Tag: É Tudo Verdade

  • Crítica | Zimba

    Crítica | Zimba

    Zimba é um híbrido entre documentário e ficção, dirigido por Joel Pizzini. A obra se debruça sobre a carreira e vida do ator e diretor de teatro Zbigniew Ziembinski, com suas palavras, interpretadas por atores que trabalham com ele e pelo próprio, em vídeos de performances gravadas no passado.

    O documentário é levado pela personalidade do diretor polonês. A participação das narradoras Nathália Timberg, Nicette Bruno e Camilla Amado ajudam a ter noção da dimensão e importância de Zimba para a construção do que se entendeu por teatro brasileiro. Além delas, há boas citações de personagens como Jardel Filho, Walmor Chagas, Paulo José, Paulo Autran e Domingos de Oliveira. O filme mostra um personagem imigrante que viu a possibilidade de vir ao Brasil após a invasão de Varsóvia, quando dirigia uma peça e, por conta do bombardeio, fugiu.

    O Brasil se tornou então um lugar de seus sonhos e de sua vida, a alça de salvação de um homem que poderia ter morrido nas guerras europeias. As entrevistas gravadas em vídeo e os teatros filmados impressionam pelo fato dele dominar muito bem a língua, com um sotaque imperceptível. É dito por ele mesmo que esse foi um dos seus principais esforços, de entender o idioma brasileiro e de entender a alma dos brasileiros, embora isso seja discutível, pois Camilla Amado, ao imita-lo, faz um sotaque estrangeiro, abrindo a possibilidade dele só se esforçar em frente as câmeras ou no palco.

    O roteiro destaca a parceria dele com Nelson Rodrigues, compara-o com um demônio e um anjo fundindo forças no teatro. A montagem de Vestido de Noiva de Ziembinski foi marcada por uma revolução nos palcos, principalmente pelo uso da luz, mudada 240 vezes durante a peça. Na época, o teatro não mudava a luz em momento algum. Também se fala abertamente de algumas polêmicas, como o uso de black face e as normas teatrais de não permitir atores negros protagonizando peças. Nem o espírito transgressor do estrangeiro o fez ser capaz de bater de frente com isso.

    Zimba é um filme bonito e poético, não é só uma biografia sobre um artista completo e inovador mas também um documentário histórico da arte, que ajuda a remontar a evolução do segmento, seus primórdios, além de também ajudar a traçar o panorama do que era a sociedade e como chegamos até aqui. Pizzini mira homenagear o personagem histórico e traça o retrato de uma geração, mostrando que ela não acabou e existe além dos atores que trabalharam e conheceram Ziembinski, um sujeito que se doou em vida para o teatro e que é louvado em morte.

  • Crítica | MLK/FBI

    Crítica | MLK/FBI

    MLK/FBI é um documentário de Sam Pollard, diretor conhecido pelo elogiado The Talk: Race in America. Aborda a os arquivos do FBI sobre o reverendo e ativista Martin Luther King, indicando a abordagem completamente parcial e desonesta em cima dessa figura. O filme começa com falas do presidente republicano Ronald Reagan em um discurso bizarro, comentando a historia dos Estados Unidos e as manifestações populares, sobretudo as raciais, como se fossem iguais as batalhas entre bem e mal dos filmes de mocinho que protagonizava quando novo, relegando o papel de vilão aos grupos protestantes de maneira nada sutil.

    É estranho como discursos vindos de classes tradicionalmente tratadas como inferiores são necessariamente associadas a malignidade por parte de figuras de autoridade, mesmo quando o tom da fala é conciliatória como era no discurso de King. O pastor era considerado o negro mais perigoso do país, o homem visto com maior potencial destrutivo para o status quo e o regime de poderes que vigoravam na segunda metade do século XX.

    O filme possui um ritmo um pouco truncado, mas toda a investigação da produção a respeito da paranoia do país e da forma como J. Edgar Hoover lidava com a questão de Luther King ser subversivo é muito bem escrutinada. Na tela se expõem as estranhas de um país que não sabe lidar realmente com as liberdades individuais, embora todo o discurso, para dentro ou fora de suas fronteiras, dê conta dos Estados Unidos como uma pátria que valoriza suas origens democráticas e a liberdade de pensamento e expressão.

    Pollard não tem pudor em mostrar o quão irresponsáveis e injustas foram as autoridades, levantando mentiras contra o pregador, revelando supostas indiscrições, frutos de um reacionarismo tacanho de quem estava no poder em uma época de ebulição e luta de classes. O filme poderia ser mais enérgico, mas de modo algum aliena o espectador.

    Há uma espera, muito justa aliás, para que em 2027 sejam reveladas as fitas originais com os registros da agencia sobre Luther King. Em meio a tantos boatos e fofocas a respeito da vida pessoal de MLK, a obra de Pollard consegue levantar bons indícios de perseguição ao reverendo, que podem inclusive ter influenciado na brevidade de sua trajetória. MLK/FBI é elucidativo e não cai em armadilhas conspiratórias. Além de conversar muito bem com os recentes Judas e o Messias Negro e Os 7 de Chicago, também acrescenta bons temperos aos tempos atuais e as complicadas situações e batalhas travadas contra o reacionarismo que vigora.

  • Crítica | Paraíso

    Crítica | Paraíso

    Paraiso é um longa metragem de Sergio Tréfaut, cuja proposta é bonita: mostrar as rodas musicais românticas de idosos que se reuniam no bosque do Palácio do Catete para cantarolar músicas românticas antigas, lugar tradicional que serviu entre 1897 e 1960 de morada para os presidentes da república e que hoje é lugar de encontro do povo mais humilde carioca, entre eles, as pessoas da terceira idade que participam desses sarais.

    O Palácio nos últimos anos se tornou palco para cinema, exposições, comportando o Museu da República que serve de cenário para algumas manifestações culturais populares, incluindo o Festival do Rio. Entre esses eventos, ocorriam até início de 2020 esses encontros de amor . Obviamente que a proposta desse registro do documentário foi interrompida graças a pandemia de Covid 19 e pela suspensão desses encontros. Até então, os personagens são muito vivas, alegres, mesmo com todas as restrições oriundas da terceira idade, como dificuldade de locomoção e fragilidades físicas.

    Os idosos que permeiam o filme mostram uma alegria e felicidade de viver de gente que é normalmente excluída até por suas famílias. A mensagem proposta é bonita, de não tentar abreviar uma vida só porque a idade é avançada. É impossível não achar engraçada a franqueza e sinceridade típica da terceira idade, fator esse que se faz muito presente. As falas que pareceriam ferinas em outros momentos da vida, aqui soam charmosas e engraçadas.

    Para o espectador que não faz parte desse grupo talvez seja difícil entender os dramas e agruras comuns a quem percebe a possibilidade e a proximidade do fim da vida. Esses encontros, por mais simples que sejam, angariavam ânimo a vida dessas pessoas que são igualmente simples. A ideia de pertencimento é bem semelhante a necessidade de culto e devoção religiosa, embora o intuito aqui seja bem diferente, de criar uma comunidade em torno de um gosto em comum e não do louvor a uma figura invisível.

    Paraíso é um bom retrato de um Brasil suburbano e periférico, da tristeza que é comum infelizmente a uma parcela popular do povo, que merece viver e que é tão massacrado, especialmente nos últimos anos com a retirada de direitos pós mudanças econômicas dos governos recentes. Fora tudo isso, ainda é causada forte emoção em quem assiste a obra de Tréfaut,  por perceber que boa parte dos homens e mulheres que aparecem na frente das câmeras sofreu ou sofre com a pandemia do novo coronavírus, alguns de forma trágica. Em última análise, o documentário é um dos muitos registros emocionais do drama nacional que infelizmente só se agrava.

  • Crítica | A Última Floresta

    Crítica | A Última Floresta

    Luiz Bolognesi é conhecido por seus trabalhos como roteirista em Como Nossos Pais, Bingo: O Rei das Manhãs e Elis, todas histórias biográficas ou sobre um Brasil comum, embora a maioria dos personagens desses filmes sejam pessoas abastadas com dramas pessoais aflorados mas, ainda assim, parte de uma elite. Recentemente, além de roteirista, assumiu a função de diretor e voltou sua carga para as raízes desse mesmo Brasil de maneira diferenciada.

