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  • Resenha | Silas

    Resenha | Silas

    Em Salto, Rapha Pinheiro apresentou ao público um primeiro vislumbre da cidade subterrânea de Intos, destacando a coragem e o ímpeto do jovem Nü, que se impôs diante das mentiras e desmandos que mantém o Barão no controle de toda a população.

    Se colocando em um papel de arauto da verdade, após descobrir que o mundo da superfície é seguro e o povo tem vivido e morrido em meio às claustrofóbicas paredes das cavernas, Nü parte com Jules e Mae, frustrado por não conseguir convencer a população acerca da vilania do líder da cidade, mas não sem tocar ao menos uma pessoa, o misterioso capitão da polícia de Intos, Silas.

    Nesse spin-off, Pinheiro se propõe a contar a vida do silencioso e enigmático personagem, em paralelo com a trajetória de Nü, narrada em Salto. Com precisão, o quadrinista mostra a sofrida vida de Silas, que desde pequeno se viu sozinho, após um terrível e misterioso acidente, precisando de uma engenhosa armadura para conseguir sobreviver na cidade.

    Criado pelo Barão, Silas cresceu e se destacou vivendo isolado das pessoas, sem demonstrar emoções nem quaisquer preocupações que não tivessem relação com sua atuação profissional. Intransigente e impiedoso, Silas passa por uma crise de consciência após ser interpelado por um beberrão na rua, e posteriormente conhecer Maud Rockwell.

    Na idosa, também afligida por um acidente durante a infância, Silas encontra uma figura materna, e começa a repensar suas atitudes e sua devoção cega ao Barão, enquanto surge na cidade o burburinho resultante das aventuras de Nü. Tendo de conviver com a tragédia da perda e com sua consciência lhe mostrando que há algo de errado na história que vem lhe sendo contada ao longo dos anos, Silas parte para descobrir a verdade, o que resulta nos eventos mostrados em Salto, e nos leva ao confronto entre o capitão arrependido e seu mentor corrompido.

    De forma inventiva, Rapha Pinheiro faz de Silas um complemento para o entendimento de Salto, mostrando facetas da história que não poderiam ser observadas em um primeiro momento, em uma perspectiva unidimensional. Em um recurso típico das séries de TV e do cinema, essa montagem das cenas já vistas anteriormente sob uma outra perspectiva confere requinte para a narrativa.

    Nessa nova HQ, o quadrinista expande os conceitos que apresentou em seu trabalho anterior e fecha algumas pontas, deixando outras em aberto para uma possível – e desejável – continuação, dando conta dos desdobramentos resultantes dos eventos narrados nesse conto sobre escolhas e mudanças de rota.

    Pinheiro demonstra sensibilidade ao construir a personalidade de um personagem que não pode falar, e cujas feições se encontram escondidas por baixo de uma inflexível máscara protetora. Por trás de todo o aparato tecnológico, Silas apresenta complexidades, traumas e valores, demonstrados através de um competente trabalho de composição narrativa por parte do autor.

    Ao não fazer uso do suporte verbal, Silas atua em uma narrativa contada por seus coadjuvantes, o que faz com que estes também precisem ser bem construídos e desenvolvidos, para não soarem rasos e descartáveis. O amadurecimento da escrita de Rapha Pinheiro é flagrante entre Salto e Silas, enquanto a arte continua um ponto de destaque na trama, conduzindo visualmente o leitor por caminhos que as palavras muitas vezes não dão conta de revelar.

    Em relação ao letreiramento dos balões e caixas de texto, a HQ comete alguns deslizes de ordem revisional, mas nada que interfira na experiência de leitura.

    Com Silas, Pinheiro dá mais um passo em seu universo steampunk, tecendo metáforas com o mundo real e dando alma e personalidade para suas criações. Fica a esperança de uma continuação, pois o universo ficcional criado pelo quadrinista ficou ainda mais interessante.

    Publicado pela Avec Editora, Silas conta com 96 páginas em papel couché de boa gramatura e capa cartonada, sem orelhas.

    Compre: Silas.

  • Resenha | Salto

    Resenha | Salto

    Com a chegada de uma terrível e persistente chuva, os habitantes flamejantes de Edos partiram para as cavernas, se estabelecendo e criando a cidade subterrânea de Intos. Durante anos e anos a sociedade se organizou por ali sob a égide do Barão, que alegadamente possibilitou ao povo as condições para que a vida nas profundezas da caverna fossem possíveis.

