Tag: Lucia Murat

  • Agenda Cultural 66 | Cinema, Cobra Kai e Blacksad

    Agenda Cultural 66 | Cinema, Cobra Kai e Blacksad

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira) e Filipe Pereira (@filipepereiral) recebem Davi Garcia (@dav1garcia), do Ligado em Série e Cine Alerta, comentam sobre o que rolou no circuito de cinema; o terceiro volume de Blacksad, publicado pela Sesi-SP; Cobra Kai e outras séries.

    Duração: 64 min.
    Edição: Julio Assano Junior
    Trilha Sonora: Flávio Vieira e Julio Assano Junior
    Arte do Banner: 
    Bruno Gaspar

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  • Crítica | Praça Paris

    Crítica | Praça Paris

    Novo filme dirigido por Lucia Murat e roteirizado por Raphael Montes, Praça Paris mira alto ao tentar alcançar o posto de thriller psicológico e viés psicanalítico. Apesar da brincadeira com as palavras, a mistura entre os gêneros não consegue fluir naturalmente, fato que faz o longa carecer de uma identidade própria.

    Uma das regras não escritas para realizadores é a de se uma história secundária for melhor e mais rica que o mote principal, a melhor opção seria elevar essa a um patamar de importância maior. Isso parece ter ocorrido com a história que Murat propõe. Há dois núcleos distintos no roteiro, o da psicóloga portuguesa, Camila (Joana de Verona), que atende pacientes na UERJ, e da ascensorista e moradora da favela, Glória (Grace Passô), uma mulher que tem a rotina comum e sofrida, igual a milhões de brasileiros.

    Logo, o envolvimento das duas vai se estreitando de maneira natural e orgânica. Ambas quebram protocolos tradicionalmente estabelecidos entre paciente e analista. Totens comuns a tantos pacientes de psicanálise são jogados em tela, como abuso na infância, traumas não-resolvidos e revelados mais a frente, e claro, a crença no não tangível através da religião.

    A construção dos cenários urbanos é bem construído, tendo no Rio de Janeiro sob os olhos de Murat uma ótica repleta de veracidade. Os momentos no interior da faculdade estadual, das estações do metrô e das igrejas pentecostais ajudam a estabelecer esse clima de imersão do público.

    Ao mesmo tempo em que essas filmagens remetem a um Rio de Janeiro real, o foco em lugares de turismo pequeno tendem mostrar uma cidade para exportação, fato que obviamente casa com todo o ideal de Camila, que é uma mulher que está no Rio basicamente para saciar sua vaidade, preenchendo seu vazio existencial em atitudes pseudo-solidárias. Toda a construção em volta da personagem transborda alienação e futilidade ao ponto dela se achar o centro do mundo e alvo de todo e qualquer bandido carioca, unicamente por ter tido contato com alguém que, supostamente, tem envolvimento com bandidos poderosos.

    Os momentos finais resultam na reclamação do primeiro parágrafo, basicamente deixando Glória de lado para explorar as inseguranças infantis da outra personagem. A maior decepção em Praça Paris certamente é ligada ao rumo que as tramas desenrolam, deixando os aspectos mais flagrantes de lado para agradar ao espectador mais conservador e membro da elite carioca.

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  • Crítica | A Memória Que Me Contam

    Crítica | A Memória Que Me Contam

    Depois de contribuições contínuas para o cinema de denúncia a época de repressão da Ditadura Militar, Lúcia Murat retornaria ao tema, mostrando uma história moderna e atual, focada também na resistência. A Memória Que Me Contam trata de ideologia via comunismo, justiça, nostalgia e paixão ideológica, através do drama de personagens realistas e tangíveis, sem necessariamente abordar a época em questão.

    Irene é um diretora de cinema, muito semelhante fisicamente a própria Lúcia, que é interpretada pela mesma Irene Ravache que protagonizou Que Bom Te Ver Viva, e junto a alguns amigos, aguarda na sala de espera de um hospital a melhora de saúde de Ana, que era líder de um grupo revolucionário e que em sua face jovem, é feita por Simone Spoladore. Os momentos de angústia, sem saber do estado de saúde da doente faz atormentar a todos, incluindo aí a presença fantasmagórica da moribunda, que cerca os outros militantes já envelhecidos.

