Tag: Ditadura Militar

  • Resenha | Marighella #Livre

    Resenha | Marighella #Livre

    Marighella #Livre, publicado pela editora Draco, narra três momentos importantes da vida de Carlos Marighella: quando tinha 24 anos e foi torturado na véspera do que seria o Estado Novo em 1936; nos Anos de Chumbo da ditadura civil militar iniciada em 1964 quando levou um tiro no peito e enfrentou 14 policiais; pós AI-5, quando foi executado em 1969. A história é assinada por  Rogério Faria, tendo como ilustradores Ricardo Sousa nas duas primeiras histórias, e Jefferson Costa na última.

    Na primeira, Sousa emprega um traço mais solto, cartunizado, com desenhos que, caso não fossem sobre uma história de luta e violência, pareceriam inocentes e ingênuos. Esse contraste funciona bem, ainda mais quando se mostram detalhes de tortura e violência explícita que, nesta primeira história, é apenas um prenúncios dos tempos complicados que viriam décadas depois.

    Na segunda história, as autoridades perseguem Marighella quando ele está apenas vivendo como um civil tranquilo, assistindo um filme no cinema. Para além de efeitos dramáticos, Sousa denuncia que há poucas diferenças reais entre os tristes métodos das duas ditaduras, seja a varguista ou a militar.

    Na história desenhada pelo autor de Jeremias: Pele, há um clima semelhante às revistas policiais da Vertigo, com elementos de thriller, violência estilizada e, mesmo assim, não se perde o contato com o real. Por mais que seja a mais curta (e sangrenta) das três, é a mais carregada de conteúdo. As entrelinhas dão conta de um sujeito que queria pouco, que queria ver o povo livre, que via no sonho comunista um modo de todos os trabalhadores serem tratados como iguais. Marighella era um homem simples, que nessas breves histórias sequer tinha chance de discursar. Sua voz é resumida nos momentos onde lhe faltava fôlego, mas nas suas ações sobrava verve e vontade de lutar. Uma vida poética e inspiradora, que mira a revolução como única alternativa a classe trabalhadora.

  • Crítica | Marighella (2019)

    Crítica | Marighella (2019)

    Marighella é um projeto envolvido em polêmica desde sua concepção. Por contar a história do revolucionário Carlos Marighella, refletindo certa censura por parte dos atuais governantes, o filme teve adiamentos, dificuldades para programar sua estreia em terras brasileiras e, por fim, o longa de Wagner Moura acabou sofrendo um mal semelhante ao de Tropa de Elite, vazando antes da estreia. Independente da programação, o filme finalmente pôde ser apreciado pelo espectador brasileiro.

    O início do filme não nega a necessidade de ser um produto comercial, sedutor para as massas, fácil de digerir como Cidade de DeusTropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro. Para isso, as primeiras cenas mostram de um roubo de trem, um resumo das ações de guerrilha urbana, que davam conta de expropriar o que era do povo e o que era utilizado para fortalecer o regime militar. O simbolismo do roteiro é bem explícito, uma vez que o assalto ocorre ao som de Monólogo ao Pé do Ouvido de  Chico Science, que dá a dimensão de quem é o personagem, colocando Marighella ao lado dos Panteras Negras, Lampião, Carlos Zapata e outros libertadores do povo latino americano. Nesse aspecto, texto de Moura e Felipe Braga acerta. A dimensão é rapidamente transmitida e o filme não tem qualquer receio em poetizar a intimidade do ativista.

    A linha do tempo é repleta de idas e vindas, especialmente no começo. A montagem de Lucas Gonzaga emprega uma ritmo que prima pela modernidade, semelhante a que fez em 2 Coelhos, embora não seja tão estilizada. A aura de homem com habilidades sobre humanas é bem enquadrada, assim como a visão de Marighella como terrorista por seus opositores, apresentando as visões da época sobre o personagem central.

    A questão do vazamento é curiosa e oportuna. Um dos produtores, Fernando Meirelles, pediu para que as autoridades se mobilizem para investigar o fato. Porém, em tempos de popularidade alta para obras como Os 7 de Chicago e Judas e o Messias Negro, ambos com heróis pretos vencendo adversidades e sendo crucificados pelo sistema, seria natural também apreciar o drama protagonizado por Seu Jorge, aliás, está bastante inspirado. Ainda assim, os filmes citados estão longe de ser tão incisivo, direto e realista quanto esta produção, que além de fugir da representação vazia de um revolucionário, ainda levanta o viés marxista como a alternativa para a ascensão do povo como soberano, especialmente em relação a um governo fascista que paga com sangue a revolta justa de seu povo.

    O filme foi acusado de parecer posado com frases feitas em excesso. De fato, há momentos mais estéticos. Seus personagens são arquetípicos da época, mas a entrega do elenco aplaca essa sensação. Bruno Gagliasso, por exemplo, faz um agente da repressão absurdamente cruel e crível ao mesmo tempo. Seu Lúcio, apesar de fictício, lembra bons momentos dos interpretes de Sérgio Fleury, o famoso agente do DOPS que já foi retratado tantas vezes no audiovisual. Ainda assim se  percebe um ineditismo na abordagem, pois ele parece de fato um idealista, um sujeito escroque, mas guiado por uma ideologia vil e que se torna ainda mais perigosa por se achar correta.

    As cenas do revide revolucionário são certeiras. Não só dão oportunidade aos atores Humberto Carrão, Henrique Vieira, Herson Capri e Luiz Carlos Vasconcelos, como mostram uma maturidade na direção de Moura que consegue prender a expectativa em uma história que equilibra o real e escapismo. Mesmo que se apele um pouco para teatralidade,  a jornada dos companheiros do herói é, na maioria das vezes, de dar nó na garganta. boa parte disso se dá pelo trabalho da preparadora de elenco Fátima Toledo, que mais uma vez dá dimensões reais a uma história tipicamente brasileira.

    O desfecho de Marighella o mostra não como um herói ou como protagonista da luta pela democracia no país. e sim como uma ideia imortal da ascensão do proletariado.  Através desse filme, a questão é apresentada de maneira popular, conduzida em uma estética universal e também voltada para o mercado internacional. Enfim, o legado do personagem recebe a justiça que lhe foi tirada por escroques aproveitadores que se diziam defensores da pátria e que, na verdade, foram vendidos desonestos que se lambuzaram na lama e no poder. Finalmente é feita justiça, ainda que só em tela, na inspiradora cena final do elenco cantando o hino brasileiro, como um grito entalado na garganta, um bradar que mira a justiça e a preocupação com um país que sofreu calamidades nos anos sessenta e que ainda sofre com outros agravantes e outros cenários. Ter um filme tão bem produzido e de fácil acesso é ótimo para desmistificar as mentiras ditas pelos que mereciam estar na sarjeta da história.

  • Crítica | Os Arrependidos

    Crítica | Os Arrependidos

    Baseado no livro O Terror Renegado de Alessandra Gasparotto, Os Arrependidos é um filme da dupla Ricardo Calil e Armando Antenore que conta  a historia dos ex-guerrilheiros que quando jovens, sofreram tortura para se assumir como arrependidos, inclusive indo a imprensa afirmar que mudaram de ideia em relação a ideologia que antes professavam, classificando assim seus antigos atos como um “terrorismo” que pertence ao passado. O filme conversa com algumas dessas pessoas, Gustavo Guimarães Barbosa, Marcos Vinicios Fernandes, Celso Lungaretti, Marcos Alberto Martini, Rômulo Moreira Fontes. além de falar com alguns parentes desses ex-presos.

    O documentário não tem pressa, as entrevistas são francas e eles falam sobre como entraram nos grupos revolucionários, assumindo que não tinham muito como ocupar o tempo ocioso de sua juventude, que diversão era um artigo de luxo e raro na época, então o lugar contra o reacionarismo e a falta de liberdade eram um caminho óbvio, os movimentos secundaristas e estudantis eram a alternativa mais correta.

    Calil e Antenores variam entre os depoimentos recentes e as gravações antigas de qualidade visual ruim, condizente com os poucos registros de imprensa da época. O conteúdo dessas conversas impressiona, pela crueldade que foi imposta a eles. A curadoria da dupla de diretores é ótima, há cuidado em deixar legendas nas conversas para que o entendimento do público seja completo.

    Os tais “arrependidos” já estão na meia idade, mas nota-se que eles parecem mais velhos do que realmente são, como se a Ditadura roubasse deles os bons anos de sua vida. Chega ao cúmulo de uma irmã mais velha de um dos torturados parecer mais jovem, quase como se fosse ela uma filha de idade, cuidando do pai já bem idoso. Eles não se consideram traidores, cada um tem seus motivos para falar, e alguns, até seguem o pensamento ligado a esquerda, mas aceitavam falar sobre seus arrependimentos para ter liberdade, obviamente. Gustavo Barbosa por exemplo afirma que dentro dos seus limites, falava que a luta armada não era boa, mas não que concordava com o Regime.

    A edição é bem pensada, entre as falas dos entrevistados são colocados comerciais da época, fato que reforça a sensação de incômodo. Tanto a música dessas propaganda  quanto a falta de qualidade sonora das peças publicitárias, fica uma impressão de que os comerciais são curtas de terror.

    É de partir o coração quando se fala dos arrependidos já falecidos, ainda mais no que se fala a respeito dos arrependimentos, das mentiras e das torturas que passavam do físico e destruíam as pessoas em níveis de caráter, sentimentos e moral. Acompanhar toda essa historia, ainda mais atualmente quando ocorre um movimento político que defende práticas tão vis quantos essas é pesado. Um dos momentos mais chocantes do filme reside nas falas das parentes de um dos arrependidos já morto, Manuel Henrique Ferreira. Abaixo, um trecho da carta que Ferreira enviou, claro, resumido, já que a correspondência tinha 21 páginas:

    Ao final de Os Arrependidos, se dá o destino dos ex-militantes, alguns se tornaram jornalistas do veículo ligado a direita, A Folha da Tarde, alguns migraram para o movimento ultra direitista como O Integralismo , outros nem quiseram falar sobre seus arrependimentos porque as lembranças eram muito duras, e Massafumi Yoshinaga é tratado como uma das principais vítimas desse tempo, pois foi símbolo “positivo” para os milicos, por ter sido um dos mais notórios arrependidos, e depois, se suicidou. É uma historia dilacerante e uma vez publicado o filme, a obra ganha contornos de documento histórico, que brilha bastante por desvelar mais uma das muitas mentiras do Regime Militar brasileiro, que não foi nada brando com esses homens, que eram meninos a época.