    Essa “verdade”, amplamente difundida para a população, sempre foi tida como inquestionável, e o poder do Barão permanecia incontestável, até que o tímido e inquieto Nü, o único rapaz azul no meio de uma cidade povoada por pessoas laranja, começa a desconfiar de que há algo de estranho no ar, e decide investigar. Saltando por entre os telhados das casas de Intos, o jovem acaba descobrindo detalhes inconvenientes acerca do venerado Barão, e passa a ser perseguido pela cidade.

    Ao fugir dali para preservar sua vida, Nü salta pelos labirínticos caminhos das cavernas, até descobrir a assustadora verdade: o mundo lá fora está normal, sem chuvas, e o Barão tem usado o medo para manter a população sob seu controle durante todos esses anos.

    Partindo para uma jornada de revelação e de contra-ataque diante das mentiras com as quais conviveu durante todos esses anos, Nü se propõe a revelar toda a verdade para a população, mesmo que sua vida seja colocada em risco no processo.

    Em uma releitura interessante e criativa do Mito da Caverna, de Platão, Rapha Pinheiro constrói uma narrativa de aventura calcada em uma estética steampunk, com forte teor de crítica social, em uma abordagem que lembra em alguns momentos a aclamada série Bone, de Jeff Smith.

    Com grande domínio da narrativa visual, o quadrinista carioca investe em angulações ousadas e opta por um enquadramento dinâmico, alternando entre planos fechados e panorâmicos, dando solidez e identidade para o universo que criou. O uso de cores digitais acrescenta em muito a esse senso de identificação e pertencimento da obra, chamando a atenção em diversos momentos pelo contraste entre as cabeças flamejantes dos habitantes de Intos e as paredes escuras das cavernas. Os personagens apresentam carisma e expressividade marcante, todos bem caracterizados e distintos em cena.

    Apostando em diagramações inteligentes, contando com rimas visuais e jogos de sentido através da relação entre forma e conteúdo, Rapha Pinheiro dá consistência e profundidade para a angústia de um Nü, já consciente da verdade, que se vê impotente e frustrado diante da letargia e do medo que fazem com que a mentira do Barão se torne mais confortável para a população do que o inexorável peso da verdade.

    Com um roteiro irregular, mas bem amarrado, e uma arte muito interessante, a obra derrapa ligeiramente em suas primeiras páginas, no que se refere à naturalidade do texto. Em um primeiro momento, as conversas soam um pouco artificiais e expositivas, mas logo esse desalinho se ajeita e a trama encontra seu equilíbrio entre texto e arte, comungando os dois eixos da narrativa gráfica de forma coesa e coerente dentro da proposta narrativa.

    Com Salto, Rapha Pinheiro apresenta uma história bem planejada e executada, uma metáfora universal com soluções interessantes em sua narrativa visual e apenas algumas inconsistências de roteiro, mas nenhum problema que seja realmente digno de nota.

    O encerramento, que inicialmente pode soar apressado para muitos, acaba por ser o fechamento ideal para um conto sobre insurgência e indignação diante das mazelas que acometem o mundo diariamente.

    A HQ foi publicada no Brasil pela Avec Editora, em 2017, em capa cartão e com 96 páginas em papel couché de boa gramatura.

    Compre: Salto.

  • Resenha | O Coração do Cão Negro

    Resenha | O Coração do Cão Negro

    Quem não curte uma boa história épica e medieval no melhor estilo Game of Thrones e Conan? O volume 1 de O Coração do Cão Negro, da Avec Editora, certamente é para fazer quem não gosta do gênero se hipnotizar nas aventuras do mercenário errante Anrath. Na Irlanda de 1022 depois de Cristo, a magia e o fantástico ainda é tão presente quanto a montaria e a espada de nosso guerreiro gaélico e criado pelos vikings. Guerreiro este moldado pelas tragédias, longe de ser nobre a ponto de ser um herói, e obrigado a fugir após salvar o amor de sua vida das mãos de um tirano que lhe jurou vingança, e horrores piores.

    Aqui, para iniciar a trama à frente de toda uma mitologia criada pelos criativos e inteligentes César Alcázar e Fred Rubim, uma dupla de gaúchos que pedem para sua criação virar um filme ou série no melhor estilo do (superestimado) fenômeno The Witcher, seguimos os passos do destemido Anrath, aquele que busca por um amuleto que conduz seu portador a rota de um esplendoroso tesouro, resguardado por terríveis forças muito além, em todo seu poder, do intelecto e forças humanas. Nisso, Anrath se envolve num culto de sacrifício aos deuses, ganância sobre-humana e vingança extrema, numa jornada repleta de reviravoltas em que ninguém está a salvo.