    Em 2018, em Ex-Pajé, misturou documentário e ficção mirando a história de um sacerdote indígena que se converteu ao mundo dos brancos. Em A Última Floresta prossegue seu estudo sobre as tribos nativas brasileiras, usando o xamã Davi Kopenawa Yanomami para mostrar dificuldades das tribos oriundas da Amazônia em manter vivas suas tradições e transmiti-las para outras gerações dos Yanomami, que não são tão isolados quanto eram os seus antepassados.

    Os Yanomani vivem ao norte do Brasil, na fronteira com a Venezuela. Estão lá há muito tempo, mais até do que a data de chegada dos colonizadores portugueses. Portanto, até mesmo pela questão cronológica, não há o que discutir a respeito do pertencimento e posse da terra por parte deles. Em Ex-Pajé, Bolognesi utilizou sua historia pessoal em vários momentos dramáticos, e aqui também faz uso disso. A maneira com que a quebra metalinguística ocorre é ainda menos sutil em comparação com o outro filme. Há embates com os brancos, acompanhado de uma trilha sonora instrumental bem intrusiva, que manipula e causa no espectador uma espécie de apreensão bem artificial, por sinal. Nenhuma dessas sequências parece de fato real.

    A tentativa de estabelecer uma narrativa por meio dos contos e pequenas historias de Davi gera alguns bons momentos, mas na maior parte do tempo, parece que o filme tinha fôlego para resultar em um curta-metragem, não em um longa. Seu roteiro é esticado e ainda mais vazio que Ex-Pajé. Tem a pretensão de parecer realista, de contar histórias tradicionais com pessoas que entendem dessa atmosfera e carga mítica, mas não soa natural, nem narrativamente e nem no desempenho do elenco, mesmo que eles estejam ali vivendo situações familiares.

    Uma história naturalista jamais pode pecar pela artificialidade, e A Última Floresta é exatamente isso: verborrágico, pretensioso. Lembra um filme do início da carreira de Aaron Sorkin, com os mesmos pecados e excessos de um roteirista que se julga tão esperto, que precisa explicitar suas ideias para o público, e esse tipo de presunção é ofensiva, mas até Sorkin alcançou alguma maturidade, o mesmo não se pode dizer de Bolognesi até o momento.

  • Critica | Collective

    Critica | Collective

    Collective é um documentário sobre um incidente incendiário em Bucareste, na boate Colectiv, que matou 27 e feriu 180 pessoas. O longa-metragem de Alexander Nanau investiga as fraudes do sistema político da Romênia a partir do vazamento de informações que um médico fez a um grupo de jornalistas. Fraudes que assustaram a opinião pública local mas que são bastante comuns em outros cenários, como a política brasileira. O diretor teve acesso aos bastidores políticos e apresentou o seu panorama jornalístico e cinematográfico a respeito do incidente.

    O filme indicado ao Oscar na categoria Melhor Filme Estrangeiro e Documentário trata primeiro da tragédia em si,  do impacto que ela causou em quem estava no momento que o fogo tomou a casa e nas pessoas que cercam as vítimas. Depois, explora a historia periférica da politica romena e, em meio a isso, sem esquecer dos detalhes das historias dos sobreviventes. Aborda questões pesadas de quem teve a vida comprometida por conta do fogo, momentos que conseguem emocionar sem soar piegas.

    Os personagens são meticulosamente escolhidos. Há sutileza ao se tratar dessas tramas, as personagens não são tratadas com comiseração. Nanau traz uma estética que foge do simples clichê e da estrutura quadrada de documentários com entrevistas e voz em off. Há inclusive cenas do dia em que ocorreu o incidente, imagens de câmeras internas cuja resolução é bastante aprimorada e que mostram detalhes do horror ali presente. A cena que mostra o show de metal com o fogo correndo o teto e caindo sobre o tecido improvisado, logo após o termino de uma música, é dantesca. Mesmo nessas gravações se nota que a performance musical poderia ter tornado aquele momento em algo ainda mais trágico.

    O impacto do filme é amplificado por conta dos infelizes escândalos de corrupção ligados a pandemia que ocorreram no Brasil e no mundo, pois o caso da Colectiv também deveria causar nas autoridades certa solidariedade e não ganância desenfreada. A exemplo do que ocorreu em várias praças durante a pandemia do novo coronavírus, houve aproveitamento ilícito e inoportuno de autoridades desonesta. Mesmo que o longa tenha alguns problemas de ritmo, sendo bem arrastado em vários pontos, o seu apelo é real, trata de questões muito delicadas e importantes não só dentro do seu cenário nacional, mas também além fronteiras já que encontra eco em situações vistas no mundo inteiro.

  • Crítica | Os Comprometidos:  Actas de um processo de Descolonização

    Crítica | Os Comprometidos: Actas de um processo de Descolonização

    Os Comprometidos: Actas de um Processo de Descolonização, dirigido por Ruy Guerra em 1984, originalmente produzido para a Televisão Experimental de Moçambique e compilado no formato de um média metragem de apenas 48 minutos. Na prática ele é uma edição de seis dias de filmagem praticamente ininterruptos de Guerra, que visava exemplificar como era o sistema legal do país africano de língua portuguesa onde o cineasta nasceu.

    O assunto principal aqui é o julgamento de colaboradores do regime colonial. O país, independente desde a primeira metade dos anos setenta depois de uma longa guerra civil que variou entre 1964 e 74 – esse foi também o último ano do Estado Novo que dava prosseguimento a era Salazar em Portugal – colocou o presidente socialista Samora Machel no poder. Os órgãos jurídicos julgaram os antigos parceiros de forma contundente e bastante rígida. Era um revide, registrado de maneira crua e praticamente sem cortes pelo cineasta.

    Mesmo sem grandes variações de ângulos de câmera, Guerra mostra o autoritarismo do governo de Machel. O político é um personagem intervencionista no filme, conhecido como “Pai da Nação”, morreu em um acidente aéreo suspeito, quando regressava a Maputo, capital do país, onde nasceu o cineasta. Machel era personalista, agia de maneira caricatural, quase como um personagem de si mesmo, mas bastante carismático e gostava de trocar de figurinos nas sessões de direito, era de fato uma pessoa diferenciada e abraçada como um sujeito fora da curva.

    O diretor produziu 29 rolos de filme de 16 milímetros cada. Era uma quantidade enorme de material bruto, e esse documentário procura registrar uma resposta enérgica as forças contra a independência, afirmando de maneira categórica que não há como ser polido ou pacificador com o domínio fascista, e apesar da tentativa de “só registrar”, seu documentário justifica os atos dos biografados. Os Comprometidos: Actas de um Processo de Descolonização mostra uma alternativa agressiva e contundente contra o autoritarismo colonizador.

  • Crítica | Alvorada

    Crítica | Alvorada

    Em 2016, época do impeachment de Dilma Rousseff, parte da classe artística ligada ao cinema sentiu forte o Golpe. Cineastas como Petra Costa, Anna Muylaert, Douglas Duarte e tantos outros prometeram dedicar seus esforços a contar essa história. Eis que, Alvorada finalmente chega ao público, somente em 2021 na mostra do É Tudo Verdade 2021, se juntando a Democracia em Vertigem, Excelentíssimos, O Processo, Já Vimos Esse Filme e até Não Vai Ter Golpe, filme do MBL contando a narrativa dos opositores do PT. Muylaert retorna para o cinema documentário a fim de revelar mais uma vez a podridão dos bastidores do poder em Brasília, junto a codiretora Lô Politi, a mesma que conduziu o ficcional (e curioso) Jonas.

    As diretoras tentam  abordar o filme de  forma semelhante a que Eduardo Coutinho fez em Peões, mostrando os bastidores de baixo, os funcionários não endinheirados, assalariados baixos, que nem sequer estão com microfones. Até personagens celebres, como o ex-ministro José Eduardo Cardozo são mostrados muito de perto, chegando ao cúmulo dele ser mostrado com roupa de ciclista, já que ele pedalava até o planalto enquanto trabalhava em Brasília.