  • Resenha | Os Zeróis

    Resenha | Os Zeróis

    O livro Os Zeróis de Ziraldo é a cereja do bolo na prova factível da genialidade do mais celebrado cartunista brasileiro de todos os tempos. A publicação da editora Globo resgata, em um grande trabalho de curadoria e restauração estética nas suas amplas páginas, toda a criatividade e ousadia do autor de O Menino Maluquinho em épocas ditatoriais, avessas para com a liberdade de expressão. Aqui, temos a face mais saudosista e debochada de Ziraldo, daquele menino que cresceu lendo gibis de super-heróis, e ainda nas décadas de 60 a 80, enfrentou o regime militar e os absurdos desse tempo com a ajuda do Fantasma, Homem de Ferro, Capitão América e outras figuras que, ridicularizadas, reforçam e emblemam suas críticas atemporais ao “todo poderoso” sistema ditatorial. As armas? Lápis e papel contra os tanques e a repressão do estado.

    Quando a censura comia solta no Brasil, e o AI5 tornou-se uma realidade, a ficção confiou em Ziraldo para ajudar a opinião pública a enxergar o ridículo da situação. Em Os Zeróis, aprendemos que o caminho trilhado pelo autor nos jornais cariocas da época foi repleto de desafios, impostos a ele e outros cartunistas que, se não foram perseguidos pelo governo, é porque não trabalharam corretamente. Lembrando que nada cutuca mais o autoritarismo do que uma boa charge, Ziraldo também apostou nos cartuns do Jornal do Brasil e do lendário O Pasquim (jornal que a partir de 1969 se opôs a censura, como veículo independente) para se destacar, indiscutivelmente, como um gênio sem lâmpada mágica – ora devido a suas sutis e espetaculares ideias gráficas, ora por seu impressionante poder de síntese quanto as temáticas polêmicas, nos idos terríveis de Castelo Branco e companhia.

    Porque a arte não se cala, ela grita. Muito além da ditadura na república brasileira, Ziraldo expôs a tensão não somente da Guerra do Vietnã, mas da Guerra Frita entre EUA e Rússia sem precisar de muitas palavras para isso, e da forma mais célebre possível. Usando e abusando dos ícones da cultura pop americana, o cartunista desenhou Superman descansando na lua ao lado da bandeira norte-americana, enquanto russos chegavam na lua “atrasados para a festa”. Em outro momento, Ziraldo fez o Capitão América correndo com o símbolo da ‘foice e do martelo’ no seu escudo, evidenciando assim a influência ideológica de uma política, nos símbolos de outros países. A genialidade de Ziraldo nunca conheceu fronteiras, e reconhecida mundialmente, fez arte e política se casarem num matrimônio perfeito.

    Mas foi com as ideias baseadas no Tarzan e Shazam! que nosso orgulho nacional ganhou as capas de revistas estrangeiras, e logo em seguida, os louros por sua contribuição as belas-artes, ainda nos anos 1960, no auge de sua produção catártica. Já na época, Ziraldo também se contestava sobre o que lhe restava fazer, e ciente de que terminaria seus dias como pintor (caso sobrevivesse a ditadura, até 1985), vinha sonhando com os seus Zeróis, seres adoravelmente defeituosos, pintados em cavaletes e além das charges de jornal. Uma validação de seus cartuns longe das suas onomatopeias coloridas e imortalizados agora na dimensão das telas pictóricas em acrílico num tempo mais livre, sem a preocupação anterior de ser calado pela grande mão invisível do sistema. O clima, agora, era outro, e por que não reler grandes obras do passado com a participação de suas próprias criações?

    Assim, desde 2008, o autor passou a incorporar suas versões achincalhadas do Batman, Zorro e Mulher-Maravilha dentro de clássicas pinturas mundiais, inserindo (no mais genial de seus quadros) o Superman no “Gótico Americano”, em pé entre os dois ruralistas pintados por Grant Wood. Para quem não sabe, o quadro é um monumento da história do povo estadunidense, e Ziraldo, assim como em “Las Meninas na África”, numa releitura com o Fantasma dentro do quadro da fase cubista de Picasso, vê na realidade a principal ferramenta para exercitar sua maestria expansionista – sempre com uma irreverência ácida e pertinente, e um traço igualmente inconfundível. Os Zeróis cobre todo o seu esplendor artístico ao retificar o lugar especial que o artista merece ter na história da cultura do Brasil, sendo ademais um artista veterano digno de adoração por toda a esfera humana, aquela que preza pela mais fina flor do bom gosto e do bom humor.

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  • Resenha | Corredor Polonês – Alfredo Sirkis

    Resenha | Corredor Polonês – Alfredo Sirkis

    “Nesse frio, circo nenhum pega fogo. Circo gela.”

    Naturalmente, há poucas semelhanças entre Brasil e Polônia. O primeiro, conhecido por suas praias, festas e outros elementos tropicais; o segundo, por seu passado impiedoso e um gelo que parece impregnar a tudo, e todos. Dois universos díspares dentro de um mesmo planeta marcado por grandes conflitos cujas marolas, praticamente, não chegaram com força nem mudaram os rumos no maior país da América Latina. Entretanto, durante a segunda guerra mundial, no longínquo ano de 1939, os poloneses serviram de berço oficial ao conflito, e assim, conheceram na pele a crueldade humana que pode se esconder naquelas suas gélidas veredas que os calorosos brasileiros não conseguem nem imaginar, palco, certa vez, de uma frieza muito mais aguda que quaisquer temperaturas abaixo de zero que o homem já teve de enfrentar.

    Sabendo da neutralidade brasileira diante de quaisquer eventos da história polonesa, e da nossa total falta de identificação sobre o passado ainda latente de um país tão distante, em tudo, do nosso, o escritor, jornalista e político carioca Alfredo Sirkis arquiteta seu Corredor Polonês em torno do humanismo, e do humanitarismo pós-guerra. Ou seja, temos em voga uma obra na qual seu mais sincero fervor, e a sua brilhante capacidade biográfica, e em formato de crônica, dentro do contexto cultural de qualquer sociedade, se dá através de uma compreensão universalmente acessível quanto ao drama de ter a sua vida, sua família e sua pátria devastadas por invasões, combates intermináveis, e um infinito de crimes contra a humanidade. Mesmo assim, no seio de uma família destroçada pela partida de seu patriarca, o Dr. Binek, o que sobram a suas filhas (e à memória de todos os envolvidos no processo árduo de sobrevivência dos poloneses) são os valores de uma gente que encontrou na decência aprendida em família, e no nacionalismo, a chave para uma utópica e desesperada resistência.

    O livro da editora Record é fruto de uma longa pesquisa de Sirkis, dono de uma prosa irresistível, e que revira os ecos dos imigrantes poloneses no Brasil cujo DNA para sempre será fortalecido pelos traumas deste povo, quase exterminado, com suas mulheres enviadas ao sofrimento no frio e miséria absolutos no norte da Ásia (o “fim do mundo”, como apelidam as filhas de Binek), enquanto o resto da masculinidade polonesa morria contra a Alemanha de Adolf Hitler, ou tentava o milagre da fuga pelas florestas do país. Em meio a desolação branca manchada de vermelho, Sirkis injeta poesia e lirismo em uma trama intimista que se debruça no real para poder existir – o tema do fascismo é por vezes presente, aqui, tal um espectro sombrio e atemporal, em várias passagens que se destacam por expor a espetacular sagacidade e sensibilidade do autor. Afinal, eis uma sociedade perdida no meio de um furacão nazista, e se engana quem acha que Corredor Polonês, numa clara alusão a faixa de terra que Hitler tanto sonhava em recuperar para a Alemanha, seja apenas sobre o percurso de uma guerra arrasando este belíssimo país europeu.

    Tudo mudou naquela invasão a Polônia, e os fantasmas desta sociedade também. Exércitos não marcham sem deixar pegadas eternas para trás, muitas vezes internas, carregadas em um mundo globalizado nos corações dos mártires, e algozes – ninguém escapa. Se há uma questão mais pertinente aqui do que a injustiça histórica que se abate ao soldado polonês que nunca chegou a testemunhar o retorno da paz a sua sagrada Polônia, pois morreu para conquistá-la, ainda que indiretamente, para que suas filhas e netas pudessem um dia entrar e sair com liberdade do país, fica sendo então: “e o Brasil, com tudo isso?”. Um país sempre visto como o novo mundo, no imaginário popular: uma árvore frondosa, virgem de grandes tempestades, com espaço o suficiente para todos se alojarem, e lá fazerem os seus tão sonhados ninhos de segurança, e de prosperidade. Mas e quanto ao passado, coloca-se na gaveta e o esquece? Ele mesmo não permita que façamos isso com ele, e o livro é justamente sobre isso. Uma grande leitura que merece uma republicação após tantos anos esgotado.

  • Crítica | 1964: O Brasil Entre Armas e Livros

    Crítica | 1964: O Brasil Entre Armas e Livros

    O filme 1964: O Brasil Entre Armas e Livros, se inicia de modo metalinguístico, explicando que o filme do site Brasil Paralelo sofreu um suposto boicote em universidades e instituições de ensino pelo Brasil, afirmando sua proibição de circular nessas mesmas instituições. Curiosamente, não há provas ou quaisquer indícios a respeito disso. As fontes não são mostradas, já que este documentário pouco se importa com isso, como é demonstrado ao longo da exibição em diversos momentos.

    Percival Puggina é o primeiro dos entrevistados, um jornalista especialista na tentativa de refutar Paulo Freire, e começa falando sobre as tensões da Guerra Fria, afirmando que quem não viveu aquilo não poderia falar ou opinar sobre isso. A narração – terrível – de Filipe Valerim fala de maneira bastante tosca sobre a revolução russa, afirmando que Vladimir Lenin era uma deidade para os soviéticos, enquanto Leon Trostky e Josef Stalin eram como papas. Na visão contaminada dos responsáveis pelo documentário, o maniqueísmo corresponde à realidade, e não contradiz a verdade, de que mesmo com um governo de mão forte, havia uma bela fragmentação na liderança dos governos revolucionários russos.

    O filme é dito como dirigido por um trio, Lucas Ferrugem e Valerim, cineastas pouco conhecidos, sem trabalhos pregressos reconhecidos, sequer em curtas metragens ou algo que o valha. Boa parte da argumentação que defende o filme mora dentro do argumento primordial onde afirma que existe um discurso ideológico totalitário no Brasil, que só permite demonstrar e discutir filmes com viés esquerdista. Falácias à parte, edição e trilha sonora escolhida faz a  obra soar engraçada, maniqueísta e infantil para muito além do discurso que o filme propaga, mas também em sua abordagem cinematográfica, já que aparentemente o objetivo não é esclarecer ou narrar uma parte da historia que supostamente não foi contada, e sim em criar animosidade, estabelecer o socialismo e o comunismo como o inimigo mundial até os dias de hoje.

    Em alguns pontos o filme soa tragicômico, com um humor implícito e não proposital sobressaindo. Há muita teoria da conspiração e chutes sobre a história, com dados tiradas ou de lugar nenhum ou de fontes pouco (ou nada) reconhecidas por quaisquer vertentes acadêmicas, sejam elas de direita ou esquerda. O documentário chega ao cúmulo de Olavo de Carvalho afirmar que Oscar Niemeyer tinha um plano para que Brasília fosse a cidade que tornasse o presidente como um líder do Olimpo, afastada do povo, como o ideal de uma cidade pretensamente soviética, capaz de isolar a população do seu mandatário fisicamente.