    Tanto Alcázar quanto Rubim percebem o enorme potencial criativo de sua ideia, seu mundo e seus elementos icônicos, e exploram essa fantasia histórica com sabedoria e a paixão dignas de autores que prezam pela qualidade da obra, acima de tudo. Valendo-se então de muitas referências, cria-se em O Coração do Cão Negro uma realidade medieval e europeia própria, adoravelmente instigante cujos dilemas e conflitos violentos estão acima do bem e do mal, acima do mundano, e aquém numa primeira leitura a valores que podem salvar o homem dele mesmo – amor, compaixão, senso de comunidade, etc. Tal barbárie dá o tom nestas páginas de traição, e selvageria, e nisso, pode-se ver relances de uma humanidade presa em batalhas sem fim.

    Os traços e as cores aqui nos mergulham num conto de proporções épicas e sombrias, em que nada é mais valioso que a lâmina de uma espada. Anrath e sua amada, ainda vivos e dependentes um do outro, descobrem que devem desconfiar de tudo e todos, e estarem abertos a entender que, as vezes, é de quem menos esperamos que vem a ajuda mais forte, e sincera. A trama deste primeiro volume de O Coração do Cão Negro é bastante simplista, mas acerta em cheio em despertar a nossa sede de voltarmos a esta realidade que, de original, nos oferece uma visão sádica e um romantismo trágico a uma era em que a paz ainda se fazia como um conceito desconhecido, mas talvez, até nos corações mais rubros e peçonhentos, almejado por todos.

    Compre: O Coração do Cão Negro.

  • Resenha | Alena

    Resenha | Alena

    O mais legal dos quadrinhos, de uma forma talvez até mais acentuada que o cinema, devido toda a expressividade estática que os quadrinhos gráficos oferecem aos nossos olhos, é como essa mídia consegue acomodar em toda sua linguagem e glória os mais diversos gêneros em suas páginas. Alena está ai para provar isso, sendo nada mais que uma história de terror romântica no melhor estilo de Carrie: A Estranha, do superestimado Stephen King. É a adolescência começando a provar, de forma surreal e sangrenta, os dramas da vida adulta através dos olhos de uma jovem, assombrada e terrivelmente empoderada pelo amor de sua vida.

    Alena nunca superou a morte de sua namorada, Josefin. Um amor que nunca se foi, sendo uma sombra presente em todos os momentos mais particulares ou sociais da pobre Alena. Assim, o amor é visto como um fantasma, o brilho que restou de uma estrela já falecida. Uma vez que o amor verdadeiro nunca acaba, Alena é um conto de uma colegial cujo passado semi encarnado a obriga a fazer coisas tenebrosas, em especial, viver no macabro e assassinar todas as pessoas que não a deixam em paz por ela ser tão introvertida, traumatizada, e lésbica – características que, social e infelizmente, pesam nos passos de qualquer um.

    É claro que a jovem e tímida Alena é atormentada por suas colegas insuportáveis de escola, que a querem estuprada e humilhada diante de todo mundo – chegando a trancá-la com um garoto para “virar mulher”. Em oito capítulos, a publicação da Avec Editora ilustra com total intensidade o peso do preconceito nas memórias e nas ações de alguém que não é considerado normal, sobrevivendo entre pessoas sempre prontas a infernizar quem não se parece com elas. Kim W. Andersson, autor também da ótima série Love Hurts, de 2009 (ainda não publicada no Brasil), aproveita seu melhor trabalho gráfico para nos chocar em um conto de justiça, e injustiça, banhado no sangue de adolescentes…

    … e puro instinto de vingança, toda vez que atestamos o contato sobrenatural de Josefin, com “sua” perturbada Alena. Como um anjo da guarda as avessas em seu comportamento, Josefin influencia sua namorada para cometer as maiores atrocidades contra quem nunca as deixaram ser feliz, fazendo-as pagar entre facas e tesouras, entre lágrimas de saudade e lágrimas de rancor. Andersson é o tipo de autor que não poupa seus personagens, e joga a todos num inferno de ações e danação delicioso de se acompanhar, também devido suas ótimas ilustrações e o dinamismo da narrativa. O amor machuca, com certeza, e em Alena ele cumpre o seu papel das maneiras mais diversas e visualmente chocantes possíveis.

    Compre: Alena.

