Bem-vindos a bordo. Filipe Pereira (@filipepereiral | @filipepereirareal), Bernardo Mazzei (@be_mazzei) e Jackson Good (@jacksgood) se reúnem para comentar sobre os principais lançamentos nos cinemas e TV para o ano de 2022 e as principais expectativas.
Duração: 89 min.
Edição: Flávio Vieira Trilha Sonora: Flávio Vieira
Arte do Banner: Bruno Gaspar
O retorno do herói é um tema batido na cultura pop, em especial no cinema, normalmente quando um filme de linguagem popular vai bem nas bilheterias é praticamente obrigatório ter uma continuação. Foi assim com a franquia Rocky, que teve cinco filmes, além de um sexto capítulo feito décadas depois. A decisão de ter uma continuação para Creed: Nascido Para Lutar foi natural e obviamente que havia um bocado de receio que Creed II não fosse uma aventura escapista que honrasse o primeiro filme de Ryan Coogler, e por mais que obviamente não seja tão bem construído narrativamente quanto o primeiro, o filme de Stevan Caple Jr é bastante emocionante, e vale toda a espera pela sequencia dos dias do Adonis Creed de Michael B. Jordan.
O roteiro de Juel Taylor e Sylvester Stallone (baseado no argumento de Cheo Hodari Coker) não é tão inspirado quanto o primeiro, e perdeu o fator surpresa obviamente por não ser mais uma novidade, mas ele compensa isso com muita emoção ao longo das suas mais de duas horas de duração. O filme começa já com uma luta de Adonis “Donnie” Creed, finalmente vencendo o torneio na categoria dos pesos pesados. Em meio a decisões sobre seu futuro, onde deseja cortejar Bianca (Tessa Thompson) para finalmente casarem, ele recebe um convite, um desafio vindo da Ucrânia, de um lutador pouco conhecido, chamado Viktor Drago (Florian Munteanu), filho de Ivan Drago, o mesmo que assassinou seu pai dentro de um ringue na década de oitenta e que treinou seu filho para seguir seu legado e conseguir o que ele não conseguiu, o cinturão.
Obviamente que esse confronto foge do pragmatismo que seria a trajetória de um campeão de boxe. Aqui há claramente um apelo ao sentimento de vingança puro e simples, de justiça custe o que custar, onde a aceitação de Donnie só apresentaria possibilidade de perdas e nenhum ganho, tanto desportivamente como emocionalmente pois muitas feridas poderiam ser abertas. Nesse ponto, o roteiro é extremamente previsível, tanto nas curvas dramáticas quanto nas reações emocionais de seus personagens, mas é tudo tão crível que essas obviedades não chegam a incomodar tanto.
Rocky e Donnie são muito cúmplices e um dos acertos do diretor foi apostar nessas relações familiares e de parcerias, pois se crê bastante na relação não só de Rocky com Adonis, mas também no casal que é Bianca e Adonis e até no sentido de Balboa ser um conselheiro do casal, com ambos ouvindo seus ensinamentos além até do ringue.
A participação dos personagens resgatados da saga Rocky é muito bem vinda. Dolph Lundgren mesmo não sendo um ator conhecido por ser dramaticamente bem dotado acerta em seu tom de pai carrasco e treinador severo, embora ainda haja um ranço pueril a respeito de como os derrotados eram tratados na União Soviética. Sua participação é muito bem explorada, e faz brilhar ainda mais a figura de Sly, que mesmo sem ter momentos de redenção forte como foi no primeiro Creed onde se recuperava de um câncer, ainda consegue emocionar demais ao ser a figura paterna de Donnie, sendo muito mais que o tio que ele tanto chama.
A ideia de Adonis em voar solo é passada de maneira bem orgânica, e o jovem Creed finalmente assume as rédeas de seu destino, assumindo as consequências de seus atos sem ignorar os erros e acertos que comete não só nesse filme, como também no outro. Apesar de haver momentos em que as lições de moral abundam a historia, até esse tratamento é feito com um carinho e delicadeza muito grande por parte de Caple enquanto diretor. A escolha de entregar o filme a ele foi um grande acerto, pois como fez em The Land, seu filme anterior, a jornada do herói criado por Ryan Coogler é desenrolada de modo bonito, simples e em alguns momentos, até poético.
Há toda sorte de clichês dos filmes Rocky, no entanto a abordagem deles é adorável, as lutas são eletrizantes, o senso de justiça dos personagens idem. O final é apoteótico, apela para a nostalgia mas não perde a mão e não abusa da pieguice, há muitos ecos de Rocky IV mas até a sensação saudosa com o filme/propaganda que Sly dirigiu e protagonizou em 1985 não faz perder a identidade desse Creed II, que consiste em uma obra reverencial e que possui luz própria.