    Incrivelmente, se debocha bastante sobre Jânio Quadros, sobre sua postura confusa, demagoga e populista. Ocorre que, os realizadores não parecem ver a semelhança de Quadros com o recém-eleito Jair Messias Bolsonaro. Não é coincidência que os entrevistados sejam defensores de Bolsonaro, do mesmo modo, não é coincidência que o lançamento deste filme em uma época onde a popularidade da presidência vem caindo exponencialmente.

    O filme carece de ritmo, é longo e repetitivo, busca massificar a mentalidade confusa da nova direita como se fosse essa a maior autoridade a respeito da história. A falácia parece ser a mola motriz do longa. E a realidade é que até a montagem deflagra isso, ao mostrar depoimentos que fazem contradizer o falante anterior, uns falam que Jango e Brizola conspiravam contra a nação, outros que a conspiração militar foi mais acertada, outros que os militares entraram aos poucos e de maneira convidativa no governo, enquanto outros diziam que a esquerda não reconhecia Jango. É tudo muito confuso, sequer quem montou o filme sabe o discurso que deve defender, ao menos Real: O Plano Por Trás da História, Polícia Federal: A Lei é Para Todos e Jardim das Aflições não soam tão infantilmente construído quanto este.

    O filme vende uma narrativa onde manifestantes políticos, em especial, guerrilheiros, entre eles pessoas que chegaram ao poder como José Dirceu e Dilma Rousseff, eram assassinos e torturadores, em contrapartida não se assume que houveram torturas por parte dos militares, esta sim amplamente documentada, diferente do lado contrário. A mudança da história é baseada no nada, em opiniões de gente que esteve no poder, como se o comunismo fosse algo demoníaco e espiritual, que surgiu do nada e tomou o poder. Há mentiras sobre os desaparecidos, alegando que eles eram exilados, que fugiram de sua nação, quando a maioria era morto ou obrigado a se retirar do país sob o risco de morte.

    O máximo de condenação ao Regime que se permite é à época do AI-5, em 1968, mas a realidade é que o todo é confuso. Basicamente se trata como ideologia comunista toda sorte de pensamento e ação de esquerda, tentando associar lideranças brasileiras que andavam livremente com celebridades esquerdistas. Trata-se dos encontros do Frei Betto com Fidel Castro como se fosse algo secreto. Chega a ser patética essa argumentação, ainda mais quando se releva a repressão violenta com estudantes e a censura, que era dita como algo brando, feito por um guardinha de esquina, além de se negar que o governo militar era de ordem direitista, como se houvesse ali uma neutralidade política, o que contradiz entre outras coisas, a admiração de parte dos entrevistados por Médici. A ideia de Guerra Civil entre militares e comunistas soa imbecil, ainda se tenta, através da fala de Lucas Berlanza, uma associação dos militares à Lula e o movimento sindical, que segundo ele teria fomentado estes movimentos por medo de que o brizolismo crescesse com a volta do líder trabalhista ao Brasil. O filme de Valerim e Ferrugem é tão repleto de mentiras que é difícil não analisar e rir do que fala em suas longas duas horas de duração, chega a ser engraçado o quanto os entrevistados são vitimistas, e clamam por uma autocrítica da esquerda como se essa fosse a responsável pelas atrocidades deste período. O filme termina com uma citação de George Orwell, autor de tradição advindo de uma esquerda radical, e que certamente ficaria ofendido por ter seu nome associado a este discurso, que em última análise, soa acéfalo e sem um norte.

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  • Crítica | Pastor Cláudio

    Crítica | Pastor Cláudio

    Filme de Beth Formaggini, Pastor Claudio começa com um letreiro que traz a memoria um tempo de desesperança, ligado ao Golpe Civil Militar de 1964. Seu filme/entrevista se foca no ministro que dá nome ao longa, sobre a época em que ele funcionário do governo e da pátria, e o sujeito, já idoso, de compleição bonachona e ouve o entrevistador Eduardo Passos (psicólogo e ativista dos direitos humanos) como se os fatos ditos durante o monólogo que descrevia o trabalho dele.

    Cláudio apesar da idade avançada fala abertamente sobre algumas pessoas que ele executou, entre as vítimas algumas que foram incineradas. Em alguns pontos, o enquadro esconde o rosto através das sombras provenientes do projetor que colocava fotos dos presos políticos “recebidos” pelo religioso.

    Claudio é bem lúcido, fala bem e abertamente sobre seus serviços prestados e sobre sua vida particular em Minas Gerais, onde passou a dever favores a policia local, graças a terem permitido que ele executasse um desafeto, e esses favores foram cobrados. Sua convocação aconteceu sobre o pretexto de que a esquerda e os comunistas se levantavam e precisavam ser freados. A partir daí ele transitaria entre Minas, Viória-ES e Campos dos Goytacazes -RJ.

    Entre o detalhamento das operações e da chegada das pessoas ao lugar em Vitoria onde ocorriam sessões de tortura e onde Claudio Guerra era administrador, se notam dois fatores primordiais, o primeiro é que ele não tem pudor em falar dos mortos que carregava ou que tinha contato direto, no entanto ele dizia durante os depoimentos ele fala que não assistia as sessões de tortura, mas sabia que ocorria ali. O segundo fator são os nomes das vitimas que saltam a tela, repetidamente e esse artifício pode parecer redundante, mas a ideia de mostrar ao espectador quem sofreu naquelas ações é importante, visto que uma lista com dezenas de nomes não teria síntese para dar nome a um filme, livro ou qualquer obra de registro, e o documentário apesar de ter o nome do entrevistado, serve de biografia dos mortos e do processo triste que sofriam, inclusive no processo -igualmente massificado no filme- incinerar os corpos.

    Em todo momento ele dizia ser frio nas execuções, não havia emoção, ao mesmo tempo que recebia benesses pelos atos que praticava. Ele parecia saber detalhes também de presos famosos, como o caso de Zuzu Angel, que segundo ele era bem incomoda e inconveniente aos poderosos, assim como Vladimir Vlado Herzog, inclusive verbalizando que a morte do jornalista foi um tiro no pé. Segundo os comentários que ouviu houve um exagero por parte dos torturadores, que supostamente não tinham intenção de matar Herzog.

    Guerra diz se arrepender do que fez, sobretudo pela questão de ter se associado ao poder nesta época, uma vez que lideranças mundanas seriam naturalmente pecaminosas segundo os preceitos de sua atual religião. Ele considera seus atos como errados mas a frieza com que fala segue impressionante, e ele culpa a falta de punição por ainda existir tortura no país, falando abertamente que elas ainda existem, nas favelas e cadeias, com os pobres, pretos e qualquer pessoa confundido com infratores da lei, e sua leitura da atualidade é bem sóbria, pois tudo o que diz condiz com o real, é um sujeito que viveu muito, que fez parte de uma pagina nefasta da historia brasileira e que tem consciência disso tudo.

    O apoiador confesso de processos de tortura tem um medo, receio de ser pego pelo grupo que ele chama de Irmandade, e ainda que não detalhe muito as operações do grupo, se nota o quanto ele respeita a tal organização. Passos é um belíssimo entrevistador, consegue permanecer impassível a qualquer sentimento e sensações, pois é dele a função de fazer ele falar, e mesmo que não consiga desenvolver muito este assunto em especifico todo o depoimentos de Claudio é esclarecedor e aterrador, fazendo de Pastor Claudio um belo exemplar de um cinema jornalistico preocupado com a historia e também com o futuro, uma vez que em 2019 quando ele chega ao circuito o governo federal seja formado por simpatizantes do Coronel Ustra e outros tantos torturadores e apologistas da Ditadura Militar.

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  • Entrevista | Beth Formaggini, diretora de Pastor Claudio

    Entrevista | Beth Formaggini, diretora de Pastor Claudio

    Filmes sobre a Ditadura rendem uma boa discussão, ainda mais nos últimos tempos, e Pastor Claudio é um documentário de Beth Formaggini que é cirurgico ao analisar uma figura controversa, Claudio Guerra, o Pastor Claudio,  que participou das sessões de tortura e para discutir o processo do filme conversamos com a diretora, com exclusividade;

    Vortex Cultura: Desde quando o projeto foi pensado e quando começou a ser produzido?

    Beth Formaggini: Quando saiu o livro Memórias de uma Guerra Suja, de autoria de Rogério Medeiros e Marcelo Netto, com depoimentos do ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra em 2012, comecei a pensar em Ivanilda. Cláudio confessa no livro ter assassinado e ocultado corpos de militantes mortos na Operação Radar e no meu longa anterior Memória para Uso Diário Ivanilda Veloso procurava o marido desaparecido, Itair José Veloso, assassinado na Operação Radar. Então, pensei que ele talvez pudesse esclarecer o paradeiro de Itair e resolvi fazer o filme. Para mim Ivanilda encarna um dos “gritos” dentro do filme, ela pergunta para Cláudio, através de uma projeção, onde está seu marido, um dos poucos momentos que faz o pastor gaguejar. Fazer aparecer, dar visibilidade e “dizibilidade” aos agentes invisíveis e até hoje impunes que agiram nos porões da ditadura é gritar de outra maneira, porque é dar a ver e a ouvir essas ações por si mesmas gritantes e escondidas debaixo do tapete.

    VC: Em outras tantas entrevistas de Cláudio Guerra se mostra como um sujeito frio, calculista e repleto de detalhes são seus relatos, no entanto, em seu filme foi ao meu ver o melhor depoimento dele. Foi difícil pra você enquanto cineasta e para Eduardo Passos enquanto entrevistador conversar com ele? Em algum momento ele esboçou alguma reação diferente do que se vê dele em tela?

    BF: Cláudio foi um assassino responsável pela morte e incineração de pessoas desaparecidas que se opunham à ditadura brasileira apagando as marcas da violência do estado. Na volta à democracia, trabalhou na segurança pública replicando os métodos do passado e cometeu ainda outros assassinatos comuns. Suas motivações variam entre o orgulho em ser um cumpridor de ordens competente, um servo leal da luta contra o comunismo, o prazer de ser temido e o amor ao poder e ao dinheiro. Ora é um cristão arrependido, ora um assassino orgulhoso de seu trabalho.

    Neste filme me propus a enfrentar o que para mim era claramente o inimigo, criando um dispositivo que permitisse a ele se confrontar com sua própria história. Propus uma conversa entre Cláudio e Eduardo, um psicólogo clínico durante a qual se projetam imagens de seus parceiros e vítimas nos permitindo ver a vinculação de Cláudio com a violência do estado praticada naqueles anos, além de perceber a sua frieza aterradora. Tratar o tema da violência do Estado entrevistando um agente da repressão foi uma tarefa muito difícil. Quando chamei o psicólogo Eduardo Passos para conversar com Cláudio Guerra queria alguém que fosse capaz de escutar, mas também que fosse um militante dos direitos humanos. Queria que ele trouxesse o personagem para dentro do filme e o convidasse a construir conosco o seu retrato, mas que tivesse uma posição a favor dos direitos humanos. Também optamos por não colocar Guerra no paredão, mas em nenhum momento Guerra ou o público deixaria de saber o lugar de onde falávamos. Em sua entrevista ao Forumdoc, Jean-Louis Comolli, autor de Ver e Poder nos orientou: “É preciso odiar o inimigo, sem dúvida, e combatê-lo sem piedade, mas para isso é preciso compreendê-lo e poder contar a história que é dele e que ele não conta.” Que nenhum deles conta. E não foi nada fácil essa convivência.