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  • Resenha | Carnívora

    Resenha | Carnívora

    Há algo de muito errado acontecendo no Complexo da Caveira. Estranhos relatos tem assombrado o morro carioca, e de alguma maneira essas histórias se relacionam com o sequestro da jovem Adriana Lambert. Em busca de respostas sobre sua noiva desaparecida, o esquentado policial civil Carlos Ferraz se envolve em uma série de problemas, ao passo em que a delegada adjunta Jéssica Melo, novata no departamento, se propõe a buscar a solução para o caso ao seu modo, sem saber que está se enfiando em uma ocorrência de cunho sobrenatural.

    De autoria de Péricles Júnior, Carnívora se situa entre a narrativa policial e o terror, se construindo de forma metarreferencial e de maneira um tanto quanto descoordenada em seus atos. O enredo da HQ é relativamente bem elaborado, mas não acompanha o alto nível da arte, penando com diálogos engessados e certa confusão no enfoque narrativo. A certa altura, não é possível dizer quem protagoniza a história, tampouco que se trata de uma trama contada a partir de dois pontos de vista. A sucessão dos acontecimentos apresenta um encadeamento de cenas confuso e caótico, transitando pela narrativa sem muito apego ao desenvolvimento real dos personagens.

    O aspecto policial é bem fundamentado, mesmo com a questão supracitada dos diálogos antinaturais, estabelecendo uma dinâmica de equipe padronizada e relativamente harmônica. Quando se embrenha no terror é que a trama escorrega, visto que o gore existente nas cenas em que as criaturas devoram pedaços das pessoas acaba sendo prejudicado pela utilização da arte em preto e branco. Além da dimensão visual, a explicação para o surgimento da ameaça sobrenatural incorre em alguns estereótipos religiosos e titubeia ao pontuar a origem do fenômeno, a existência ou não de magia e da motivação envolvida.

    As soluções do autor para encerrar a obra são corajosas e acertadas, visto que a história encontra maior fluidez quando centrada em Jéssica, e não em Carlos. Adriana, contudo, é pouco notada, sem que a personagem fosse minimamente trabalhada ao longo da história, e sua presença na capa acaba funcionando mais para fins estéticos do que para qualquer outra coisa. A história é envolvente e bem contada, ainda que cause certo incômodo nas transições de cenas em alguns momentos. A arte de Péricles Júnior é excepcional para ambientar de forma competente a narrativa, encontrando grande força em sua expressividade, e o trabalho possibilita o vislumbre de mudanças promissoras para os futuros trabalhos do autor.

    O quadrinho, publicado pela Avec Editora, conta com capa cartão e papel de excelente gramatura, potencializando o nanquim do quadrinista. A HQ apresenta alguns problemas em relação à revisão textual, mas nada que prejudique a experiência de leitura em suas 120 páginas.

    Compre: Carnívora.

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  • Entrevista | Jorge Valpaços, autor de “Pesadelos Terríveis”

    Entrevista | Jorge Valpaços, autor de “Pesadelos Terríveis”

    Jorge Valpaços é o autor de Pesadelos Terríveis, RPG de horror baseado na graphic novel Beladona. O Vortex Cultural conversou com o autor, e falamos sobre seus projetos, o mercado de RPGs e lançamentos futuros.

    Antes de começar, uma dúvida que não me sai da cabeça: por que o título Pesadelos Terríveis, e não apenas Beladona RPG?

    Olá amigos, em primeiro lugar é um prazer trocar ideias com vocês do Vortex Cultural. Muito bom começarmos com essa pergunta. A escolha do título se relaciona ao conceito em torno do projeto, visando ser algo mais amplo que o universo em torno dos quadrinhos. Pesadelos Terríveis trata do universo expandido da HQ Beladona. Em Beladona há a história de Samantha, porém, ao lado da narrativa se constrói um universo ficcional com alguns conceitos-chaves que sustentam a relação com o sobrenatural, sendo possível contar diferentes histórias seguindo as premissas criadas na narrativa de Ana Recalde e Denis Mello. Pesadelos Terríveis (que inclusive é parte da vinheta das primeiras páginas da HQ), encerra enquanto título o conceito de proporcionar histórias em quaisquer cenários, bastando que haja sonhadores, medo, loucura e, obviamente, Pesadelos Terríveis.

    Pesadelos Terríveis não é seu primeiro trabalho com RPG. Conte-nos sobre sua trajetória como game designer.

