Tag: Racismo

  • Conheça o Pacificador

    Conheça o Pacificador

    O Pacificador é um personagem da DC Comics, que ganhou notoriedade após o filme O Esquadrão Suicida de James Gunn. O personagem foi criado por Joe Gill e Pat Boyette, na editora Charlton Comics, em novembro de 1966, na revista Fightin’ 5 #40.

    Seu alter-ego, é Christopher Smith, e ele quase fez parte da graphic novel Watchmen, na época em que Alan Moore ainda desejava usar os personagens da Charlton para contar sua história. Com a decisão da DC em preserva-los, seu papel coube ao Comediante, que era consideravelmente mais cínico que Smith, e teve uma boa recepção, não à toa que boa parte da personalidade dele hoje advém do personagem criado por Moore.


    Inicialmente, o Pacificador mantinha um código ético inabalável que usava armas estritamente não letais, embora com o tempo tenha se tornado um vigilante mais violento, disposto a fazer sacrifícios pelo bem maior, fato mostrado no longa de Gunn e aprofundado em sua série. Com o tempo, passou a agir tal qual em sua versão live action, como um homem perturbado, com graves questões mentais — isso pode ser observado na minissérie em 4 edições Peacemaker, escrita por Paul Kupperberg e desenhada por Tod Smith, lançada em 1988 nos EUA e 1991 no Brasil em DC Especial #06, publicada pela Editora Abril. Essa versão pós-Crise nas Infinitas Terras remodela o personagem após ser reintroduzido no universo DC, com uma conotação política e psicológica maior, tendo em vista que o personagem acredita que sua mente foi distorcida por seu pai abusivo e nazista quando ainda era jovem, e assim, muitas vezes ele é retratado ora como um herói, ora vilão… ou algo no limiar entre essas duas coisas.

    Com a compra Charlton pela DC nos anos oitenta, o Pacificador passa a figurar junto a outros personagens, mas continua ao lado de seus antigos parceiros, como Questão, Besouro Azul e Capitão Átomo — substituídos em Watchmen, respectivamente, por Rorschach, Coruja e Dr. Manhattan.

    Seus poderes e habilidades incluem uma condição e resistência física sobre-humana, tecnologia de voo, um capacete de comunicação high tech que confere habilidades — e variam conforme o gosto do roteirista. Além disso, é especializado em combate corporal, espionagem, tática e estratégia, além de possuir acesso a armas militares avançadas e ser um exímio atirador.

    Chris Smith era filho de um agente nazista que trabalhou nos campos de concentração durante a ocupação da Polônia pelo III Reich. No seriado a produção fez algumas mudanças, para começar ele está vivo e se chama Auggie Smith, interpretado por Robert Patrick, famoso por ser o T-1000 em O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final. Patrick é bastante conhecido nos EUA por seu alinhamento político junto à extrema-direita. Na série, ele recebeu a alcunha de O Dragão Branco, personagem da DC conhecido por ser um terrorista e supremacista branco.


    Gunn optou por uma amálgama. O Dragão Branco nos gibis era William James Heller, sujeito criado por seu avô nazista, depois se tornou um ativista da supremacia ariana, assumiu a alcunha de William Hell, e após brigar com um personagem homônimo, decidiu mudar seu nome, e começou a usar uma armadura vermelha e branca, inspirada nas roupas da Klu Klux Klan, grupo historicamente racista e fascista.

    O Dragão Branco fez parte de alguns grupos de vilões, entre eles o ajuntamento de bandidos nazistas, IV Reich –
    membros como Baronesa Blitzkrieg, Barão Gestapo e Capitão Suástica — e depois no Esquadrão Suicida, onde foi controlado por Amanda Waller e até tentou matá-la. Além de Heller, Daniel Ducannon, vilão do Gavião Negro também utilizou esse nome, mas ao contrário do original, ele tinha poderes pirotécnicos e voava.

    O grupo IV Reich

    O primeiro Pacificador, Christopher Smith, é comumente retratado como insano. Seu capacete além de possuir sensores de presença e outros aparatos, também captura os pensamentos dos fantasmas de quem ele já matou, ao menos é o que acredita o personagem. Na já citada minissérie de 1988, o personagem é enviado para o Vietnã e se mostra como um soldado bastante eficiente, mas tomado pela culpa pelo passado nazista de seu pai.

    Na prática, ele agia como um sujeito que inventava inimigos imaginários, sendo eternamente perseguido, mesmo que somente em sua mente, e essa faceta é muito bem enquadrada por John Cena e pela atmosfera criada pela série de Gunn.

    Apesar de ter claros problemas de conduta, o personagem já fez parte de alguns grupos, como a organização secreta Xeque-Mate, Esquadrão Suicida, Shadow Fighters, L.A.W. (Living Assault Weapons) e League Busters. Além de Smith, outros dois personagens usaram a alcunha de Pacificador, como Mitchel Black, que agiu na época da Crise Infinita, além de outra figura, misteriosa e sem identidade revelada, que assumiu o papel em Justice League International #65, de junho de 1994.

    Curiosidades:

    • O personagem apareceu em Reino do Amanhã, num flashback onde ele, junto aos outros heróis da Charlton, brigam contra o vilão Parasita. Vale perceber a influência de Star Wars, pois seu capacete lembra o de um mandaloriano, estilo Boba Fett. Na história Chris morreu com seus companheiros, quando o Capitão Átomo explodiu;

    • Em algum ponto, ele lideraria um grupo de soldados, chamado Força Pacificadora, que atuaria no Oriente Médio, em busca de “combater o terror”, mas o projeto foi abortado antes mesmo de ser colocado em prática, pelo presidente Gerald Ford;
    • John Cena é o primeiro ator a interpretar o personagem em carne e osso. O ex-lutador de wrestler, famoso por seu carisma e por ter uma trajetória semelhante a Dwayne “The Rock” Johnson parece ter afeiçoado bastante a Smith e seu alter-ego, tanto que assina a produção executiva dessa série;
    • Na série, há participações de alguns personagens da DC, como o já citado Dragão Branco, o mascarado Vigilante, introduzido em novembro de 1941 na revista Action Comics # 42,embora no seriado a versão do Vigilante é segunda, Adrian Chase, personagem introduzido em The New Teen Titans Annual #2 de 1983. Outra participação legal é a do Mestre Judoca, personagem também da Charlton, oriundo Special War Series #4 de novembro 1965;
    • A versão original do personagem pertence à Terra 4 do Multiverso da DC Comics, junto aos outros personagens da Charlton, em PAX Americana, de Grant Morrison e Frank Quitely, podemos acompanhar um pouco desse universo em uma releitura de Watchmen.

  • Crítica | MLK/FBI

    Crítica | MLK/FBI

    MLK/FBI é um documentário de Sam Pollard, diretor conhecido pelo elogiado The Talk: Race in America. Aborda a os arquivos do FBI sobre o reverendo e ativista Martin Luther King, indicando a abordagem completamente parcial e desonesta em cima dessa figura. O filme começa com falas do presidente republicano Ronald Reagan em um discurso bizarro, comentando a historia dos Estados Unidos e as manifestações populares, sobretudo as raciais, como se fossem iguais as batalhas entre bem e mal dos filmes de mocinho que protagonizava quando novo, relegando o papel de vilão aos grupos protestantes de maneira nada sutil.

    É estranho como discursos vindos de classes tradicionalmente tratadas como inferiores são necessariamente associadas a malignidade por parte de figuras de autoridade, mesmo quando o tom da fala é conciliatória como era no discurso de King. O pastor era considerado o negro mais perigoso do país, o homem visto com maior potencial destrutivo para o status quo e o regime de poderes que vigoravam na segunda metade do século XX.

    O filme possui um ritmo um pouco truncado, mas toda a investigação da produção a respeito da paranoia do país e da forma como J. Edgar Hoover lidava com a questão de Luther King ser subversivo é muito bem escrutinada. Na tela se expõem as estranhas de um país que não sabe lidar realmente com as liberdades individuais, embora todo o discurso, para dentro ou fora de suas fronteiras, dê conta dos Estados Unidos como uma pátria que valoriza suas origens democráticas e a liberdade de pensamento e expressão.

    Pollard não tem pudor em mostrar o quão irresponsáveis e injustas foram as autoridades, levantando mentiras contra o pregador, revelando supostas indiscrições, frutos de um reacionarismo tacanho de quem estava no poder em uma época de ebulição e luta de classes. O filme poderia ser mais enérgico, mas de modo algum aliena o espectador.

    Há uma espera, muito justa aliás, para que em 2027 sejam reveladas as fitas originais com os registros da agencia sobre Luther King. Em meio a tantos boatos e fofocas a respeito da vida pessoal de MLK, a obra de Pollard consegue levantar bons indícios de perseguição ao reverendo, que podem inclusive ter influenciado na brevidade de sua trajetória. MLK/FBI é elucidativo e não cai em armadilhas conspiratórias. Além de conversar muito bem com os recentes Judas e o Messias Negro e Os 7 de Chicago, também acrescenta bons temperos aos tempos atuais e as complicadas situações e batalhas travadas contra o reacionarismo que vigora.

  • Crítica | Horror Noire: A Representação Negra no Cinema no Terror

    Crítica | Horror Noire: A Representação Negra no Cinema no Terror

    Muito se discute a respeito da maneira pejorativa com que personagens negros aparecem no cinema, na televisão e nas demais encarnações do audiovisual. Desde a época do cinema antigo,  em que dificilmente havia atores pretos, com brancos interpretando-os utilizando a famigerada black face, ou em séries e novelas dramáticas, em que os atores são escalados para papéis de subserviência ou banditismo, há uma evidente falta de representação real. O intuito de Horror Noire: A Representação Negra no Cinema no Terror é estudar esse fenômeno dentro dos gêneros do horror e terror. Faz uma análise com qualidade e com diversas citações e louvor à figuras históricas do cinema de terror.