    VC: Imagino que a época que foi exibido Pastor Cláudio nos festivais, não se tinha noção completa de como seria o rumo das eleições federais. Como você acha que seu filme conversa com o futuro e presente político e que tipos de repressões descritas por Claudio Guerra poderiam se repetir na atualidade tendo em vista que os anos 2010 são diferentes de 1960/70?

    A grosso modo a mesma elite brasileira que forjou o Golpe de 64 e o sustentou por mais de 20 anos está hoje no poder. É claro que o que vivemos hoje é muito mais complexo e que mais de 50 anos se passaram mas não caberia me estender aqui. Não é por acaso que o atual presidente homenageia Ustra, um dos maiores assassinos e mais cruel torturador do regime militar. Nosso filme deixa claro que o que ocorreu em 64 foi um golpe civil, empresarial e militar que contou com o apoio de ruralistas, banqueiros e empresários, mas também de grande parte da sociedade que fingia não ver os crimes que eram cometidos. Quando Cláudio fala no filme que estes grupos são os mesmos de ontem e que estão se articulando para voltar ao poder o filme ganha uma atualidade impressionante, ele prenuncia o que virá a ocorrer dois anos depois.

    VC:  Como foi a preparação de Passos para conversar com Cláudio? Ele fez algo diferente ou especial?

    BF: Jean Louis Comoli nos ensina que se você quiser filmar o inimigo deve trazê-lo para dentro do seu filme. Nós nos preparamos muito para enfrentá-lo. Assistimos e debatemos muitos filmes junto com Marcia Medeiros, a montadora que depois somou-se a Julia Bernstein na montagem com a consultoria de Marta Andreu. Assistimos a documentários como Teodorico, O Imperador do Sertão, de Eduardo Coutinho, onde ele “cede a palavra” para um “coronel” nordestino dono de terras, de gentes e da política local. Os filmes Duch, Le Maîtres Des Forges De L’enfer e S21, de Rithy Panh também foram muito importantes para a construção de um ethos da entrevista no filme. Neles o documentarista cambojano Rithy Panh dá passagem à narrativa dos violadores de direitos humanos no Camboja trazendo à tona uma visão aterrorizante da história. Eduardo destaca a importância de fazer aparecer estas violações enunciadas pelo próprio violador também como uma forma de resistência.

    Assistimos muitas entrevistas dos agentes da Ditadura no site da Comissão Nacional da Verdade, lemos Hannah Arendt e os estudos sobre a ditadura nos anos 70, discutimos muito as entrevistas anteriores de Cláudio e preparamos uma pauta muito precisa. Mas ao meu ver a prática da psicologia clínica de Eduardo teve um papel muito importante.

    VCDepois de ter trabalhado em um filme cujo foco narrativo é na fala de um homem que colaborou demais com o regime civil militar, e de ter tido contato pessoal com o mesmo, como você pessoalmente enxerga a digestão que ele fez do passado? Acredita que ele está realmente arrependido ou que é algo da boca para fora, movido por obrigações religiosas?

    A conversão de Cláudio e sua decisão de contar a sua versão dos fatos não foi assunto de nossas conversas. Nosso foco foi realmente a recuperação da memória sobre a repressão que se abateu sobre o Brasil naqueles anos e a sua repercussão nas práticas de desrespeito aos direitos humanos no período de exceção até os dias de hoje. O resultado do dispositivo criado pelo filme é nos colocar em presença não só de Cláudio mas de toda uma engrenagem que atuou na Ditadura Civil Militar e continua ativa até hoje, usando as milícias e esquadrões da morte como ferramenta, vide casos como a assassinato de Marielle e Anderson, ou o desaparecimento de Amarildo, além das inúmeras lideranças indígenas e camponesas assassinadas no país.

    Este jogo de cena que Cláudio concorda em jogar conosco nos permite não só reconstruir este período terrível da história do Brasil, mas também ver a vinculação de Cláudio com a violência de Estado praticada na ditadura militar. Também vemos a sua frieza aterradora. O filme nos faz sentir que este terror faz parte de nossa vida cotidiana dentro de uma total normalidade. O que ocorre em Pastor Cláudio é algo inesperado. O que me passou e que acho que poderá passar com o público é surpreendente. Nos damos conta que o monstro também é uma pessoa. Esperava ver um monstro com chifres e rabo e encontrei uma pessoa e este fato nos faz pensar na banalidade do mal como algo que vivemos cotidianamente. Assim, vemos diariamente notícias das mortes de jovens assassinados pela polícia e a sociedade não se rebela contra esse genocídio. Sabemos que presos são torturados e poucos se importam e se mobilizam. O mais grave é que estas poucas vozes estão cada vez mais em risco nos dias de hoje. A violência dos homens e do Estado continua a nos assombrar no Brasil e no mundo onde a vida humana já não vale mais nada. O filme nos faz viver esta experiência aterradora pois também nos põe um espelho diante dos olhos.

    VC: Qual é a sua visão particular sobre o personagem que é o Pastor Claudio? Você acha que há alguma criação consciente do personagem ou você acha que Claudio Guerra é realmente quem aparece no seu filme?

    Com este filme decidi enfrentar o que para mim era claramente o inimigo. Para isto encontrei um dispositivo forte que permitisse que Cláudio se encontrasse com sua própria história. Lhe propus uma conversa com um psicólogo durante a qual projetava imagens de arquivos da Comissão da Verdade, fotos de jornais, notícias e filmes relativos à sua trajetória.

    Quando um personagem depara-se com um dispositivo fílmico ele se transforma não só num ator mas também em um autor que cria o seu autorretrato para o filme desenvolvendo uma narrativa sobre si próprio, uma performance. Seria ingênuo acreditar em verdades neste caso, mas às vezes no discurso, nas palavras e nas suas frestas aparece alguma coisa próxima do real. Embora ele tenha criado este personagem frio e monocórdio, Cláudio reage com orgulho dos seus atos quando fala que tem mais credibilidade do que seu opositor que o contradiz porque o outro apenas ouviu falar dos crimes de ocultação de corpos, mas ele – Cláudio – foi o autor destes crimes. Chega a repetir três vezes: “Eu, eu, eu fiz!” Para nós o momento fílmico é o que importava, o “jogo de cena”, como diria Coutinho, que é jogado naquele momento. O filme capta esse “tempo presente” de interação entre Cláudio com o psicólogo e com as imagens projetadas.

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  • Crítica | Uma Noite de 12 Anos

    Crítica | Uma Noite de 12 Anos

    Temos uma clássica narrativa de cunho militar/ditatorial, sob a perspectiva de três prisioneiros, ou melhor, reféns de um governo uruguaiano ainda totalitário, e implacável com os seus subversivos. Aqui, o ditador ri da cara de quem queria mudar o mundo. Ameaça, e ri mais um pouco. Porcos a serviço da própria podridão, enquanto as humilhações e o escárnio a dignidade humana não cessam. Curioso como, em 2019, tudo isso parece retornar (após um curto período) na América Latina de sempre: super-instável, violenta, turbulenta. Refém das cobiças do primeiro mundo que nos vê tal um laboratório de experimentos sociais, facilmente manipulável. Dócil. Frágil.

    O filme de Álvaro Brechner consegue denunciar, graças ao uso pertinente de uma mise-en-scène pesada e amplamente realista, grande parte da tensão sufocante que tanto corrompeu, e se infiltrou na estrutura das políticas latino-americanas. Explorando o peso de uma ditadura sentida na pele por três dos seus mais famosos sobreviventes compatriotas, mantidos em cativeiro sob forte guarita, e expostos a todo tipo de tortura física e psicológica dentro e fora das suas jaulas imundas, eis aqui o semi-triunfo de Uma Noite de 12 Anos, durante sua sessão cheia de altos e baixos: tornar perspicaz e tangível, na tela, a sensação de injustiça e perseguição quando as liberdades parecem ser coisa do passado, e a democracia, uma utopia além de quaisquer possibilidades.

    Um drama a serviço do ato de resistência perante a uma intolerância absolutista, enquanto a sociedade é novamente (incansavelmente) levada a crer num certo e errado conveniente a um jogo de poder atual, presente no Uruguai dos anos 70 e 80 (e na infeliz Venezuela, dos anos 2010). José Mujica, num futuro já de outrora, viria a ser o presidente desta nação, o mais humilde e populista de todos os chefes, mas antes, junto de Mauricio Rosencof, jornalista e escritor, e Eleuterio Huidobro, ex-ministro da Defesa, tiveram de sentir a queimadura dos grilhões históricos que os seus e os nossos antepassados também sentiram, “de mãos atadas”, sonhando com as liberdades sociais como três meninos que sonham em ser astronautas.

    Brechner confunde dramatização com sentimentalismo, rendendo boas cenas, simbólicas como precisam ser, mas mostrando-se inseguro quanto a capacidade da plateia em absorver a pressão que esses corpos e mentalidades sofreram. Assim, o cineasta torna este Uma Noite de 12 Anos um tanto pretensioso nos temas que expõe, sem a habilidade narrativa de debatê-los como mereciam – exceto em alguns rápidos (e rasos) momentos, como quando Mujica, vulgo Pepe, por meio de um delírio psicológico sendo submetido a tortura militar, vê todos em um bar algemados, e vendados, ao redor das mesas. A visão impressiona, evidencia a angustia onipresente de um período agressivo. Uma paranoia que começa a assolar a população, por inteiro, quando esta é pulverizada no ar, como os agrotóxicos e os preconceitos sociais que são borrifados para adoecer a população, em todos os sentidos.

    Com nada de novo, e tudo de velho, vimos Pepe sendo preso junto de outros rebeldes, e seus maiores desafios enfrentados no cárcere. Seu inferno começa, entre escadas de sangue e tirania institucional – e os de fora também sofrem, famílias que compartilham de um mesmo sofrimento. É curioso como, ao longo de uma tempestade, o sol parece nunca mais voltar, e a cinebiografia transmite isso de forma eficiente, sendo esta sua principal função, devido a forma denunciativa na qual foi construída. Seus fortes apelos não passam em vão, mas tampouco fazem Uma Noite de 12 Anos ser tão marcante quanto poderia ser. Filme que se vale pelos seus temas, sua ambientação, e se isso já basta ao espectador, temos aqui um bom registro de uma época premiado na Mostra Horizontes do Festival de Veneza, e também no prestigiado Festival de Berlim, em 2018.