    A enfermidade de Ana serve há muitos meios, a partir dessa possível perda os velhos amigos se reúnem, há o tratamento de muitas feridas do passado e o confrontamento ideológico de cada um dos entes na atualidade. As discussões envolvendo Ricardo (Otávio Augusto), Zezé (Clarisse Abujamra) e Henrique (Hamilton Vaz Pereira) são repletas de pessimismo, niilismo e cinismo, seja a respeito da possibilidade de sobrevivência de Ana ou do retratar cinematográfico invasivo de Irene.

    Questões como a ascensão de ex-guerrilheiros ao poder e a postura desses enquanto estão em posições privilegiadas. Entre os dramas periféricos um dos mais interessante certamente é o de Paolo (Franco Nero), marido de Irene, que é preso por um crime político ocorrido na Itália, e que tem a ajuda de José Carlos (Zecarlos Machado), agora ministro, negada exatamente por não querer seu nome envolvido com um extraditado. Fidelidade ideológica e camaradagem são postas em cheque, e agravadas dentro do grupo de amigos quando as cartas são postas na mesa.

    Murat faz paralelos interessante com a realidade, tanto com a subida do PT ao poder, quanto aos boatos a respeito de “traição” e delação sob tortura. A Memória Que Me Contam em alguns momentos é didático, fatalmente, mas não faz o artificio uma muleta, ao contrário, uma vez que isso serve de norte para os pontos levantados, uma vez que a memória do povo infelizmente tende a suprimir toda a dor e sofrimento ocorrido nos anos de chumbo. Todo esse conjunto de sentimentos é levado ao público com uma abordagem tocante, sentimental e quase chorosa, servindo como um retrato de toda a filmografia de Lúcia Murat, apresentando-a para um público mais moço, menos ambientado com esse tipo de cinema, mas sem perder sua essência.

  • Crítica | Em Três Atos

    Crítica | Em Três Atos

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    Orquestrado a partir do seu nome de batismo, o novo longa-metragem da prolífica, talentosa e veterana diretora Lúcia Murat, Em Três Atos poetiza através da dança – e da persona da histórica bailarina Angel Vianna – sobre o inevitável da vida, a face idosa da existência sobrepondo a superestimada juventude, discorrendo sobre morte, espiritualidade, sensibilidade e emoção.

    A narração dos fatos é feita pela voz de Nathalia Timberg, que elucubra sobre a vida da mulher em um espetáculo ensaísta de dança contemporânea, com pedaços inteiros de textos da escritora e filósofa Simone de Beauvoir, intercalado por um drama de mãe e filha, por sua vez, contado por Andreia Beltrão. As situações em tela são tocantes e comuns, universais e cabíveis para a vida de qualquer mulher.

    A exposição do elenco é magnânima, primando por focar uma tranquilidade que não necessariamente remete à calmaria na vida. É como se o caos ocorresse internamente, e no superficial as mulheres tentassem expressar sem pudor toda a dor que sentem, mas sem “contaminar” o público com estado de espírito que lhes consome, ao menos não o tempo inteiro.

    O filme de Murat flerta com as duas vertentes de cinema que ela tanto se interessa, reunindo o documental e a dramaturgia sobre o feminismo, ainda que suas bandeiras passem longe de propagandear um ideal de modo gratuito. As mulheres que a diretora retrata são quase sempre profundas, plenas, reais e empáticas, e as personagens de Em Três Atos não fogem à regra. O estilo e modo de contar a história se aproximam em caráter do recente Pina, de Win Wenders, não quanto à forma, mas no mesmo estilo de focalizar em artistas que usam seus corpos como telas em branco, com propostas intimistas e bastante profundas.

    A performance de Maria Alice Poppe ajuda a tornar cada movimento de Angel Vianna em algo ainda mais precioso, e a união de Beauvoir com a temática de Qualquer Coisa A Gente Muda de João Saldanha produz uma incomum e funcional mistura ideológica e artística, que faz um sentido perfeito pelas mãos da cineasta, acrescentando conteúdo e sentimento ao drama universal da orfandade e do envelhecimento.