    Xavier Burgin, iniciante na direção de longas, começa seu filme em uma sala de cinema, onde coloca personagens dos bastidores do cinema de Hollywood vendo filmes. A escolha para iniciar a conversa foi óbvia: Corra! de Jordan Peele, que representa tudo o que o documentário defende. Uma historia sobre e feito por negros, sobre traumas e medos em comum entre todas as raças. Aos poucos, desenvolve a conversa com fatos consumados e com outros filmes. Entre eles não só filmes do gênero mas também O Nascimento de uma Nação de D.W. Griffith que glorificou a Klux Klu Klan. O roteiro se baseia no livro Horror Noire (publicado aqui pela DarkSide Books) do professor Robin R. Means Coleman e atravessa o trabalho de artistas como Oscar Micheaux e Spencer Williams, artistas que faziam papéis importantes nas produções do gênero mas que eram restritos a papéis estereotipados. Ainda assim, essas participações eram menos problemáticas que outras tantas.

    De fato, no inicio do cinema falado não havia muito espaço para papéis com artistas negros, em grande parte como certa evolução do preconceito ratificado e estabelecido pela obra de Grifith. Os filmes de Monstros da Universal quase não tinham papel para homens e mulheres negras. Exceção a um mago, feiticeiro ou personagem místico, um clichê que ainda permanece no cinema e hoje é conhecido como o Negro Místico. Além desse, o documentário também aborda a questão do Negro Sacrificial, que consiste em um personagem negro disposto a salvar alguém branco.

    Ao mesmo tempo em que associam filmes de monstros gigantes à coloração da pele como algo temido (a exemplo de King Kong de 1933), também se louva A Noite dos Mortos Vivos de George A. Romero, não só pelo papel de protagonista de Duane Jones, mas também por que o terror de perseguição era real e mais universalizante. Assim, Horror Noire reúne participações de outros diretores como Rusty Cundieff (Contos Macabros), Ernest R. Dickerson (Bones), William Crain de (Blacula), e também apresenta participações de atores como Tony Todd, Miguel A. Nuñez, Ken Foree, Rachel True e Keith Todd com bons depoimentos apontando como poderia ser cruel a busca por papéis relevantes, ainda mais após a popularização da blaxploitation.

    O documentário é uma ótima forma de conhecer a historiografia do cinema norte-americano e as histórias de quem sempre foi relegado ou ao limbo ou a pequena importância. Bem como é um catálogo bem explicativo de como era o cinema da segunda metade do século passado abordando o negro. Bergin traça um bom retrato do cinema dos dois últimos séculos e ainda faz um afago emocional ao público, trazendo falas muito sinceras e sentimentais dos entrevistados. É uma reverência a arte que reconhece a representatividade como parte importante da cena mas não confunde isso com qualquer movimento revolucionário. Ao contrário, mostra que é preciso movimentação de pessoas e vontade política para favorecer o povo.

  • Crítica | Uma Noite em Miami…

    Crítica | Uma Noite em Miami…

    “Poder é ter um mundo aonde você pode ser você mesmo.”

    Quatro homens negros numa suíte de hotel, discutindo não só seus papeis na sociedade americana de 1963, mas o seu futuro e os seus valores. Em 2021, os assuntos seriam outros, invocados através de um outro contexto, mas naquela época, no sul repleto de contradições dos Estados Unidos, o impacto igualitário de Martin Luther King ainda não tinha acontecido, e afro descendentes ainda eram obrigados a sentar no final do ônibus, e usar banheiros próprios. É sob essa tensão que Uma Noite em Miami se desdobra, num drama histórico e semibiográfico cujas raízes, profundas, dialogam com Selma, Lágrimas Sobre o Mississipi e, indo aos primórdios das tensões raciais, 12 Anos de Escravidão. É por isso que Malcolm X chama seus três amigos para aquele quarto: as cicatrizes ainda estavam expostas, além do medo de que tudo se repita. De uma outra forma, mas com os mesmos alvos oriundos de ‘Wakanda’.

    Porque a melanina é motivo de discórdia entre os injustos, e Malcolm não deixa ninguém esquecer disso na sua militância, “uma voz solitária”, como ele mesmo admite sem bancar a vítima, e sim o arauto da causa, num poço de confusão, e violência. E esse debate não poderia ser numa hora melhor: enquanto o próprio Muhammad Ali se gaba por ter ganho o título de campeão de peso-pesado mundial, o cantor Sam Cooke tenta em vão animar uma plateia de senhoras brancas que não o aceita, assim como o jogador de basquete Jim Brown, outra vítima de um racismo estrutural, sofrendo com brancos burgueses que não se consideram racistas. Juntos agora entre quatro paredes, esse quarteto apresenta uma amizade inabalável, desde a infância, mas isso não evita que tenham suas verdades e ambições colocadas à prova, nesta longa noite. “Você poderia mover montanhas, irmão”, diz Malcolm a Cooke, em uma cena. Mas Cooke só quer crescer, ser importante, respeitado pela burguesia que o excluí, e no fundo, o enoja.

    Lidando em especial com o tema da conscientização e empatia, a atriz Regina King faz um trabalho notável na direção ao confinar homens diferentes num quarto, e ver o que sai dessa situação com sensibilidade, força e precisão na dinâmica do filme. É gratificante, aliás, perceber como King entende que um close bem dado, na hora certa, rende um grande momento, superior a qualquer diálogo. A atriz faz sua estreia na direção com um drama seguro, coerente, e nem por isso sufocado pela inexperiência da diretora, mas talvez seja a grande habilidade dela em extrair o melhor dos atores, que mais surpreende: o quarteto principal e seus coadjuvantes estão sublimes, com Leslie Odom Jr. encarnando o cantor de soul cheio de talento, e revoltado por não chegar no topo, e Eli Goree, perfeito como o titã do boxe Muhammad Ali, aqui vivendo sua glória de campeão mas contestado pelo seu papel na sociedade enquanto não apenas um homem rico, mas um homem rico e negro. Se King ainda não consegue fazer um tour de force de 2 horas, a peça Uma Noite em Miami é traduzida em cinema com um charme e uma elegância que nos convidam a todo tipo de debate, e revisão.

     

  • Crítica | A Voz Suprema do Blues

    Crítica | A Voz Suprema do Blues

    Em 1927, quando os Estados Unidos ainda nem sonhava com um presidente negro, o capitalismo engatinhava e os afro-americanos ainda provavam o gosto da liberdade, a música unia as comunidades como nenhum outro poder, naquela sociedade. A Voz Suprema do Blues começa sendo um retrato musical deste período, suas tensões e seus costumes no melhor estilo de Uma Cabana no Céu, de 1943, ou o soberbo Carmem Jones, de 1954, mas isso não dura nem 2 minutos – contados no relógio. O diretor George C. Wolfe adapta a peça de teatro de August Wilson com a mesma emoção, potência e inteligência que Joss Whedon comandou a Liga da Justiça de 2017, e alcança a proeza de tornar um conturbado episódio na vida de uma cantora do blues, e sua banda, em um novelão mexicano vazio, sem estilo e sem representatividade alguma, e que parece ter o triplo da duração curta que tem, para dizer o mínimo.

    E se o filme faz Cadillac Records, com a Beyoncé, parecer melhor em suas principais qualidades, o que falar a respeito então? Desde a primeira cena, o filme se atira no colo de Viola Davis, um monstro como a diva sentimental Ma Rainey, e só muda de assento quando o saxofonista de Chadwick Boseman surge para roubar a atenção, em três cenas sob medida para ele ganhar o Oscar. Como é indecente o filme, ou a série que se esconde atrás dos seus atores, ou ainda: um diretor cujo trabalho consiste no brilhantismo do trabalho alheio. A Voz Suprema do Blues é um simulacro de porcelana sobre a época que retrata dentro de um pequeno estúdio de gravadora cheio de artistas com egos super inflados, sem coragem de levantar assuntos polêmicos e fortes que até Dreamgirls teve, pouquíssimas vezes, lá em 2006. Toda a conjuntura política que, percebe-se, está lá e que poderia elevar o filme a patamares de fato relevantes, quase não tem vez aqui. Falta de habilidade, ou talvez de interesse. Covardia.

    Os filmes originais da Netflix sofrem de um problema crônico: não sobrevivem a uma segunda sessão, com exceção de O Irlandês e mais uns dois gatos perdidos – e que não inclui Mank. A Voz Suprema do Blues é o que é, prato raso sem aspecto memorável algum que nos conduza a revisão. Mesmo para os fãs do Pantera Negra, digo, do Boseman, seria melhor selecionar suas cenas individuais e pagar tributo isolado ao show do jovem ator, lenda que foi tão cedo, tal James Dean e Heath Ledger. Para piorar, o projeto não se decide se é cinema ou ainda é teatro, e por via das dúvidas, o diretor acha melhor nos dar um gosto de peça filmada bem morna, bem esquecível. Péssimo. Um pouco de esforço cairia bem, e o resultado não é pior porque os atores entendem isso, e toda a parte técnica, essa sim, segue impecável – figurinos, cenários e mixagem de som. Sobra visual (como é de praxe na Hollywood do século XXI), falta o principal: visão. Direção. Viola Davis precisa escolher filmes melhores.

