecnologia genética de Rapture. Eletricidade, fogo e insetos são apenas alguns exemplos desses poderes, que deverão ser utilizados com estratégia para facilitar os combates.

    Mas quem são os seus inimigos? Na maioria das vezes, serão os splicers, pessoas viciadas em Adam, uma espécie de crackudos de Rapture. Eles vão te atacar até a morte, então cuidado, os caras são nóia.

    Durante seu turismo por Rapture haverá duas figuras bem peculiares: as Little Sisters e os Big Daddys. As primeiras são garotinhas de aparência bisonha carregando uma espécie de seringa que extrairá Adam dos cadáveres espalhados por Rapture. Já os Big Daddys são pessoas vestidas com um escafandro e fortemente armados, pois o objetivo é proteger as Little Sisters dos splicers. É possível (e necessário) matar os Big Daddys para, com isso, extrair Adam das Little Sisters. Você poderá matar ou “exorcizar” as Little Sisters, sendo que a primeira lhe dá mais Adam. Isso influenciará no final do jogo.

    Para você, o Adam servirá como moeda de troca por novos plasmids e habilidades. Além de uma extensa árvore de habilidades, o uso correto dos plasmids, dos tipos de munições, o hackeamento de robôs e câmeras de segurança, todos estes aspectos são essenciais para o sucesso. Esses elementos de RPG, atrelados ao aspecto mais narrativo, tornam Bioshock bem interessantes. Não é o melhor FPS do mundo, muito pelo contrário, as partes de ação possuem diversos problemas e não envelheceram tão bem.

    O grande trunfo de Bioshock está na construção de mundo e de história. Rapture é o personagem mais marcante do jogo, com seu visual único e história instigante. Quem conhece a história de System Shock 2 vai notar uma fórmula bem parecida, e talvez não tenha grandes surpresas nas reviravoltas. Pouco depois da metade, a história perde um pouco a qualidade, tornando-se não tão interessante assim.  Mas a grande diferença está na ambientação.

    Enquanto System Shock é um sci-fi no espaço, Bioshock é um sci-fi retro steampunk. A construção de Rapture é sensacional, e seus personagens igualmente interessantes. A ideologização radical de Andrew Ryan, com referências diretas a Ayn Rand (inclusive as letras de seu nome), mostraram a liberdade total gerando o caos. O desenvolvimento científico e genético não tiveram limites éticos, ocasionando na criação dos plasmids e, por consequência, o surgimento de splicers, que ficaram completamente loucos pela dependência insaciável de Adam. Mas o grande debate do jogo é sobre a sua própria liberdade de escolhas.

    Desde que você chega em Rapture, um tal de Atlas se comunica via áudio com você e lhe dá instruções. Você está jogando um jogo, então obviamente vai obedecer e fazer tudo. Afinal, queremos saber onde isso vai dar, certo? Mas ao longo do jogo, isso vai sendo questionado. Mas você continua seguindo as instruções. E existe um grande porquê disso tudo, que é a revelação mais bombástica do jogo. Uma pena que, em meio a tantas coisas boas, a reta final quebrou a qualidade e quase colocou tudo a perder.

    Estamos aqui, doze anos depois, falando de Bioshock, que já ganhou uma versão remasterizada e está disponível nas principais plataformas. Ele trouxe elementos interessantes e em geral é um bom jogo. Com a ótica atual, vemos problemas, especialmente nos combates e em algumas decisões de level design. Fora isso, é um jogo que instiga você a terminar, por mais que algumas partes sejam maçantes.

  • Resenha | O Circo Mecânico Tresaulti – Genevieve Valentine

    Resenha | O Circo Mecânico Tresaulti – Genevieve Valentine


    Circo fantástico de engrenagens incongruentes

    Respeitáveis leitores, O Circo Mecânico Tresaulti, de Genevieve Valentine (Darkside Books), é um livro de fantasia ambientado durante um período de guerra. Não se trata de uma distopia (aos fanáticos por conspirações), mas de uma história em que componentes mágicos de caráter lúdico coexistem despercebidos ao conflito.  De forma geral, a narrativa não alcança pleno entretenimento por conta de incongruências que saltam aos olhos de uma boa leitura.