  • Crítica | Brava Gente Brasileira

    Crítica | Brava Gente Brasileira

    Brava Gente 1

    Distribuído no ano 2000, às vésperas de um novo milênio, a realizadora Lúcia Murat entrega um drama, que retrata a relação conflituosa entre os índios nativos brasileiros e os portugueses colonizadores, nos idos do século XVIII. O começo mostra uma tribo quase toda formada por mulheres, que falam em um idioma indistinguível para os europeus, os quais erroneamente associavam as falas a balbucios sem sentido, uma falha de compreensão que se repetiria na relação com os habitantes que eram julgados como selvagens.

    O retrato pintado ao redor do índio é de um guerreiro poderoso, semelhante ao visto na literatura de José de Alencar, especialmente em O Guarani, que retratava o nativo como uma espécie de cópia dos heróis dos romances europeus de cavalaria. No entanto, a visão idealizada do povo nativo é logo quebrada com as intensas batalhas entre os asseclas do governador e os membros da tribo, com cenas que resumem bem a prática nefasta dos poderosos, explicitando crimes como estupro e assassinato a sangue frio, por meio de armas de fogo, normalmente sobre figuras que sequer possuíam armas brancas.

    A interação sexual se dá por meio de seções sem mútuo consentimento, banalizando questões básicas sentimentais e morais. O roteiro desenvolve-se livre de medos, e não faz qualquer cerimônia em problematizar o modus operandi dos exploradores portugueses e tecer críticas ferrenhas aos brasileiros nascidos já sobre a influência branco-europeia, que não veem qualquer semelhança com os índios, ao contrário, defendem os desejos dos mesmos poderosos que os escravizam de modo nada velado a troco de poucos privilégios dentro das províncias.

    A questão do apartheid é fortificada pelo personagem que não consegue esconder visualmente o fato de ser mestiço. O jagunço Capitão Pedro é racista e tem orgulho disso. A barba proeminente de seu intérprete, Floriano Peixoto, busca esconder uma pele mais escurecida, mas a mentira não se sustenta ao se verificarem os cabelos encaracolados, normalmente cobertos por bonés e chapéus. Há inclusive o cuidado de mostrar o Capitão agindo de modo terno, com um rapaz branco que ele resgata, mostrando que a capacidade do capitão se humanizar só é evocada quando está em companhia de seus iguais, um artifício bastante comum em meio aos que segregam.

    No entanto, a compreensão e comportamento dócil somente são mantidos enquanto o rapaz age de modo submisso, diante de qualquer mostra de rebeldia ou discordância, a truculência retornar, como eco típico da barbárie que é capaz de fazer decepar as mãos dos “inimigos” indefesos.

    O contraponto ao comportamento de Pedro, dentro da aldeia branca, é visto na interação do lusitano Diogo Castro e Albuquerque (Diogo Infante) com a capturada Ánote (Luciana Rigueira). Mesmo os relacionamentos entre as raças, vistos no início como uniões sentimentais e amorosas, logo revelam sua real identidade de exploração sexual, vinculada quase necessariamente a dogmas religiosos, que, por sua vez, remetem à catequização imposta pelos colonos no Brasil e em toda a América Latina. O roteiro de Murat não tem pudor em mostrar a hipocrisia latente no ethos dos preconceituosos homens brancos, que tinham no discurso um acintoso ódio aos Guaicuru, mas que na intimidade, lançavam sua força para cometer abusos contra as moças da tribo.

    O revide, mostrado em detalhes no final, serve de alento aos Kadiwéu, os únicos sobreviventes após o tratado de paz e que atualmente habitam uma reserva no Mato Grosso do Sul dedicada à memória dos muitos que sofreram nas mãos dos portugueses. O movimento é uma ode à luta para subsistência da tribo, que até hoje sofre reprimendas e arduamente briga para manter sua cultura própria, pontuada de modo bastante interessante em Brava Gente Brasileira.

