Chuck Wepner era um boxeador conhecido por levar muitos golpes sem cair. Sua trajetória de vida teve mais a ver com trabalhos alheios ao boxe do que exatamente no esporte, mas seus feitos atléticos foram grandes pra um desconhecido, uma vez que ele foi chamado para lutar contra o campeão dos pesos pesados, Muhammed Ali. Foi na história dele que Sylvester Stallone se inspirou para escrever o roteiro de Rocky: Um Lutador, e é esse background real que Phillipe Falardeau usa para montar seu filme, claro, adicionando uma série de detalhes da rotina do homem para apimentar sua fórmula.
Liev Schreiber usa uma caracterização pesada para se assemelhar a figura de Chuck, e Punhos de Sangue tem uma carga dramática tão ou mais pesada que o filme setentista que elevou Sly ao estrelato, ainda que o cunho escolhido pela produção seja bastante diferente. A linha moral de Chuck em nada se assemelha a figura criada por Sly. Há veracidade e consistência nos dias de Wepner.
O mergulho na rotina de Wepner é profundo e o modo de contar a história escolhido por Falardeau aproxima o espectador do personagem principal. A busca por notoriedade do pugilista é curiosa e contém elementos sentimentais bastante universais. A aura de verossimilhança é fortalecida pela carga de realidade nua e crua exemplificada pelas lentes do diretor.
A reconstituição da época é quase perfeita e só não é mais esmerada que o esforço de Schreiber em parecer com o verdadeiro Chuck. Os momentos em que ele tenta reerguer-se após algumas humilhações são mostrados sob um ponto de vista melancólico e extremamente emocional, fazendo esse se parecer ainda mais com a inspiração de Réquiem Para Um Lutador, de Ralph Nelson, filme esse que tem cenas exaustivamente expostas durante a exibição deste, inclusive com o personagem principal revivendo alguns momentos de Quinn em tela. De fato, Punhos de Sangue segue bem a tradição de mistura de boxe com drama, tendo uma carga sentimental extremamente forte, como um golpe seco e certeiro no espectador.
Dirigido pelo mesmo Sérgio Machado que esteve no circuito com o gratuitamente adocicado Tudo O Que Aprendemos Juntos, o documentário A Luta do Século surpreende por sua forma moderna e pelo conteúdo de discussão interessante, uma vez que se debruça sobre a rivalidade entre os pugilistas nordestinos Reginaldo Holyfield e Luciano Todo Duro, pondo em perspectiva a carreira dos dois esportistas que se notabilizavam como símbolos dos estados da Bahia e Pernambuco.
O documentário se dedica a mostrar a infância humilde de ambos, aviltando o analfabetismo dos dois e as condições precárias em que viviam mesmo na época em que eram ativos. A realidade mostrada no desporto acaba por ser mais um fator que demonstra a disparidade financeira e social do chamado terceiro mundo, tecendo esse comentário através da exposição do boxe amador no interior do Brasil.
As bravatas proferidas pelos dois personagens são carregadas de um humor sincero e escrachado. A natureza carismática de ambos são fatores que ajudam a construir o ideário de extrema simplicidade da dupla de rivais. O montante de lutas e polemicas entre ambos faz perguntar se as provocações de ambos ocorrem somente para promover as batalhas ou se existe um ódio encruado há tanto tempo que ambos não conseguem se manter em paz. Teatro e realidade se misturam toda vez que os dois estão no mesmo ambiente, até quando já estão aposentados.
É curioso notar como a popularidade de ambos caiu absurdamente depois da ascensão de Acelino Popó Freitas, casando com a decadência física destes. Com o tempo, o único modo de angariar dinheiro para eles era se enfrentando, fato que fez acirrar ainda mais os ânimos. Dentre os personagens periféricos, o mais interessante é o traficante Raimundo Ravengar, que promove alguns desses embates, e que decide por bem marcar mais um confronto em meio a execução das filmagens do longa, como mais um capítulo desse espetáculo dantesco e burlesco.
Machado faz um filme que tem muitas intervenções de direção, e uma narração enfadonha, que em alguns momentos, faz tirar o brilho dos biografados. Já o registro sonoro em A Luta do Século faz valorizar ainda mais as personas de Todo Duro e Holyfield, assim como o mergulho no cotidiano dos dois antigos inimigos. O final da última luta entre os dois repete as polêmicas do começo do filme, fato que demonstra o ciclo de repetição que o destino prega, adicionando mais uma pitada de mística no lendário confronto entre os lutadores.