    Eu integro um grupo de produção de jogos chamado Lampião Game Studio. O primeiro título com publicação editorial foi em parceria com o grande amigo Rafão Araújo, chamado Déloyal. Trata-se de um jogo centrado na experiência de busca pela Liberdade em um território invadido, no qual os jogadores interpretam membros de uma Resistência. Esse jogo foi publicado pela editora Pensamento Coletivo por meio de um financiamento coletivo bem-sucedido. Porém, antes deste título, já esboçava produções em torno de jogos de forma amadora. Paulatinamente, estudei (e ainda estudo) elementos em torno da criação de jogos e me desafio a cada publicação.

    Temos, felizmente, a rotina de criação de diversos títulos, sendo muitos gratuitos sob o selo do Lampião Game Studio. Um elemento que sempre está em minha mente, para além da acessibilidade dos jogos e da clareza ao comunicar a experiência pretendida, é o diálogo com os jogadores, visando incorporar críticas, boas práticas, ouvir o que é proposto e, sobretudo, fornecer material de suporte contínuo aos títulos publicados. Não é em vão que temos aventuras e materiais de apoio para todos os nossos jogos, e isto já se faz presente em Pesadelos Terríveis. Basta acompanhar o blog da Editora Avec e do Lampião Game Studio para baixar estes materiais.

    O que levou à produção de um RPG baseado na graphic novel Beladona?

    Eu sou um fã de quadrinhos de terror e um grande fã das obras da Ana Recalde. Soma-se a isso o traço marcante e inconfundível de Denis Mello. Quando recebi o convite dos autores para produzir o jogo, confesso que houve um misto de euforia e medo, afinal eu não queria estragar tudo. Sim, fiquei bem preocupado no início. Mas foi bom, não é mesmo? Isso me motivou a seguir com muita cautela, buscando fazer o melhor possível. 

    E por jogar RPGs de terror há bastante tempo, tinha de propor algo que fosse simples, adequado a um universo único e que não repetisse a proposta de outros jogos. Foi um pouco complicado o processo, e posso dizer que tive Pesadelos Terríveis criando o jogo (risos). Mas esse desafio foi muito importante para mim, e para repensar a própria relação em torno de produtos culturais nacionais. Temos em Pesadelos Terríveis um incrível ciclo transmídia. Beladona se iniciou como webcomic, houve um financiamento coletivo exitoso, prêmios, adaptação para teatro, mais premiações e um jogo. Tudo isso, com apoio do público e da crítica especializada, demonstrando que iniciativas nacionais, quando feitas com esmero, carinho e atenção, são reconhecidas.

    Como foi o processo criativo durante o desenvolvimento do jogo? Você manteve contato frequente com a Ana (Recalde, autora da graphic novel) e o Denis (Mello, ilustrador)? Eles ajudaram com ideias, trocando de lugar como autores – assim como os Sonhadores do jogo – ou cada um teve seu trabalho bem delimitado?

    O processo foi intenso. Todos nós conversamos bastante durante o processo, havendo feedbacks em cada teste, em cada capítulo que avançava. Foi incrível ter ilustrações novas e exclusivas ao RPG criadas pelo Denis, casando perfeitamente com a proposta do jogo. O mesmo pode ser dito com a produção ficcional da Ana, que narrou comigo o playtest final do jogo, com os apoiadores do financiamento coletivo. A sinergia foi extremamente positiva! Eu trabalhei com toda a equipe, e incluo Vitor Coelho que fez uma diagramação incrível e Artur Vecchi, um excelente editor, nessa trupe!

    Pesadelos Terríveis é um jogo muito mais baseado em narrativa do que regras – tanto que não existe nenhuma tabela para geração de traços, traumas, medos e poderes. Ele também coloca o jogador no lugar do mestre em várias situações. Quais as principais diferenças que o público irá encontrar nele, em relação a outros jogos narrativos?

    Opa, essa é uma questão um pouco complexa. Mas é muito bom abrir a caixa do design. Está sendo uma ótima entrevista, pois é algo muito bacana poder conversar sobre esses temas. Vou tentar explicar com cautela, mas confesso que não é algo muito simples. Vamos nessa?

    Tenho a discordar da afirmação que Pesadelos Terríveis não seja um jogo com um peso sobre suas regras. Na verdade há até um bom número de regras, mas o propósito delas é um tanto distinto do que se apresenta em outros jogos. No lugar de um sucesso em um teste determinar o cumprimento de uma tarefa, ele concede o direito narrativo de encerrar uma Cena. O desenho das regras de Pesadelos Terríveis não se dá no sistema mecânico em torno do lance de dados, mas no método que é proposto para o desencadeamento da narrativa. Podemos dizer que o sistema é todo orientado à condução do fluxo narrativo, gerando suspeição e incerteza aos jogadores, estimulando-os a usar todos os seus recursos para Seguir ou Fugir (como em um Conto de Terror), ainda que isso os exponha aos Medos.