  • Crítica | A Nação Que Não Esperou Por Deus

    Crítica | A Nação Que Não Esperou Por Deus

    A Nação Que Não Esperou por Deus 1

    Retornando ao cenário de Brava Gente Brasileira, a diretora Lúcia Murat, acompanhada de Rodrigo Hinchsen, registra a rotina dos membros da tribo Kadiwéus, começando por uma fala sobre a intervenção do Divino na criação dos homens e na distinção de poder ocorrida entre os brancos europeus e as tribos indígenas brasileiras, que insistem em viver suas vidas ao modo de sua própria cultura, amalgamada com alguns costumes e ditames modernos. A Nação Que Não Esperou por Deus esmiúça os rastros do sincretismo religioso que predominou no Brasil colonial e que ainda hoje encontra resquícios na população.

    Lúcia narra alguns pedaços da fita, relembrando as experiências da feitoria do filme de 2000, comparando suas sensações com as descritas por Levi Strauss ao também encontrar os Kadiwéus, por ver que a obra superou quaisquer expectativas prévias suas, emocionando-a ao ponto de faze-la voltar ao lugar que antes usou como base para seu longa ficcional, fato não tão comum em meio a sua filmografia.

    O mote de A Nação Que Não Esperou por Deus é a discussão sobre a posse das terras, onde habitam os descendentes dos antigos Kadiwéus. O espaço no Mato Grosso do Sul foi cedido há muito tempo ao povo, e as terras sofrem atualmente questões complicadas de litígios, graças a fazendeiros que tentam legalmente ganhar os direitos de residência no local, via disputas judiciais desiguais, uma vez que eles têm um poderia financeiro bem maior o dos nativos.

    O escopo utilizado na investigação fílmica inclui momentos de amenidade também, não só flagrando momentos difíceis das tribos, até para emular a realidade e rotina dos descendentes dos nativos. É curioso notar como é a relação entre os atores que fizeram parte do elenco de apoio de Brava Gente Brasileira, analisando como é a vida privada destes.

    As câmeras registram um acordo feito entre as lideranças das tribos e os pecuaristas, que buscam um armistício, que num primeiro momento é respeitado, mas com o tempo, passa a ser desrespeitado, em alguns momentos agindo até com desfaçatez, sem esconder os rastros de ilegalidade, manuseando arrendamentos e apropriações por parte dos agentes da pecuária sem qualquer receio de ter a justiça contra si, uma vez que seriam eles bem mais ligados aos barões da lei, mesmo que as lideranças indígenas fosse bastante versadas na cultura e direito brasileiros.

    O viés escolhido por Murat em A Nação Que Não Esperou por Deus é o de não concluir os temas, e apesar de obviamente pender para a defesa dos Kadiwéus, não há uma demonização dos homens brancos, tampouco há qualquer resquício de maniqueísmo tolo ao tratar das condições de vida dos remanescentes da antiga cultura, que até por não se vitimizarem, não são dignos de qualquer coitadismo. A cena que encerra o documentário e mostra os créditos é prodigiosa em remontar a modernização pelo qual sofreu aquele povo, sem deixar seus costumes de lado, mantendo viva e acesa identidade cultural dos mesmos.

  • Crítica | Que Bom Te Ver Viva

    Crítica | Que Bom Te Ver Viva

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    Com uma inicial trilha de piano, prevendo a tristeza e o azedume nos fatos terríveis que seriam mostrados em tela,  Lúcia Murat utiliza-se de sua experiência pessoal para contar, através de suas personagens, o porquê e como aquelas mulheres sobreviveram aos desmandos dos governantes militares após a instituição do Ato Institucional nº 5 e a prática da livre tortura contra quem se opunha ao tal regime.

    A personagem anônima vivida por Irene Ravache recebe inúmeros telefonemas, graças a uma entrevista, retirada de outra publicação, sobre tortura sexual. Ela nega que tenha dado qualquer depoimento e diz que o jornalista em questão sequer perguntou a ela sobre esta exposição. A dramaturgia da hoje veterana atriz serve para inserir o público no mundo denunciativo, aos casos deflagrados que revelam o corpo feminino como um objeto de tortura.

    O artifício da quebra da quarta parede exerce a função de tomar a atenção pública daqueles que costumam consumir as telenovelas, e alertá-los para a flagrante realidade dos anos de chumbo, que, apesar do tempo decorrido, ainda ecoam de modo cruel nas almas daquelas moças violentadas pelo DOI-CODI e por seus semelhantes. A narradora, e única personagem representada, tem a função de pôr o dedo na ferida, uma vez que, no início, a maior parte das entrevistadas está demasiadamente emocionada, e a maioria chega a chorar ao relembrar o que a acometeu.