    O filme soa datado, o impeachment ocorreu em 2016. ainda há uma “desculpa” por parte de Muylaert de que o seu roteiro era profético e precisava dos fatos para se comprovar assim. Fato é que muita coisa aconteceu de 2016 até atualidade, ainda mais em tempos pandêmicos. A promessa de filme experiencial resulta em algo anacrônico.  Muylatert já foi mais inspirada, mesmo em suas  obras ficcionais ela conseguiu tocar em assuntos mais sensíveis, em Mãe Só Há Uma e Que Horas Ela Volta? se falou no papel da maternidade, também foram abordadas questões de identidade de gênero, abandono parental e ascensão da Classe C, temas caros a qualquer pensamento progressista, aqui, o que se assiste é apenas repetição. Alvorada até tenta tratar de alguns desses assuntos, e é muito bem vindo que sua câmera acompanhe os trabalhadores braçais e o proletariado, mas o intuito de entender o que o Brasil se tornou e como o povo foi iludido ao ponto de aderir a um discurso fascista não é sequer arranhado.

    Possivelmente se o filme tivesse sido lançado antes, como era previsto, teria outra digestão, mas se torna quase uma piada em 2021 verificar isso, uma vez que ele é preso num pedaço do tempo completamente diferente de seu lançamento, e não faz questão nenhuma de aplacar essa sensação, ao contrário, soa pretensioso ao extremo.

  • Crítica | Os Arrependidos

    Crítica | Os Arrependidos

    Baseado no livro O Terror Renegado de Alessandra Gasparotto, Os Arrependidos é um filme da dupla Ricardo Calil e Armando Antenore que conta  a historia dos ex-guerrilheiros que quando jovens, sofreram tortura para se assumir como arrependidos, inclusive indo a imprensa afirmar que mudaram de ideia em relação a ideologia que antes professavam, classificando assim seus antigos atos como um “terrorismo” que pertence ao passado. O filme conversa com algumas dessas pessoas, Gustavo Guimarães Barbosa, Marcos Vinicios Fernandes, Celso Lungaretti, Marcos Alberto Martini, Rômulo Moreira Fontes. além de falar com alguns parentes desses ex-presos.

    O documentário não tem pressa, as entrevistas são francas e eles falam sobre como entraram nos grupos revolucionários, assumindo que não tinham muito como ocupar o tempo ocioso de sua juventude, que diversão era um artigo de luxo e raro na época, então o lugar contra o reacionarismo e a falta de liberdade eram um caminho óbvio, os movimentos secundaristas e estudantis eram a alternativa mais correta.

    Calil e Antenores variam entre os depoimentos recentes e as gravações antigas de qualidade visual ruim, condizente com os poucos registros de imprensa da época. O conteúdo dessas conversas impressiona, pela crueldade que foi imposta a eles. A curadoria da dupla de diretores é ótima, há cuidado em deixar legendas nas conversas para que o entendimento do público seja completo.

    Os tais “arrependidos” já estão na meia idade, mas nota-se que eles parecem mais velhos do que realmente são, como se a Ditadura roubasse deles os bons anos de sua vida. Chega ao cúmulo de uma irmã mais velha de um dos torturados parecer mais jovem, quase como se fosse ela uma filha de idade, cuidando do pai já bem idoso. Eles não se consideram traidores, cada um tem seus motivos para falar, e alguns, até seguem o pensamento ligado a esquerda, mas aceitavam falar sobre seus arrependimentos para ter liberdade, obviamente. Gustavo Barbosa por exemplo afirma que dentro dos seus limites, falava que a luta armada não era boa, mas não que concordava com o Regime.

    A edição é bem pensada, entre as falas dos entrevistados são colocados comerciais da época, fato que reforça a sensação de incômodo. Tanto a música dessas propaganda  quanto a falta de qualidade sonora das peças publicitárias, fica uma impressão de que os comerciais são curtas de terror.

    É de partir o coração quando se fala dos arrependidos já falecidos, ainda mais no que se fala a respeito dos arrependimentos, das mentiras e das torturas que passavam do físico e destruíam as pessoas em níveis de caráter, sentimentos e moral. Acompanhar toda essa historia, ainda mais atualmente quando ocorre um movimento político que defende práticas tão vis quantos essas é pesado. Um dos momentos mais chocantes do filme reside nas falas das parentes de um dos arrependidos já morto, Manuel Henrique Ferreira. Abaixo, um trecho da carta que Ferreira enviou, claro, resumido, já que a correspondência tinha 21 páginas:

    Ao final de Os Arrependidos, se dá o destino dos ex-militantes, alguns se tornaram jornalistas do veículo ligado a direita, A Folha da Tarde, alguns migraram para o movimento ultra direitista como O Integralismo , outros nem quiseram falar sobre seus arrependimentos porque as lembranças eram muito duras, e Massafumi Yoshinaga é tratado como uma das principais vítimas desse tempo, pois foi símbolo “positivo” para os milicos, por ter sido um dos mais notórios arrependidos, e depois, se suicidou. É uma historia dilacerante e uma vez publicado o filme, a obra ganha contornos de documento histórico, que brilha bastante por desvelar mais uma das muitas mentiras do Regime Militar brasileiro, que não foi nada brando com esses homens, que eram meninos a época.

  • Crítica | Vicenta

    Crítica | Vicenta

    Uma jovem, com deficiência mental, é estuprada por seu tio. O crime gera uma gravidez, e a situação sequer é compreendida pela vítima. Amparada pelo Código Penal da Argentina, país em que vive, a mulher leva o caso à Justiça a fim de realizar o aborto. O que seria o cumprimento da Lei acaba esbarrando em burocracias judiciais e em dogmas morais e religiosos, levando Vicenta, a mãe da vítima e personagem que dá nome ao filme de 2020, a enfrentar o sistema judiciário do país e o estigma da sociedade argentina.

    O filme de Darío Doria foi lançado poucos meses antes da aprovação do aborto legal na Argentina dentro das primeiras 14 semanas de gestação. Vendo-o hoje, na edição deste ano do festival É Tudo Verdade, com tal perspectiva histórica, não é estranho perceber o tom difuso que o documentário animado assume. Parte lamento, parte celebração, Vicenta se encarrega de analisar os sintomas criminosos de uma sociedade conservadora, mesmo que sem pretensão de fornecer um diagnóstico para além do debate que cerca a interrupção da gravidez.

    O espectador brasileiro não precisa dos fatos tratados no filme, ocorridos em 2006, para que tenha seu próprio julgamento sobre o caso. O Brasil de 2020, assombrado pelo de 2018 e amaldiçoado até sabe-se quando, passou por uma repercussão semelhante ao da argentina Laura, mas tratando-se de uma menina pernambucana de 10 anos. As manifestações de cunho religioso de cada situação podem evocar seu par, da mesma forma que os entraves judiciais, que até então eram previstos no ordenamento jurídico, emperraram devido ao debate público acalorado.

    Vicenta, que se refere à filha doente como “uma criança que cresce, mas não cresce”, não tem seu nome no título principal à toa. É por meio de sua figura e ponto de vista que os 70 minutos de projeção percorrem seus caminhos. Com bonecos feitos de massa de modelar e imagens reais de noticiários da época, o documentário se desdobra numa linearidade simples, indo do ponto inicial ao final sem tomar vias tortuosas. O pragmatismo do filme, guiado pela protagonista e a narrativa, poderia ser o ponto principal de uma potência dramática, mas que se resume ao sentimento dúbio e por vezes conflitante já abordado.

    Não que a tônica seja de fato problemática, mas o documentário soa aquém de alguma intenção de manifesto, reservando-se mais como um retrato histórico de um tempo não tão distante e de uma mentalidade social ainda existente. O quadro é reforçado pelas figuras planas, sem vozes e com poucos nomes, que assumem funções em vez de personalidades. Da mesma forma que os bonecos estáticos, que dependem de seus arredores para que algum movimento seja visto em tela, esses personagens dependem da casualidades de seus ambientes. Meros peões que precisam do movimento de outras peças para que prossiga o jogo de suas vidas, com raras chances de uma posição de xeque-mate.