    Uma diferença que se apresenta a outros jogos é a presença de um controlador de fluxo e intensidade da narrativa (os Riscos que são atrelados às Cenas pelo Narrador e ocultados dos jogadores). E, em torno de cada Cena temos uma resolução de Conflitos por meio do acionamento de elementos que atestem a coerência das partes do Conflito em face às intenções propostas. Assim sendo, ao jogar Pesadelos Terríveis, não teremos números nas fichas/planilhas que serão modificadores, mas frases e elementos narrativos que poderão ser utilizados como recursos pelos jogadores. Nesse sentido, a relação entre a personagem com a as intenções propostas pelo jogador (seu ancoramento ficcional), determina a margem de ação em cada Cena enquadrada.

    Ah, e quanto às tabelas pré-construídas de traços, traumas, etc., a ideia é justamente buscar a coerência ficcional ao criar um Sonhador. Como cada protagonista é um alicerce da história de Nosso Mundo (pois trata-se de um jogo de horror pessoal, com enfoque sobrenatural metafórico à psiquê humana), a apresentação de elementos constitutivos de sua existência tornaria a criação de protagonistas despersonalizada, ainda que seja possível tomar um destes elementos como gerador para a história da personagem. Por exemplo, você pode criar uma personagem após consultar uma lista de Medos. E essa lista de Medos é facilmente acessível, sendo um dos materiais de suporte gratuito que disponibilizaremos. 

    Grande parte do horror de Pesadelos Terríveis se dá devido ao contato presencial, olho no olho, entre os jogadores. Com o crescimento das redes sociais e da tecnologia, muitos jogadores de cidades, estados e até países diferentes encontraram meios de jogar de forma não-presencial. Existem planos para levar Beladona para plataformas digitais como o Roll20? É possível manter o clima de horror do jogo em formas não-presenciais?

    O sistema de jogo que faz com que haja Riscos ocultos em cada Cena, a possibilidade da aquisição de Traumas Psicológicos ao usar Poderes e o próprio sistema de progressão (horizontal, baseado em escolhas que podem afundar seu Sonhador em uma espiral de Medo e Loucura) são elementos que tornam a experiência de terror intrínseca ao sistema de jogo, sendo experienciado mesmo em jogos não-presenciais. Durante o processo de desenvolvimento do jogo, foram marcadas sessões não-presenciais com os apoiadores da HQ Beladona justamente para testar esses elementos. O desafio de design era justamente este: muito se fala sobre a questão do “olho no olho” para a criação da experiência de medo em jogos de RPG. Mas isso se deve ao design do jogo ou à performance do condutor do jogo? Criar um jogo que potencialize o temor cada vez que os dados fossem tomados foi uma meta de design, sendo o próprio lance de dados algo que não deveria ser banalizado. Foi justamente por isso que, para além de playtests presenciais, Pesadelos Terríveis foi testado e apurado em jogos apenas por áudio, por áudio e vídeo e até via texto.

    Então, acho que sim, é possível manter o clima de horror em jogos não-presenciais, sobretudo quando houver regras coerentes à proposta, predisposição dos participantes e compreensão pelo Narrador. E sobre levá-lo ao Roll20, uma vez que a planilha é basicamente textual e as paradas de dados são definidas por atalhos simples, já presentes no aplicativo (por exemplo, /roll 2d6k1 seria o atalho para o lance de 2 dados de Traços em Pesadelos Terríveis), a portabilidade é tão simples que já podemos dizer que está feita. 😉

    O gênero horror já foi muito popular no país, principalmente nos anos 90, mas tem perdido espaço nas últimas quase duas décadas após a 3ª edição de Dungeons & Dragons. Com o crescente mercado de RPGs nacionais, Pesadelos Terríveis preencheria essa lacuna?

    Não sei ao certo se o gênero de horror tenha perdido espaço. Pensando em jogos independentes nacionais publicados, por exemplo, temos Abismo Infinito e Terra Devastada, de John Bogéa e A Fita, de Diego Astaurete. São três jogos narrativos de horror com temáticas bem diferentes que foram publicados com sucesso. E há toda a apreensão da comunidade em torno de Belregard: Cinzas de um Mundo Derrotado, título de terror medieval de Jefferson Neves e Rafão Araujo a ser publicado em breve.