    Ravache beira a tragicomédia em alguns momentos, quando, por exemplo, surge a lembrança de que seu parceiro sexual deixará de “trepar” com ela por este descobrir, pela imprensa, que ela é uma mártir, fazendo-se perguntar se mártires têm necessidades humanas básicas, assim como os torturadores, demonstrando ao espectador que a “inconveniente história” das moças precisava ser lembrada e passada à posteridade, já que a conveniência está ao lado dos que trouxeram o mal à existência daquelas damas. O equilíbrio entre esquecer e conviver com as lembranças que não podem ser esquecidas, para que não sejam repetidas, e para que atrocidades como a dos torturadores serem chamados por suas profissões liberais, ao contrário dos torturados, intitulados apenas como terroristas, sequer contemplava qualquer mudança de comportamento, utilizando-se do prefixo “ex” antes de tais adjetivações. A mídia era deveras conivente nos idos dos anos 80.

    Os depoimentos dos maridos das torturadas também são interessantes por mostrarem como é a observação daquelas que tiveram marcados seus corpos, almas e mentes por parte de terceiros, porém íntimos das vítimas. O descontrole de algumas delas perante questões que relembram aqueles traumas invariavelmente as fazia bloquearem sua psiquê. Para muitas que tinham problemas como a epilepsia, era complicadíssimo dar vazão aos ataques, mesmo que fossem completamente incontroláveis na maior parte das vezes.

    Por parte das moças, alguns sentimentos “errados” sobrepunham-se ao prazer de viver mesmo após o término das torturas, como, por exemplo, a banalização daqueles que as cercavam, dado o tratamento aos presos anos depois, e a culpa por estarem vivas e tantos outros, parentes, companheiros e afins que não tiveram a mesma sorte que elas, ou mortos ou desaparecidos. O desaparecimento é também uma grande arma dos ditadores, já que pressiona sentimental e psicologicamente aqueles que esperam as notícias de entes queridos, cujo luto não pôde ser sentido, tampouco estava viva a esperança de encontrarem os desaparecidos.

    O esquecimento é a omissão daqueles que a consideram conveniente. A gravidade é ampliada quando “esqueceram” de lembrar a essas moças que elas não podem mais sentir dor, ou rememorar todas as catástrofes que aconteceram naqueles ralos metros cúbicos, imundos, repletos de baratas, lagartixas e aranhas, animais que até aquele momento continuavam assustando e causando fobia nas mulheres.

    A tecla tocada de modo mais agressivo – e necessário – é a da sexualização, da necessidade da mulher em transar, em se saciar, mesmo que sua vida pretérita fosse incomum. A vida das mulheres precisava ser comum novamente, ou o mais próximo disso possível. O prazer faz parte das necessidades básicas humanas; as dores e as marcas nos seus corpos não eram fáceis de serem arrancados, mas negar uma faceta tão presente em suas vidas seria declarar derrota, dar razão àqueles que praticaram o mal em seus corpos e em seus espíritos, e este revés não é algo que nem as mulheres, nem as companheiras e nem as ativistas políticas gostariam, afinal a luta delas e de Murat não foi em vão. Elas não fizeram parte deste acordo de silêncio e certas estão com esta atitude.  Esquecer seria trair a luta e, principalmente, seria trair a si mesma, a memória dos muitos amigos e amigas e a memória delas. A tortura fez e faz parte das vidas. O comentário final é arredio, denunciativo e inconformista, mas, ainda assim, delicado e feminino, tanto na figura de Irene Ravache como no roteiro de Lúcia Murat.

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  • Crítica | Uma Longa Viagem (2011)

    Crítica | Uma Longa Viagem (2011)

    O grito de liberdade se confunde com as fotos de família, saudosos retratos de tempos bem mais simples que aqueles em ebulição em meio aos anos 60. Foi a preocupação do clã que levou os responsáveis pelo jovem (de nome incógnito no começo da fita) a enviar o caçula para uma viagem a Londres, com a intenção de livrar o rapaz de se infiltrar nos grupos revolucionários, já que a sua irmã, Lúcia Murat, estava presa. A mulher encarcerada cresceria, se tornaria cineasta e faria do assunto de sua especialidade – a Ditadura Militar no Brasil – o pano de fundo para contar sua história.