O início do filme dirigido por Leon Gast é simbólico em percorrer localidades africanas, analisando através da câmera sua população majoritariamente negra: o reinado dos negros para os negros. Esses primeiros momentos resumem todo o cunho do documentário, que faria da luta entre Muhammad Ali e George Foreman, no Zaire, seu evento principal. Porém, a intenção é traçar a identidade do boxeador, antes conhecido como Cassius Clay, através de entrevistas antigas, imagens de arquivos de lutas anteriores, e, claro, falas do próprio Ali, que sabia definir a si mesmo de maneira poética, soando bastante lírico em cada conversa que tinha com a imprensa.
Quando Éramos Reis analisa a postura do nada discreto lutador, que costumava agir como uma máquina de lutar reunindo beleza e verborragia dentro e fora dos ringues, ao menos aos olhos do entrevistado Spike Lee. A investigação do filme envolve o caráter dúbio do boxeador, mergulhando tanto na idolatria dedicada a ele, por seu um esportista negro bem-sucedido, quanto na antipatia recém adquirida por parte do público após o esportista ter professado a religião islâmica.
Na viagem em direção ao país africano, Ali destaca a péssima abordagem que o cinema em geral faz dos africanos, mostrando-os como selvagens ou servos de Tarzan, e outros tantos heróis brancos. Seu argumento é de que o seu povo é inteligente o suficiente para conseguir falar inglês, francês e suas línguas nativas, enquanto parte dos americanos mal fala seu idioma local de maneira correta. Apesar da fala ser anedótica, faz bastante sentido e se torna ainda mais flagrante quando ainda há discursos inflamados de ativistas lutando pela igualdade de direitos entre as raças.
Foreman não entendia a rejeição que sofria por parte dos africanos, e argumentava que sua pele era até mais escura do que a de seu adversário. O pugilista não tinha a consciência da diferença de postura que ambos tinham, nem associava o fato óbvio de que a empatia se dava muito mais por ideal do que por técnica de luta ou cor de pele. A luta entre os dois foi emocionante e seria ainda mais grandiosa, não por motivos de desporto, mas sim por todo o ideal que ela trazia nas entrelinhas e contexto de soberania de um povo comumente massacrado e relegado à posição subalterna.
Quando Éramos Reis não peca em informação, mas é muito mais um registro emocional do que documental, uma ode à vida e à carreira de ícones como Martin Luther King Jr., Malcolm X, Muhammad Ali e demais personalidades provindas das camadas mais carentes dos Estados Unidos, mostrando o apogeu de um ídolo que alcançava o estrelato não só na área em que era especialista, mas também no campo ideológico.
O ano era 1976. Gerald Ford era o Presidente dos EUA após suceder Richard Nixon em decorrência do escândalo Watergate ocorrido anos antes. As políticas de bem-estar social começaram a apresentar um declínio que altera mudanças nas estruturas econômicas e políticas do país, culminando no modelo neoliberal aplicado por Ronald Reagan. Quatro anos antes, a Guerra do Vietnã havia chegado ao fim com a saída dos EUA, após forte pressão política da política externa e interna. Havia um sabor amargo na boca dos americanos e uma descrença do seu poderio e hegemonia frente ao mundo, aliado ao contexto de uma possível guerra nuclear, a qual poderia ocorrer por qualquer movimento em falso de uma das principais potências do século XX que tinha o mundo como um tabuleiro de xadrez. Se isso não fosse o bastante, o país enfrentava uma forte recessão, desemprego e inflação, criando um cenário de instabilidade e crise interna. É nesta conjuntura em que Rocky: Um Lutador é forjado por Sylvester Stallone, e por diversas vezes este cenário, e a própria história de Stallone, se mesclaria a personagem de Balboa e não mais saberíamos diferenciar o criador da criatura.
Creed: Nascido Para Lutar não poderia ser diferente. O sétimo filme da franquia concebida pelo astro nos anos 1970 faz jus ao filme original sem desrespeitar seu próprio caminho. Os elementos conjunturais do primeiro filme se modificam, mas a crise global e o clima de incertezas e inseguranças permanecem, com as características típicas do do século XXI, tornando o novo longa uma bela releitura do filme de 1976. O ainda iniciante Ryan Coogler, responsável por Frutivale Station: A Última Parada, sabe utilizar muito bem a fórmula da série a seu favor e tem um talento natural para posicionar sua câmera e contar histórias de underdogs – azarões, personagens excluídos e à margem da sociedade.