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  • Resenha | Tempos Extremos – Míriam Leitão

    Resenha | Tempos Extremos – Míriam Leitão

    “A história é dura para com os seus anônimos.”

    A veterana jornalista Míriam Leitão é uma figura controversa por suas opiniões, dona de altos e baixos em sua carreira, em especial na Globo News. Acima de tudo, soma-se a isso sua credibilidade enquanto profissional da comunicação e sua aptidão a literatura, como nesse recente Tempos Extremos, seu primeiro romance, publicado pela famosa editora Intrínseca. Expondo seu vasto repertório intelectual sobre o país que habita, e o seu interesse insaciável por quartos escuros e empoeirados que impede uma casa de ser limpa, Leitão constrói sua própria Macondo, a mítica aldeia de Gabriel García Márquez, tendo na centenária fazenda Soledade de Sinhá o seu portal físico para uma outra “dimensão”; outras eras de um Brasil inacabado que vê suas feridas abertas e nunca as trata. Feito brasa que, ao mero sinal de brisa rarefeita, também revive o fogo de outrora. A história importa, sim, e quem comanda o mundo sabe muito bem disso.

    Em um universo paralelo de múltiplas realidades que suga os mais curiosos, somos a ele tragados junto da doce, discreta, pensativa e corajosa Larissa, jovem mulher que passa um feriado com a família no interior mais denso de Minas Gerais, atendendo ao chamado da avó para ver toda a família reunida. No que começou como um vulto escuro a ser seguido, Larissa então recebe outros chamados de um pretérito que deseja engoli-la por entre suas veredas, como se aceitasse uma turista do presente a transitar pelos idos reprimidos que nunca desapareceram do DNA desta terra. Justamente por ser historiadora, Larissa começa a duvidar se as suas visões e interações com o passado e suas figuras típicas são mero delírio, algum tipo de distúrbio mental projetando períodos históricos diversos, ou uma realidade fantástica que só se revela a ela, e começa a tomar conta do cenário repleto de documentos, cheiros e enigmas históricos.

    Todo escritor merece sua própria Macondo, sua Nárnia, sua Soledade de Sinhá para atravessar a outras realidades temporais, seja lá quais forem os motivos de acessá-las, rompendo linhas entre o hoje, e o ontem. Leitão impressiona em sua prosa por mixar outros conflitos (a época da escravidão, o regime militar) sob a lente política e crítica de uma mulher de alma desbravadora, e que em sua postura e dialética flerta absolutamente bem com os interesses da própria autora de Tempos Extremos. Toda a consciência de Larissa faz paralelo a de Leitão, vivendo uma aventura junto de sua família rumo aos rincões de um país abissal, e promovendo reviravoltas e reflexões para si mesma e aos seus entes queridos acerca do mundos dos mortos que tanto nos influencia – influência inteligentemente metaforizada aqui nas decisões que Larissa começa a tomar, da metade do livro em diante, para se infiltrar, cada vez mais, na sedução que fantasmas de outras raças, outras épocas a propõe. Alma detetivesca incendiada pela iminência das próximas pistas de um quebra-cabeça irresistível.

    “O país tem direito a verdade e a memória”, diria qualquer jornalista e historiadora que se preze. Naquela fazenda, Larissa vai literalmente do século XXI aos porões da Casa Grande, quando a sociedade escravocrata presenciou pela primeira vez uma negra tocando piano (a mais bela e simbólica passagem do livro), enquanto lembranças de um tempo autoritário (e recente) do país vêm à tona, impactando toda a família na fazenda e as relações com o tempo atual. Leitão surfa entre décadas e séculos com grande desenvoltura, e o passado assim se alastra: Tudo é tomado de assalto por verdades antepassadas que precisam se mostrar, urgentemente, seja no claro, seja no escuro. A história importa, e a autora ilustra isso da melhor forma possível em tempos que pedem empreitadas do tipo. Isso porque o Brasil talvez não evolua em seus principais aspectos justamente por não resolver de fato as suas pendências, por não reviver os seus porões, preferindo trancá-los e passar tinta nas imperfeições mais basilares. Não é o mesmo com a gente? Seria então o mesmo com a nossa pátria.

    Compre: Tempos Extremos – Miriam Leitão.

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  • Crítica | Tá Rindo de Quê?

    Crítica | Tá Rindo de Quê?

    Do trio de diretores Cláudio Manoel, Álvaro Campos e Alê Braga, o documentário Tá Rindo de Quê? tem o objetivo pessoal de mostrar como era a inglória missão dos humoristas e comediantes durante os anos pós-golpe de 1964, no regime civil-militar que se instaurou. Já no  início do filme são mostradas imagens da época, em preto e branco, com frases que variam entre idealistas de direita e de esquerda, tentando achar ali respostas para o povo, sobretudo os trabalhadores, mas a escolha da ordem delas faz um sentido diferente aparecer, o da confusão e a tentativa do longa  em emular a ambiguidade que era transmitida ao povo pela paranoia típica da época, já que o povo não entendia exatamente o que se passava.

    Entre os entrevistados estão Juca Chaves, Daniel Filho, Ary Toledo, Boni, Chico Caruso, Eliezer Motta, Bemvindo Sequeira, Agildo Ribeiro, Jaguar, Carmen Siqueira, Fafy Siqueira, e dentre esses há dois que se destacam: Carlos Alberto de Nóbrega, o mais veemente na ojeriza a ditadura, que afirma que a falta de liberdade é assassina, e Roberto Guilherme, que honra o nome de farda que usava como Sargento Pincel e defende que naquele período havia respeito e o sujeito podia andar na rua com ouro que não seria perturbado. Essa última fala grafa bem a ideia maniqueísta e egoísta de que se não ultrapassasse o bem estar pessoal, o cotidiano dos outros pouco importava. Essa alienação do povo era comum, assim como a inquietação de quem vivia de fazer rir, que era evidentemente uma função social realmente subversiva.

    Uma boa parte do documentário se dedica a falar de Chico Anysio (e de suas referências, brevemente, como Costinha e Ronald Golias, que era seu ídolo) e o fato dele conseguir tanto sucesso é muito por conta de dois fatores, o primeiro é que Chico City foi inaugurado em 1962, dois anos antes da “revolução” ter ocorrido, com o termo em atenção pela fala de Boni. O segundo era o largo uso de personagens que ele fazia, e isso tornava seu texto impessoal de certa forma.

    Em algum ponto, os roteiristas passaram a brincar com os textos e os limites dos censores. Faça Amor, Não Faça Guerra por exemplo era um programa de TV que usava de cacófagos demais para fazer insinuações sobre o caráter do Brasil político e piadas de cunho sexual. Outra discussão era a das mulheres no humor, que tinham seus papéis normalmente reduzidas a tipos e estereótipos, se resumindo basicamente objetos de cena. Para Fafy Siqueira, quem ajudou a modificar isso a força, foi Dercy Gonçalves e isso é largamente reconhecido, pois ela foi inspiração para que inúmeras outras humoristas também pusessem para fora seu desejo de fugir desses estereótipos sexistas.

    No final do longa, Henfil (em entrevistas antigas), Caruso e Daniel Filho falam sobre a censura, com o primeiro argumentando que ter seu trabalho revisado e podado não o ajudava em nada, enquanto para Caruso sim – isso demonstra os diferentes modos de criar e fazer humor – mas de certa forma, quando os cortes caíram, muitos sofreram um tipo de bloqueio mental. Para Caruso e Daniel Filho, a situação era tão traumática que mudou até seu modo de lidar com a própria arte. Tá Rindo de Quê? acerta principalmente na questão de ser um retrato bem amplo da época em que estuda, e compensa o fato de ser um documentário um pouco à moda antiga, com linguagem semelhante a televisiva e curadoria de entrevistas com informações bastante ricas, aliado a um ritmo fluido e que faz passar rápido seus 85 minutos de duração.

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  • Entrevista | Susanna Lira, diretora de Torre das Donzelas

    Entrevista | Susanna Lira, diretora de Torre das Donzelas

    Com exibição durante o Festival do Rio e a Mostra de São Paulo, Torre das Donzelas surpreende por sua delicadeza e atualidade, e para entender um pouco mais sobre o filme, entrevistamos Susanna Lira, diretora do documentário. Confira a entrevista completa abaixo.

    Vortex Cultural: De onde veio o desejo de filmar um projeto como A Torre das Donzelas e qual foi a dificuldade de tirar as declarações das mulheres entrevistadas?

    Susanna Lira: O desejo por trás de A Torre das Donzelas vem muito da questão de apresentar uma narrativa feminina na luta contra a ditadura, na luta pela democracia. Acho que vários filmes foram feitos sobre o assunto, e poucos sobre mulheres. Faço isso até para ser coerente com a minha obra.

    Foi muito difícil, durante sete anos tentamos convencer as mulheres, umas eram muito eloquentes, outras não, e a confiança com essas mulheres foi sendo conquistada através dos anos, e elas foram se abrindo aos poucos, a medida que confiavam mais em nós, visto que estávamos nos conhecendo.

    Vortex Cultural: Além de você, quantas pessoas trabalharam coletando os depoimentos ?

    Susanna Lira: As entrevistas foram feitas só por mim, e foram realizadas em várias etapas, sendo a primeira na casa de uma delas, em 2012 senão me engano, mas só aproveitei duas frases desse pedaço, a outra foi feita em 2016, e que já foi no fundo preto e outra etapa de entrevistas já dentro da torre, ou seja, o trabalho foi dividido em três etapas.

    Vortex Cultural: Uma das melhores coisas do filme é a franqueza com que as entrevistadas falam. Em muitos filmes sobre a Ditadura Militar se nota um certo pudor com as palavras mais chulas, no seu filme não, as mulheres falam abertamente da violência que sofreram, usam termos como “curra” e denunciam abertamente os estupros sofridos, qual o motivo primordial para elas terem se aberto de maneira tão verdadeira com você? Você acredita que é por conta da solidariedade comum as mulheres ou os pudores foram deixados de lado após todo o sofrimento da tortura?

    Susanna Lira: Sobre essa questão delas se abrirem pro filme e usarem um palavreado bastante natural, é fruto do período em que íamos ganhando confiança, e assim elas iam se soltando, além de fatores externos que também influenciaram. Na iminência de acontecer o impeachment da Dilma (Rousseff, que também é entrevistada no filme) elas se soltavam ainda mais, pois julgavam urgente falar sobre o assunto, por receio de sofrer outro golpe.

    Vortex Cultural: Apesar de muitas entrevistadas você claramente tem uma estrela em seu filme, que é a ex-presidenta Dilma Rousseff. Como foi a entrevista? Lembro que em outros momentos, como quando foi entrevistada realizada por Mariana Godoy, ela se saiu muito certeira e firme em suas respostas, mesmo diante de perguntas complicadas e do momento que vivia. Minha sensação é equivocada ou ela pessoalmente parece mesmo uma pessoa talhada para lidar com a adversidade?