    O jovem, vivido por Caio Blat, relembra em suas cartas o motivo de estar nesse exílio, conduzido de modo eufemístico, em que os diplomas que conseguiria em solo britânico de nada valeriam para si, nem mesmo na condução de uma nova profissão. Os depoimentos do “próprio” revelam suas amizades na Inglaterra, russos infiltrados naquela sociedade capitalista e que foram deportados para “jogar futebol com os gatos”. Ele prossegue fazendo uso contínuo de drogas, já que em solo brasileiro não tinha acesso a elas.

    A exposição da intimidade dos irmãos é corajosa e muito sensível. O irmão narra suas vivências em Cannes, no festival da Palma de Oro, que serve de pano de fundo para Murat contar sua experiência libertadora com o cinema e como sua carreira a ajudou a superar seus traumas. É somente neste momento que a narradora e realizadora pronuncia o nome de seu irmão que vivia em outra paisagem: Heitor.

    O documentário dá lugar ao drama em diversos momentos da exibição, convivendo na mesma tela as duas abordagens de modo amalgamado. Entre a busca de novas bad trips e de mais dinheiro para investir em haxixe, são feitas viagens para lugares ermos nos quais se louva especialmente o subdesenvolvimento do Afeganistão e Paquistão, onde a não chegada da civilização moderna contrasta com a realidade da Inglaterra e do Brasil. A estadia dos meninos era quase todo na rua, onde dormiam com homens santos, cercados de animais silvestres, pavões, macacos e outros animais silvestres, claro, tudo regado aos entorpecentes que eles tanto buscavam e que deixaram sequelas, fruto daquela porralouquice.

    A figura de Heitor é assustadoramente carismática e aclamada, já que sua vida foi talhada pelas vivências transgressoras e das desventuras além oceano Atlântico, ao redor de um globo explorado de modo dionisíaco, metade Gonzo metade Kerouac, sem qualquer compromisso com a normalidade ou com o método apolíneo de viver.

    As distâncias longitudinais e o torpor que Heitor tinha com seu amado haxixe não o livraram de ter notícias dos seus familiares e entes queridos. Por quase não ter uma estalagem fixa, complicava-se a situação de conseguir receber as correspondências de seus pais e irmãos. As cartas que recebia dos seus queridos demonstram o quão importante é aquele meio de comunicação, tanto para a vida comum de Heitor quanto para a narrativa da fita, uma vez que é através delas que se contam e se narram as múltiplas tramas poéticas da história.

    A volúpia por estar entorpecido começou pelo ócio, pela vontade de ocupar seu tempo e pela ausência de trabalho, mas talvez seja explicado, na vida de Heitor, pela saudade que tinha dos seus. Certamente, havia em seu comportamento uma vontade de transgredir, o que faz teorizar que o viés revolucionário estivesse impresso no DNA daquela geração familiar. No entanto, a internação tornou-se inevitável.

    A magreza de Caio Blat nos últimos momentos em tela emula a fragilidade corporal de Heitor naqueles tempos. Em 1978, ele seria capturado na Índia, na embaixada brasileira, fora de controle. Heitor teve a sorte de quem iria até lá (sua mãe) para buscá-lo, ao contrário dos muitos outros que cercavam a embaixada norte-americana à espera de certa compaixão da civilização ocidental não tão pobre ou paupérrima como a que ele estava.

    O cuidado da diretora em não subestimar a sociedade indiana – ou qualquer outra das que foram mostradas em tela – é atroz, já que a injustiça com tais povos denegriria seu emocionado relato e a história de seus parentes. Uma Longa Viagem é mais uma mostra da total maturidade de Lúcia Murat enquanto cineasta e contadora de histórias e que reporta múltiplas realidades.