O longa se inicia por meio de um flashback que introduz o protagonista Adonis “Donny” Johnson (Alex Henderson) no início de sua adolescência em um centro de detenção juvenil de Los Angeles, internado por conta de pequenos delitos e do seu comportamento agressivo. Sua infância se resumiu a saltar de orfanatos e casas de detenções para menores. No entanto, sua vida muda completamente após receber a visita de Mary Anne Creed (Phylicia Rashad), que lhe diz ser filho ilegítimo de Apollo Creed (Carl Weathers), seu falecido marido e ex-campeão peso pesado de boxe.
Os anos se passam, Adonis (Michael B. Jordan) permanece com Mary Anne na mansão construída nos áureos tempos em que Apollo era vivo, e divide seu tempo em tentativas abortadas de uma carreira empresarial e lutas clandestinas no México aos finais de semana. A genética paterna fala mais alto e Adonis decide se dedicar exclusivamente ao boxe, apesar do desgosto de sua mãe, e parte para Filadélfia para tentar convencer um velho amigo de seu pai a treiná-lo e tentar provar a si mesmo que faz jus ao legado de seu pai.
Se para Donny é difícil carregar o peso de seu sobrenome e seu passado, o fardo é dividido e compartilhado entre seu treinador, Balboa, já que o ringue não tem mais espaço para seu corpo cansado. O tempo o venceu. E o tempo, tema tão caro para Stallone nos últimos anos, novamente retoma como um dos pontos-chave para o desenvolvimento de Rocky no longa. Em seu primeiro diálogo com Donny, ele é questionado do motivo de Apollo ter perdido a luta realizada entre eles tantos anos atrás, “Foi o tempo que o venceu. O tempo derruba a todos. Ele é imbatível”, responde Rocky. Novamente ficção e realidade se misturam na vida do astro.
As construções dos relacionamentos existentes em Creed: Nascido Para Lutar se alicerçam principalmente na relação entre treinador e aluno. Há uma doçura existente na presença desses personagens e o florescimento da relação se dá de maneira gradual, graças ao talento de ambos, Stallone certamente entrega a melhor atuação de sua carreira até então, andando em uma linha tênue e encantadora de resignação, com a chegada da velhice, e o desejo e a esperança de se ver novamente no jogo, nem que isso se realize na figura de seu discípulo. A importância das relações é impressa também na personagem de Tessa Thompson, Bianca, uma jovem cantora que se envolve com Adonis.
Se os relacionamentos são importantes para a construção e a verossimilhança dessas personagens, são nos detalhes que o filme cresce, como em pequenos momentos de Rocky subindo a colina e conversando no túmulo de Adrian e Paulie; na divertida cena de manifestação física de nervosismo de Donny pedindo para que retirassem suas luvas minutos antes de sua primeira luta pois precisava ir ao banheiro; ou mesmo na intimidade do jovem lutador ouvindo músicas e fazendo tranças em Bianca. Apesar de Bianca possuir um problema de perda de audição progressiva, isso não toma um caráter melodramático para a trama. A doença existe e não é tratada como um ponto de virada simbólico dentro do roteiro, apenas como um fato na vida da personagem.
A confiança de Stallone em, pela primeira vez, entregar o roteiro da série Rocky para terceiros se mostra uma escolha acertada, o texto de Coogler e Aaron Covington compreendem a essência de Rocky e as nuances contidas na personagem desde sua concepção. O trabalho de direção é impecável, seja na sutileza em retratar esses pequenos universos como também para apresentar os ringues, e isso fica claro na primeira luta profissional de Adonis. Em um plano sequência de tirar o fôlego, a cena transporta o espectador para dentro do ringue, com toda a visceralidade e brutalidade existente em uma luta de boxe.
Coogler demonstra um nível de maturidade alto e realiza a transição entre o cinema independente e o cinema de grande estúdio sem perder sua assinatura. Enquanto isso, Stallone se reinventa, desconstrói para se reconstruir. Embaixo do brucutu que nos habituamos a ver por tantos anos – e que tanto insistiu em nos mostrar – existe um ator comprometido na composição de um personagem fragilizado, com uma mensagem universal de que a vida sempre nos deixará de joelhos, pouco importando o quão duro sejamos capazes de bater, cabendo a nós aguentarmos os golpes e seguirmos em frente.