    Valentine utiliza dois narradores: um em terceira pessoa, ou narrador-observador, e outro em primeira pessoa, ou narrador-personagem, o segurança e faz-tudo do circo, George. Aqui começam os primeiros deslizes. Utilizar dois narradores é sempre um desafio por conta da alternância de vozes; ou seja, fica fácil do leitor confundi-los se eles não possuem características distintas ao contar a história. E eles não têm.

    Trocando em miúdos, o livro começa dando a entender que George está escrevendo um diário sobre o Circo Tresaulti e os espetáculos, mas logo nos deparamos com cenas detalhadas em que ele não está presente. Ou seja, não fica explícita a troca de narradores porque os dois soam idênticos. Assim, por vezes algumas passagens dão a entender que George está falando dele na terceira pessoa, ou que tem algum poder de adivinhação não explícito na trama.

    Enfim, vá lá que George além de ser segurança também faça bicos de médium, poderia ser uma incongruência para não despertar muito incômodo ao leitor menos preocupado. Dirão que o leitor quer trama, entretenimento. Para este leitor, em síntese, o livro acompanha as apresentações do circo, mas não em caráter temporal, ou seja, os capítulos são intercalados entre presente e passado. Por vezes estamos lendo sobre o que acontece no presente, e de repente George fura a continuação da história para tratar sobre eventos antigos, sobre os velhos artistas que passaram pelo circo ou sobre figurino, música de apresentação, roupa etc.

    Pessoalmente, acredito que faltou um pouco mais de parcimônia em utilizar o flashback para aprofundar os personagens, pois o enredo do presente não caminhava a qualquer intensidade ou desenvolvimento da trama (principalmente na metade do livro). O passado pesa ao circo mais que o presente, contudo não é suficiente para manter a leitura em expectativa constante.

    Quanto aos personagens, por serem muitos, é natural que apenas uma parte merecesse atenção dos narradores (outros tiveram o passado reduzido a quatro ou cinco linhas). Mas vá lá, dirá algum leitor, que realmente não nos interesse o passado de personagens secundários como por vezes nós, pessoalmente, deixamos de conhecer quem habita o nosso cotidiano, a pergunta é: os mais citados carregam o livro? Aqui cabe outra dúvida porque a personagem principal, Boss, a matrona que capitaneia o circo, é cercada de mistério.

    Boss foi uma cantora de ópera antes da guerra começar. Mas não era uma principal, apenas secundária. O maior papel dela foi a assistente da rainha na ópera Rainha Tresaulta. É narrado que na noite de um espetáculo a cantora principal encantou os presentes a tal ponto de silenciá-los. No momento seguinte uma bomba estoura no teatro e mata todos, exceto Boss. Ela se ergue no meio dos escombros e, carregando pedaços de instrumentos dos músicos mortos, cria para si um assistente mecânico, um homem (ciborgue?) composto de vários instrumentos que futuramente encarna o arauto e orquestra-de-um-homem-só do Circo Tresaulti. Não é dito o que ela emprega para criar o servo, apenas que a “habilidade” desperta e, por conseguinte, Boss adquire o poder de implantar engrenagens nos corpos das pessoas.

    Com esse poder, Boss incrementa os artistas do próprio circo: aos acrobatas e malabaristas implanta ossos ocos e articulações de metais para os deixarem mais leves e fortes; implanta engrenagens para força e braços mecânicos em outros; engrenagens diversas dependendo dos casos que aparecem; e cria um par de asas mecânicas que implanta em um artista especial.

    Uma vez recebidas essas próteses, os artistas não podem se distanciar de Boss, porque sugere-se que ela cria um vínculo com as engrenagens implantadas, as quais podem parar se não ficarem perto da dona. Boss também pode consertar os artistas e as engrenagens, chegando a ponto de ressuscitá-los (você não leu errado). Isto é o Circo Tresaulti: artistas-meio-ciborgues-meio-imortais.