    A personagem real de Vicenta assume esse lugar no tabuleiro, tal qual sua representação fílmica. Apesar de se resguardar um tanto em seus debates, o documentário tem força suficiente em sustentar a tensão entre a efemeridade e perenidade das causas ali abordadas.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | Edna

    Crítica | Edna

    O peso do passado sufoca o viver do presente. Asfixiado, tampouco o futuro pode ser vislumbrado. As memórias que carrega há 70 anos fazem de Edna Rodrigues de Souza um mero dispositivo de rememoração de um tempo não tão distante, em exceção aos anos precedidos, mas que se repete desde então, sem perspectiva de fim. Em Edna (2021), Eryk Rocha (Cinema Novo, Campo de Jogo) aborda de forma sutil o elo que sustenta o ciclo de opressões de forças institucionais aos desamparados do Brasil de ontem e hoje.

    Sobrevivente da Guerrilha do Araguaia, a personagem que dá nome ao filme se deixa filmar sem que fale para a câmera a narração que atravessa o off do documentário. A voz é de Edna, mas não necessariamente daquela vista em cena. O invisível toma forma nas letras de um diário quinquagenário e ganha liberdade no recitar da protagonista durante a uma hora de projeção do filme. A vazão que Edna tem em seus relatos diverge da rigidez da câmera que acompanha seu dia a dia às margens da rodovia Transbrasiliana, entre os estados do Pará e do Tocantins.

    O diretor parece estar ciente disso. Ainda que suas lentes permaneçam sempre à certa da distância da personagem, aproximando-se somente em zoom, Edna é permissiva o suficiente para ser seguida na cama, ao tomar banho, ao discutir sobre sentimentos amorosos com seu companheiro. O conjunto que se forma no quadro da precária habitação da protagonista é o de desolação e solidão, contrastado com o fluxo e presença da estrada que atravessa sua vida e os caminhos do país.

    Da mesma forma, a estaticidade das cenas contraria a dinâmica da narração, como num ensaio entre vida e sonho. É desses opostos que Rocha e Edna, a mulher e o longa-metragem, tratam de um Brasil que insiste em renegar o passado e padecer desse erro no presente, numa constante de repressão e massacre. Asfixiado, tampouco o futuro pode ser vislumbrado.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • É Tudo Verdade 2021 | Balanço Geral – Parte 2

    É Tudo Verdade 2021 | Balanço Geral – Parte 2

    Prosseguindo em nosso balanço do É Tudo Verdade 2021 (leia sobre a Parte 1 aqui), falamos agora de alguns dos filmes que passaram na plataforma Sesc Digital, outros das mostras competitivas e um pouco dos premiados.  Na competição internacional, o a coprodução Dinamarca, Estados Unidos e Noruega Presidente venceu como melhor longa-metragem.  Já Os Arrependidos ganhou o prêmio de Melhor Longa Nacional. Da parte dos curtas, A Montanha Lembra (Argentina, México) venceu,  e o filme nacional premiado foi Yaõkwa: Imagem e Memória, que também levou o prêmio do Canal Brasil. O júri também fez menções honrosas aos filmes Vicenta, Ser Feliz no Vão e Máquina do Desejo: Os 60 Anos do Teatro Oficina.

    2020 (Hernán Zin, 2020)

    Filme espanhol sobre o começo da pandemia de Covid-19, impressiona mais pelo fato da equipe de filmagem conseguir ficar tanto tempo no hospital (quatro meses praticamente ininterruptos) do que pelos fatos expostos, uma vez que o noticiário espanhol foi bastante debatido pela imprensa alternativa no Brasil e no mundo. Zin registrou todos os ângulos possíveis do impacto que o novo coronavírus causou na Espanha, mostrando até o destinos dos pets cujos donos morreram de Covid.

    Alvorada (Anna Muylaert e Lô Politi, 2020)

    Mais um filme a respeito do impeachment de Dilma Rousseff. O projeto de Muylaert e Politi tem alguns bons momentos, mas no geral, repete o que Democracia em Vertigem e O Processo já haviam feito antes, com a diferença de dar mais lastro para a classe C, que trabalhava no Palácio da Alvorada durante esse julgamento político.

    O Monopólio da Violência (David Dufresne, 2o2o)

    Esse esteve na Quinzena de realizadores de Cannes, e é um bom sinal de como funcionam os protestos populares na França. Dufresne reúne em seu filme algumas filmagens em primeira pessoa, de ações estúpidas e violentas da polícia francesa. Há debates acalorados, ações enérgicas e físicas contra o patrimônio público e outras ações mais violentas do povo contra a repressão das autoridades. Diretor e filme não tem receio em retratar a repressão como ela é, algo vil, mesquinho e que só pode ser retribuído com a mesma truculência imposta.

    MLK/FBI (Sam Pollard, 2020)

    Filme denúncia, aborda a desonesta abordagem do FBI ao reverendo e ativista Marthin Luther King. O filme do documentarista que fez The Talk: Race in America mostra o quão retrógradas podem ser as autoridades de um país e o quanto não há escrúpulos no procedimento de denegrir a moral de uma pessoa.

    História de um Olhar (Mariana Otero, 2020)

    Mariana Otero vai até o Camboja e demais países onde o fotojornalista Gilles Caron trabalhou. Caron era um fotojornalista famoso, que estava no auge de sua fama e trabalho, desapareceu no país asiático quando tinha 30 anos, sem deixar rastros ou vestígios e o documentário busca dar uma luz sobre esse estranho acontecimento e faz isso passando também pelas lindas imagens registradas por suas lentes, e claro, pelas denúncias humanitárias que ele fazia.

    A Última Floresta (Luiz Bolognesi, 2020)

    Selecionado para Berlinale, popular festival de cinema na Alemanha, esse é outro longa de Luiz Bolognesi que mistura elementos reais com ficção, e que usa o cenário indígena brasileiro como fundo da história, como foi também com Ex-Pajé, de 2018. Esse conta a historia de um xamã Yanomani que tenta manter as tradições de seu povo vivas, e o faz através de contos narrados com as imagens da câmera de Bolognesi. O filme é pretensioso entrega bem menos do que promete, e essa tem sido um tônica de Bolognesi enquanto realizador..

    Leonie, Atriz e Espiã (Annette Apon, 2020)

    Produção holandesa, o documentário trata da atriz Leonie Brandt, nascida em 1901 e falecida em 78, que depois do sucesso nos cinemas, se tornou espiã do serviço de inteligência holandês na Alemanha nazista. Apon inteligentemente usa cenas da própria artista em tela para exemplificar como foram os anos dela enquanto infiltrada no cenário fascista. O filme lida bem o duvidoso e com os mistério tradicionais da vida dela.

    Colectiv (Alexander Nanau, 2019)

    Colectiv concorre ao Oscar na categoria Melhor Filme em língua estrangeira, a co-produção da Romênia e Luxemburgo, fala a respeito da boate de Bucareste Colectiv, que em um incêndio, matou 27 pessoas e feriou outras 180, inclusive com mortes no hospital oriundas desse incidente. O caso ocasionou um vazamento de informação, de um médico para jornalistas e é descoberta uma fraude no sistema de saúde, Nanau então acessa os bastidores do modo de lidar com a saúde e com a corrupção da Romênia. Filme incisivo e certeiro.

    Zappa (Alex Winter, 2020)

    Zappa é um mergulho íntimo na vida e obra do icônico Frank Zappa. Winter, mais conhecido por ter sido dupla de Keanu Reeves nos filmes de Bill e Ted consegue passar por toda a carreira do compositor, interprete e musicista, sem soar raso ou piegas. O filme é íntimo e forte, uma ótima porta de entrada para o fã da arte que não conhece nada a respeito de Frank Zappa.

  • Crítica | História de um Olhar

    Crítica | História de um Olhar

    Como uma necromante, Mariana Otero devolve à vida Gilles Caron e a suas fotografias. Caron, desaparecido no Camboja em 1970, foi capaz de cobrir em pouco mais de três anos alguns dos principais momentos do final da década de 1960. São dele algumas das imagens em que o mundo rememora a Guerra dos Seis dias, em Israel; a Guerra do Vietnã; o conflito civil de Biafra e a revolta estudantil de Maio de 68, na França. Em História de um Olhar (2019), mais que relembrar, a diretora francesa exercita uma construção particular da vida de Caron e dos eventos por ele registrados, numa tentativa de entender a história que levou a seu desaparecimento.