  • Crítica | Judas e o Messias Negro

    Crítica | Judas e o Messias Negro

    Judas e o Messias Negro é dedo na ferida, sem perder o controle. É fera ferida que não perde seu charme, nem seu brilho quando o bicho pega. Emulando toda a barbárie e o racismo institucional na sociedade americana de 1969, o filme registra muito mais que a luta de Fred Hampton, o líder do Partido dos Panteras Negras, para com o engajamento do povo negro em prol de sua sobrevivência diante da brutalidade policial, mas expõe com força impressionante o trauma vivido pelo grupo radical dos Panteras e a tensão dos seus embates em uma Chicago retratada quase como cenário sem-lei de faroeste, sob uma típica atmosfera política que sufoca qualquer um. Judas tece críticas externas e também internas ao movimento, sem diluir ou exagerar nenhuma causa ou consequência de suas ações coletivas, por vezes planejadas e as vezes desesperadas, nisso tornando-se, facilmente, um dos melhores filmes do ano de 2020.

    Drama caprichado, cuja base está na dualidade entre um “messias” que vive para conscientizar e limpar a dor dos seus, e o seu querido Judas particular (William O’Neal, um moleque informante do FBI infiltrado nos Panteras), temos aqui um contraponto moral estabelecido com total naturalidade e franqueza, sendo este grande parte da espinha dorsal do filme. Ousada, e direta ao ponto, a obra serve como um debate ficcional e histórico à questão: vale a pena combater fogo contra fogo? Se o radicalismo do grupo os levou à danação, a coragem e a determinação de homens e mulheres cansados de sofrer, por ser quem são, merecem ser lembradas contra a vitória de um estado higienista. Judas e o Messias Negro é sobre a força que nasce da humilhação, e do perigo de “viver” numa sociedade cujo racismo estrutural ameaça qualquer gota de melanina portada por um cidadão. Inevitável a revolta explodir, e Fred é o capitão do barco, ciente de que poderá ser apunhalado pelas costas a qualquer momento.

    Mas não há outro caminho, senão seguir. Ele(s), contra o mundo, anti-heróis deles mesmos, tentando construir uma realidade utópica mais justa, nos anos 60. Ao invés de rejeitar a violência e o suspense que brota de certas sequências, o diretor Shaka King assume com orgulho a bravura do seu protagonista, e entrega um filme sensível, poderoso e realista, mas jamais apologético e muito menos hipócrita perante os seus temas mais complexos, e ainda atuais. Daniel Kaluuya, de Corra!, entrega o melhor trabalho da sua carreira, ao carregar no olhar enigmático o pesar e as desilusões de um homem muito jovem, castigado, e que ainda sorri entre seus seguidores rumo ao bem-estar da sua raça, tão sonhado. Como seu contraponto nessa história de luta sem glória, Lakeith Stanfield é um nome cada vez mais respeitado em Hollywood, presente também na ótima série Atlanta, tendo aqui o papel de vilão arrependido, perdido na própria confusão. Na própria dor, e perseguição, por ser quem se é.

  • Review | Watchmen

    Review | Watchmen

    Watchmen está entre os grandes clássicos dos quadrinhos. A DC Comics já havia tentado lucrar com as figuras dos quadrinhos de Alan Moore e Dave Gibbons, com o desprezo extremo do primeiro desses, e depois de Antes de Watchmen e da minissérie O Relógio do Juízo Final, foi a vez de Damon Lindelof (Lost e Leftovers) se juntar a diretora Nicolle Kassell para dar a sua versão da continuação da história criada por Moore há mais de 30 anos.

    Sabiamente, os produtores escolheram que Watchmen fosse uma história curta e sem chances de continuação. Todo o seu drama e ação se desenvolvem ao longo de nove episódios que envolvem discussões sociais e políticas, principalmente na figura da Sétima Kavalaria, um grupo supremacista branco que utiliza a figura de Rorschach como símbolo de sua atuação. Muito se falou a respeito da interpretação equivocada das falas que Walter Kovacs, o Rorschach, pregava, mas ao ler o Diário enviado ao tabloide, não é de se admirar que reacionários tenham abraçado sua causa, e esta foi uma das grandes sacadas do roteiro.

    Os personagens novos predominam na trama. A escolha de Tulsa, Oklahoma, como cenário também evoca as disputas ideológicas e raciais. A história é contada a partir da família de Angela Abar (Regina King), a vigilante que usa o codinome de Sister Knight. Em sua cidade o vigilantismo é não só permitido, mas também encorajado desde que ocorreu um ataque a todos os policiais alguns anos antes.

    A publicação original possui muito material extra, e aqui há também alguns momentos que servem como paralelos ao Contos do Cargueiro Negro, como o seriado American Hero Story: Minutemen, que imita os show de TV de Ryan Murphy. Esse programa serve também para referenciar o passado de alguns personagens da primeira era.

    Da parte da “velha guarda”, o que se vê é uma decadência escancarada. Os antigos vigilantes são mostrados velhos, alguns bem decadentes, outros reinventados e cínicos em versões ainda mais duras do que as pensadas  originalmente. Tanto Jeremy Irons quanto Jean Smart tem participações soberbas, e produzem bons embates com Hong Chau e King.

    O formato dos episódios normalmente se dá com um epilogo, no passado que exemplifica como o mundo chegou aquele estado de um possível apocalipse novamente, agora por meio de conflitos raciais e não mais por Guerra Fria, seguido de um lento e providencial desenrolar dos plots e intenções dos homens, tanto dos poderosos como da milícia armada que protege Tulsa. A trilha sonora funciona, e na maior parte das vezes bastante acertada.

    Alguns momentos se valem demais da teatralidade, seja nas ações do personagem que faz Jeremy Irons, ou nos métodos que Tim Blake Nelson e seu Looking Glass faz ao empregar seu método de investigação. A forma como a tecnologia aparece também é bastante peculiar e curiosa, um modo inventivo de imaginar esse mundo que mesmo com o advento dos poderes do Dr. Manhattan, não tem acesso a coisas triviais, como a internet. Em um mundo real que possui seres super poderosos é natural que hajam mudanças significativas, sobretudo no saber político e na presunção das autoridades de que conseguiriam controlar os ânimos da humanidade, que basicamente, parece presa a ciclos bélicos de tempos em tempos.

    Cada episódio dedica-se em partes ou integralmente a resgatar as origens dos novos personagens, ou simplesmente reapresentar os velhos, e é certamente Sister Knight a mais rica dentre todos, seja pela completa perversão da condição de garota-refém – uma vez que é ela a chefe de sua família – como também no julgamento ingênuo que ela faz das pessoas que a cercam. Seu destino parecia pré-estabelecido, mesmo que ela não soubesse exatamente quem eram seus antepassados, e as surpresas envolvendo sua intimidade são certamente as mais assertivas e criativas dentro da série, principalmente no capítulo An Almost Religious Awe, que amarra seu passado com os inúmeros ataques da Klu Klux Klan e o levante anti-imperialista no Vietnã.

    Watchmen ainda consegue fazer um comentário bastante poético com Jon Osterman, que consegue enfim cumprir um dos seus desejos mais íntimos, com uma resolução que não pôde ser feita na sua primeira despedida, quando foi desintegrado nos laboratórios que deram origem aos seus poderes, fechando a trama principal com um final em aberto que foge da gratuidade e oportunismo, fato esse que acaba resultando em um produto bastante reverencial ao material original, por mais que Moore claramente preferisse que nem Lindelof e nem ninguém continuasse os passos além da graphic novel de 1986.

  • Resenha | Fruto Estranho

    Resenha | Fruto Estranho

    A Grande Cheia do Mississipi, ocorrida em 1927, foi uma das piores catástrofes naturais norte-americana de seu tempo, atingindo as margens do rio e os diques com força, inundando áreas de grandes proporções e deixando um rastro de destruição por onde passou.

    Paralelo a isso, a segregação racial perpetuava um ciclo de desigualdades, fortalecendo movimentos supremacistas brancos como os da Ku Klux Klan, que se propunham a perseguir descaradamente as pessoas de pele negra.

    Com esse contexto em mente, J.G. Jones procurou Mark Waid para juntos trabalharem em uma história ambientada nesse começo de século XX, no sul dos Estados Unidos, no qual surge diante de uma sociedade racista e desigual a figura de um ubermensch, o super-homem nietzschiano, porém negro.

    A história se passa em Chatterlee, no Mississipi, durante o supracitado ano de 1927, quando aterrissa na Terra um misterioso e aparentemente desorientado homem. De modo bem diferente da chegada à Terra do recém nascido Kal-El, nas histórias clássicas do Superman, o homem chega já adulto e e imponente, um verdadeiro colosso entre os homens, a epítome da perfeição humana, em meio a uma sociedade que representa de forma inequívoca o atraso total da humanidade.

    Paralela à chegada desse estranho indivíduo, chega à cidade o engenheiro Fonder McCoy, enviado por Washington para ajudar durante a crise dos diques. McCoy, como a maioria da classe trabalhadora da cidade, é negro, o que resulta em doses cavalares de racismo sendo destiladas contra sua figura ao longo de toda obra.

    Amparado pela figura do controverso Senador e da bem intencionada, porém alienada viúva Lantry, McCoy vislumbra na figura do colosso uma chance de garantir a sobrevivência da cidade e da subsistência de seus moradores, tanto a elite branca e racista quanto a grande quantidade de humildes trabalhadores negros, que ali vivem em condições paupérrimas.

    Jones e Waid, famosos na indústria dos comics mainstream norte-americanos, angariaram fama e prestígio narrando a história de homens e mulheres superpoderosos, se digladiando contra ameaças inimagináveis em prol do bem da humanidade, buscando evocar o melhor que o ser humano tem em si.

    Ao se juntar para conceber Fruto Estranho, contudo, a dupla se propôs a narrar um conto sobre o racismo estruturalizado na sociedade norte-americana, em contraposição ao surgimento de uma espécie de Superman indesejado por conta de sua cor. O quadrinho possui grande apuro no que se refere ao trabalho de pesquisa histórica e apresenta questões relevantes, padecendo com alguns problemas de ordem narrativa.