Os primeiros minutos do filme dirigido por seu astro, Sylvester Stallone, começa com os momentos finais de Rocky – Um Lutador, mostrando a luta de Balboa (Stallone) e seu adversário, o campeão inconformado com a resistência do Garanhão Italiano, Apollo Creed (Carl Wheaters). A luta que deveria ser apenas amistosa tornou-se uma versão diminuta de uma guerra, o resultado de toda uma vida de sofrimentos, do capanga da máfia residente na Filadélfia que do alto de seu fracasso agarra as chances de enfrentar o maior atleta do mundo, por pouco não o nocauteando.
O anúncio de Rocky II – A Revanche só acontece decorridos cinco minutos de exibição, após os espólios do capítulo anterior, e tem como primeira cena uma corrida de ambulância, muito bem executada por Sly, repleta de cortes rápidos e de simbolismo, associando o trajeto percorrido à tragédia do homem comum, do pobre e moribundo. No lobby do hospital, Creed se contradiz e o convida para uma nova luta, para provar ao mundo que a odisseia televisionada há pouco foi pura sorte de principiante.
Apesar de todos os problemas sociais a que é acometido, Balboa toma sua pequena Adrian (Talia Shire), casando-se com ela para finalmente livrá-la dos braços do agressivo irmão Pauli (Burt Young). O decorrer da rotina do aposentado boxer inclui passeios pelas ruas da Filadélfia à noite; convites para investimentos de risco feitos por seu antigo patrão, Gazzo (Joel Spinelli); e gastos com o dinheiro que sequer tem, em tentativas malfadadas de virar garoto propaganda, já que não há talento dramatúrgico que o faça conseguir atuar minimamente bem diante de uma câmera.
O roteiro deste lembra muito em estrutura o primeiro, ainda que neste haja o cuidado em contrapor Apollo e Rocky em momentos de derrocada distintos, com o vencedor se lamentando e não aceitando a quase derrota que sofreu, piorada sua situação com as cartas que recebe dos fãs raivosos. Sua moral só não está pior que a de seu adversário azarão, que é humilhado nos sets de propaganda. A mensagem passada é que o status quo prossegue intacto, e que todas as consequências da luta serviram apenas de verniz, um despiste para a realidade do mesmo homem sem sucesso.
A limitação de Rocky aumenta, ele não é mais somente um fracassado, é também um deficiente visual, o que impede de seguir seus instintos e sua luta por dignidade. Continuações normalmente são caça-níqueis péssimos, sem chance para evolução de conceito, somente replicando fórmulas e as exagerando. Rocky II apela para todos esses defeitos, exceto na dificuldade em seguir da onde parou, já que o curso natural dos fatos contradiz o convencional e não incorre nas mesmas redenções bobas que permeariam os roteiros futuros de Stallone.
Após mais uma carga de mini tragédias, depois da autorização de sua esposa, Rocky corre no mesmo trajeto que antes, perseguido por crianças e adolescentes, como orgulho da cidade que um dia o viu como pobre coitado. O pique que consegue executar está longe de ser um exercício puro e simples, é o símbolo tenaz da busca do ignorado e do subestimado por um lugar ao sol, pela oportunidade de enfim brilhar e de desempatar a disputa em aberto, e tal arremedo não é pouco, ainda mais na carreira de um diretor iniciante.
É neste capítulo que os métodos de treino começam a beirar a insanidade, com táticas esquisitíssimas de Mike (Burgess Meredith), incluindo corridas atrás de galeto, socos desferidos com um dos braços amarrados, entre outros. A distância do método deste para o ministrado por Duke (Tony Burton), ao seu lutador, há claramente um receio enorme por parte de todos os envolvidos no certame, exceto no orgulhoso detentor do cinturão. É arrogância de outrem que poderia facilitar a volta do arruinado pugilista.
A revanche se diferencia visualmente e em espírito do visto no filme inicial, a começar pelos calções de Apollo, não ostentando a bandeira americana. A postura é invertida também para o Garanhão Italiano, que decide usar uma estratégia que começa contida e que se torna agressiva com o tempo. O tema de Bill Conti ganha contornos de resolução e virada, tendo seus acordes finalmente alinhados com a vitória do protagonista.