  • Crítica | Quase Dois Irmãos

    Crítica | Quase Dois Irmãos

    Tencionando revisitar um assunto que lhe é muito caro, Lúcia Murat usa seu Quase Dois Irmãos para contar uma história de colisão de universos que seriam normalmente muito distintos, mas que, em tempos atípicos como eram os anos 70 no Brasil, teriam mais capacidade de se conectar, além de causar uma interseção entre um e outro. Os dois distantes lugares são ligados pelo mesmo pecado, a marginalidade, enquanto um tem no crime o papel de ação, o outro tem no reclame político a sua infração.

    A história de Murat e Paulo Lins é contada em três períodos crônicos distintos, mas sempre focados em Miguel, um respeitável político branco e de aparência aristocrata (vivido no último momento por Werner Schunemann), e no poderoso traficante Jorginho (Antônio Pompêo). Os dois se conheciam desde a infância, mas, com o tempo, foram separados por seus destinos. O reencontro entre ambos ocorre nos anos 70, na prisão onde Miguel (Caco Ciocler) é confinado por suas ações enquanto militante político, a exemplo de todos os outros brancos encarcerados. Jorge (Flavio Bauraqui) é mais um dos muitos negros presos graças às violações comuns da lei.

    O paralelo utilizado no roteiro para unir os dois personagens tão distintos é a ode ao samba herdada dos pais, que tinham uma estreita relação no anos de 1950. No entanto, são poucas as semelhanças, especialmente quando se analisa o senador que Miguel se tornou e o destino final de Jorginho. A filha do parlamentar se envolve em alguns problemas na Justiça, sendo resgatada por seu pai. Os motivos destes problemas são mostrados aos poucos.

    Incrível como o suspense e a ansiedade permeiam os dois principais núcleos temporais da trama. As perseguições políticas próprias e a guerra de sucessão são assuntos em comum entre os dois momentos, seja no cárcere ou no tráfico dentro do morro. A mensagem que o argumento quer passar é que, apesar do tempo ter passado, mesmo com algumas mudanças e vitórias parciais, a desigualdade prossegue e as separações econômica e de raça ainda se mantêm presentes. O muro montado de modo instantâneo na prisão não separa somente os dois lados díspares entre os dois coletivos, mas também entre os dois irmãos.

    O discurso de Juliana (Maria Flor) acaba por se parecer demais com a fala do traficante, que acusa o importante cidadão de ser um exclusivista, preconceituoso e reacionário, o exato contrário dos valores que ele defendia no passado. Ao mesmo tempo em que o roteiro retorna no tempo, mostrando os ideais do revolucionário e preso sendo postos à frente até mesmo de seu próprio bem-estar, a bronca conservadora que ele dá em sua herdeira, por esta se envolver com um tratante narcótico e negro, é contrastante, ainda que o seu julgamento não seja de todo errado.

    O anúncio de Dona Helena (Marieta Severo), mãe de Miguel, afirmando que, aos poucos, os presos políticos estavam se tornando iguais aos militares, vai se tornando real. Lucia Murat consegue realizar um filme saudosista, que toca na questão da repressão da ditadura militar, e ainda capta os clichês de um favela movie, atualizando os temas de marginalidade e luta contra o sistema, mas sem ignorar os óbvios exageros de todas as partes dos ditos bandidos, pondo todos em nível de relevância e em pé de igualdade.

    A tônica emocional dita o samba em partido alto, no último ato, trágica e irônica, com um destino agridoce para os dois personagens ligados pelos laços de quase sangue, em uma relação quase familiar, e que, como em toda a fita, quase dá certo para os dois lados. O tom poético assinala a efemeridade da política, das relações e principalmente da vida, sem fechar todas as pontas que abre, não por desatenção do roteiro, mas por concentrar os personagens na perturbação dos sentidos e na dor envolvida por todos na intrincada trama.

  • Crítica | Doces Poderes

    Crítica | Doces Poderes

    Segundo longa-metragem de Lúcia Murat, Doces Poderes mostra um pouco do terror vivido pela cineasta em tempos pregressos, quando conviveu com as turras das torturas, nos porões da ditadura. Seu modo de filmar representa uma enorme aura de paranoia e perseguição, especialmente quando focaliza Beatriz Campos Jordão, ou Bia, personagem de Marisa Orth, que se muda para Brasília a trabalho para cuidar de uma sucursal de TV na capital.