    Susanna Lira: A entrevista  foi feita já pós impeachment, e ela já tinha ouvido sobre o projeto do Torre, e isso a encorajou a participar. O bruto tem mais ou menos duas horas e eu considero do ponto de vista de raciocínio o depoimento dela brilhante, ela faz uma síntese do que aconteceu ali dentro de uma maneira bem construída, e isso fica claro no filme. Ela fala muito bem. Eu tenho uma entrevista de duas horas que eu poderia publicar sem cortes, uma entrevista bastante rica e você nota a entrega dela. As próprias companheiras de cela falavam isso sobre ela, e dentro da torre ela era uma líder.

    Vortex Cultural: Você já tem alguma ideia sobre um novo filme? Pensa em fazer ficção, visto que há partes teatrais em seu documentário?

    Susanna Lira: Eu tenho vários projetos em andamento, um sobre o comentarista e ex-jogador Walter Casagrande, outro sobre luta de terras no Brasil, ambos documentais. Além disso, eu já dirigi uma série para o Universal Channel, em 10 episódios, chamada Rotas do Ódio, e mais dois projetos de ficção em mente que estou em busca de recursos. De modo que, não vou fazer uma migração, acho que sempre farei documentário, mas quero trabalhar com ficção sem abandonar o trabalho como documentarista.

    Vortex Cultural: Como você acha que seu documentário conversa com a atualidade política do Brasil, em especial o que vem se demonstrando nas trocas de poder em 2019?

    Susanna Lira: Esse filme a principio era sobre memória, um período bárbaro que nós jamais gostaríamos que fossem repetidos, e infelizmente quando passa a ser exibido e fica pronto, quase narra os próximos passos políticos no Brasil. Uma das personagens até salienta que é importante relacionar o que elas viveram com o que estamos vivendo agora. Então, infelizmente, eu espero que não seja da mesma forma, que tenhamos liberdade e espaço de crítica e oposição, democrática e pacífica, e que a gente não precise repetir nada do que aconteceu, mas confesso que fico preocupada com a atualidade do filme. Qualquer outra pessoa diria “que coisa oportuna”, eu preferia estar inoportuna agora e não ter essa atualidade tão grande. Eu vejo muita semelhança com a narrativa que elas me passaram com o que está acontecendo no Brasil. Infelizmente.

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  • Crítica | Deslembro

    Crítica | Deslembro

    Filme emotivo de Flavia Castro, responsável pela direção do documentário Diário de Uma Busca (esse também um filme sobre a época da Ditadura Militar), Deslembro é a primeira ficção em longa-metragem da cineasta, e começa mostrando uma família em colapso, a começar pelos filhos, com crianças e com a adolescente Joana, vivida por Jeanne Boudier. As crianças, que conversam normalmente em francês recebem a notícia de que vão para o Rio de Janeiro, e isso aflige especialmente a primogênita, que perdeu seu pai durante a repressão.

    É curioso a forma que Castro escolher contar a história. O roteiro tem tons agridoces, mistura uma abordagem via olhos infantis com o despertar da puberdade, embalados normalmente pelos clássicos da banda The Doors, cujo vocalista e principal símbolo morreu bastante jovem, tal qual boa parte dos reprimidos da época do regime ditatorial, entre eles, o pai de Joana, que é feito por Jesuíta Barbosa.

    Durante a exibição, em todo tempo se nota um caráter e uma vontade de soar emocional e terno, e o filme realmente consegue acertar muito nesses tons e ainda sem descuidar do registro histórico. A forma como é mostrada uma família que sofreu com a perda de entes queridos durante os anos de chumbo é bastante avassalador, e nesse ponto, destacam-se Sara Antunes, que faz a mãe de Joana, uma mulher que possui uma distância bastante comum entre gerações que não tem tanta diferença de idade entre si, e também Eliane Giardini, que vive a vó de Joana e a mãe do rapaz que morreu. Aqui se vê uma intimidade em que o sentido gira em torno do saudosismo de quem elas perderam, e Giardini brilha demais, não só roubando a cena como fazendo uma escada para Boudier brilhar, apesar desse ser um dos seus primeiros grandes papéis no cinema.

    O sufoco e a espera pela morte funcionam quase como entidades, como espíritos que assombram as mulheres e homens apresentados em tela. O clima de confessionário do destino também impera, já que Joana busca se culpar pelo que aconteceu ao seu pai para talvez impedir seu padrasto de seguir em uma missão onde não sabe se voltará vivo. Aqui se repara em uma das idéias mais presentes no texto de Castro, que é a repetição de ciclos, das figuras paternas de Joana, assim como as semelhanças não só físicas, mas também emocionais e de caráter entre filha, mãe e avó.

    É impressionante como Deslembro funciona perfeitamente como uma ode a ausência. As incertezas de Joana, de sua mãe e avó sobre o destino final de Guilherme/Eduardo (que tinha um nome duplo por conta dos disfarces) sobre como aconteceu sua queda e sobre a questão emocional dele ter sofrido ou não nos últimos momentos é impressionante, pois cada geração absorve isso de uma forma, e Castro traz um resultado muito bom dessa exploração, pois todas fazendo sentido, e tocam a alma de quem assiste a obra.

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  • Crítica | Em Nome da América

    Crítica | Em Nome da América

    Em Nome da América é um exemplar documental do cinema de denúncia. Sua motivação é investigar os detalhes de um grupo de norte-americanos, que vieram ao Brasil como voluntários, através da organização Peace Corps (Corpos da Paz), e que chegaram ao Brasil em meio a década de 1960, durante o governo do democrata John F. Keneddy, enquanto por aqui o início do período militar estava em ebulição.

    O diretor Fernando Weller usa depoimentos de estadunidenses, na atualidade, para mostrar a terrível situação que o povo sofria, e as contradições deles serem enviados para um país que buscava alternativas mais humanitárias mas que também não fez qualquer esforço para se manter o estado democrático de direito, acabando por depor um presidente democraticamente eleito com o apoio desse mesmo EUA. Levando em conta o lançamento nos cinemas de circuito, é curioso e até catártico o fato do filme vir à público pouco antes das revelações de documentos que comprovam que o governo Geisel torturou e matou boa parte de seus adversários.

    Os Corpos da da Paz representavam uma parcela do governo de JFK que visava civilizar o continente da América Latina. As contradições entre a boa vontade dos jovens e as ações imperialistas são novamente analisadas aqui, como foi no documentário colombiano The Foreigners, filme esse que foi encomendado pelos voluntários da paz que estavam na Colômbia.

    Tomando isso como ponto de partida, a maioria dos entrevistados explicita sem qualquer pudor que o golpe de 64 só conseguiu se firmar por conta da paranoia do governo dos Estados Unidos, de que poderia haver a partir do Brasil algumas células comunistas, daí fortalecer o poderio das igrejas locais era importante, pois seriam elas que bateriam de frente com as ligas camponesas que lutavam por melhores condições de trabalho no campo. Esse tipo de intervenção era comum em outros países, mas sempre foi encarada como teoria da conspiração por muitos brasileiros até pouco tempo atrás.

    A leitura que Weller traz ao seu filme é bastante sóbria, sem medo de tomar partido, uma vez que é bem clara a intenção dos Estados Unidos de apoiar as ditaduras latinas, a fim de tentar frear a possibilidade do socialismo surgir em território latino americano, como aconteceu em Cuba, fato que claramente não faz sentido, visto todos os estudos feitos anteriores, inclusive em documentários como Jango, de Silvio Tendler, já que o governo de João Goulart nunca teve ou esboçou essa alternativa revolucionária. Em Nome da América traz um excelente estudo que complementa outros documentários realizados após a abertura do regime militar.

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  • Crítica | Amores de Chumbo

    Crítica | Amores de Chumbo

    Filmes sobre a época da Ditadura Militar normalmente servem para fazer comentários políticos contundentes. Exemplos disso não faltam, desde Eles Não Usam Black Tie que lida com questões trabalhistas e sindicais, até O Que É Isso Companheiro?, um thriller fantasioso de Bruno Barreto. Em Amores de ChumboTuca Siqueira traz uma história sobre relacionamentos não resolvidos, apresentando um triângulo amoroso que deixou essa configuração de lado, por muitos anos, graças a uma mentira contada no passado.

    A trama acompanha o aniversário do longevo casamento entre Miguel (Aderbal Freire Filho) e Lucia (Augusta Ferraz). Ambos se conheceram na época da repressão e estão juntos desde que o primeiro saiu da prisão política que lhe foi imposta. Após décadas, a escritora Maria Eugenia (Juliana Carneiro da Cunha) volta ao Brasil, depois de ter passado anos na França, para rever seus antigos amigos e aparar arestas com o passado. Maria e Miguel tiveram uma paixão avassaladora, interrompida pela prisão do homem, que acreditava ter sido abandonado por sua amada graças ao relato de Lucia. A grande questão é que essa situação é absolutamente discutível, uma vez que sua futura esposa guardava as cartas que Maria Eugenia mandava. Então, o marido busca resgatar os fatos ocorridos nos anos de chumbo.

    Em um primeiro momento, Miguel e Maria revivem todo o ardor da paixão que deixaram represado por anos, dando vazão não só ao desejo que tinham um pelo outro, mas evidenciando a paixão que claramente não se apagou mesmo com o passar dos dias. Além disso, o claro envelhecimento dos seus corpos, a utilização dos nus dos personagens é feita de uma maneira quase poética, não hiperssexualizando em momento algum. Por dentro, o professor de sociologia ainda se acha jovem, revolucionário e pronto para enfrentar o sistema, mas aos poucos percebe que essa não é a mesma época de efervescência e luta política que ocorria quando era estudante. De certa forma, o pragmatismo do cotidiano o mudou e ele reflete boa parte do comportamento dos que antes se julgavam revolucionários e que ao envelhecerem se tornaram mais amenos e pragmáticos, mesmo que boa parte dessas decisões não tenham sido escolhidas por si, seu comportamento é bem menos incisivo do que antes.

    Tuca mistura as temáticas de seus dois filmes anteriores, Vou Contar Para os Meus Filhos e Mesa Vermelha, no sentido de que estabelece uma historia que precisa da memória para ser viva, ao mesmo tempo em que trata de personagens com espectro político muito bem estabelecidos. Não à toa, o nome do filho do casal que começa o filme juntos chama-se Ernesto. Alias, o papel de Rodrigo Riszla brinca inclusive com as paixões adolescentes e com o discurso político, uma vez que é ele próprio que verbaliza o quão enfadonha pode ser toda a discussão política em torno da causa dos antigos militantes políticos na época da ditadura militar.

    A historia por traz de Amores de Chumbo é de rara singeleza e ternura, e mostra como uma fantasia pode ser revivida mas sem descuidar do cotidiano do homem comum, do sujeito que claramente já não tem mais pique e saúde para viver os dias do passado. Seu desfecho é razoável e condizente com a realidade que aflige todos os brasileiros que viveram aquela época, e certamente acaba sendo um reflexo sentimental da vida política brasileira, em especial para quem brigou nos anos sessenta pela volta da democracia, depois de toda a movimentação política atual, que parece visar sempre tirar os poucos direitos que os trabalhadores têm.