A década de setenta foi um período difícil pro cidadão americano. Também conhecida como a Era da Recessão, a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) triplicou o valor do barril após os EUA apoiarem Israel na guerra do Yom Kippur, fazendo com que a inflação aumentasse de forma considerável e, consequentemente, a desvalorização do dólar. Ademais, o povo pôde acompanhar de perto pela televisão o Caso Watergate, que depôs o até então presidente republicano Richard Nixon, eleito de forma esmagadora. O caso em questão, a título de curiosidade, consistiu numa investigação de dois jornalistas do jornal Washington Post sobre o assalto ao prédio Watergate, sede do Partido Democrata, um dos diversos atos de espionagem promovidos pelo Partido Republicano para dar a Nixon certa vantagem na disputa presidencial. Com diversas provas apreendidas, o caso levou-o à renúncia.
Muitos não entendem o motivo de Rocky – Um Lutador ter feito tanto sucesso. Como pôde um filme de boxe ganhar 3 Oscar, sendo o de melhor filme, melhor diretor e melhor edição? A produção não é um simples filme de boxe, mas um drama que fala sobre superação e, principalmente, sobre as oportunidades que aparecem na vida nas pessoas e no quanto se deve abraçá-las por mais difícil que seja o momento. Justamente o que o povo americano precisava em 1976, quando o filme escrito e estrelado pelo novato Sylvester Stallone foi lançado. A situação não seria ainda mais curiosa se um dos rivais de Rocky – Um Lutador e maior ganhador do prêmio da Academia, em 1977, não fosse Todos Os Homens do Presidente, ótimo filme que conta a história justamente do Caso Watergate. Neste mesmo ano, também disputavam a estatueta grandes filmes como Taxi Driver, Rede de Intrigas, King Kong e Carrie – A Estranha.
Na trama, Rocky Balboa é um jovem boxeador nascido nos subúrbios da Filadélfia que vive de pequenos trabalhos para se sustentar. O boxe, esporte que ama, não arrecada dinheiro suficiente, o que obriga o tímido lutador a trabalhar para um agiota local. Seu trabalho consiste em cobrar os clientes e eventualmente surrá-los quando se encontram inadimplentes. Uma rotina relativamente mecânica. Acorda no fim da madrugada quando ainda é noite, bebe uma vitamina de ovos crus, sai para correr, passa pela feira e ganha alguma fruta, cobra algum devedor, vai treinar na academia surrada de seu técnico, o velho rabugento Mickey (vivido brilhantemente por Burgess Meredith) e, na volta pra casa, passa numa pet shop para comprar suprimentos para seus peixes e também para ver Adrian (Talia Shire), uma jovem tímida que nunca reage às piadas sem graça que o boxeador lhe conta. Muito de sua timidez vem do assédio moral e do machismo de seu irmão Paulie (Burt Young) que vive alcoolizado.
A vida de Rocky muda quando o campeão mundial de boxe, Apollo Doutrinador (Carl Weathers) convida-o para uma luta, dando a oportunidade única de um lutador pequeno enfrentar o campeão. Uma bela jogada de marketing visando os milhões de dólares que seriam arrecadados com a luta. É possível sentir um bizarro sadismo por parte de Apollo em querer humilhar Rocky fora dos ringues, aproveitando-se de sua condição social e seu intelecto comum. Aliás, quando se trata da vida da personagem central, podemos perceber a certeira e clara intenção da fotografia ser mais monocromática, adicionando um certo drama decadente e deprimente ao subúrbio da fria e úmida Filadélfia, sendo uma analogia com a situação da classe trabalhadora americana em épocas de recessão. A analogia social que o filme imprime continua no emocionante embate entre Rocky, O Garanhão Italiano e Apollo Doutrinador, onde Rocky claramente representa o povo americano sofrido e diminuto contra o boxeador famoso, o ídolo que representa, de certa forma, o lado orgulhoso dos Estados Unidos.
Quando os dois boxeadores entram no ringue, os méritos da luta em questão se devem realidade empregada pelo diretor, pela destreza dos atores e pela maquiagem hiper realista das violentas marcas deixadas nos rostos dos lutadores. Vale destacar um ponto curioso da versão dublada brasileira que acabou por alterar o resultado da luta.