    O fotógrafo é encarado de duas formas a partir dessa perspectiva: um homem comum e um memorialista de seu tempo, nunca desassociado da profissão e da intensidade de sua vida. Mariana tenta preencher o vácuo existente entre uma fotografia e outra, pressupondo situações de acordo com a ordem das capturas, do testemunho de pessoas próximas a Caron, de cartas escritas por ele e das imagens em si. Em dado momento, a diretora brinca com a ordenação das fotos. Se um conjunto de imagens tivesse sido feito antes de outro, como aquela situação registrada se desdobraria na carreira de Caron e até mesmo no mundo?

    É desse esforço dialético entre análise e criação que o filme se estrutura. Narradora e construtora dessas histórias, a realizadora se coloca como uma personagem ativa e consciente de suas escolhas. A intimidade com as fotos é tamanha que Mariana referencia Caron na segunda pessoa, como se ali o fotógrafo estivesse presente e como se aquelas imagens fossem uma representação daquele ser.

    A permissão coloca o espectador numa posição também de criador das tantas narrativas ensaiadas na projeção, uma vez que as falas de Mariana convidam o público a imaginar e por vezes participar dos momentos retratados. Para tanto, a montagem se vale de uma sucessão de fotos com significados individuais, mas com diferentes percepções quando visualizadas uma após a outra. Qual seria o aspecto mais próximo da realidade carregado pelo cinema em relação à fotografia se não a de retratar o decurso do tempo dentro de um espaço na presença do movimento? O filme parece ter essa consciência mística da sétima arte em energizar o visível e elucubrar o extracampo para além da estaticidade das películas fotográficas, ainda que utilize o material original de Caron para pensar as possibilidades que circundavam aquelas imagens.

    Das histórias que imagina, o documentário ainda tenta demonstrar parte dos processos tomados por Caron na captura das fotos. Ainda que especuladas, as opções dão sensibilidade à figura, como os recuos e avanços do fotógrafo em meio ao fogo cruzado, a identificação dele com um estudante que enfrenta a polícia parisiense ou das possíveis táticas aplicadas por Caron nas selvas vietnamitas a partir de sua experiência como combatente francês na Guerra da Argélia. A imagem do homem se sobrepõe à do fotojornalista e dele lança sentimentos mistos e diferentes aos que são percebidos nas expressões dos retratados.

    A narrativa criada por História de um Olhar para os lapsos da vida de Caron não é encerrada em si. Soluções são deixadas de lado, e outras tantas questões surgem sobre o personagem, sejam de antes ou depois do fatídico evento no Camboja. A ampliação humaniza os olhos detrás das lentes e põe sob ótica a história de um sujeito que viveu para registrar a história dos outros.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | Presidente

    Crítica | Presidente

    De herói a vilão, Robert Mugabe esteve no comando do Zimbábue por 37 anos. Seu governo foi interrompido após um golpe militar encabeçado pelo então vice-presidente Emmerson Mnangagwa. A nova gestão assumia o controle do país em 2017 com a promessa de garantir já no ano seguinte um pleito presidencial democrático e transparente.

    Presidente, da dinamarquesa Camilla Nielsson, acompanha a realização dessa eleição pelo ponto de vista do partido de oposição, a Aliança da Mudança Democrática (MDC). O filme vê o surgimento do jovem advogado Nelson Chamisa como candidato da chapa após a morte de Morgan Tsvangirai, líder do partido e amplo favorito segundo apoio popular. Cabe a Chamisa, a poucos meses da eleição, conquistar o eleitorado órfão e ansioso por reformas políticas e sociais no país.

    O longa opta desde o início em moldar sua narrativa em torno de uma estrutura típica de thriller político. As reuniões por trás de portas fechadas, os comícios com ampla adesão popular, as estratégias para a campanha de Chamisa. Tudo é disposto num ritmo que privilegia a tensão da trama num embate entre os personagens que são colocados como verdadeiros defensores do pleito justo e o governo vigente que parece preocupado demais com a extensão de mecanismos autoritários que garantam sua continuidade no poder.

    A lógica é simples, mas eficiente. As pretensões do filme são focadas no desenrolar das situações que acompanham a disputa eleitoral, culminando na contestação judicial do pleito por parte do MDC. Menos preocupado em ser uma análise da situação geral do país africano ou algo mais amplo que o mero cotidiano do comitê opositor, o documentário se propõe a investigar conflitos de ordem político-social sob a ótica de um grupo menor, mas que obviamente transbordam ao tecido da combalida sociedade zimbabuana.

    Embora favoreça a documentação dos fatos ao lado do MDC, o filme não se exime de acompanhar Chamisa até mesmo em momentos que o pragmatismo político e eleitoreiro do candidato se sobrepõe a um possível idealismo. É na figura do jovem político que Presidente carrega o espectador por boa parte da projeção, usando seu carisma como um movimento contínuo de sequência a sequência.

    Quando o candidato sai de cena, a produção aposta o tempo de tela em outros nomes do partido que antes somente orbitavam Chamisa. Mesmo sem a força do dito protagonista, os outros personagens são capazes de levar a história adiante pela própria gravidade das circunstâncias que se apresentam. Em certos momentos, a direção parece desacreditar dessa competência e passa a enfatizar o contexto em demasia, valendo-se de chamadas jornalísticas da época, narrações em off de comentaristas de TV e pequenos interlúdios com textos que fazem a transição ao longo da trama.

    O didatismo da informação chega a dar espaço ao didatismo de sentimentos. Em diversas ocasiões, o filme apela a elementos de catarse e comoção, como a trilha sonora que embala momentos supostamente trágicos, tal qual as passagens que enclausuram as expressões dos personagens em intensos close-ups. Os artifícios pouco funcionam no escopo geral do filme, uma vez que o próprio ritmo do longa encerra rapidamente tais mergulhos melancólicos.

    Ainda assim, o documentário tem mérito ao captar a atmosfera tensa e turbulenta do período, fazendo de Presidente um poderoso registro em tempo real das usurpações repressivas num Estado democrático de direito.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • É Tudo Verdade 2021 | Balanço Geral – Parte 1

    É Tudo Verdade 2021 | Balanço Geral – Parte 1

    Desta vez o É Tudo Verdade foi inteiramente exibido online, com transmissões via streaming da Mostra Competitiva e algumas retrospectivas, envolvendo o cantor Caetano Veloso e o diretor Ruy Guerra. Confira um pouco do melhor que ocorreu no festival.

    Fuga (Jonas Poher Rasmussen, 2021)

    Filme de abertura do Festival, Fuga é um documentário animado bastante bonito, que conta a história de um refugiado afegão que tem que lidar com o truculento modo de pensar e governar de seu país. Rasmussen faz uma bela viagem pela cultura, credo e contradições de um país conservador, e que infelizmente encontra ecos em tantos outras cenários, fazendo isso através da ternura da visão e depoimento de uma testemunha anônima.

    Coração Vagabundo (Fernando Grostein Andrade, 2008)

    Esse foi um documentário famoso da década passada. O Filme acompanha Caetano durante a turnê do disco A Foreign Sound, de 2004, por São Paulo, Nova York, Tóquio e Quioto. É bem íntimo, mostra a vida de Caetano enquanto criador e trabalhador, indispensável para quem gosta do personagem.

    Eu e o Líder da Seita (Atsushi Sakahara, 2020)

    Trata da seita apocalíptica Aum Shinrikyo, de Tóquio, secto-religioso que cometeu o maior ato terrorista do Japão. O diretor, Sakahara estava em um dos trens e sofreu danos permanentes no sistema nervoso por conta do ataque, e diante desse trauma, decidiu falar com Araki, o atual líder do grupo, onde travam uma conversa sobre liberdade religiosa e terrorismo. O filme é parado, um bocado morno, mas toca em assuntos bastante pesados.

    Glória a Rainha (Tatia Skhirtladze, 2020)

    Documentário sobre um quarteto de mulheres enxadristas que fizeram história na União Soviética, Glória a Rainha é um filme diferenciado especialmente graças ao seu formato. A partir dele é fácil notar a diferença cultural do Leste Europeu com a ocidental. O filme destaca como Nona GaprindashviliNana AlexandriaMaia Chiburdanidze e Nana Ioseliani inauguraram uma nova tradição de competições esportivas na Rússia e demais países da União Soviética, mesmo que atualmente hajam menos mulheres jogando xadrez de forma competitiva.