    O antagonista da história é o “homem do governo”. Basicamente ele quer recrutar Boss para que ela utilize a sua habilidade nas tropas em guerra para criar soldados-ciborgues-meio-imortais. Enquanto isso não acontece, o circo sobrevive levando certa esperança nas cidades em guerra. Isto ainda é uma resenha sem spoiler.

    A despeito da trama do circo-meio-ciborgue-meio-imortal espalhando esperança no mundo contaminado com bombas e guerra, a autora dá pouca ênfase ao cenário e muito aos personagens. Mas, apesar de alguns bem construídos, como dito acima, por vezes os artistas do circo se mostram vagos, com ações simbolistas, alguns diálogos muito parecidos em que não distinguimos uma personalidade por trás do personagem. Mesmo George, o narrador-personagem, por vezes fica mais preocupado em criar insinuações que contar o desenvolvimento da história.

    Na literatura, é uma tendência contemporânea deixar sugestões na narrativa como forma de simular a experiência de vida de quem lê, mas em excesso, como George utiliza sugestões para endossar o comportamento rude ou violento de outros personagens, é apelar demais para a complacência do público, e, ao mesmo tempo, se eximir de contar fundamentos da história. Novamente houve falta de parcimônia da autora.

    As ilustrações presentes no livro são muito bem feitas e transmitem uma atmosfera meio decadente com enlaces de esperança aos integrantes do circo. A edição da Dark Side é muito boa e encontramos um ou outro erro de revisão que não tem o poder de prejudicar muito a leitura. Ao fim, a impressão é que O Circo Mecânico Tresaulti é um espetáculo pela metade onde as engrenagens presentes nos personagens faltaram à história.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: O Circo Mecânico Tresaulti.

  • Resenha | Boneshaker – Cherie Priest

    Resenha | Boneshaker – Cherie Priest

    capa-boneshaker-saraiva

    Cherie Priest publicou seu primeiro romance em 2003, com o título original Four and Twenty Blackbirds – que ainda não chegou ao Brasil. Em 2009, deu início às aventuras dentro de um universo próprio, alcunhado como Clockworck Century Universe, e este Boneshaker é a o primeiro volume da série.

    Indicado ao Prêmio Hugo, o romance narra a história centrada num núcleo familiar, e já mostra que o relacionamento dos parentes é conturbado em virtude do falecido progenitor. Blue Leviticus foi o responsável pela construção de uma perfuratriz mineradora – intitulada Boneshaker –, mas um terrível acidente mergulha a Seattle do século XIX numa catástrofe, transformando inúmeros habitantes em zumbis. Um muro é construído ao redor da cidade para conter tal ameaça. Tudo está bem, até que Zeke – um infante, herdeiro do falecido construtor – resolve cruzar o muro e ir em direção à parte proibida da cidade, enquanto Briar (viúva de Blue) vai ao encalço do garoto, como o instinto materno manda.

    O background apresentado é muito rico, e dá sentido à estética steampunk. O roteiro é quase documental, mostrando em alguns flashbacks como era a vida das pessoas antes da Praga e como elas reagiram à desgraça, desde a construção do muro até o método utilizado por elas para sobreviver. Um problema muito presente é a escassez de água; é preciso um enorme tratamento para consumi-la, para o qual se usa toda a tecnologia do vapor.

    Há um clima investigativo, que lembra um estilo Noir, principalmente nas partes em que se acompanha a trajetória de Briar. Priest faz o leitor acompanhar duas jornadas, mãe/filho.  Briar corre em missão de resgate, acha que o rapaz é indefeso diante das situações que aquele Novo Mundo impõe – o que serve de metáfora para a dificuldade em romper-se o cordão umbilical. Enquanto Zeke resolve se aventurar por Seattle, a fim de fazer justiça – ao menos aos seus olhos – e de retornar com o orgulho perdido por sua família. Ambas as motivações são críveis.