O ano era 1976. Gerald Ford era o Presidente dos EUA após suceder Richard Nixon em decorrência do escândalo Watergate ocorrido anos antes. As políticas de bem-estar social começaram a apresentar um declínio que altera mudanças nas estruturas econômicas e políticas do país, culminando no modelo neoliberal aplicado por Ronald Reagan. Quatro anos antes, a Guerra do Vietnã havia chegado ao fim com a saída dos EUA, após forte pressão política da política externa e interna. Havia um sabor amargo na boca dos americanos e uma descrença do seu poderio e hegemonia frente ao mundo, aliado ao contexto de uma possível guerra nuclear, a qual poderia ocorrer por qualquer movimento em falso de uma das principais potências do século XX que tinha o mundo como um tabuleiro de xadrez. Se isso não fosse o bastante, o país enfrentava uma forte recessão, desemprego e inflação, criando um cenário de instabilidade e crise interna. É nesta conjuntura em que Rocky: Um Lutador é forjado por Sylvester Stallone, e por diversas vezes este cenário, e a própria história de Stallone, se mesclaria a personagem de Balboa e não mais saberíamos diferenciar o criador da criatura.
Creed: Nascido Para Lutar não poderia ser diferente. O sétimo filme da franquia concebida pelo astro nos anos 1970 faz jus ao filme original sem desrespeitar seu próprio caminho. Os elementos conjunturais do primeiro filme se modificam, mas a crise global e o clima de incertezas e inseguranças permanecem, com as características típicas do do século XXI, tornando o novo longa uma bela releitura do filme de 1976. O ainda iniciante Ryan Coogler, responsável por Frutivale Station: A Última Parada, sabe utilizar muito bem a fórmula da série a seu favor e tem um talento natural para posicionar sua câmera e contar histórias de underdogs – azarões, personagens excluídos e à margem da sociedade.
O longa se inicia por meio de um flashback que introduz o protagonista Adonis “Donny” Johnson (Alex Henderson) no início de sua adolescência em um centro de detenção juvenil de Los Angeles, internado por conta de pequenos delitos e do seu comportamento agressivo. Sua infância se resumiu a saltar de orfanatos e casas de detenções para menores. No entanto, sua vida muda completamente após receber a visita de Mary Anne Creed (Phylicia Rashad), que lhe diz ser filho ilegítimo de Apollo Creed (Carl Weathers), seu falecido marido e ex-campeão peso pesado de boxe.
Os anos se passam, Adonis (Michael B. Jordan) permanece com Mary Anne na mansão construída nos áureos tempos em que Apollo era vivo, e divide seu tempo em tentativas abortadas de uma carreira empresarial e lutas clandestinas no México aos finais de semana. A genética paterna fala mais alto e Adonis decide se dedicar exclusivamente ao boxe, apesar do desgosto de sua mãe, e parte para Filadélfia para tentar convencer um velho amigo de seu pai a treiná-lo e tentar provar a si mesmo que faz jus ao legado de seu pai.
Se para Donny é difícil carregar o peso de seu sobrenome e seu passado, o fardo é dividido e compartilhado entre seu treinador, Balboa, já que o ringue não tem mais espaço para seu corpo cansado. O tempo o venceu. E o tempo, tema tão caro para Stallone nos últimos anos, novamente retoma como um dos pontos-chave para o desenvolvimento de Rocky no longa. Em seu primeiro diálogo com Donny, ele é questionado do motivo de Apollo ter perdido a luta realizada entre eles tantos anos atrás, “Foi o tempo que o venceu. O tempo derruba a todos. Ele é imbatível”, responde Rocky. Novamente ficção e realidade se misturam na vida do astro.
As construções dos relacionamentos existentes em Creed: Nascido Para Lutar se alicerçam principalmente na relação entre treinador e aluno. Há uma doçura existente na presença desses personagens e o florescimento da relação se dá de maneira gradual, graças ao talento de ambos, Stallone certamente entrega a melhor atuação de sua carreira até então, andando em uma linha tênue e encantadora de resignação, com a chegada da velhice, e o desejo e a esperança de se ver novamente no jogo, nem que isso se realize na figura de seu discípulo. A importância das relações é impressa também na personagem de Tessa Thompson, Bianca, uma jovem cantora que se envolve com Adonis.
Se os relacionamentos são importantes para a construção e a verossimilhança dessas personagens, são nos detalhes que o filme cresce, como em pequenos momentos de Rocky subindo a colina e conversando no túmulo de Adrian e Paulie; na divertida cena de manifestação física de nervosismo de Donny pedindo para que retirassem suas luvas minutos antes de sua primeira luta pois precisava ir ao banheiro; ou mesmo na intimidade do jovem lutador ouvindo músicas e fazendo tranças em Bianca. Apesar de Bianca possuir um problema de perda de audição progressiva, isso não toma um caráter melodramático para a trama. A doença existe e não é tratada como um ponto de virada simbólico dentro do roteiro, apenas como um fato na vida da personagem.