    Charlie Chaplin, o Gênio da Liberdade (Yves Jeuland, 2020)

    Apesar de estar fora da Mostra Competitiva, o documentário francês é de suma importância dentro da curadoria. Jeuland traça todo um perfil do gênio do cinema Charlie Chaplin, contando seus primórdios nas artes cênicas até o ingresso dele como realizador do cinema. O filme esteve em mostras do Festival de Cannes, e é uma boa parte de entrada para quem não conhece a obra do cineasta.

    Máquina do Desejo (Lucas Weglinski e Joaquim Castro, 2021)

    Documentário sobre a Companhia Teatro Oficina, esse é um filme bastante lúdico, que varia entre peças filmadas, comerciais, imagens de arquivo com Zé Celso e outros personagens históricos do Teatro Oficina e outros momentos marcantes do lugar. Essa imagens ajudam a contar a história do lendário palco e  i filme mira ser um objeto ensaístico, mas não acerta em sua tentativa de entreter.

    Mil Cortes (Ramon S. Diaz, 2020)

    Impressiona assistir o cenário político das Filipinas a partir da subida ao poder do reacionário presidente Rodrigo Duderte. O presidente, cuja plataforma era famosa pela briga contra das drogas bastante intensa, fez a imprensa ser perseguida, presa, ameaçada via internet e pessoalmente. O retrato do país não é muito diferente dos desmandos e loucuras do governo atual  brasileiro comandado por Jair Bolsonaro, fato que torna esse possivelmente em uma obra profética.

    Dois Tempos (Pablo Francischelli, 2021)

    Documentário sobre dois violonistas, o argentino Lucio Yanel, e seu pupilo brasileiro Yamandu Costa. É um filme sobre relações sentimentais de admiração e de transa artística, a trilha sonora é belíssima, embalada pelo trabalho dos dois instrumentistas, que em meio a virtuosidade de seus personagens, revela uma franca sintonia repleta de admiração mútua e sentimentos familiares. Uma verdadeira ode a música de seis cordas.

    Paulo César Pinheiro- Letra e Alma (Cleisson Vidal e Andrea Prates, 2021)

    Outro belo documentário sobre musicistas. Dessa vez o foco é no compositor popular Paulo Pinheiro, que narra sua própria história e jornada como interprete e compositor da cena da MPB nas décadas de 60, 70 e 80 principalmente. A trilha que Pinheiro fez em sua vida beira a poesia, e o resgate dos vídeos de arquivo é  sensacional, o longa faz um bom trabalho em dar voz ao cantor que encanta com seus causos. Pinheiro é um personagem sagaz, inteligente, sarcástico, especialmente quando  fala das dificuldades que tinha para trabalhar na época da Ditadura Militar.

    Zimba (Joel Pizzini, 2021)

    Documentário sobre Ziembinski, o ator e diretor de teatro polonês radicado no Brasil, famoso por adaptar Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues, mas também por inspirar e ensinar boa parte do corpo de atores do Brasil como um todo. Os depoimentos de atores e atrizes que trabalharam com Zimba, alguns já em memória, dão conta do quão importante e impreterível Ziembinski era para a construção do que se entende por teatro e por trabalho dramático, que se alastrou por toda a gama de arte encenada em frente as pessoas ou ao audiovisual.

    Os Arrependidos (Ricardo Calil e Armando Antenore, 2021)

    Baseado no livro O Terror Renegado de Alessandra Gasparotto, Os Arrependidos é de rasgar o coração, o filme mostra o estranho movimento de ex-guerrilheiros que durante a Ditadura Militar no Brasil, se entregaram para afirmar junto a imprensa que se arrependiam da luta armada. Calil e Antenore conversam abertamente com alguns desses “arrependidos”, que não tem pudor em assumir que fizeram aquilo sob tortura, que mentiram de maneira deslavada e que todas essas versões causaram marcas terríveis em moral e pensamento da vida de cada um daqueles jovens.

    Edna (Eryk Rocha, 2021)

    O filme de Eryk Rocha fala com uma senhora, que mora à beira da rodovia Transbrasiliana. O relato mistura elementos reais da vida de Edna com escritos de um diário que ela mantém por toda vida, que não apenas a realidade, mas também seus sonhos e anseios. Apesar da premissa  curiosa, o filme resulta em algo que chama atenção por sua forma mais do que pelo conteúdo. Rocha já fez bons filmes, como Cinema  Novo e Campo de Jogo que dentro das suas propostas, conseguem conversar melhor com o espectador que este Edna.

    9 Dias em Raqqa (Xavier de Lauzanne, 2020)

    Mostra a dura repressão politico-religiosa sobre o povo da Síria, tomando  como exemplo a cidade de Raqqa, um lugar destruído e repleto de cinzas. A câmera acompanha Leila Mustapha, prefeita da cidade que tenta resgatar a glória de outros tempos sobre o lugar. Cada capítulo do filme mira um dia, e impressiona a facilidade com que tanques e veículos de guerra transitam facilmente sobre a cidade e sobre outros lugares do país que tem intimidade com os jihadistas. O final do filme é até otimista, dada a condição desse cenário, no entanto o maior legado do filme dele é mostrar uma realidade tangível e ignorada por boa parte do mundo, involuntária ou deliberadamente.

  • Crítica | Gorbachev.céu

    Crítica | Gorbachev.céu

    Gorbachev.Céu é um documentário curioso. Além de dar voz a uma figura política controversa do passado, o ex-secretário geral do Partido Comunista e ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbachev, também se permite ser silencioso e contemplativo. Vitaly Mansky mergulha na identidade e intimidade do homem a quem se atribui o fim do sonho socialista, com ele já limitado fisicamente, embora bastante lúcido.

    Gorbachev fala a respeito do desprezo que parte dos russos tem por sua figura, especialmente da imprensa, ainda que encare o momento político atual do país como continuação do seu trabalho. Ele se sente um herói da política e da democracia, vê Vladimir Lenin como um deus, mantém um postura serena e calma na maior parte dos momentos e se diz, reiteradamente, que foi mal compreendido ao longo de seu mandato.

    O filme tem um ritmo lento, acompanhando as falas e pensamentos de seu biografado, os poucos momentos enérgicos resultam dos resumos que ele faz a respeito de figuras notáveis do regime soviético, especialmente as óbvias como Lenin e Josef Stalin, e outros menos lembrados como Yuri Andropov e Fyodor Kulakov. Suas opiniões são contundentes e curiosas, é possível enxergar em suas falas semelhanças com políticos brasileiros, incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que além de não gostar de ser associado à direita é escorregadio ao falar dos seus erros como governante.

    Mansky considera Gorbachev um pária, e de fato, ele é. Contudo, o lado que ele escolhe defender em seu filme é que Mikhail foi injustiçado, a visão apresentado pelo documentário era que a URSS era nefasta e que a classe trabalhadora não teve tantos avanços. Isso não impede que entre cineasta e entrevistado haja atritos ou mitificações, Gorbachev responde de maneira atravessada a indagação de que a Rússia não é um país de democracia longeva, e de que seus tempos não fugiam do autoritarismo, e mesmo sem ter a mesma força de quando era jovem, ele se mostra vaidoso e resoluto, embora na maior parte do tempo seja cortês.

    Parece um castigo que o presidente que estava no poder na dissolução da potência soviética esteja vivo e consciente, beirando um século de vida, possivelmente podendo acompanhar as duras críticas feitas sobre sua pessoa. Apesar da mornidão e do viés liberal existente no filme, Gorbachev.céu retrata um importante ator político do século XX, e ajuda a visualizar o mapa socioeconômico de hoje e ontem.

  • Crítica | Eu e o Líder da Seita

    Crítica | Eu e o Líder da Seita

    O maior ataque terrorista já registrado no Japão ocorreu em 20 de março de 1995. Na ocasião, membros da seita Aum Shinrikyo (Verdade Suprema, em tradução livre) liberaram gás sarin em linhas do metrô de Tóquio. O resultado foi a morte de 13 pessoas e o ferimento de outras mais de 6 mil. Entre os feridos, Atsushi Sakahara, diretor deste Eu e o Líder da Seita.