    Briar é desencorajada em continuar sua busca, com o argumento de que qualquer tentativa de ultrapassar o muro atrás de uma criança fugitiva é fútil, mas ela ainda recebe favores de pessoas que têm dívida com seus familiares. Há uma preocupação genuína – e por vezes até desnecessária – da autora em explicar suas “licenças poéticas” no contexto histórico. O esmero em passar com fidedignidade o clima e a aura de Seattle nos anos 1800 é recompensado com uma atmosfera bastante farta e rica.

    Boneshaker é basicamente uma história de resgate e reencontro, e a estética steampunk serve mais à história como ambientação do que como mote. Apesar de alguns pontos importantes serem ligados intimamente ao “uso do vapor”, os dramas se encaixariam em qualquer outro estilo, o que garante universalidade à temática da obra. O trabalho gráfico da Editora Underworld é um primor, diagramação, capas etc. O livro será adaptado para o cinema, ainda sem previsão de lançamento, e será produzido pela Hammer Films.

  • Resenha | Leviatã: A Missão Secreta – Scott Westerfeld

    Resenha | Leviatã: A Missão Secreta – Scott Westerfeld

    leviatã scott westerfeld

    Destaque do gênero ficcional conhecido como Young Adult, Scott Westerfeld produziu até o momento quatro séries literárias de sucesso. No país, é mais conhecido pela Feios, uma quadrilogia sobre um futuro em que a sociedade é inteiramente plástica, dedicada a uma estética perfeita. Porém, desde o início da carreira seus romances são elogiados dentro do gênero  e conquistaram premiações.

    Ainda não publicado no país, Evolution’s Darling foi citado pelo New York Times como um dos livros notáveis do ano, recebendo menção honrosa no prêmio Philip K. Dick, dedicado à ficção científica. Tão Perto venceu o Victorian Premier’s Literary Awards, premiação australiana, país em que Westerfield reside boa parte do ano. Enquanto o primeiro título da série Feios venceu um prêmio no ano de sua publicação de melhor livro Young Adult.

    Ainda que premiações sejam passíveis de dúvidas, o vasto público e as indicações vindas de fontes variadas podem comprovar seu talento, mesmo que o estilo ou gênero Young Adult seja tão abrangente ao ponto de dificultar uma definição apurada.

    Ao contrário da série Feios, em que projeta um possível futuro, Westerfeld olha para o passado para reconstruí-lo em Leviatã, primeiro romance de uma trilogia. A história situa-se na Primeira Guerra Mundial, partindo dos conhecimentos históricos mais básicos para rearranjar-se em narrativa steampunk.

    A batalha é a mesma que conhecemos historicamente, mas há um significativo avanço científico composto pelos mekanistas, que batalham com aparatos mecânicos, e os darwinistas que, no desenvolvimento genético, produzem animais híbridos próprios para a batalha.

    Neste cenário bélico, estão dois jovens: Alek Ferdinand, príncipe do império austro-húngaro, fugindo com um pequeno séquito após descobrir uma conspiração que assassinou seus pais; e Deryn Sharp, uma garota que disfarça-se de homem para ingressar na Força Aérea Britânica.

    Em um primeiro momento, a narrativa constrói-se apresentando as personagens de maneira alternada. Desenvolvendo a ambientação e situando o leitor em uma história que, embora conhecida, foi modificada. Até o primeiro encontro das personagens, a construção narrativa soa repetitiva e burocrática até a ação propriamente.

    Devido ao universo especulativo da ficção científica – e talvez o público alvo da história – ilustrações feitas por Keith Thompson acompanham o romance para que se visualize as máquinas de guerra envolvidas na trama, mecânicas e animalescas. Sob este ponto, a edição da Galera Record, selo da Record, é impecável. Com extremo cuidado gráfico tanto na capa quanto nas ilustrações, além de conter na capa interna um mapa dos países envolvidos na batalha e seus respectivos aliados.