    Nestes últimos anos, tivemos a publicação de Chamado de Cthulhu, Rastro de Cthulhu, Kuro, o Compêndio de Horror e o cenário Accursed de Savage Worlds, apenas para comentar os títulos de grandes editoras no Brasil nos últimos anos. E ainda há uma grande comunidade que joga jogos que não foram publicados no Brasil ou tiveram sua publicação descontinuada, sendo presentes até os dias de hoje com grande força, em eventos nacionais (cito o CofD Day – Chronicle of Darkness Day – que ocorre simultaneamente em cidades por todo o Brasil.

    Neste sentido, não creio que Pesadelos Terríveis preencha uma lacuna ou dispute mercado. Temos títulos excelentes e acho que muitos dos jogadores de outros jogos de terror encontrarão uma proposta nova em Pesadelos Terríveis e quem nunca jogou jogos de terror ou ainda quem nunca jogou RPG poderá ter esse como seu jogo inicial. E esse diálogo, essa troca entre diversas experiências possíveis é extremamente positiva para a formação e sustentação da comunidade de jogos com essa temática.

    Existem planos para mais livros ligados ao cenário, como suplementos ou “aventuras” prontas? Quais seus próximos projetos para o RPG nacional?

    Sim! E isso já está acontecendo. Felizmente teremos muito material de suporte aos jogos, com geradores, ganchos, suplementos, etc. E tudo isso é gratuito, basta acessar as páginas do Lampião Game Studio e da Editora Avec. Nos próximos dias, por exemplo, teremos uma adaptação completa para um cenário que… hum… vai agradar bastante a comunidade gamer (mas não posso falar muito por enquanto, rs).

    Quanto aos próximos projetos, para além da dedicação aos títulos do Lampião (houve há pouco a publicação de Causos RPG, um RPG sobre lendas urbanas e folclóricas nacionais), e ao suporte aos jogos, como Déloyal, desenvolvo nesse momento dois jogos. Um deles chama-se Duello (junto ao Diego Bernard e ao Rafão Araújo), e é um jogo ágil da linha independente do Lampião sobre a jornada de autodescobrimento de combatentes.

    O segundo projeto tem um fôlego maior e é desenvolvido em conjunto ao amigo Bruno Prosaiko, um jogo no qual os protagonistas são membros de uma agência de investigação que trata de fenômenos sobrenaturais. Arquivos Paranormais (este jogo) será modular, então o grupo de jogo criará a Agência, podendo emular jogos mais cômicos e heroicos com uma experiência como MIB – Homens de Preto, algo conspiratório como Arquivo X ou ainda um flerte sobrenatural mais aberto, como proposto em Hellblazer, e é claro, o diálogo é intenso com obras nacionais, como Guanabara Real, de André Cordenonsi, Nikelen Witter e Enéias Tavares.

    Muito obrigado pelo espaço e sucesso a todos do Vortex Cultural!

    O Vortex Cultural agradece a toda equipe da AVEC Editora pela oportunidade e especialmente ao autor pela atenção!

  • Resenha | Pesadelos Terríveis – Jorge Valpaços

    Resenha | Pesadelos Terríveis – Jorge Valpaços

    Roleplaying Game ou simplesmente RPG é uma forma moderna de se contar histórias de modo coletivo que surgiu na década de 1970 inspirado em boardgames de fantasia medieval. De lá para cá, muitos RPGs surgiram, com sistemas de regras e ambientações das mais variadas. Assim, qualquer tipo de história pode ser contada durante o jogo, desde a fantasia medieval até a ficção científica. Um dos gêneros mais populares de RPG no Brasil nos anos 1990 foi o chamado “horror gótico”, que perdeu seu espaço no início do século para o Sistema D20 – do mundialmente famoso Dungeons & Dragons. Com a hegemonia dos sistemas baseados em D&D, o horror e a sua forma narrativa com menos regras e jogadas de dados foi aos poucos sumindo do mercado nacional. O mercado de RPGs  no Brasil, ao contrário do que algumas pessoas chegaram a preconizar anos atrás, apresenta hoje espaço para a mais variada gama de títulos. Com a falta de traduções dos maiores RPGs do mundo (como Dungeons & Dragons), editoras menores preencheram o vácuo deixado e proliferaram títulos cada vez melhores. Mas os títulos de horror ainda são escassos frente à variada gama de RPGs de aventura.