    Os diálogos frios e violentamente racistas com os quais Waid povoa a obra dão verossimilhança para a trama, dialogando com a soberba arte realista pintada por Jones, mas a noção de direcionamento da história acaba comprometida quando pensamos no papel principal da trama.

    O silencioso e colossal alienígena tem desenvolvimento praticamente nulo ao longo da trama, de modo que o destaque das ações recaia sempre sobre Sonny, o pobre homem negro que inicialmente encontra o poderoso extraterrestre e que subsequentemente o acompanha ao longo das desventuras na cidade.

    Cumpre-nos ressaltar que é Sonny quem objetivamente resolve as subtramas da narrativa, se irrompendo contra as forças opressoras e racistas que se impõem sobre ele e seus semelhantes, ainda que o catalisador que motivou a população tenha sido o superpoderoso colosso negro.

    A trama se ambienta com sucesso dentro do contexto histórico e tem êxito ao apresentar as reações da cidade à presença daquele descomunal homem. A Ku Klux Klan exerce um papel relevante na obra, demonstrando a absurda influência desse grupo abjeto dentro das instâncias de poder dos Estados Unidos.

    Se nas histórias lúdicas da DC Comics a figura do Superman se constrói como um símbolo de esperança para a humanidade, em Fruto Estranho o colossal super-homem negro assume papel semelhante para seus iguais, em um grande trabalho de examinação do mito heroico realizado por Waid e Jones.

    O título, publicado pela Boom! Studios nos EUA, saiu por aqui através de Mythos Editora em uma belíssima edição em capa dura e com papel couché, propõe uma discussão pertinente, mas que conta com alguns desequilíbrios em sua organização.

    Compre: Fruto Estranho.

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  • Agenda Cultural 70 | Infiltrado na Klan, Green Book, Shazam!

    Agenda Cultural 70 | Infiltrado na Klan, Green Book, Shazam!

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira) e Filipe Pereira se reúnem para resgatar os filmes não comentados nos últimos tempos na Agenda Cultural. Plot-twist é uma assinatura de M. Night Shyamalan? Podemos ter otimismo com o progressismo da academia do Oscar? Shazam! é mesmo um filme bobo? Tudo isso e muito mais na agenda deste mês.

    Duração: 103 min.
    Edição: Julio Assano Júnior
    Trilha Sonora: Julio Assano Júnior e Flávio Vieira
    Arte do Banner:
     Bruno Gaspar

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  • Crítica | O Ódio Que Você Semeia

    Crítica | O Ódio Que Você Semeia

    Eles estavam começando a se apaixonar. Estrela, ou Starr, já olhava pra aquele garoto com olhos cintilantes, e recebia o mesmo olhar em troca do rapaz que cresceu junto, combinando as mesmas gírias, costumes; compartilhando de uma cultura vista pelo sistema de ‘cultura paralela’. Hoje no mainstream pop devido a vários cantores, autores e filmes como Moonlight: Sob a Luz do Luar, e Pantera Negra, a cultura afrodescendente passa aos poucos a ser respeitada, admirada e apropriada mais por ser lucrativa, antes de tudo, e menos por simplesmente merecer o respeito dos senhores brancos. A prova disso é que, na mais banal das noites, na volta de uma festa, Khalil vira mais uma estatística ao ser baleado, ao lado da inocente Estrela, e, para tornar-se inspiração de resistência, e luta, seu sangue faz manchar o asfalto noturno aos pés da viatura que trouxe a morte.

    O Ódio Que Você Semeia se passa nos Estados Unidos no tempo do agora, mas a realidade trata de produzir remakes ao redor do mundo, e principalmente em países profundamente racistas como o Brasil, cujos índices anuais de violência divulgados não mentem sobre a direção favorita de uma bala, no asfalto ou na favela. A partir dos vários desdobramentos populares que seguem da morte de Khalil, mais um negro liquidado por ser negro em solo americano, as situações amparam, tal um cenário de fundo, o que realmente importa aqui. Como voltar ao normal, a escola, aos rolês descompromissados com os amigos, após presenciar o ódio enorme que existe do sistema contra você, sua família, e que, por muito pouco, não custou a sua própria existência?

    Talvez, a melhor cena de O Ódio Que Você Semeia, a conversão cinematográfica em 2018 do livro de Angie Thomas, seja uma cena de um minuto que plenamente resume a relevância da obra: Estrela volta para a escola de elite onde estuda, rodeada de amigos (todos brancos), e que não entendem a gravidade do que aconteceu. Ela tenta explicar, mas ninguém lá viveu o racismo na pele. Se sensibilizam, claro, mas não entendem a dor. Vai além da compreensão dos seus olhos claros. Quando focado nas relações, principalmente as familiares da garota, após o trágico incidente na qual é envolvida, o filme brilha e expõe a boa adaptação ao Cinema que a história ganhou, bem escrita e mais sugestiva, do que falada – afinal, nenhum romance merece ter suas páginas simplesmente coladas numa tela.

    Se antes era necessário parágrafos e mais parágrafos para descrever as emoções das personagens, apenas um close aqui já dá conta do recado, seja no olhar do julgamento que o pai dá ao novo namorado branco da filha, seja numa lágrima que escapa quando menos se espera. Isso porque o nível da atuação coletiva não desaponta, e muitas vezes diverte, liderada pela expressiva Amandla Stenberg, uma ótima atriz em ascensão. Ainda que sempre dividido entre a tensão do drama que envolve crimes de cunho racial, e o sentimentalismo que sobra de uma situação dessas, há um certo equilíbrio de prioridades aqui, e a direção de George Tillman Jr. mantém o tom de revolta e inconformismo até que Estrela, uma ótima personagem, finalmente entenda que as lutas nunca abandonarão a sua vida.

    Vemos aqui a construção de uma guerreira, e o custo disso a médio e longo prazo na personalidade de uma jovem cidadã, rumo a vida adulta. Por isso, é muito imprudente sequer cogitar que O Ódio que Você Semeia é apenas racismo para adolescentes, sem a força de abordar este crime contra a humanidade que outros filmes como Infiltrado na Klan apresentam – e com a força de um jumbo. A obra literária na qual o filme é oriundo não simplifica, ou suaviza seus temas inevitavelmente polêmicos e fortes, mas em ambas as mídias nas quais a história de Estrela/Starr é narrada, é então preservada a confusão emocional e psicológica que a protagonista sofre, após ver o assassinato do seu melhor amigo naquela inesquecível noite, sendo esse redemoinho de conflitos, causas e consequências, que formam a estrutura desse belo, contemporâneo e doce conto juvenil de pura resistência, e superação.

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  • Crítica | Ponto Cego

    Crítica | Ponto Cego

    O roteiro de Ponto Cego, assinado por Rafael Casal e Daveed Diggs — que também atuam nos papéis principais, Miles e Collin, respectivamente —, nos apresenta o momento recente e dramático da vida de Collin, cidadão negro, subempregado, que vive na periferia, de um bairro negro de Oklahoma. A história se inicia no antepenúltimo dia da probation (espécie de condicional) de Collin. Por estar nesse período, para poder se ver livre de sua pena, ele precisa andar na linha, tendo horários estabelecidos, trabalhar, ficar abrigado e dormir em casa de reabilitação, proibido de sair do condado de Alabama e não se envolver em nenhuma atividade ilícita.

    É facilmente percebido que o foco do filme é a tensão racial que os Estados Unidos ainda vivem, mesmo depois de tantos anos de história de lutas contra o racismo no país. Essa tensão é especialmente sentida nos estados do sul, os que mais demoraram a abolir a escravidão, culminando no provavelmente mais conhecido e estudado episódio da história americana, sua Guerra Civil (conflito armado entre os estados do norte e os do sul que se estendeu de 1861 a 1865). O interesse dos roteiristas e do diretor Carlos López Estrada é nitidamente demonstrar os contrastes sociais e econômicos entre as populações negra e caucasiana no país. Ao ir contando o caso da condenação, da probation e dos acontecimentos recentes na vida Collin, eles vão inserindo esse contexto que querem deixar claro. As cenas de abertura do filme, ainda nos créditos iniciais, servem não para outro objetivo, mas exatamente para isso.

    Embora trate-se de drama, há tentativa de inserir certa comicidade na história. A hipérbole figurada pela quantidade de armas na cena em que Collin e Miles estão no carro de Dezz ilustra essa tentativa, bastante frustrada, na minha avaliação. Há muito pouco de cômico no longa. Aliás, há muito pouco de entrega de qualquer coisa nele. Embora cumpra seu papel como meio para entregar a mensagem “Olhem, ainda há muita diferença de vida entre negros e brancos por aqui”, o filme tem um roteiro fraco, com trama bastante previsível, atuações se não ruins, ao menos limitadas e se pode dizer o mesmo da direção. Algumas poucas cenas salvam a composição, destacando-se nesse sentido aquelas em que há maior tensão trágica (como as de brigas e discussões).

    Tendo em conta que esse é o motivo de ser do longa, é interessante uma observação mais atenciosa à cena em que Collin está voltando para casa de reabilitação, um pouco à frente da anterior. Já no limite do seu horário de recolhimento, dirigindo o caminhão da empresa de mudanças em que está trabalhando, ele se encontra parado em um semáforo na rua Martin Luther King Jr – obviamente uma tentativa piegas de ironia inserida no roteiro. Nesse momento irá presenciar um fato que ficará reverberando em sua cabeça pelo resto da trama. Um negro andando na rua no meio da noite é sempre um suspeito, um negro correndo na rua no meio da noite é sempre culpado (?!).