    As criações de Westerfield são o elemento mais rico da história que segue a tradição do Young Adult e, centrado nas personagens adolescentes, produz o conflito inicial e a aproximação das personagens após um inusitado encontro em um país frio.

    Como grande história divida em partes, é evidente o gancho para o segundo romance, que projeta a expectativa de continuidade. Intitulado Behemoth, a segunda parte da saga tem previsão de lançamento no país para o próximo mês.

    Pela composição narrativa mista entre steampunk e o estilo Young Adult, Leviatã poderia aprofundar-se mais na matéria ficcional sem as amarras de conflitos primários. Porém, mesmo sob tal aspecto, a narrativa não desagrada aqueles que se interessam somente pela nova ótica da primeira guerra mundial. Um novo universo construído com qualidade e potencial para ser tornar trilogia cinematográfica de sucesso.

  • Resenha | Erótica Steampunk

    Resenha | Erótica Steampunk

    erotica

    Coletânea de contos de temática erótica, mas ambientada numa estética Steampunk, a  proposta do livro de reunir histórias em um formato pouco comum na literatura brasileira é interessante e bastante louvável. Devido à pluralidade de escritores, é difícil achar pontos em comum nas histórias narradas do livro, mas isso não compromete a leitura e nem diminui o prazer de fazê-la. A arte de capa é fenomenal: tanto a paleta de cores, como o desenho central, a imagem é belíssima.

    Abaixo, uma pequena explanação sobre alguns dos escritos do livro:

    O Autômato de Mr. Wilde: A brincadeira com o gênio literário, a exploração da sua controversa sexualidade e a exposição do pensamento preconceituoso e julgador da época são abordados de forma perfeita. O autor Marcus Borges Siani toca nestes temas de maneira sutil, delicada e sem vulgaridade; até um leitor mais conservador conseguiria consumir o conto e dificilmente não o acharia agradável. O narrador não escolhe lado, e deixa para o público escolher quem está certo. O conto é o ponto alto do livro, principalmente por  conter um drama tocante exposto com uma sensibilidade ímpar.

    A Esquadra Fantasma: Davi Gonzalez usa seu conto para discutir o belicismo e a erotização da figura do homem fardado, além de tratar também do anseio do soldado pela Guerra. A história corre em paralelo com a Primeira Grande Guerra Mundial.

    Investigação Profunda: começa com o depoimento em primeira pessoa de uma mulher, nada afeita aos hábitos puritanos da Inglaterra na Era Vitoriana. A protagonista do conto de João Norberto é uma detetive particular que investiga o sumiço de uma prostituta. Seus cenários são clubes de swing, casas de burlescos e quartos de motéis mofados. A temática abrange desde a rotina sexual dos escravos britânicos até a repressão dos desejos carnais femininos.

    O Balanço das Águas: impressionante como Coral consegue atingir o leitor com tão poucas palavras e tão poucas ações. Mesmo sem haver nenhum contato físico entre os personagens, esta certamente é história mais sensual da coletânea. Além dos méritos citados, a autora aborda e critica de maneira contundente a demonização da faceta sexual feminina.

    Reanimatrix: flertando com o bizarro, Daniel Dutra toma emprestado elementos fantásticos Mary Shelley. Ultrapassa as leis da natureza, da ética e da moral, usando como ícone a necrofilia, a vida após a morte e algumas formas de relação sexual marginalizadas por grande parte da sociedade. O conto é um dos mais bem escritos e não é de mau gosto, mesmo abordando tais temáticas. Erótica Steampunk é organizado por Tatiana Ruiz –  também escritora – e foi lançado em 2013 pela Editora Ornitorrinco.