    Ocupando esse espaço, a AVEC Editora lança Pesadelos Terríveis, de Jorge Valpaços, um jogo narrativo muito diferente dos RPGs mais populares do momento. Resgatando a atmosfera dos jogos de “horror pessoal” dos anos 1990, Pesadelos Terríveis não trata de aventureiros em busca de fama e glória, nem de heróis lutando pelo que é certo. Esse é um jogo onde as lutas são pessoais, intimistas e quase sempre impossíveis de se vencer. Os jogadores são convidados a criar personagens que enfrentarão seus próprios pesadelos, sem nenhuma chance de vitória gloriosa.

    Baseado na HQ Beladona, de Ana Recalde e Denis Mello, o livro expande o universo da graphic novel de uma forma diferente do que o habitual: seus cenários e personagens não são exatamente utilizados no jogo. Ao contrário, os jogadores são encorajados a criarem suas próprias narrativas baseado na história de Samantha, mas sem qualquer ligação além disso. Embora o autor deixe claro no início do livro que é possível jogá-lo sem conhecer a história em quadrinhos, durante a leitura fica evidente que é, sim, importante conhecer o universo. Aliás, o título presente na ficha de personagem é “Beladona: Pesadelos Terríveis”, o que nos faz questionar o motivo de não o ser na capa do livro.

    O jogo narrativo pode contar com apenas dois jogadores, sendo um o narrador e o outro o sonhador, embora mais jogadores possam participar como sonhadores também. Juntos, narrador e sonhadores irão construir a narrativa, criar o cenário e desenvolver o conto. Os personagens devem ser pensados de forma a terem um passado, um presente e uma aspiração para o futuro, com seus traços e traumas (psicológicos ou físicos) bem definidos. A ficha de personagem é muito mais do que uma simples tabela com números a preencher: aqui o jogador deve usar sua imaginação e descrever suas características. Não existem tabelas ou listas de traços, traumas ou poderes: os jogadores e o narrador devem entrar em comum acordo sobre sua criação. Por outro lado, existem caixas de texto exemplificando cada detalhe da criação de personagens, resolução de conflitos e inclusive bastidores da criação das regras. As jogadas de dados são muito raras e servem para decidir um “desafio”, no qual o jogador pode controlar a própria trama do conto caso ganhe, assumindo por alguns momentos o papel do narrador.

    A maior parte do livro trata de descrever como funciona o Mundo dos Pesadelos e sua conexão com o Nosso Mundo. Os personagens dos jogadores transitam por esses dois universos, tendo diferentes aparências entre eles. Assim, um tímido funcionário público no Nosso Mundo pode ser um ser terrível no Mundo dos Pesadelos. Os temas são bastante pesados, e recomenda-se inclusive o uso de uma “palavra de segurança” caso alguém sinta-se desconfortável demais. Os temas a se abordar são bastante perturbadores e desesperançosos, o que pode ser um problema para quem não está acostumado com jogos narrativos de horror pessoal. Quem gosta do aspecto game do RPG pode também não apreciar Pesadelos Terríveis, já que seu foco está mais voltado para o roleplay, ou seja, mais interpretação e solução de conflitos através de narrativa e imaginação do que regras e rolagens de dados.

    O livro tem belíssimas – e perturbadoras – ilustrações de Denis Mello, mesclando entre aquelas retiradas da HQ e artes originais para o jogo. Sua capa cartonada com reserva de verniz é muito bonita, e o miolo com gramatura maior que o normal para livros do tipo garantem uma excelente qualidade ao material. Contos da autora de Beladona abrem e encerram o volume, garantindo a atmosfera dos pesadelos na mente dos leitores. Entretanto, mesmo com a alta qualidade gráfica, o livro peca em alguns momentos ao confundir jogador e personagem ou ao sugerir que sejam usados traumas pessoais do leitor na narrativa. Essa forma demasiadamente intimista de se jogar pode agravar ainda mais possíveis problemas que um ou outro jogador possa ter e, portanto, deveria ser desencorajada. Um certo distanciamento entre jogador e personagem deve ser necessário em qualquer RPG, até mesmo para evitar problemas de entendimento do jogo pelo público leigo, que no passado já o responsabilizou por bruxaria, satanismo e até mesmo crimes que nunca tiveram real ligação com o hobby. O discernimento é necessário, e vai muito além da classificação indicativa para maiores de 18 anos na capa do livro. Pesadelos Terríveis é um jogo para quem quer testar os limites de seus próprios medos.

    Compre: Pesadelos Terríveis – Jorge Valpaços.