    Ao tempo em que presencia diversas mudanças sociais e culturais, a personagem central da história está tentando se afastar do que é negativo e construir melhores perspectivas para sua vida (o que inclui sua vida amorosa). Seu sucesso nesse intento é bastante limitado, contudo. Esse parece ser um dos argumentos centrais da obra, a dificuldade que pessoas inseridas em tal contexto de limitação social têm em construir uma vida diferente. Pontos menores e diálogos breves, que podem parecer sem propósito, tentam demonstrar aquelas mudanças. Nesse sentido, atentar para os exemplos: da reinauguração da lanchonete Kwik Way; da festa de CEOs em que há fala mostrando que negros estão ocupando função nesse nível, mas que são extrema minoria; e, no mesmo sentido anterior, como também estão passando a morar em lugares economicamente melhores.

    Outro breve momento que pode parecer sem propósito, mas é na verdade de certa profundidade,  é a cena em que os dois amigos estão recolhendo quadros para uma mudança. Aqui se apresenta a questão de que indivíduos crescidos em tais condições de restrição econômica e educacional terão dificuldades de apreciar artes mais sofisticadas e de se dedicarem emocionalmente acima do superficial. Veja-se a dificuldade em apreciar quadros e fotografias que esses indivíduos apresentam. Na mesma cena que apresenta essa questão, é interessante olhar com afinco como eles não se permitem realizar o exercício de observar um ao outro. Parece que, de fato, pessoas em tais condições sócio-econômicas se comportam de tal maneira. Fica a interrogação: porque é assim?

    “Agora você é um criminoso condenado. Agora você é isso até provar o contrário. Prove o contrário o tempo todo”. Esse é o argumento central do roteiro. Juntando ao já colocado anteriormente: um negro andando na rua no meio da noite é sempre um suspeito, um negro correndo na rua no meio da noite é sempre culpado, um negro condenando por um crime (por menor que seja) será sempre um criminoso condenado e terá de provar o contrário o tempo inteiro. É no mínimo muito difícil fazer um contraponto a isso, para quem já viveu na periferia (e aqui dá para deixar de lado a questão racial), a realidade se demonstra mesmo de tal forma. Sob essa perspectiva nos EUA, a mídia sempre vai tender a mostrar um policial com seu uniforme de trabalho e um negro culpado (correndo no meio da noite) com uniforme de presidiário, caso já tenha passagem pelo sistema judiciário.

    A tensão social entre classes (e ambientes) pobres e classes (e ambiente) econômica e socialmente melhor estabelecidos é intensa e constante. A vida, assim, se apresenta como a arena em que indivíduos em um dos lados são incapazes de se colocar no lugar do outro, há medo mútuo, fortes esteriótipos e seus impactos negativos, a convivência no limite de sua possibilidade, por fim. A vida em ponto cego (blindspotting), a incapacidade de enxergar algo diferente do que seu cérebro quer ver primeiro. Numa figura dupla, seu cérebro vai enxergar apenas uma das figuras. Você olha mas não consegue ver a outra imagem que está lá. Mesmo que outra pessoa mostre para você a outra figura, é praticamente impossível ver as duas figuras ao mesmo tempo (e mesmo não ver sempre primeiro a figura que seu cérebro identificou sozinho inicialmente), a não ser com reeducação do cérebro (o que é extremamente difícil). Você não pode ir contra o que seu cérebro quer ver primeiro, se torna instintivamente cego. Uma vez tendo visto um negro espancando outro cara, você sempre vai ver primeiro o negro que espanca pessoas antes de ver qualquer outra coisa nele.

    Texto de autoria de Marcos Pena Júnior.

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  • Crítica | Se a Rua Beale Falasse

    Crítica | Se a Rua Beale Falasse

    Após o sucesso de Moonlight, Barry Jenkins retoma um dos assuntos que fez do filme oscarizado um diferencial sobre o lado sentimental de sua obra. Se A Rua Beale Falasse tem a temática racial como base mas também um drama sobre relações, amor, rejeição e injustiças, levadas de maneira muito delicada e referenciando a obra original de James Baldwin, inclusive usando uma de suas citações para iniciar sua trama. O roteiro é baseado no romance homônimo.

    A trama se passa em Nova Orleans, e mostra um casal apaixonado, Alonzo Hunt (Stephan James) chamado por todos de Fonny e Tish Rivers (Kiki Layne). O casal apaixonado tem uma história longa e muito bonita, são amigos desde a infância e tem uma relação de cumplicidade poucas vezes vistas em um namoro, ainda mais com pessoas tão jovens.

    Fonny é um artista, se dedica a fazer obras conceituais e plásticas, mas a sociedade ultra conservadora e retrógrada o olha de outro modo, como um sujeito rebelde e revolucionário, unicamente porque ele decide dar vazão aos seus sonhos, sonhando em trabalhar com o fruto de sua criatividade, adentrando um aspecto da arte que normalmente não é ocupado por negros. Fonny é preso, acusado de um crime que provavelmente não cometeu, caindo então em uma possível armação orquestrada por uma figura da lei.

    Tish por sua vez tem uma boa base familiar, e busca forças principalmente em sua mãe, Sharon Rivers (Regina King, absolutamente soberba em tela), que lhe dá base para enfrentar não só a questão de ter que lidar com manifestações de amor através de um vidro em  horários de visita muito ingratos, mas também pela gravidez que ela carrega. Apesar de emocionalmente comedido na maioria dos pontos, há um momento crucial aqui, que envolve uma discussão familiar para a o anúncio desse filho que virá. O diálogo entre os Rivers e os Hunt é áspero, demonstra um abismo de discurso entre as famílias, sendo uma delas mais permissiva e amorosa e outra mais fundamentada no extremismo religioso protestante e castrador, que acusa ao invés de acolher. Uma das primeiras provas de amor certamente é o choque dessas famílias, e a sobrevivência dos dois é posta à prova ao ponto de conseguir evoluir e passar pela perseguição da lei e pelos preconceitos litúrgicos de um filho concebido em meio ao pecado, se levar em conta o discurso ultramoralista de de Mrs Hunt (Aunjanue Ellis), a mãe de Alonzo, tão distante do filho que poucas vezes pronuncia a alcunha Fonny.

    A linha do tempo do filme é bastante variável e isso permite que os elementos da construção desse romance soem naturais. A história de amor mistura elementos pueris com manifestações sexuais conduzidas de um modo muito delicado. A primeira relação dos dois é registrada de uma forma muito pura, com uma paixão muito livre de lascívia e a entrega de ambos beira a poesia, dado a delicadeza da cena. Jenkins orquestra tudo isso de uma maneira artisticamente certeira e bastante delicada.

    No entanto, o cineasta não foge do pragmatismo e da realidade, e por mais que os apaixonados vivam em seu mundo particular, os infelizes clichês da realidade também se fazem presentes, e para aplacar sua pena o herói da jornada aceita usar uma capa de vilão, por conta do estado falhar consigo na questão de conseguir provar sua inocência. A aceitação do acordo para reduzir a pena é uma derrota moral para as duas famílias, mas é também um artifício para que a sua liberdade seja retomada. Se A Rua Beale Falasse é um filme emotivo, e ainda muito real, infelizmente.

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  • Crítica | Tyrel

    Crítica | Tyrel

    Tyrel é um filme de Sebastian Silva, que mostra o personagem-título vivido por Jason Mitchell indo junto ao amigo para uma viagem nas montanhas de Castkills, em uma festa de aniversário de um desconhecido que tem laços com esse amigo. Por ser desconhecido da maioria das pessoas que lá estão, o protagonista fica completamente deslocado em um primeiro momento e passa a ser incomodado não só por sua timidez, mas também pela indelicadeza das outras pessoas.

    O modo de interação daquele grupo de pessoas é para Tyrel algo estranho, não só pela quantidade absurda de palhaçadas que ali impera, mas também por conta do incômodo deles com a sua presença. O motivo dessa diferenciação não é dita abertamente, mas através dos eufemismos e brincadeiras de cunho preconceituoso, se nota que a questão envolve a cor de sua pele.

    O único ser vivo com que Tyrel consegue estabelecer alguma conexão é com o cachorro da casa, basicamente aludindo a questão de que um animal irracional não liga para questões raciais, tampouco é capaz de transmitir preconceitos por meio de atos jocosos ou de preconceito velado, assim como também não faz questão de estabelecer um verniz social para esconder qualquer falha de caráter.

    O protagonista se sente incomodado e importunado e nem o seu conhecido parece fazer questão de protege-lo dos ataques ou sequer frear as gracinhas preconceituosas, basicamente porque ele não percebe o seu erro e nem dos outros, por não entender como racismo os impropérios ditos na casa onde estão todos. A situação do personagem se agrava tanto que ele decide se refugiar na casa de uma vizinha que ele viu assim que chegou, pois nem conseguir dormir ele consegue, provavelmente não só por conta do barulho que o grupo faz, mas também pela sensação de não pertencimento àquele microcosmo, além da repetição inconveniente de toda sorte de pressão racista e lembranças do passado, onde tinha que lidar com isso sem necessariamente ter maturidade suficiente. Ao contrário do que se falou por quem viu, Tyrel não é uma nova versão de Corra!, até porque o objetivo é claramente outro, não há catarse ou revide, mas apenas a contemplação do quão baixo o ser humano pode mergulhar.

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  • Crítica | Infiltrado na Klan

    Crítica | Infiltrado na Klan

    Spike Lee retorna com um dos filmes mais importantes do ano. Infiltrado na Klan, no original BlacKkKlansman, é baseado na investigação real de Ron Stallworth nos anos 70, um policial negro de Colorado Springs que conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan. Com um material tão peculiar em mãos, Lee o prova através de decisões importantes e entrega um longa engraçado e urgente.