  • Resenha | Batman: Gotham City 1889

    Resenha | Batman: Gotham City 1889

    batman-gotham-city-1889

    Gotham City 1889 foi lançada pela editora Abril em 1990, se tornando a primeira história publicada pelo selo Elseworlds (Túnel do Tempo), conhecido por colocar seus personagens clássicos em outras realidades. E que personagem melhor do que Batman para inaugurar essas histórias? Ainda mais se tratando de uma trama ambientada na Inglaterra Vitoriana que trouxe como vilão ninguém menos que o maior serial-killer que o mundo já teve: Jack, o Estripador. Por que não colocar o maior detetive do mundo para enfrentá-lo?

    Essa foi a ideia de Brian Augustyn, roteirista de 1889, ao desenvolver essa história. Apesar do argumentoter potencial para se tornar extraordinário, o roteiro poderia ter se utilizado melhor de fontes do universo policial literário como Conan Doyle, Allan Poe, Simenon ou Agatha Christie para melhor compô-la, ainda assim Augustyn consegue escrever uma plot “redonda”, com um ótimo argumento e colocando o Homem-Morcego em um ambiente propício para suas histórias investigativas, ainda que não a desenvolva com todo o potencial que merecia.

    A trama relata um período logo após os assassinatos cometidos por “Jack”, o serial killer assombrou Londres em 1988 com seus assassinatos, e que após sair impune de todos eles decide buscar outro local para cometer suas atrocidades cruzando o Atlântico, onde encontra Gotham City. Uma cidade decadente, o cenário perfeito para sua sede por sangue e vísceras.

    No mesmo ano, 1889, conhecemos uma figura mítica que se veste como um morcego e se torna o alvo dos noticiários junto com o assassino. A grande sacada do roteiro é justamente essa, traçar uma analogia entre essas figuras e como os habitantes de Gotham e a imprensa os vê, já que ambos são confundidos como uma única figura. Não demora muito para que inocentes sejam colocados no meio deste embate.

    Temos um roteiro simples mas muito bem amarrado por Brian Augustyn, que além de tudo inunda o roteiro de influências steampunk, da própria mitologia do morcegão e da época em que foi ambientada, o que só ajuda a enriquecer a obra.

    E o que falar da arte?

    Mike Mignola, ainda um iniciante no mercado de quadrinhos mas já mostrando a que veio, faz um trabalho gráfico de elevar esta HQ a um novo patamar, que sem dúvida seria muito inferior sem a narrativa visual dele. Para os leitores de comics, não tem quem não conheça o traço de Mignola hoje em dia, mas na época o único grande trabalho dele era Odisséia Cósmica, mas com Gotham 1889 foi onde o devido reconhecimento chegou. A ambientação da história colabora e muito para Mignola deixar sua assinatura soturna com seus traços firmes e composição sóbria de seus personagens e da arquitetura gótica de Gotham. É claro que seu trabalho não seria o mesmo sem a arte-final de Craig Russel e as cores de David Hornung, que deixam aquela “cereja no bolo”, abusando de tons frios em toda HQ, casando perfeitamente com o estilo do desenhista.

    Batman parece estar em seu habitat natural, e ao ler a HQ chegamos a pensar se ele não deveria continuar no século 19 em vez dos tempos atuais. A combinação do personagem, tempo em que vive e a própria cidade é tão forte, que as suas histórias atuais simplesmente deixam de fazer sentido se comparadas (essa é a hora em que as pedras são jogadas) com a ambientação de 1889.

    Um ponto que deve ser comentado é a tradução da história, já que enquanto lá fora a obra foi lançada como Gaslight, traduzindo seria ”à luz de gás”, e por aqui chegou como Gotham City 1889. A tradução não é ruim, mas perde outra sutileza que a obra teria, Gaslight é como são conhecidos alguns romances do gênero Steampunk, e apesar de não ser uma história que faz referência direta a essa vertente (pois não temos uma tecnologia típica do gênero na obra), toda a ambientação típica está lá, e não podemos esquecer que sua continuação Batman: Mestre do Futuro já bebe 100% nessa fonte, mas isto é outra estória.

    Se toda série Elseworlds tivesse acertado como aqui, estaríamos repletos de boas histórias, uma pena que nem sempre temos artistas talentosos como é o caso de 1889.