    A trajetória da protagonista é pautada na subida ao poder. A decisão em mudar de estilo a fez querer subir os degraus típicos do jornalismo. Enquanto Bia é apresentada ao seu novo cargo, análogos de campanhas publicitárias, travestidas de informes eleitorais, são mostrados, pensados, roteirizados e editados por mulheres, que falam diretamente para a câmera, intentando explicar a dicotômica relação que têm com a campanha comercial de exploradores do povo e o voto em pessoas ainda de esquerda. A necessidade de por comida no prato passa por cima do utópico discurso, mesmo os mais justos, mas estes fatos não fazem com que a situação seja mais fácil de ser executada.

    A mensagem que é passada pela maioria dos personagens é de que os tempos ideológicos mudaram, e que é preciso sujar as mãos, algo que desperta Bia, que ainda acredita que conseguirá mudar a realidade pondo a mão na massa. Ela acredita que não se contaminará.

    Os bastidores do poder são escusos até na superfície. Os políticos e assessores não têm qualquer pudor em falar sobre caixa dois. As reuniões de negócios, em que os parlamentares se embrenham, mais parecem orgias descontroladas do que qualquer outra coisa. A associação dos pecados morais à sem-vergonhice típica dos poderosos coiotes que habitam o Planalto faz como destaque a desfaçatez dos personagens retratados em tela.

    Os editores e profissionais de vídeos são mostrados em alguns momentos debochando de seus empregadores; os “barões” que pisam no proletariado, e em outras brechas, se mostram inconformados por manipular informações, tentando tornar os truculentos governistas, que pedem para eliminar a realidade e divulgar as felizes imagens, diferentes dos delírios da oposição.

    Escândalos sexuais entre membros da mídia e políticos são enfocados através de discussões morais implícitas sobre o voyeurismo, feitas por parte dos que se entregaram ao “prazer” e à sexualidade. Os que mandam no jogo de fantoches e no eleitorado, evidentemente, dão a questões morais uma importância indevida, em detrimento das propostas e planos de governo.

    O ponto fraco, talvez, seja o maniqueísmo em que são mostrados os dois candidatos a governador, cujas campanhas são mostradas no decorrer da fita. Enquanto Ronaldo Cavalcanti (José de Abreu) é mostrado como um lobo mau, capaz das maiores baixarias para permanecer utilizando a máquina pública ao seu bel prazer, Luizinho Vargas (Luís Antônio Pilar) é ingênuo ao achar que suas indiscrições sexuais seriam perdoadas pelos seus adversários. O entorno, ao menos, é bastante crível.

    A atitude de Bia, ao final se arrependendo do que fez, é um artifício honesto, semelhante ao que ocorreu com o debate Lula e Collor nas eleições de 1989. A figura dela transita entre a de uma mártir e a de uma paladina, mas que, na prática, não fez mais do que limpar a sua consciência, visto que o destaque dado ao seu assumir foi pequeno, irrisório diante da campanha televisiva contrária a ela e às suas convicções morais. O romantismo ligado ao modo de fazer política mostrado em tela ainda é muito presente no discurso de quase todas as facções políticas, sejam elas de esquerda ou de direita. No entanto, não condizem com a realidade exposta nos dias após as aberturas das urnas, seja atualmente ou no ano de 1996.

    O final, invertendo as posições de sucesso entre Bia e o fotógrafo Araponga (Luís Mello), que foi o responsável pelas fotos comprometedoras de Luizinho, é curioso, e até causa um pequeno sorriso quando se apela à parte mais cínica da psiquê.

    Durante os créditos, os editores das campanhas que permaneceram em seus ofícios tentam dar uma última justificativa para os seus atos, mas sem apelar para uma redenção barata, ainda que no conteúdo de suas palavras dê para se notar uma vergonha persistente de quem precisa mentir para si mesmo e de modo tão triste. Este final emocional, apesar de não condizer tanto com a realidade, é tão agridoce quanto os limites que o cinema permite, quase como um ensaio poético, um teatro onde os atores são sempre obrigados a fazer a mesma peça incômoda.