    Porém, focado em seguir uma linha estilística, o diretor escolhe desenrolar tua história de forma didática, as situações são convenientes, algumas camadas de complexidade ou até realismo nunca chegam a serem tocadas e deixa obviedades serem verbalizadas para um andamento sem grandes obstáculos. Mesmo longe de ser uma escolha ruim, o longa não deixa de perder força e conflitos poderosos.

    A comédia, de fato, é bastante funcional ao escancarar o quão peculiar é a operação realizada por Ron (John David Wahington) e Flip (Adam Driver). Os dois atores, além de compartilharem de uma química quase energética nesse ponto, também carregam nas costas cargas dramáticas muito relacionáveis e verdadeiras, o que deslancha Infiltrado na Klan ao que lhe triunfa.

    Ao criar boas relações, Lee entrega nelas as melhores nuances e discussões mais genuínas do longa. O fato de Flip, o personagem do sempre bom Adam Driver,  ser judeu nessa missão como infiltrado rende reflexões muito pertinentes acerca identidade, reconexão e reconhecimento de semelhantes. Outro exemplo é a personagem de Laura Harrier, Patrice, possivelmente inspirada na figura histórica da militância negra americana Angela Davis. O conflito dela com Ron acerta demais em expor posturas divergentes contra o racismo e é uma pena que isso dure pouco em meio a tanta coisa acontecendo logo ali no plot principal.

    Esse, que se desenrola numa tensão crescente com veia de puro entretenimento, é diversão funcional na ação, no humor, no drama, e se equilibra na medida de suas facilitações. Porém, ao final, o longa dá um jeito de derrubar o lençol para olhos mais desatentos, os anos 70 não estão tão longe como gostamos de pensar. Tem gente no mundo todo, como na passeata assustadora da supremacia branca nos EUA ou na recente situação política do Brasil, espalhando discurso de ódio, seja com capuz na cabeça, seja fazendo arma com a mão.

    Spike Lee aos tropeços de um filme difícil e imperfeito em suas complexidades, ainda traz uma obra atual e necessária ao refletir nossos tempos, um puxão de orelha bem dado a nós da memória tão curta.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Crítica | A Outra História Americana

    Crítica | A Outra História Americana

    Tony Kaye trouxe à luz o jovem clássico A Outra História Americana, um filme incisivo sobre questões de intolerância e preconceito, que chegava aos cinemas em 1998. O início do longa ocorre em preto e branco, mostrando uma família estranha e desajustada chamada Vyniard, comandada – ao menos no meio da noite – por Derek (Edward Norton) um jovem supremacista branco, que tem armas pela casa inteira, cartazes de louvor ao pensamento de extrema direita e uma tatuagem no peito esquerdo de uma suástica nazista.

    Os primeiros eventos do filme mostram o irmão mais velho transando com uma moça, e seu irmão Danny (Edward Furlong) acordando por conta o barulho do lado de fora da casa. Ao perceber que eram assaltantes negros, ele interrompe o ato sexual do irmão, que se levanta, toma um revólver e tenta assassinar os jovens que tentavam roubar seu carro. A câmera registra esses eventos lentamente, mostrando em detalhes a crueldade do sujeito que, para todos os efeitos, falava em tom de autodefesa, de que só havia feito aquilo para proteger sua propriedade e a vida dos seus.

    Logo, o primogênito sai de cena e o filme foca no irmão caçula, Danny, e nesse ponto é mostrado o Dr. Bob Sweeney (Avery Brooks), um professor inteligente e letrado que não desiste do menino que flerta com a delinquência. Na mente do docente, ele perdeu Derek, mas não queria perder o outro irmão, já que quando novo, Derek se revolta com uma tragédia familiar, e em meio a essa juventude sem argumentos válidos e apelando sempre para um pensamento simplista, revelou seu pensamento racista, culpando tudo que é não branco pelos males do país, inclusive por aquilo que lhe ocorreu.

    Kaye diferencia o filme através das cores, as partes coloridas mostram o presente da história, enquanto o passado é retratado em preto e branco. A identidade passada de Derek, um garoto ardiloso, capaz de travar um jogo de basquete contra os negros do bairro só para tentar provar a eles que os Vyniard e seus amigos são melhores e mais bem preparados, dignos da glória de ter uma quadra pública só para si.

    O objetivo central do filme é mostrar os personagens como humanos, seres falhos, mostrando que esse pensamento não é exclusivo de monstros, e sim de gente com mente fraca, fragilizada e desesperada, que se agarra em um discurso desonesto, imoral e oportunista por falta de opção, se valendo de valores comuns e caros a todos para se estabelecer como comportamento dominante.

    Em seu retorno, após passar pela prisão, a transformação de Derek não é só física. Ele perdeu 22 quilos, deixou o cabelo crescer e tem vergonha de ficar sem camisa exatamente por conta de suas tatuagens. Ao voltar da prisão ele realmente parece diferente, cobrando moralidade de seus parentes. Só após algum tempo de exibição é que é elucidada como terminou a cena do início, e o quão violenta e grave era ação do personagem central. Danny mudou e se tornou um skinhead após ver seu irmão matando um negro a sangue frio. Aquele foi o momento em que ambos mudariam drasticamente, o início do processo de redenção de um e deterioração do outro.

    O roteiro de David McKenna é tão franco e pragmático que não se permite ser sonhador ou ingênuo, mostrando que os destinos das pessoas que se envolvem ou se envolveram com ideias dessa natureza ou com a intolerância pura e simples, tendem a sofrer, mesmo que se arrependam e vivam de modo diferente. A Outra História Americana mostra de maneira certeira o quanto o fascismo pode facilmente tocar as pessoas simples, ajudando a evocar os piores sentimentos possíveis, dominando corações e mentes com facilidade, e deixando apenas um rastro de sangue e tristeza por onde passou.

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  • Crítica | Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississipi

    Crítica | Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississipi

    “A Vida é uma professora,
    O tempo é quem cura,
    E eu tenho fé,
    Como os caminhos de um rio selvagem”

    – Trecho de Mighty River, por Mary J. Blige.

    Quando Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississipi foi anunciado, como o projeto de uma diretora negra sobre as raízes de uma América ancestral que poucas pessoas reconhecem, e poucos americanos nativos se deixam recordar, então um mundo desigual e ainda não-industrializado dentro da nação que virou sinônimo de igualdade com o sonho americano e de industrialização pós-segunda guerra, a sensação foi justamente essa, ironia. Indo muito além de seu elenco majoritariamente negro em tempos de choque racial ainda serem uma realidade no governo Trump, abertamente retardatário, mas pelo filme encapsular em meia dúzia de relações um espírito americano de sonho, de coragem e resistência que ainda somos bombardeados por ele através da propaganda de filmes de super-heróis, totalmente políticos, mas que muitos cidadãos da pátria dos “salvadores do mundo” já não conseguem mais senti-lo. O filme, por outro lado, não tenta resgatar essa valorização do amor pela terra, do amor patriótico, mas retrata muitas das agruras que fizeram esse sentimento se espalhar.

    Mas houve um tempo que eles mesmos acreditavam no sonho deles, e claro, já pagavam o preço pelas empreitadas – vezes boas, vezes não. Famílias como a de Laura (Carey Mulligan) e Henry McAllan (Jason Clarke) mudavam espontaneamente para o interior, o famoso sul americano a procura de terra e oportunidade de se juntar uma grana, e como eram brancos, não esperavam o choque com um sentimento local nada abstrato de constante revolta, devido à segregação racial institucionalizada nos Estados Desunidos da época, o choque já enraizado também entre negros e brancos que já dividiam aquelas terras antes, e a própria dureza econômica da vida de quem vivia nas fazendas do Mississipi. Toda essa dificuldade já foi exemplarmente explorada pelo velho mestre John Ford, um dos pilares da trajetória do cinema americano, com clássicos seminais como o famoso Vinhas da Ira (1940) e o magistral Caminho Áspero (1941), ambos sobre a incongruência do lado mais pobre da nação mais rica do mundo, e é justamente a fé que nasce de cenários infelizes como o que observamos neste filme de 2017 que é muito bem representada pela canção “Might River”.

    A diretora Dee Rees é americana, sabe e sente muito bem os rincões que resolve vasculhar com um belo trabalho de câmera, evidenciando um ambiente e fazendo-nos sentir o aroma de suas veredas, de suas casas, de sua gente. Ela aqui tem mãos suaves, sabe até muito bem o que faz e não deixa temáticas pesarem muito na tela. Sua cadência e sua valorização do período histórico é devidamente retratada em drama e suspense pontuais, ambientados por uma mise en-scène enxuta que parece resguardar todo aquele povo num tempo suspenso da realidade, como se aquele misto de tensões e dificuldades de uma nação ainda em desenvolvimento estivesse sempre acontecendo, tal um universo paralelo mesmo com dilemas constantes, pois a sensação não vai muito longe disso.

    Assim sendo, Mudbound: Lágrimas sobre o Mississipi é a cria mais cinematográfica da Netflix, e que conseguiu chegar ao Oscar com algumas boas e merecidas indicações, fazendo todos olharem para a produção. Um filme cujo recorte nacionalista de uma realidade é mais que puramente contemplativo para com seu povo, com sua terra e sua perspectiva de “mundo”, incitando a reflexão sobre incidentes que ainda persistem a rolar hoje em dia, como a cena de assassinato racista a um negro poupando seu amigo branco, ambos podendo sofrer o mesmo destino devido as condições que ambos se encontravam. Rees opta então por um multiplot inevitavelmente polêmico, contudo manso, seguro e sereno de ricos personagens que, feito um rio, vai curtindo seu fluxo até um belíssimo final.