O sucesso do filme se apoia diversos fatores, a começar pela atuação de Stallone que conseguiu emular uma atuação no melhor estilo gente como a gente, fazendo com que a maioria das pessoas, em algum momento, se visse na pele da personagem. O ator também soube calibrar bem sua relação com os outros coadjuvantes, a começar com a química que teve com Talia Shire, principalmente na cena em que Rocky leva Adrian para patinar no gelo e terminando, mais tarde, na cena de seu primeiro beijo. Também fica marcado quando o protagonista está com Mickey, um rabugento que não hesita em criticar Rocky na maioria das vezes que está no ringue, relação essa bem retratada nos filmes seguintes. E, por fim, a relação do diminuto Rocky com o absoluto Apollo. É possível perceber o quanto Rocky é frágil em sua essência, tentando ser gentil ou engraçado e falhando nessa missão, além de estar completamente desacostumado com todas as pompas promovidas por um grande evento de boxe, como entrevistas coletivas, sessões de imprensa e as tradicionais provocações fora do ringue.
Diante destes fatores, ainda é necessário destacar uma das cenas mais emblemáticas da história do cinema que mostra o treinamento de Rocky para a grande luta com Apollo. Acompanhada de uma trilha carregada emocionalmente pela música Gonna Fly Now, escrita por Bill Conti e terminando nas escadarias do Museu de Arte da Filadélfia, um dos locais mais visitados no mundo por fãs de cinema, a cena faz com que o telespectador se reconheça na motivação de Rocky para também dizer “eu posso, eu consigo”, levando tal situação como exemplo para qualquer situação que possa enfrentar em sua vida, o que vai ao encontro a discussão do início, devido ao paralelo da situação que o cidadão se encontrava ante a péssima situação econômica que seu país vivia.
E assim como em Cartas deIwo Jima, o ringue é pessoal, tendo nos socos que a vida dá a força e o foco dos combates além do esporte. Clint Eastwood não espera para atacar temas como machismo e autossuperação a partir do boxe, invertendo polos com uma sensibilidade impecável na condução de um drama de proporções épicas, tratado de forma humilde, serena e sóbria, extraindo mais sugestões e símbolos que conclusões e rótulos dos caminhos da mulher, que só queria vestir as luvas vermelhas, usá-las e encontrar no público o amor que nunca teve na família. Os altos e baixos da guerra de uma soldado na pátria do capitalismo, onde todos são convidados a se tornar soldados, seja qual for o resultado das lutas.
Quando a rua te esmurra, teu aluguel ou a carreira, você aceita ou deixa passar? Quem não bate, apanha, com um mundo sabendo disso na pele, lógica desvairada tanto pra homem quanto pra mulher. Aliás, há de o sexo feminino saber melhor disso. Elas, senhores, elas que sentem mais forte o soco mais macio que todos damos e recebemos, aparentemente com mais frequência ao longo dos anos. Elas, fonte da energia feminina do ser, ser profundo que sabe a receita para cair de pé em cima do salto agulha, que dá a luz ao marmanjo que chora porque machucou o dedo e conclama machismo e regras na ausência de lágrimas; Menina de Ouro é recusa ao choro e convite ao soco. É apoteose, é inspeção, e, sobretudo, é testamento para a espécie felina que Lady Di e Maria Bonita pertenceram. Raça que finge ser humana nos contornos de sua feminilidade.
É de ouro porque é valiosa, é menina porque não perde sua essência – no caso, de lutadora. Se todo mulherão guarda consigo, por baixo das máscaras, a garota que só quer um abraço do pai, na história da pugilista Maggie não é diferente. A pessoa chega numa academia, mundo de macho, músculo e testosterona, e logo encontra o Blonde dos faroestes de Leone, um homem duro, frio e rabugento que ela sabe, ou sente, que vai ajudá-la a se tornar, no mundo, o que ela já é por dentro: uma campeã. Um processo de lapidação avesso à trama de um Touro Indomável, um dos melhores “filmes-boxe”, num filme mais intimista, num garimpo de personagens com méritos bastante opostos. Touro encarna o boxe; Menina é sensível; Touro tem a força de uma bomba, graças também à direção de Scorsese, que não muda nada ao longo dos anos, pro bem ou pro mal; enquanto Menina vasculha o lugar e a relevância da emoção no território da competitividade no esporte. Filme à moda antiga no qual é possível ouvir ecos reciclados do cinema ancestral de Nicholas Ray ou Howard Hawks, resgatados por Eastwood nessa semi-versão feminina de Os Imperdoáveis; a busca pelos agressores de uma prostituta vira a odisseia de uma garçonete nos palcos de Mike Tyson. Porque a luta é a mesma. Só muda o palco.