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  • Resenha | Brasil: Nunca Mais – Paulo Evaristo Arns e Projeto Brasil

    Resenha | Brasil: Nunca Mais – Paulo Evaristo Arns e Projeto Brasil

    Dom Frei Paulo Evaristo Arns, falecido em 2016 aos 95 anos, organizou essa obra de pesquisa extremamente elucidativa sobre a tortura na ditadura militar brasileira (1964-1985) e sua função corroborativa na manutenção do regime instaurado nesse período.

    O Regime Militar Brasileiro, de acordo com a obra, iniciou sua caminhada ainda ao final da segunda guerra mundial, com a recente aproximação dos exércitos brasileiro e estadunidense. Essa aproximação rendeu além da mudança de estrutura galesa para a ianque no centro militar tupiniquim, uma mudança no pensamento de ordem e visão do inimigo externo, base do mundo bipolar que se instaurava, despontado mais intensamente durante a guerra da Coréia.

    Essa estrutura militar foi entre outros fatores, politico e econômicos, a ponta de lança da situação que viria a se tornar os anos de chumbo. Somando esse fator à entrada de divisas e armas diretamente nas unidades federativas brasileiras, principalmente nos governos alinhados e vendo com bons olhos os amigos americanos do norte, bem como o inicio da propaganda comunista prepararam o canteiro para que dali 15 anos toda a democracia e liberdade fosse suprimida.

    De acordo com os escritos essa parceria resultou na vinda de Daniel Mitrione, agente da CIA especializado em tortura. Esse especialista ensinou, utilizando mendigos, os agentes destinados a operar as agências de segurança interna como os futuros DOPS e DOI-CODI. Sendo um alerta em texto inicial do livro o fato de alguém torturar uma pessoa três ou quatro vezes passar a se “viciar” em tais atos, sendo o epílogo elucidativo no aspecto filosófico, apontando uma objetificação do torturado perante o carrasco.  No desenrolar das páginas fica claro que o aspecto chocante dos relatos é na verdade secundário. O que a pesquisa prova é a ligação entre a tortura e a manutenção do regime.

    Muitos dos que viveram e relatam hoje não reproduzem a visão de que essa época foi de trevas, muito pelo contrário, enaltecem os bons tempos do regime como de crescimento e melhora. Contudo, os números não mentem, como a superinflação e o arroxo salarial. Mas o que surpreende são discursos ouvidos hoje negacionistas quanto à tortura ou, pior, justificando-a como necessária, pois o Brasil estava afundado em grupos terroristas.

    A obra compilada dessa pesquisa, a qual chega até nós apenas como vislumbre, pois está resumida no livro, expõe incontáveis casos de tortura aplicadas à pessoas que não tinham relação com a resistência, muito pelo contrário, muitas vezes eram apenas usadas para encobrir crimes praticados pelas forças de repressão e/ou como bodes expiatórios justificando perseguições à estudantes e religiosos. Esses certamente os que mais sofreram, pois os movimentos sindicais, políticos e do campesinato estavam praticamente anulado já antes da tomada do poder, durante alguns anos foram minados pelo crescente financiamento  do Tio Sam nos estados brasileiros. A orquestra tocou em 1964 a marcha fúnebre, mas teve anos de ensaio para tudo sair perfeito no dia da apresentação.

    Todos os políticos que defenderam reformas de base foram processados, muitos  torturados apenas ao bel prazer, o medo instaurado mantinha uma superfície de ordem, mas ordem pelo medo. O regime não aceita criticas, trata tudo e todos como potenciais “subversivos”, para usar o termo da época.

    Brasil nunca mais não trata apenas do passado, trata do que os homens são capazes de realizar, a inquisição instaurada no Brasil naquele momento não fez distinção à idade, sexo ou raça, atacou a todos com, inclusive para a época, ilegalidade. Atos contra a própria constituição vigente, incluindo a máxima  jurídica in dubio pro reo, foram invertidas totalmente na cabeça de quem detinha o poder político, econômico e, sem sombra de dúvidas, militar.

    Compre: Brasil – Nunca Mais.

    Texto de autoria de Róbison Santos.

  • Crítica | ABC da Greve

    Crítica | ABC da Greve

    Leon Hirzman é um dos diretores que fundamentou um dos grandes momentos do cinema brasileiro. Quando terminou de filmar Eles Não Usam Black Tie, Hirzman começou a fazer um documentário que permaneceu inacabado até depois de sua morte, em 1987. Em noventa, com ajuda de restauradores, e de algumas imagens inéditas, que substituíram as que foram perdidas nos negativos, vinha a luz finalmente ABC da Greve, que mostra em detalhes o cotidiano dos metalúrgicos grevistas, nos anos setenta na região paulista do ABC — Santo Andre, São Bernardo e São Caetano — núcleo este que obviamente estava bastante relacionada com o longa ficcional protagonizado por Gianfrancesco Guarnieri.

    Em um momento bastante singelo do filme, um dos peões grevistas, sujeito simples e calvo, conversa com uma autoridade militar fardada, praticamente implorando para que ele e seus companheiros não fossem presos, beirando o absurdo pensarmos em trabalhadores terem de pedir autorização para reclamar por seus direitos.

    Apesar de já lidar com a imagem do líder Luiz Inácio da Silva, o Lula, como um dos centros do movimento grevista do ABC, é só com 24 minutos de filme que Hirzman apresenta um perfil do sujeito, utilizando o segundo terço do filme para falar de sua vida pessoal e como foi sua trajetória rumo a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Lula grita, em cima do palanque, para que os grevistas tenham cuidado, evitem andarem sozinhos durante e depois dos atos, sugerindo que esses vão para suas casas assim que acabar o manifesto. Apesar da liderança popular que tem, já é possível verificar o perfil conciliador de Lula, muito distante de qualquer traço revolucionário em suas ações ou que evoque qualquer enfrentamento para além do comumente estabelecido em movimentos grevistas. Todo o discurso é sim de conciliação.

    O final do filme indica o quão o Estado é benevolente com as empresas, que concederam algumas das exigências dos grevistas — não todas, aliás bem longe disso — e ainda tiveram esses prejuízos bancados pelo caixa federal, em uma manobra que de certa forma, explica muito da motivação da ditadura empresarial-militar — algo que pode ser visto em outros filmes desta época como Pra Frente, Brasil e Cidadão Boilesen. Para variar, o Estado à direita favorece o empresariado em detrimento dos direitos dos menos abastados.

    Hirzman jamais conseguiu terminar seu filme, e é irônico como o retrato de um movimento popular como o que ele pinta, termina sem uma vitória categórica, como havia sido anunciado no início da revolta, no entanto, o resultado colhido tem bastante semelhanças com as a forma de governar em um futuro próximo dos objetos que foram analisados em ABC da Greve, onde o que preponderava, era a tentativa de equilibrar a inclusão dos mais necessitados, sem infringir diretamente nos interesses dos poderosos. É evidente que essa análise ainda não daria para ser feita em 1990 no lançamento do filme, mas é curioso como a obra já dispõe de elementos que profetizam boa parte do modus operandi de Lula enquanto líder, denotando inclusive qualidades e defeitos que ajudariam a montar o quadro politico complexo que ocorre no Brasil nessa segunda metade de década de 2010.

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  • 10 Filmes Sobre a Ditadura Militar Brasileira

    10 Filmes Sobre a Ditadura Militar Brasileira

    A tradução, pelo cinema, dos anos de chumbo, pelos militares.

    Jango (Silvio Tendler, 1984)

    Já no campo presidencial, retratando a vida política brasileira desses anos através da ascensão e queda do saudoso presidente João Goulart, somos expostos então a um material foto jornalístico e documental de grande apuro sobre o período, em questão. Com certa pompa típica aos documentários da época, e com notável precisão, conseguimos estudar pela voz de José Wilker as engrenagens, por mais de duas décadas, que levaram o presidente Jango a ser deposto no (atual) golpe de 1964 por interesses ocultos que a história foi tratando de iluminar.

    Baile Perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997)

    E como seria, ainda no Nordeste no mais profundo agora do seu sertão, e sendo o oposto de Tatuagem, ter de lidar com o impedimento como se manda o figurino? Na tentativa de se fazer um filme sobre o rei do cangaço, o imortal Lampião e a sua tropa, um cineasta se vê atado ideológica e formalmente de rodar seu filme pernambucano sendo considerado subversivo – ou seja, alguém que pensa por si próprio, podendo atrapalhar o famoso sistema de intolerâncias. Das ficções a emblemar o tema da ditadura e suas agruras, talvez seja essa a mais icônica.

    O Que é Isso, Companheiro? (Bruno Barreto, 1997)

    Um dos filmes nacionais mais famosos, no mundo, na ficção de Bruno Barreto, o evento político que marcou os nossos anos oitenta se desdobra como pano de fundo de uma narrativa multiplot investigativa, e um tanto aventuresca, cujas personagens norteiam o espectador pela tensão coexistente na época através do sequestro por estudantes militantes do embaixador americano na época (Alan Arkin), num Rio de Janeiro tão ditatorial quando o já anunciado de 2018.

    Cidadão Boilesen (Chaim Litewski, 2009)

    Outra investigação pouco conhecida pelo povo brasileiro, e negligenciada pela mídia jornalística do país, e que o próprio Cinema tratou de desenrolar os fatos, é de onde veio parte do financiamento para toda a repressão violenta, e a tortura, no Brasil dos anos 60. As ligações do empresário Henning Boilesen, um dinamarquês naturalizado no país, com o setor privado, buscando nele fundos para estruturar a violenta Operação Bandeirantes, um centro de informações montado pelo governo do Estado de São Paulo e pelo Exército no combate às organizações de esquerda, são expostas neste documentário implacável e um tanto didático, mas com entrevistas chocantes e comoventes, principalmente pelo filho de Henning que não acredita que seu pai, tido como alegre e amável, tenha sido um cara de diversas facetas, até o fim.

    Utopia e Barbárie (Silvio Tendler, 2009)

    E se este não for o melhor documentário nacional a prestar contas ao nosso regime militar, longe ele certamente não fica. Tratando não só dos anos de chumbo brasileiros, mas de inúmeros fatos polêmicos e de grande valia para o que o século XX veio a se tornar, historicamente, Utopia e Barbárie consegue ir muito além do trato para com um tema só no pós-Segunda Guerra Mundial, em vários países aonde se sonhou utopias em meio as barbáries cometidas contra nós mesmos. Um amplo e coerente ponto de referência de investigações cosmopolitas de grandes eventos, e que merece muito mais fama e aclamação do que já passamos a lhe dar, aqui.