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  • Crítica | Eu Não Sou Seu Negro

    Crítica | Eu Não Sou Seu Negro

    “A história dos negros na América é a história da América. E não é uma história bonita”. Essa é uma das frases que James Baldwin, famoso escritor americano, profere no documentário Eu Não Sou Seu Negro, de Raoul Peck. Além dessa, existem várias outras frases, citações, textos, palestras e conversas onde ele expõe de forma nua e crua as relações raciais nos EUA, com a qual podemos traçar alguns paralelos em relação ao Brasil. O difícil mesmo é escolher quais citações usar, pois a cada minuto Baldwin nos joga na cara, com uma lucidez dolorosa, a forma como os EUA foram construídos em cima de um projeto de separação racial e exploração da população negra trazida da África. E como não dá mais para ignorar isso.

    O filme Eu Não Sou Seu Negro é um projeto do cineasta (com narração de Samuel L. Jackson), utilizando como base o livro não concluído de Baldwin, Remember this House, onde o escritor iria contar a história dos EUA a partir dos assassinatos de três dos principais líderes negros da história: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King, durante o movimento pelos direitos civis.

    No início e final do filme, Baldwin cita a necessidade tanto de ter saído dos EUA (com a paranoia real de a cada esquina poder ser morto por alguém), até viver em Paris por tanto tempo que passou a sentir falta dos EUA. Mas, como ele deixa claro, não dos ícones da cultura americana, como a comida ou os esportes, mas sim o seu povo. Mesmo deixando também claro que nunca se sentiu conectado com nenhum movimento em particular (Os Panteras Negras, a NAACP, ou as congregações cristãs), ele queria estar ali, circulando entre eles, observando a história acontecer. Enquanto escrevia sobre ela.

    É morto Medgar Evers.

    A todo o tempo no filme, Baldwin cita a relação e o diálogo na época com os brancos (sociedade em geral e também representantes do governo dos Kennedy) e a frustração com não só a incapacidade deles de entenderem o real problema, mas também de entender que havia um problema ali. Os brancos acreditavam firmemente que os EUA eram um projeto que deu certo, e a escravidão e violência eram um desvio de caráter, não um traço fundador do país.

    A divisão no país, entre brancos e negros, não é só econômica. Há uma barreira quase intransponível que mesmo os brancos liberais e antirracistas não conseguem ver ou mesmo entender como ela opera no seu cotidiano. Ao citar amplamente sua infância e seu início de aprendizagem e formação psicológica, Baldwin mostra, utilizando-se como exemplo, como o negro nos EUA cresce com outros referenciais de beleza, de postura, de atitude, de crenças, e de oportunidades, e como se dá o choque ao saber que tudo aquilo que lhe foi vendido, não foi feito para ele.

    É morto Malcom X.

    Discordando-se ou não de sua postura (como havia discordâncias, as vezes ferozes, mesmo dentro do movimento negro), Malcom foi um porta-voz ativo de uma mensagem que precisava ser ouvida. A da raiva acumulada por séculos, e de que o negro americano nunca foi pacífico ou que aceitou a condição que lhe foi imposta. E que agora essa raiva iria retornar na mesma medida a sociedade que lhes impôs tudo isso. E essa atitude iria custar uma repressão enorme do aparato estatal, já que o “Revolucionário branco quando se arma é aplaudido. O negro é tratado como criminoso.”

    É morto Martin Luther King.

    Toda a estrutura social, econômica, política e especialmente militar dos EUA, toda a base do “sonho americano”, foi construída em cima de uma noção de país que só serve para uma pequena minoria, que desfruta de todo essa qualidade de vida ao custo da mão-de-obra barata dos negros desde a escravidão.

    A ignorância do branco em relação a todas essas questões se reflete na discussão com o professor de filosofia de Yale, Paul Weiss, cuja frase marcante “a cor não deveria ser o foco do debate” é o típico argumento do branco, quando se é negro nos EUA ou no Brasil a principal preocupação do negro antes de tudo é sobreviver ao dia-a-dia. A ameaça de morte está em cada pessoa e em cada figura de autoridade. Todo o histórico de violência do país é o retrato dessa divisão, e o argumento principal de Baldwin é que isso tem um custo. O vazio emocional dos EUA é tão grande que se tenta preencher isso com uma avalanche de bens materiais. Cada americano, violento ou ignorante, tem uma parcela de responsabilidade enquanto não assume a situação do país. E isso se reflete na violência das instituições, da população contra si mesma, os tiroteios em massa, a paranoia com segurança e o “invasor externo”, etc, afinal “Você não pode me linchar e me manter nos guetos sem se transformar em algo monstruoso”.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

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  • Crítica | Detroit em Rebelião

    Crítica | Detroit em Rebelião

    Kathryn Bigelow é especialista em criar tensão, seus últimos dois filmes foram destaque – também – por essa característica, Guerra ao Terror a rendeu o primeiro Oscar de melhor direção para uma mulher, além de ganhar melhor filme, e também foi extremamente feliz com seu filme seguinte, A Hora Mais Escura. A diretora segue essa vertente de guerra em seu novo filme, Detroit em Rebelião, e mais uma vez constrói muito bem momentos de tensão, mas infelizmente, só momentos.

    Iniciado com uma incomum animação explicando os eventos que o longa retratará, Detroit em Rebelião, que conta com o roteiro de Mark Boal, retrata is conflitos ocorridos em solo americano em 1967 entre a população negra e a polícia, especificamente em um motel de Detroit, onde em uma noite uma equipe de policiais torturaram física e psicologicamente um grupo homens negros e duas garotas brancas, em busca de uma arma.

    Dividido em claros três atos, o segundo é o mais funcional e livre de deslizes, o primeiro tenta dar um plano de fundo para o conflito e alguns personagens, mas acaba sendo extenso demais e ás vezes até entediante, as imagens são fortes e os embates entre os dois lados da “guerra” são bem filmados, mas nada que prenda a atenção e corre muito risco de perder o espectador ali. O segundo, o micro do conflito, os acontecimentos do motel, fisgam o interesse finalmente, a característica câmera na mão de Bigelow é muito bem-vinda e as atuações são tão fortes quanto pede a narrativa. A dinâmica dentro do motel, apesar do espaço limitado, não fica cansativa e os desdobramentos de algumas decisões dos policiais são essenciais para atiçar a curiosidade acerca de como a história terminará.

    Apesar de boas interpretações, o longa não fica livre de um desequilíbrio de personagens, algumas vítimas no motel não tem espaço necessário para se criar algum vínculo, um policial soa caricato em momentos que não pareciam propícios e vários deles, como o personagem de Anthony Mackie, são esquecidos pelo próprio filme depois que o longa adentra teu terceiro ato, esse que é morno, sem impacto e decepcionante, principalmente por desperdiçar a discussão de vários assuntos e não escancarar problemáticas.

    O trabalho de Bigelow aqui é nobre e em vários momentos soa promissor, mas não só de momentos se vive uma narrativa. Detroit em Rebelião se perde em seus três atos muito diferentes entre si e por conta disso parece se importar mais com um do que com outros, seja com os próprios atos ou com os próprios personagens.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Crítica | Menino 23: Infâncias Perdidas do Brasil

    Crítica | Menino 23: Infâncias Perdidas do Brasil

    Há um ditado popular que define que a verdade nunca fica escondida para sempre. Talvez a repetição costumeira da expressão faça com que ela perca a força, mas, ainda assim, é uma máxima funcional. Ocultar fatos e, portanto, a verdade é sempre um aspecto mais doloroso do que analisar a realidade sem filtro.

    Baseado na tese de Doutorado em Educação de Sidney Aguilar Filho, defendida em 2011, Menino 23 – Infâncias Perdidas no Brasil é um documentário que retoma um passado obscuro do país a partir de um fato inusitado. Em uma aula de história de Sidney sobre nazismo, uma aluna aponta que na fazenda da família um pequeno acidente revelou um conjunto de tijolos com a suástica nazista. A partir dessa evidência o autor investiga a história, descobrindo no município de Campina do Monte Alegre uma fazenda de uma poderosa família da região que retirou 50 crianças negras de um orfanato para escraviza-las.

    O documentário de Belisário Franca retorna a um Brasil de 1930 apresentando a contextualização mundial e social do país na época. A Bolsa de Nova York havia quebrado no final da década anterior. O país vivia a crise mundial e ainda se readequava tanto a uma nova condução política com o fim da República Velha como ainda sofria para estabilizar socialmente os escravos, alforriados há apenas 42 anos.

    Na época, o patriotismo e o nacionalismo se confundiam entre orgulho a pátria e uma ideologia que identificava uma preservação da nação acima de tudo. Seguindo vertentes internacionais, o Brasil foi um dos países a alimentar o movimento nacionalista aliado as teses favoráveis a eugenia, uma busca de uma pureza racial. Em um momento anterior ao domínio de Hitler no poder da Alemanha e de toda a barbárie do Holocausto, a eugenia ainda era vista como um movimento intelectual que foi observado como um ato de modernidade capaz de alinhar a nação a outros grandes países. Campanhas sanitárias e educacionais fomentavam o movimento eugênico brasileiro analisando, por exemplo, a importância da esterilização, da seleção de imigrantes e análises sobre o que seria a verdadeira raça brasileira com teses apontando que a mestiçagem inviabilizaria o país como grande nação.

    Dentro desse cenário delicado, a narrativa aponta a história de uma importante família local que adota no Rio de Janeiro um grupo de crianças negras com a falsa pretensão de educa-las. Recebidas em uma fazenda em Campina do Monte Alegre, as crianças vivem em situações precárias, vivendo isoladamente como escravos a serviço da família.

