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  • Crítica | Uma Noite em Miami…

    Crítica | Uma Noite em Miami…

    “Poder é ter um mundo aonde você pode ser você mesmo.”

    Quatro homens negros numa suíte de hotel, discutindo não só seus papeis na sociedade americana de 1963, mas o seu futuro e os seus valores. Em 2021, os assuntos seriam outros, invocados através de um outro contexto, mas naquela época, no sul repleto de contradições dos Estados Unidos, o impacto igualitário de Martin Luther King ainda não tinha acontecido, e afro descendentes ainda eram obrigados a sentar no final do ônibus, e usar banheiros próprios. É sob essa tensão que Uma Noite em Miami se desdobra, num drama histórico e semibiográfico cujas raízes, profundas, dialogam com Selma, Lágrimas Sobre o Mississipi e, indo aos primórdios das tensões raciais, 12 Anos de Escravidão. É por isso que Malcolm X chama seus três amigos para aquele quarto: as cicatrizes ainda estavam expostas, além do medo de que tudo se repita. De uma outra forma, mas com os mesmos alvos oriundos de ‘Wakanda’.

    Porque a melanina é motivo de discórdia entre os injustos, e Malcolm não deixa ninguém esquecer disso na sua militância, “uma voz solitária”, como ele mesmo admite sem bancar a vítima, e sim o arauto da causa, num poço de confusão, e violência. E esse debate não poderia ser numa hora melhor: enquanto o próprio Muhammad Ali se gaba por ter ganho o título de campeão de peso-pesado mundial, o cantor Sam Cooke tenta em vão animar uma plateia de senhoras brancas que não o aceita, assim como o jogador de basquete Jim Brown, outra vítima de um racismo estrutural, sofrendo com brancos burgueses que não se consideram racistas. Juntos agora entre quatro paredes, esse quarteto apresenta uma amizade inabalável, desde a infância, mas isso não evita que tenham suas verdades e ambições colocadas à prova, nesta longa noite. “Você poderia mover montanhas, irmão”, diz Malcolm a Cooke, em uma cena. Mas Cooke só quer crescer, ser importante, respeitado pela burguesia que o excluí, e no fundo, o enoja.

    Lidando em especial com o tema da conscientização e empatia, a atriz Regina King faz um trabalho notável na direção ao confinar homens diferentes num quarto, e ver o que sai dessa situação com sensibilidade, força e precisão na dinâmica do filme. É gratificante, aliás, perceber como King entende que um close bem dado, na hora certa, rende um grande momento, superior a qualquer diálogo. A atriz faz sua estreia na direção com um drama seguro, coerente, e nem por isso sufocado pela inexperiência da diretora, mas talvez seja a grande habilidade dela em extrair o melhor dos atores, que mais surpreende: o quarteto principal e seus coadjuvantes estão sublimes, com Leslie Odom Jr. encarnando o cantor de soul cheio de talento, e revoltado por não chegar no topo, e Eli Goree, perfeito como o titã do boxe Muhammad Ali, aqui vivendo sua glória de campeão mas contestado pelo seu papel na sociedade enquanto não apenas um homem rico, mas um homem rico e negro. Se King ainda não consegue fazer um tour de force de 2 horas, a peça Uma Noite em Miami é traduzida em cinema com um charme e uma elegância que nos convidam a todo tipo de debate, e revisão.

     

  • Crítica | Quando Éramos Reis

    Crítica | Quando Éramos Reis

    Quando éramos Reis

    O início do filme dirigido por Leon Gast é simbólico em percorrer localidades africanas, analisando através da câmera sua população majoritariamente negra: o reinado dos negros para os negros. Esses primeiros momentos resumem todo o cunho do documentário, que faria da luta entre Muhammad Ali e George Foreman, no Zaire, seu evento principal. Porém, a intenção é traçar a identidade do boxeador, antes conhecido como Cassius Clay, através de entrevistas antigas, imagens de arquivos de lutas anteriores, e, claro, falas do próprio Ali, que sabia definir a si mesmo de maneira poética, soando bastante lírico em cada conversa que tinha com a imprensa.

    Quando Éramos Reis analisa a postura do nada discreto lutador, que costumava agir como uma máquina de lutar reunindo beleza e verborragia dentro e fora dos ringues, ao menos aos olhos do entrevistado Spike Lee. A investigação do filme envolve o caráter dúbio do boxeador, mergulhando tanto na idolatria dedicada a ele, por seu um esportista negro bem-sucedido, quanto na antipatia recém adquirida por parte do público após o esportista ter professado a religião islâmica.

    Na viagem em direção ao país africano, Ali destaca a péssima abordagem que o cinema em geral faz dos africanos, mostrando-os como selvagens ou servos de Tarzan, e outros tantos heróis brancos. Seu argumento é de que o seu povo é inteligente o suficiente para conseguir falar inglês, francês e suas línguas nativas, enquanto parte dos americanos mal fala seu idioma local de maneira correta. Apesar da fala ser anedótica, faz bastante sentido e se torna ainda mais flagrante quando ainda há discursos inflamados de ativistas lutando pela igualdade de direitos entre as raças.

    Foreman não entendia a rejeição que sofria por parte dos africanos, e argumentava que sua pele era até mais escura do que a de seu adversário. O pugilista não tinha a consciência da diferença de postura que ambos tinham, nem associava o fato óbvio de que a empatia se dava muito mais por ideal do que por técnica de luta ou cor de pele. A luta entre os dois foi emocionante e seria ainda mais grandiosa, não por motivos de desporto, mas sim por todo o ideal que ela trazia nas entrelinhas e contexto de soberania de um povo comumente massacrado e relegado à posição subalterna.

    Quando Éramos Reis não peca em informação, mas é muito mais um registro emocional do que documental, uma ode à vida e à carreira de ícones como Martin Luther King Jr., Malcolm X, Muhammad Ali e demais personalidades provindas das camadas mais carentes dos Estados Unidos, mostrando o apogeu de um ídolo que alcançava o estrelato não só na área em que era especialista, mas também no campo ideológico.