    Sakahara conviveu por mais de 20 anos com problemas neurológicos devido ao atentado. Em 2015, após um ano de negociações, foi autorizado a gravar uma longa conversa com o diretor de Relações Públicas do culto, Araki Hiroshi. É desse diálogo que surge o filme, que acompanha um dia inteiro da dupla conversando num percurso pelos arredores de Tóquio.

    Pela própria natureza do encontro entre ambos, é esperada uma tensão mais que latente. A postura de Sakahara é contrastante com a de Hiroshi: enquanto o primeiro é expansivo e provocador, o outro é contido e esquivo. Mas isso não impede de que revelações sejam feitas a partir das investidas do diretor. Hiroshi muito fala sobre sua vida pré-renúncia, isto é, anterior ao ingresso na seita liderada por Shoko Asahara. Em outros momentos, o entrevistado comenta sobre sua relação com o culto por mais de 20 anos e de como encara as ações do grupo após o atentado no metrô.

    É inegável que os esforços de Sakahara direcionam-se a uma resposta concreta, seja sincera ou não, da parte de Hiroshi e que digam respeito à moralidade dos ataques e da consciência desse. Apesar de estar encarregado da conversa, da direção e da montagem, o realizador não lança mão de artifícios maniqueístas que definam em adjetivos rasos o segundo personagem em tela. À exceção de seus primeiros minutos, o longa-metragem é desprovido de trilha-sonora, narração em off, imagens de arquivos ou qualquer outra intervenção que não seja a gravação daqueles momentos.

    O que tanto o público quanto o diretor descobrem é um personagem complexo, que se mostra multifacetado nas quase duas horas de projeção. Hiroshi transita entre momentos em que chora ao lembrar da família (com a qual cortou relações ao entrar na seita) e que se nega a admitir algum tipo de culpa explícita, mesmo na presença de uma das vítimas diretas daquele março de 1995.

    Imageticamente, o filme dá espaço às falas que ocupam as andanças da dupla, acompanhadas de câmeras portáteis e pouco incomodadas com movimentos desordenados. Na maior parte, a tela é preenchida com as duas figuras (que diferem também na aparência: alto e baixo, gordo e magro, roupa amarela e traje azul), mas sabe habilmente quando isolar o executivo da seita no quadro. São momentos que fecham o cerco ao redor de Hiroshi, geralmente após alguma questão incisiva levantada por Sakahara, e que buscam em sua expressão corporal alguma resposta que as palavras não são capazes de proferir. Por outro lado, essas ocasiões também servem ao propósito de investigar aquele personagem como um ser humano dotado de diferentes sentimentos, que variam entre o orgulho e o arrependimento, mas não por caminhos simples e diretos.

    O competidor da mostra internacional do festival É Tudo Verdade, como sugere seu subtítulo em inglês (“Um relatório moderno sobre banalidade do mal”, em tradução literal), parte de um pressuposto arendtiano na contemporaneidade, que confunde grandes narrativas com a fragmentação líquida da pós-modernidade, para esboçar um belo retrato sobre a normalidade em convívio com a maldade e vice-versa. Ainda que não apresente a pintura completa de seu retratado, Eu e o Líder da Seita é inteligente o bastante, e confia em seu público para tanto, ao apostar no impacto das perguntas em detrimento da completude das respostas.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | Mil Cortes

    Crítica | Mil Cortes

    O desmanche das democracias atuais tem nas Filipinas seu maior representante. É o que aponta o longa-metragem Mil Cortes de Ramona Diz, participante da mostra internacional do festival É tudo verdade deste ano. O filme acompanha os esforços da jornalista e editora-chefe do portal filipino Rappler, Maria Ressa, em publicar críticas ao governo do presidente Rodrigo Duterte e lidar com os ataques e as censuras institucionalizadas.

    As últimas cordas que, em teoria, sustentam o modelo democrático das Filipinas são coniventes com as ações de Duterte que giram em torno de assunção de homicídios, apologia à violência, estupro e toda barbárie observável nos discursos de líderes de diferentes nações. O cenário não é atípico, especialmente ao espectador brasileiro, e o filme chega a fazer discretos acenos ao governo de Donald Trump, vigente nos Estados Unidos durante o período de gravação do documentário.

    Nesse panorama, a narrativa dilui-se em diversas frentes que tentam contextualizar a crise de estado social no país asiático. Essas subtramas tratam de milícias digitais, propagação de fake news, os discursos odiosos do presidente, duas jornalistas do Rappler e de três postulantes às eleições legislativas em 2019: o chefe da polícia nacional e voz ressoante de Duterte, uma dançarina e blogueira alinhada ao presidente e uma candidata defensora da causa feminista, de oposição ao governo.

    O fio principal que entrelaça as histórias é o drama enfrentado por Maria. Desde o início, a atenção dada a jornalista indica a preferência da cobertura, que se justifica por boa parte do filme pelo motivo de sintetizar na protagonista esses diferentes lados abordados nos demais personagens. É por meio de Maria que os filipinos tomam conhecimento da divulgação de desinformação promovida pelo governo. É Maria o alvo da maior parcela de ataques direcionados à imprensa no país. É Maria que expõe os discursos de Duterte e sua base. É Maria que observa o agonizar da democracia em seu país como um possível sopro de esperança para o futuro.

    A trama logo torna-se repetitiva e sobrecarregada. O que poderia soar como um aprofundamento no estado de espírito da jornalista, confrontada por todos os lados e por diferentes causas, numa enxurrada espiralar de situações, revela-se uma confusão desequilibrada. Uma porção das questões levantadas nas quase duas horas de filme é rasa e pouco faz frente à principal história que conduz o documentário. São chances de dimensionar em maior escala os dilemas éticos e políticos das Filipinas, mas que se perdem em exposições simplórias do que já é vociferado pelo presidente.

    O filme também põe em pauta a importância do jornalismo como prestador de contas e de informação à população, na ideia de quarto poder. Numa das passagens, Maria parafraseia o poema do pastor luterano Martin Niemöller. “Primeiro eles vieram buscar os jornalistas”, diz. “Nós não sabemos o que aconteceu depois.”

    A paráfrase condensa muito do idealismo da editora. Em determinado trecho, ela se diz pronta para o que der e vier, nem que isso seja a prisão. É o que acontece e que voltaria a se repetir no mesmo ano. Maria carrega consigo a crença de que a principal arma ante o ódio é o amor.

    Do mesmo princípio parece partir o longa, uma vez que martiriza a figura da jornalista diante dos abomináveis antagonistas da liberdade de imprensa e dos direitos humanos no país. Não que a sentença não seja cabível aos algozes, mas o filme tem pouco a dizer num jogo tão simples entre claro e escuro. Os Mil cortes referidos por Maria em relação à democracia filipina cabem ao próprio filme, composto por dilacerações em todo seu roteiro e que no final se apresenta como um cambaleante corpo de boas ideias e sem firmeza em nenhuma delas.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | Glória à Rainha

    Crítica | Glória à Rainha

    Glória à Rainha é um documentário divertido e propositivo que conta a historia de quatro mulheres enxadristas da União Soviética que se tornaram símbolos de luta em uma época em que os papéis de destaque recaiam apenas sobre os homens, mesmo em um local conhecido por ser governado por um regime de esquerda. O filme de Tatia Skhirtladze é parte da mostra internacional do festival É Tudo Verdade.

    As personagens do filme são Nona Gaprindashvili, Nana Alexandria, Maia Chiburdanidze e Nana Ioseliani. O documentário acompanha um pouco do dia a dia delas, todas já na meia idade entre os 50 e 70 anos. O resgate da historia e a intimidade de cada uma dá um pouco da dimensão de como ocorreu, não só a carreira desportiva delas, mas também o pós dissolução da URSS.

    A narração do filme é bem utilizada quando o conteúdo é composto de imagens de arquivo. Enquanto nos momentos mais naturalistas (cenas mais atuais), são as próprias mulheres que conduzem além de outras pessoas envolvidas ou aqueles que possuem nomes em homenagem as enxadristas. Algumas delas também se lançaram no ofício de enxadristas, provando a influência do quarteto na cultura e no esporte em cada uma das repúblicas do antigo país comunista.