    O documentário apresenta a trajetória de dois jovens que sobreviveram ao período e prestam seu depoimento histórico sobre um grupo que nem mesmo possuía nome. Oficialmente adotados pela família, o grupo era tratado por números, bestificados a perder seu próprio nome de batismo. O Menino 23 destacado no título da produção é Aloísio Silva, um dos personagens centrais dessa história. Em um amplo espaço isolado, a fazenda dos Rocha Miranda era um espaço ideal para demonstrar a leniência da lei. O status de representante da elite brasileira na época, garantiu-lhes a facilidade em adotar 50 garotos sem grandes questionamentos.

    Trazendo a verdade a tona, a produção revela com fatos informações abrangentes que, ao mesmo tempo, compreendem a época e demostram a violência vivida pelos garotos em uma ação que, independente do pensamento eugênico popular no país, explicitava o racismo que ainda perdura. Ao dar voz aos garotos-sem-nome, o documentário revela o outro lado da história. Elimina qualquer anonimato que mascara o conceito da escravidão, do preconceito e do racismo para apresentar personagens reais que viverem na pele anos de violência física e emocional instituída por uma família de elite, em grande parte apoiadora de teorias estúpidas mas, estranhamente, bem quistas na época.

    Os tijolos com a suásticas encontrados por acaso pontuam a muralha que escondeu durante muito tempo a verdade. Uma ação perversa em um período não tão distante do país que funciona como exemplo de um racismo na época, trazido a tona graças a um acaso, nos fazendo questionar quantos mais casos como esse nunca foram revelados e quantos ainda existem em pleno século XXI. Um fato entristecedor de uma realidade que ainda persiste nas diversas desigualdades do Brasil.

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  • Crítica | Negação

    Crítica | Negação

    Dirigido por Mick Jackson e adaptado para o cinema pelo escritor David Hare, baseado no livro Negação (History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier), o filme conta o embate legal entre Deborah E. Lipstadt (Rachel Weisz) e David Irving (Timothy Spall). Irving acusou Lipstadt – assim como a editora britânica da autora, Penguin Books – de difamação por denegrir seu trabalho acadêmico de negação do Holocausto. Diferente da maioria dos países, em que cabe ao querelante provar sua acusação, no sistema legal britânico, não há presunção de inocência, recaindo o ônus da prova sobre o acusado. Sendo assim, cabia à equipe de advogados contratados pela Penguin – encabeçada por Richard Rampton (Tom Wilkinson) e Anthony Julius (Andrew Scott) – provar que a queixa de Irving era infundada.

    Irving, sendo um estudioso da Segunda Grande Guerra e principalmente de Hitler, acusou Lipstad de ter afirmado que ele manipulara e distorcera evidências a fim de isentar o Reich e, por conseguinte, Hitler de ter matado judeus deliberadamente. Enquanto a maioria de nós, leigos, ou melhor, não-advogados pensaria que o melhor argumento seria confirmar a ocorrência do Holocausto, os advogados de defesa optaram, sabiamente, por combater a difamação que Irving dizia ter sofrido. Deborah deixa claro que sua intenção era reafirmar o Holocausto, dando voz aos sobreviventes e aos que pereceram nos campos de concentração. Contudo, os advogados a convencem, muito a contragosto, de que a estratégia planejada por eles era a melhor opção. E, ao final, do julgamento, em um veredito de trezentas e poucas páginas, o juiz Charles Gray (Alex Jennings), dá ganho de causa à defesa por ter efetivamente provado que Irving, sim, distorcera evidências a fim de defender seus pontos de vista e que, portanto, o que Lipstad dissera não configurava difamação.

    A história, em si, é bastante direta. O que chama a atenção são as questões suscitadas pelo evento. Como é possível que existam pessoas capazes de colocar em dúvida um evento histórico dessa magnitude? Simplesmente por não haver fotos que o comprovem, como diz Lipstad a seus alunos? O quão fácil é distorcer a verdade, usando apenas palavras, falácias e argumentos tendenciosos?

    É o trecho de Denying the Holocaust: the Growing Assault on Truth and Memory, em que Lipstad descreve os métodos de Irving, que ele usou para acusá-la:

    “Irving é um dos mais perigosos porta-vozes do negacionismo do Holocausto. Conhecedor da evidência histórica, ele a distorce até que ela se adapte a suas inclinações ideológicas e objetivos políticos. Um homem convencido de que o grande declínio da Grã-Bretanha foi acelerado pela decisão de entrar em guerra contra a Alemanha, ele é muito hábil em pegar informações corretas e moldá-las para confirmar suas próprias conclusões. Uma resenha de seu recente livro, Churchill’s War, publicada no New York Review of Books, analisa corretamente sua prática de tratar as evidências de forma parcial. Ele exige “prova documental absoluta” quando o assunto é provar a culpa dos alemães, mas se baseia em evidências altamente circunstanciais para condenar os Aliados. Essa é uma descrição correta não apenas das táticas de Irving, mas das dos negacionistas em geral”.
    (p.181)

    Conciso, de abordagem simples, trata o assunto de forma direta, sem floreios ou melodramas desnecessários. E, apesar de parecer muito um telefilme, tem aquele “quê” a mais que faz o espectador continuar pensando a respeito das questões levantadas durante a exibição do longa-metragem. Ainda que em termos de produção, o filme não possua nada de excepcional, além de seu elenco, Negação se mostra um daqueles filmes importantes e necessários em nossos tempos.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Review | Dear White People – 1ª Temporada

    Review | Dear White People – 1ª Temporada

    07Fazendo um breve exercício de reflexão é possível perceber que o racismo e seus temas correlatos nunca tiveram uma margem de discussão tão ampla quanto no momento atual. Diversos fatores contribuem para que a causa negra seja levada ao centro das conversas em redes sociais, na mídia tradicional e, sobretudo, no mundo da cultura pop. O impacto causado pela polêmica do #OscarsSoWhite, onde diversos atores e atrizes negros boicotaram uma das edições mais brancas da premiação, alegando falta de representatividade do artista negro entre os indicados, somou-se ao quase simultâneo momento de enfrentamento protagonizado pelo movimento negro nos Estados Unidos. A tag #BlackLivesMatter tomou conta do Twitter e transbordou para os noticiários após policiais assassinarem Michael Brown e Eric Garner, no Missouri e em Nova Iorque, respectivamente. O que os dois jovens tinham em comum? Eram negros.

    Algum tempo se passou, mas o assunto continua efervescente e foi neste contexto que a Netflix lançou, na primeira semana de maio, seu novo seriado intitulado Dear White People – ou, em bom Português, Cara Gente Branca. A série chegou ao sistema de streaming logo após o barulho causado pela, não menos importante, 13 Reasons Why. Com um objetivo bastante delicado, ao longo dos dez episódios componentes desta primeira temporada, os roteiristas arriscaram fazer humor não-convencional, temperado com drama e uma forte veia social como sustentáculo desta que já pode ser considerada uma das produções mais sinceras que tocam a questão racial.

    No núcleo da trama está Sam, uma menina negra de pele clara (sim, esse termo existe) que ancora um programa de rádio na Universidade de Winchester. Como a instituição de ensino é composta pela elite branca, Sam encontra em seu programa o espaço necessário para manter acesa a chama da resistência negra entre os estudantes. Curiosamente, a personagem mantém um relacionamento amoroso com um jovem branco. Fato que desperta na trama mais uma das subpautas do movimento negro, os relacionamentos inter-raciais. A maneira como o roteiro aborda o tema, apresentando os dilemas de uma relação entre pessoas de raça diferentes mostra, inclusive, que o próprio movimento negro precisa refletir acerca desta questão.

    Ao longo dos outros nove episódios desta primeira temporada, acompanhamos o contexto dos demais estudantes negros da universidade. São explorados assuntos como homossexualidade negra, hiperssexualização dos corpos negros, solidão da mulher negra, apropriação cultural, criminalização do indivíduo negro entre tantas outras verticais unidas por uma só motivação: o preconceito. Cada episódio narra a perspectiva de um dos personagens pertencentes ao movimento negro de Winchester e é esta dinâmica textual que confere ritmo, autenticidade e alma ao seriado.

    Três diretores principais de cena se revezaram no comando da equipe técnica e do corpo de atores. Entre eles, Barry Jenkins, diretor de Moonlight, vencedor do Oscar 2017. Jenkins dirigiu o quinto episódio da série, dedicado ao personagem Reggie, que representa a ala mais radical do movimento negro e, consequentemente, a ala que mais sofre toda a sorte de preconceitos. Não por acaso, esta quinta parte é a sequência mais densa da temporada. É possível sentir uma diferença gritante do tom empregado, por exemplo, no segundo episódio, um dos mais fracos. A partir da história de Reggie, a série ganha novos contornos e conflui para um lugar bastante interessante.

    São muitos os elementos que fazem desta série um marco. Além de ter uma temática que chama a atenção por si só, Dear White People é um liquidificador de referências pop que ri de tudo e de todos, inclusive de uma das personalidades negras mais poderosas da indústria do entretenimento. A série Scandal, da autora e roteirista Shonda Rhimes é parodiada ao extremo por apresentar uma versão higienizada e pouco realista de uma protagonista negra poderosa e bem sucedida que se apresenta como subserviente em seu envolvimento amoroso com um branco.

    Do ponto de vista técnico e visual, a série peca ao manter a mesma fotografia e composição de cenas em todos os seus episódios. Personagens diferentes pedem óticas diferentes e isso deveria modificar também as cores impressas em cada um dos capítulos. A parte isso, o que sobra é um mergulho nada raso, embora leve, nos problemas vividos por uma população negra inteligente, estudada e engajada que, portanto, tem no tom da pele o único motivador para as dificuldades que vive.

    Texto de autoria Marlon Eduardo Faria.

    https://www.youtube.com/watch?v=ac6X4EYIH9Y

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