A confiança de Stallone em, pela primeira vez, entregar o roteiro da série Rocky para terceiros se mostra uma escolha acertada, o texto de Coogler e Aaron Covington compreendem a essência de Rocky e as nuances contidas na personagem desde sua concepção. O trabalho de direção é impecável, seja na sutileza em retratar esses pequenos universos como também para apresentar os ringues, e isso fica claro na primeira luta profissional de Adonis. Em um plano sequência de tirar o fôlego, a cena transporta o espectador para dentro do ringue, com toda a visceralidade e brutalidade existente em uma luta de boxe.
Coogler demonstra um nível de maturidade alto e realiza a transição entre o cinema independente e o cinema de grande estúdio sem perder sua assinatura. Enquanto isso, Stallone se reinventa, desconstrói para se reconstruir. Embaixo do brucutu que nos habituamos a ver por tantos anos – e que tanto insistiu em nos mostrar – existe um ator comprometido na composição de um personagem fragilizado, com uma mensagem universal de que a vida sempre nos deixará de joelhos, pouco importando o quão duro sejamos capazes de bater, cabendo a nós aguentarmos os golpes e seguirmos em frente.
Dando continuidade ao arco do amado, querido e agora verdadeiramente ídolo de uma cidade, o pugilista Rocky Balboa começa a enfrentar conflitos pessoas e profissionais. Após as lutas com Apollo e com o lutador de luta livre Thunderlips (Hulk Hogan), em um evento beneficente, Rocky deseja se aposentar.
No entanto, é desafiado por Clubber Lang, interpretado por Mr.T, um lutador agressivo e desmoralizante, que se torna o maior desafio na carreira de Rocky, até então. Consequentemente, Rocky está afetado pela fama e pelo sucesso recorrente, o que determina sua “aparente” falta de comprometimento aos treinos, acarretando na derrota pra Clubber e na perda do cinturão dos pesos-pesados.
Nesta continuidade de filmes mais sérios, a terceira parte caminha para uma perspectiva mais sábia. As cenas de lutas permanecem agressivas e ferozes, não havendo passividade e defesa. Além, claro, do triste acontecimento que ocorre após a luta, perturbando Rocky.
Sylvester Stallone, como sempre, emprega muito carisma e personalidade a seu icônico personagem. A química com Carl Weathers apresenta uma nova interface, desta vez como aliados e iniciando uma reformulação em conjunto. O segundo e terceiro atos são basicamente construídos por seus diálogos e cenas de sabedoria.
A direção é mais elétrica, se mostrando até um pouco acelerada em alguns momentos, mas sem atrapalhar a montagem das cenas. O uso de uma trilha sonora mais sortida, além da clássica Eye of the Tiger deixa as cenas mais vivas. O roteiro até mesmo explora o racismo e outras vertentes sociais, mas sem tendenciar, por exemplo, Paulie como preconceituoso maléfico.
Rocky III é um ótimo serviço de manutenção e glorificação do personagem principal. A partir deste filme, que ele começa a aprender e adquirir uma filosofia que o leva consigo, ensinando outros personagens, e principalmente seu filho, em Rocky Balboa.
A década de setenta foi um período difícil pro cidadão americano. Também conhecida como a Era da Recessão, a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) triplicou o valor do barril após os EUA apoiarem Israel na guerra do Yom Kippur, fazendo com que a inflação aumentasse de forma considerável e, consequentemente, a desvalorização do dólar. Ademais, o povo pôde acompanhar de perto pela televisão o Caso Watergate, que depôs o até então presidente republicano Richard Nixon, eleito de forma esmagadora. O caso em questão, a título de curiosidade, consistiu numa investigação de dois jornalistas do jornal Washington Post sobre o assalto ao prédio Watergate, sede do Partido Democrata, um dos diversos atos de espionagem promovidos pelo Partido Republicano para dar a Nixon certa vantagem na disputa presidencial. Com diversas provas apreendidas, o caso levou-o à renúncia.