    Mesmo sem gastar tempo abordando a política da época, o filme acaba traçando um bom cenário de como era importante para os governos socialistas o investimento em práticas esportivas diversas, sejam elas de equipe ou individuais. Para o aficionado em Xadrez, o documentário é bem interessante, pois estabelece não só o contato com torneios importantes do passado, mas também detalha eventos que poderiam passar despercebidos por aqueles que não compreendem o jogo com profundida. São aproximadamente 18 trilhões de movimentos possíveis em uma partida e cada mulher pode perder meio quilo em uma partida dada a tensão do jogo. Dentro do filme até se lamenta que hajam poucas mulheres enxadristas no território da Rússia e nos demais vizinhos que formaram a União Soviética, o que, evidentemente, é uma pena, já que a historia das biografadas é rica.

    Glória à Rainha tem uma fórmula levemente diferente do que se vê normalmente em documentários norte-americanos ou  brasileiros. Há um modo mais frio de conduzir a narrativa por questões culturais mas, mesmo dentro dessa mentalidade, se percebe um apreço caloroso pelas quatro atletas, que entre rivalidades e disputas seguem como embaixadoras de uma prática esportiva rica e popular entre muitas pessoas.

  • Crítica | Sob Total Controle

    Crítica | Sob Total Controle

    Sob Total Controle é um dos filmes da mostra internacional do É Tudo Verdade. O documentário ficou conhecido mundialmente por expor os podres do governo de Donald Trump ao lidar com a pandemia de Covid-19. Dirigido pelo trio Alex Gibney, Ophelia Harutyunyan e Suzanne Hillinger, a produção, além de informar sobre a cobertura de uma pandemia, também serve de comentário metalinguístico, mostrando as dificuldades de uma equipe de filmagem em fazer um filme com o isolamento social dos entrevistados e de pessoas ligadas aos fatos.

    Dois elementos saltam aos olhos do espectador logo de cara: a primeira é a narração que poderia causar incomodo mas, dado o modo lunático como os EUA lidaram com a pandemia em seu início, se faz necessária. Pois as imagens sozinhas talvez pudessem elucidar o suficiente, sendo necessária a exposição. A outra questão curiosa são as cenas de negacionistas ignorando ou agredindo pessoas comuns em mercados, lojas e afins. Agindo de maneira covarde e perigosa do ponto de vista sanitário, cenas que não nos chocam tanto por sabermos que em nosso país a ações ainda piores.

    Para as futuras gerações, especialmente para alguém que não sabe pouco respeito desses tempos de pandemia em 2020-21, o documentário será um bom ponto de partida sobre o impacto mundial da Covid. Pois detalhe bem os acontecimentos, incluindo o primeiro surto em Wujan na China, com direito a entrevistas com o até então presidente americano. Uma das problemáticas que o diretor lida nessa obra é sobre o futuro, a evolução da doença, suas mutações e demais aspectos impossíveis de prever, determinando como ainda é incerto o futuro após o impacto dessa doença.

    Além disso, o documentário também mostra como o estado norte americano surpreendeu a comunidade mundial negativamente, colocando Robert Redfield, um virologista controverso, a frente de organizações como o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças). As frases polêmicas do virologista são anteriores a pandemia. No primeiro surto de HIV sugeriu uma medida religiosa de celibato para evitar a propagação da AIDS. Demonstrando como fundamentalismos são tão perigosos como doenças. Outro exemplo negativo é a entrevista com Vladimir Zelenko, o sujeito que descobriu a hidroxicloroquina como forma de lidar com a doença nos Estados Unidos. O mesmo medicamento que não tem qualquer comprovação contra o vírus e que ainda é defendido pelo governo brasileiro como parte do fajuto tratamento precoce para coronavírus.

    Assistir Sob Total Controle causa um pouco de agonia, ainda mais em plateias mais sensíveis. A série de eventos que poderiam ajudar a evitar a catástrofe são inúmeras, e ver como as autoridades foram ou passivas ou deliberadamente mesquinhas e desonestas em nome de qualquer ideologia irrealista é desolador. As coletivas de imprensa, então, são um show a parte. Enquanto o imunologista Dr. Anthony Fauci falava para as pessoas não irem para lugares de fácil aglomeração, a equipe econômica de Trump o contradizia na mesma entrevista. É tragicômico, e incomodamente semelhante ao que ocorreu no começo da pandemia no governo brasileiro e nos choques entre Henrique Mandetta, o ministro da Saúde, e o presidente do Brasil Jair Bolsonaro. A imitação é barata e triste.

    O documentário tão intenso que chega a ser tragicômico. A adjetivação poderia soar como pejorativa, mas não é. Para qualquer analista que vive em um cenário ainda tão assolado por essas questões certamente se sensibilizará com o olhar desesperado dos entrevistados. Olhares honestos de pessoas da indústria médica ou farmacêutica que falam a respeito dos esforços para driblar o governo a fim de dar alguma segurança ao povo.

  • Crítica | Fuga

    Crítica | Fuga

    Animação e documentário. Temores e memórias. Guerra e Oriente Médio. O cenário e a temática de Fuga (2021), longa documental do dinamarquês Jonas Rasmussen, premiado em Sundance, remetem a Valsa com Bashir, do israelense Ari Folman. Tratando das lembranças íntimas de seus protagonistas como ponte de construção do presente, o recente filme de Rasmussen assume características próprias a partir da apresentação de seu personagem principal.

    Amin Nawabi (nome fictício) é o sujeito da história. A trama é iniciada no presente, com Amin na casa dos 30 anos e morando na Dinamarca. Seu amigo Jonas, responsável pelo longa dentro e fora de cena, tenta extrair algum tipo de confissão que conforte e encaixe as peças da identidade fragmentada do protagonista.

    Nascido no Afeganistão dos anos 1980, em meio ao conflito entre os rebeldes afegãos mujahideen e as tropas soviéticas de ocupação no país, Amin tratou em sua juventude de refugiar-se da guerra que vitimara seu pai e tantos outros semelhantes. Homossexual e imigrante, a repressão do ser toma forma como necessidade de sobrevivência e como elemento principal no desenrolar da narrativa.

    O uso do pseudônimo, não à toa, preserva a figura real por trás de Amin. Ainda que a preocupação premente seja para fora do quadro, a ordenação do enredo leva o espectador no fluxo de memórias alquebradas do protagonista. Na figura de Jonas, que aparece em boa parte da projeção em diálogo com Amin, o público identifica-se como um desbravador ativo nas conversas que levam o protagonista a revelar mais e mais de seu passado dúbio e por vezes intencionalmente omitido.

    A narração que amarra as diferentes linhas temporais numa única voz e num vaivém de situações que são repetidas e corrigidas dá ao filme um tom de solilóquio. São nas hesitações de Amin, em suas expressões de medo e alegria, que seu verdadeiro self se revela, independentemente de lar ou símbolos de designação. A espontaneidade das ações se desdobra com leveza no tear narrativo que atravessa diferentes décadas, países, momentos e pensamentos.

    É essa mesma narração que em vários momentos torna-se excessiva ao redundar o que o plano visual muito bem apresenta em seus diferentes tons de animação. A maior parte das memórias do protagonista, tal qual a vivência presente, ganham corpo em desenhos quase estáticos, com poucos quadros em movimento por segundo. Um recurso inteligente e que dá vazão às lembranças menos racionais de Amin, são os esboços animados por meio de um processo semelhante ao de rotoscopia, ainda que mais vibrante e expressionista que a tradicional forma.

    O contexto social dos períodos e dos locais também é retratado com o uso de imagens de arquivo, de noticiários e de registros de guerra que circundam a esfera particular de Amin. Mesmo com a utilização moderada, o truque pouco acrescenta em qualquer termo, até mesmo num suposto peso de costurar material factual na colcha de retalhos ficcionais e pessoais do protagonista. A inventividade da animação, que é hábil no equilíbrio entre imaginar o ficcional e retratar o real, muito mais tem a dizer das descrições do protagonista ao público que qualquer imagem captada no calor da ação.

    A uma hora e meia de filme pena para chegar ao fim com o fôlego e a potência prometidos pelas circunstâncias da história. Ainda assim, Fuga é um belo exemplo de abertura para o festival É Tudo Verdade, demostrando que nem toda força de verdade tem de ser necessariamente real e exibida materialmente aos olhos do público.

    Texto de autoria de Arthur Salles.