    O Dia que Durou 21 Anos (Camilo Tavares, 2012)

    A derradeira frase desta investigação é: tudo isso foi feito com fins democráticos. “Tudo isso”, em outras singelas palavras, referindo-se diretamente ao massacre intolerante que durou vinte anos no Brasil para estender o major monopólio estadunidense, na maior potência latino-americana. Quando o país se deu conta que o território, até então nas mãos de João Goulart, não iria trocar alianças de fino trato com os interesses do Tio Sam, no dia 1° de abril de 1964 o Brasil deixou de ser a humilde terra da banana para ser mais uma extensão da ambição dos “donos do ocidente”, como eles ainda se fazem ser.

    Os Dias com Ele (Maria Clara Escobar, 2012)

    Quando uma cineasta busca entender sua própria história, e a do seu pai, integrando suas vidas aos tempos da ditadura, sem apenas constituir um esbarro narrativo ao período. Maria Clara Escobar então discursa sobre o nosso país e o seu pai, Carlos Henrique Escobar, um dos intelectuais paulistas mais provocativos dos anos 60, e 70, preso e torturado como bem nos relata a ótima biografia Os Dias Com Ele. Eleito melhor filme na 16ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2013, é uma inteligente cadência de relatos sobre uma pessoa, e a importância e o peso inseparáveis da história sobre a vida desta.

    Marighella (Isa Grinspum Ferraz, 2012)

    História de figura importantíssima do Brasil, Carlos Marighella, parlamentar e comunista, foi vítima de prisões e torturas considerado como o inimigo número Um da ditadura militar, e, como se não bastasse, foi o maior nome da militância de esquerda no Brasil dos anos 60. Viveu sob resistência, e junto, sua própria família. Em 1969, foi assassinado nas ruas de SP, com o documentário homônimo de 2012 resgatando, pelos cuidados de sua sobrinha, o que eles enfrentaram pelo caminho, construindo uma boa base de reflexão em prol de debate oriundos.

    Cara ou Coroa (Ugo Giorgetti, 2012)

    Saem os estudantes que chegam a sequestrar políticos, entra-nos o povo comum, de cada dia, tentando estabelecer um plano de vida digamos estabelecido, diante de um sistema totalmente contrário à sua sobrevivência – por mais que a elite econômica ache o oposto disso. Cara ou Coroa gira em torno de dois irmãos apaixonados por teatro e presos em uma dúvida: Seguir a profissão de ator, ou trilhar o mesmo caminho muito mais arriscado dos revolucionários jovens de 1971. Filme entre a veracidade do período e uma visão mais fantasiosa e encenada sobre os seus desenlaces, é uma boa pedida para a releitura mais aventuresca e bem-humorada dos fatos.

    Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013)

    No território do que acontecia paralelo à ditadura, sobre quem ainda acreditava no colorido e nos ritmos musicais de um Brasil liberal e até mesmo anárquico, Tatuagem ocupa então o que restou da liberdade de expressão num período autoritário. Filmado na efervescência do fogo constante de quem resiste a padrões ou aos mais variados impedimentos políticos, é propositalmente escrachado. Um esforço válido, imprevisível e provocativo a honrar diversos quadros do cinema brasileiro, como o próprio movimento do cinema marginal.

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  • Crítica | O Caso dos Irmãos Naves

    Crítica | O Caso dos Irmãos Naves

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    Começando a partir do frio som do tilintar das máquinas de escrever que faz o registro dos criminosos que lutam contra o Estado, O Caso dos Irmãos Naves é um filme denúncia, que usa o roteiro de Jean-Claude Bernadet e Luis Sérgio Person para apontar os desmandos e abusos da Ditadura Militar, passando pelos censores através do subterfúgio de estar falando sobre o Estado Novo. O longa dirigido por Person conta a trajetória de Sebastião (Juca de Oliveira) e Joaquim Naves (Raul Cortez) acusados de um crime que não cometeram e que sofrem intervenção dos subordinados de Getúlio Vargas, em meio ao seu governo ditatorial.

    A trama se passa em Araguaia, uma cidade interiorana mineira e se utiliza bem da simplicidade do povo do campo. O modo de contar história é moderno e interessante, variando entre as salas do tenente de polícia vivido por Anselmo Duarte, interrogando os envolvidos com os irmãos, e cenas de tortura dos Naves, que apanham e sofrem o castigo dado aos presos políticos, que não tem qualquer informação para repassar aos torturadores.

    Os relatos mostram a mãe dos acusados pedindo ajuda para o advogado Dr Alamy (John Herbert), afirmando que os presos são inocentes. Sem provas, o jurista afirma que ajudará o clã, uma vez que mesmo que se prove a culpa o tratamento aos encarcerados é inumano e humilhante. As cenas mostram em detalhes sórdidos os métodos dos que agem em nome da lei, driblando pudor tanto do cineasta em mostrar os tratos maus, quando dos agressores em impingir terror nos seus supostos opositores, ao ponto de faze-los confessar.

    O processo jurídico é mostrado com o cuidado de exibir a coação do tenente as testemunhas e parentes da família Naves. O juiz, vivido por Henry Higst é delegado ao cargo de julgador, vindo de fora, diante da grande questão de interesse envolvido. Todo o ritual advocatício é levado a partir da supervisão do violento, que se permite coagir os réus e parentes mesmo na frente dos outros agentes da ordem judiciária.

    As cenas pós julgamentos onde os dois irmãos olham fixamente para o tenente mostram um confrontamento sentimental muito interessante, dispondo agressor e agredidos frente a frente, ainda em desigualdade, uma vez que estão os inocentados enclausurados. O Caso dos Irmãos Naves serve como um bom exemplo de retrato histórico e de alegoria ao período turbulento em que era lançado, além de conter um comentário político ousado e palatável para o grande público.

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  • Crítica | O Desafio

    Crítica | O Desafio

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    Filme duramente retalhado, ao ponto de ter que realinhar diálogos posteriormente já que os censores cortaram algumas falas originais, O Desafio é um filme de Paulo Cezar Saraceni e começa mostrando um casal discutindo sua relação em uma viagem de carro, pondo o próprio enlace amoroso em perspectiva, comparando-o com a situação política do país, citando nominalmente o golpe militar sendo lançado somente um ano após a tomada de poder dos ditadores militares.

    O casal é vivido por Oduvaldo Vianna Filho e Isabella. A dupla passa seus dias juntos brigando, e em separado travam discussões  a respeito da situação politica nacional, normalmente dentro de seu ambiente de trabalho, tendo nesses momentos conversas acaloradas a respeito da bipolarização da época, evocando a Guerra Fria e a paranoia com o comunismo que tomou o Brasil e grande parte do Ocidente.

    Saraceni teve uma coragem extrema ao expor falas tão francas a respeito da conjuntura social pela qual passava o Brasil e todo o Mercosul, não à toa seu filme foi tão duramente cortado nas exibições que teve, antes até do Ato Institucional número cinco. A trilha sonora serve em fins diversos, além da óbvia função de reger as  cenas com músicas, ainda serve de comentário metalinguístico de protesto, com atores e cantores – entre eles, Maria Bethânia, um performance impressionante de Carcará – como voz destoante da situação cotidiana e da opressão sofrida pelos personagens e povo, sendo esta a mesma situação do espetáculo Show Opinião.

    A música instrumental, com um piano tocado enquanto a câmera passa por uma casa abandonada e destruída, em outro óbvio paralelo a degradação pelo qual passava o país, que chegava ao auge do seu subdesenvolvimento ao abrir mão das suas esferas democráticas. O filme é um marco não só por ser um manifesto contra o Regime Militar mas também por reunir em si os elementos do Cinema Novo, que era aos poucos deixado de lado até o ponto de ser completamente suprimido pela violento e ignorante entendimento dos poderosos mandatários da época.

    O Desafio tem cópias precárias em qualidade, possivelmente ainda no rastro do revanchismo dos militares e simpatizantes do regime que tentaram se desfazer dos negativos que restavam. Como vários dos produtos dessa época, as fitas carecem de uma boa restauração, uma vez que são películas bastante antigas e o modo de armazenamento não favoreceu a propagação destes exemplares. Mesmo com um orçamento muito escasso, Saraceni conseguiria montar uma peça de rara qualidade e que discute como poucos o papel do burguês e civil nessa período histórico, não aliviando em momento algum para a classe média contemporânea, mostrando não só a conivência como pecado capital, como as fortes influências de tal classe na tomada de poder via autoridade, financiando as forças armadas em uma denúncia séria, concisa e poética em sua abordagem.

  • Crítica | A Memória Que Me Contam

    Crítica | A Memória Que Me Contam

    Depois de contribuições contínuas para o cinema de denúncia a época de repressão da Ditadura Militar, Lúcia Murat retornaria ao tema, mostrando uma história moderna e atual, focada também na resistência. A Memória Que Me Contam trata de ideologia via comunismo, justiça, nostalgia e paixão ideológica, através do drama de personagens realistas e tangíveis, sem necessariamente abordar a época em questão.

    Irene é um diretora de cinema, muito semelhante fisicamente a própria Lúcia, que é interpretada pela mesma Irene Ravache que protagonizou Que Bom Te Ver Viva, e junto a alguns amigos, aguarda na sala de espera de um hospital a melhora de saúde de Ana, que era líder de um grupo revolucionário e que em sua face jovem, é feita por Simone Spoladore. Os momentos de angústia, sem saber do estado de saúde da doente faz atormentar a todos, incluindo aí a presença fantasmagórica da moribunda, que cerca os outros militantes já envelhecidos.

    A enfermidade de Ana serve há muitos meios, a partir dessa possível perda os velhos amigos se reúnem, há o tratamento de muitas feridas do passado e o confrontamento ideológico de cada um dos entes na atualidade. As discussões envolvendo Ricardo (Otávio Augusto), Zezé (Clarisse Abujamra) e Henrique (Hamilton Vaz Pereira) são repletas de pessimismo, niilismo e cinismo, seja a respeito da possibilidade de sobrevivência de Ana ou do retratar cinematográfico invasivo de Irene.

    Questões como a ascensão de ex-guerrilheiros ao poder e a postura desses enquanto estão em posições privilegiadas. Entre os dramas periféricos um dos mais interessante certamente é o de Paolo (Franco Nero), marido de Irene, que é preso por um crime político ocorrido na Itália, e que tem a ajuda de José Carlos (Zecarlos Machado), agora ministro, negada exatamente por não querer seu nome envolvido com um extraditado. Fidelidade ideológica e camaradagem são postas em cheque, e agravadas dentro do grupo de amigos quando as cartas são postas na mesa.

    Murat faz paralelos interessante com a realidade, tanto com a subida do PT ao poder, quanto aos boatos a respeito de “traição” e delação sob tortura. A Memória Que Me Contam em alguns momentos é didático, fatalmente, mas não faz o artificio uma muleta, ao contrário, uma vez que isso serve de norte para os pontos levantados, uma vez que a memória do povo infelizmente tende a suprimir toda a dor e sofrimento ocorrido nos anos de chumbo. Todo esse conjunto de sentimentos é levado ao público com uma abordagem tocante, sentimental e quase chorosa, servindo como um retrato de toda a filmografia de Lúcia Murat, apresentando-a para um público mais moço, menos ambientado com esse tipo de cinema, mas sem perder sua essência.