Muitos não entendem o motivo de Rocky – Um Lutador ter feito tanto sucesso. Como pôde um filme de boxe ganhar 3 Oscar, sendo o de melhor filme, melhor diretor e melhor edição? A produção não é um simples filme de boxe, mas um drama que fala sobre superação e, principalmente, sobre as oportunidades que aparecem na vida nas pessoas e no quanto se deve abraçá-las por mais difícil que seja o momento. Justamente o que o povo americano precisava em 1976, quando o filme escrito e estrelado pelo novato Sylvester Stallone foi lançado. A situação não seria ainda mais curiosa se um dos rivais de Rocky – Um Lutador e maior ganhador do prêmio da Academia, em 1977, não fosse Todos Os Homens do Presidente, ótimo filme que conta a história justamente do Caso Watergate. Neste mesmo ano, também disputavam a estatueta grandes filmes como Taxi Driver, Rede de Intrigas, King Kong e Carrie – A Estranha.
Na trama, Rocky Balboa é um jovem boxeador nascido nos subúrbios da Filadélfia que vive de pequenos trabalhos para se sustentar. O boxe, esporte que ama, não arrecada dinheiro suficiente, o que obriga o tímido lutador a trabalhar para um agiota local. Seu trabalho consiste em cobrar os clientes e eventualmente surrá-los quando se encontram inadimplentes. Uma rotina relativamente mecânica. Acorda no fim da madrugada quando ainda é noite, bebe uma vitamina de ovos crus, sai para correr, passa pela feira e ganha alguma fruta, cobra algum devedor, vai treinar na academia surrada de seu técnico, o velho rabugento Mickey (vivido brilhantemente por Burgess Meredith) e, na volta pra casa, passa numa pet shop para comprar suprimentos para seus peixes e também para ver Adrian (Talia Shire), uma jovem tímida que nunca reage às piadas sem graça que o boxeador lhe conta. Muito de sua timidez vem do assédio moral e do machismo de seu irmão Paulie (Burt Young) que vive alcoolizado.
A vida de Rocky muda quando o campeão mundial de boxe, Apollo Doutrinador (Carl Weathers) convida-o para uma luta, dando a oportunidade única de um lutador pequeno enfrentar o campeão. Uma bela jogada de marketing visando os milhões de dólares que seriam arrecadados com a luta. É possível sentir um bizarro sadismo por parte de Apollo em querer humilhar Rocky fora dos ringues, aproveitando-se de sua condição social e seu intelecto comum. Aliás, quando se trata da vida da personagem central, podemos perceber a certeira e clara intenção da fotografia ser mais monocromática, adicionando um certo drama decadente e deprimente ao subúrbio da fria e úmida Filadélfia, sendo uma analogia com a situação da classe trabalhadora americana em épocas de recessão. A analogia social que o filme imprime continua no emocionante embate entre Rocky, O Garanhão Italiano e Apollo Doutrinador, onde Rocky claramente representa o povo americano sofrido e diminuto contra o boxeador famoso, o ídolo que representa, de certa forma, o lado orgulhoso dos Estados Unidos.
Quando os dois boxeadores entram no ringue, os méritos da luta em questão se devem realidade empregada pelo diretor, pela destreza dos atores e pela maquiagem hiper realista das violentas marcas deixadas nos rostos dos lutadores. Vale destacar um ponto curioso da versão dublada brasileira que acabou por alterar o resultado da luta.
O sucesso do filme se apoia diversos fatores, a começar pela atuação de Stallone que conseguiu emular uma atuação no melhor estilo gente como a gente, fazendo com que a maioria das pessoas, em algum momento, se visse na pele da personagem. O ator também soube calibrar bem sua relação com os outros coadjuvantes, a começar com a química que teve com Talia Shire, principalmente na cena em que Rocky leva Adrian para patinar no gelo e terminando, mais tarde, na cena de seu primeiro beijo. Também fica marcado quando o protagonista está com Mickey, um rabugento que não hesita em criticar Rocky na maioria das vezes que está no ringue, relação essa bem retratada nos filmes seguintes. E, por fim, a relação do diminuto Rocky com o absoluto Apollo. É possível perceber o quanto Rocky é frágil em sua essência, tentando ser gentil ou engraçado e falhando nessa missão, além de estar completamente desacostumado com todas as pompas promovidas por um grande evento de boxe, como entrevistas coletivas, sessões de imprensa e as tradicionais provocações fora do ringue.
Diante destes fatores, ainda é necessário destacar uma das cenas mais emblemáticas da história do cinema que mostra o treinamento de Rocky para a grande luta com Apollo. Acompanhada de uma trilha carregada emocionalmente pela música Gonna Fly Now, escrita por Bill Conti e terminando nas escadarias do Museu de Arte da Filadélfia, um dos locais mais visitados no mundo por fãs de cinema, a cena faz com que o telespectador se reconheça na motivação de Rocky para também dizer “eu posso, eu consigo”, levando tal situação como exemplo para qualquer situação que possa enfrentar em sua vida, o que vai ao encontro a discussão do início, devido ao paralelo da situação que o cidadão se encontrava ante a péssima situação econômica que seu país vivia.