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  • Crítica | As Melhores Coisas do Mundo

    Crítica | As Melhores Coisas do Mundo

    Laís Bodanzky é uma das cineastas em atividade no Brasil mais versáteis, e com mais consciência quanto a diversidade que existe no país, e digo isso sem receio algum. Do fabuloso Bicho de Sete Cabeças, a Chega de Saudade e Como Nossos Pais, Bodanzky não apresenta tampouco algum tipo de receio no tratamento de temas tão variados, quanto desafiantes para cineastas que não saem de sua bolha temática, ou não se distanciam das convenções lucrativas que uma produção baseada só em marketing pode lhes dar. Bodanzky nunca teve medo de errar em seus olhares, em suas interpretações sobre a meia-idade, a classe média ou até mesmo os adolescentes.

    Percebe-se, num entendimento substancial para com As Melhores Coisas do Mundo, que o universo adolescente urbano na mídia brasileira, demonstrado e vivido aqui pelos caminhos de Hermano (Francisco Miguez), está tão enraizado há décadas nos clichês de Malhação, a eterna série da Rede Globo de televisão, que fica difícil sair desse lugar comum que a produção parece ter engessado esse universo de puberdade e conflitos de maturidade na imaginação audiovisual do Brasil, posto que ainda me parece ver e ouvir ecos de um Cabeção no comportamento deles na tela, nas praças de alimentação dos shopping centers, no feed de notícias do Facebook. As gerações mudam, ficam ultrapassadas, e o mainstream principalmente do Cinema brasileiro contemporâneo carece em demasia de novas abordagens, para com seus novos contornos geracionais.

    E o desejo de realizar um Trainspotting juvenil nos tempos da internet foi grande demais para Bodanzky, tal que, feito Ícaro, queimou suas asas na proximidade ambiciosa com a estrela mãe da Via Láctea, mesmo sendo a ótima artista que provou ser na filmografia nacional. As ideias de sempre (escola, família, amigos, namoro, escapismo, virgindade) tampouco ajudam a cineasta paulista a ganhar êxito total em produzir um retrato realmente relevante, embora expressivo desse universo teen, já que aqui trata das agruras de um adolescente no seio familiar na passagem para a vida adulta, e tudo o que resulta nisso, e disso. No tratamento narrativo com as contradições que essas transições oferece aos que a vivem, o filme infelizmente se torna tão previsível quanto qualquer episódio de qualquer temporada da série global que, cá entre nós, nunca termina.

    Sendo que Hermano só quer aproveitar a vida, ser relevante dentro de casa para com seus pais, e se auto descobrir, como qualquer adolescente, As Melhores Coisas do Mundo nos são manifestadas com leveza, naturalidade e um certo entretenimento sincero e divertido para nunca nos deixar em dúvida sobre o que elas são, e o que elas podem ser na vida de alguém cheio de paradoxos existenciais, e ainda sobrecarregado por todos os sonhos do mundo. Bodanzky, a versátil brasileira, celebra essa idade das espinhas com cuidado fazendo lembrar até mesmo aos mais velhos como é bom fazer besteiras e se questionar vivendo o hoje, sem (quase) ligar para o amanhã. O resultado, longe do memorável, é um dos filmes brazucas modernos mais francos sobre o tema, e sobre parte dos seus desdobramentos, mas um dos mais inofensivos, também.

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  • Crítica | Batismo de Sangue

    Crítica | Batismo de Sangue

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    Violento, visceral e equilibrado nas funções entre ser uma denúncia e um produto artístico intimista, Batismo de Sangue é um interessante retrato sobre os traumas causados pela tortura que recaia sobre os opositores da Ditadura Militar brasileira. Baseado no livro de Frei Betto, a história contada pelo diretor Helvecio Ratton mostra a insurgência de lideranças religiosas católicas romanas no final dos anos sessenta contra o regime militar instaurado.

    Tito (Caio Blat), Betto (Daniel de Oliveira), Fernando (Léo Quintão), Oswaldo (Angelo Antônio) e Ivo (Odilon Esteves) são os freis que resolvem engrossar o coro revolucionário, apoiando a logística do Ação Libertária Nacional, organização de Carlos Marighella (Marku Ribas),pessoa importante na luta armada com o qual alguns dos religiosos tem contato direto. O roteiro mostra de maneira didática a resistência dentro do clero a esses cincos religiosos, bem como a intimidade da militância.

    O filme não se acovarda tampouco teme dar nome aos bois no referente aos personagens chave do jogo político vigente. As atuações são realistas e dedicadas enquanto Ribas é tímido como Marighella, Cassius Gabus Mendes faz do seu delegado Fleury um sujeito agressivo, servindo a perfeição como o “homem  forte” do Esquadrão da Morte. As reações intempestivas e violentas casam bem com todas as descrições que fazem a respeito do militar.

    Ao contrário do que ocorreu em Zuzu Angel, filme de temática semelhante e regulado em época com este, as cenas de tortura são fortes e não suavizam em nada para o público, de modo que causa no espectador um sufocamento semelhante ao ocorrido com os flagelados. Não estilização do martírio dos presos, tampouco preocupação preciosista em mostrar ângulos obtusos, as sequências são cruéis e viscerais, causando incômodo em quem as assiste.

    A operação para assassinar Marighella leva em conta a versão comumente levantada por defensores, amigos e parentes próximos do revolucionário, como já foi muito discutido no documentário Marighella, de Isa Grinspun Ferraz. Esses eventos e a tortura pelos quais passam os religiosos marcam a vida de Tito, ao ponto dele perder a fé na vida, humanidade e até no Divino. A apreciação e digestão que o padre faz dos dias que passaram são reflexivas, interessantes e muito humanas, condizentes com a realidade de alguém que tem sua liberdade cerceada e seus sonhos violados. Mesmo no exílio, ele acha que Fleury o encontrará e sua solidão vai além até da distância de seu país natal.

    Blat se entrega ao papel de uma jeito tocante e delicado, e pontua como um dos elementos mais interessantes e profundos do longa-metragem. Esse aspecto aliado a performance vilanesca de Gabus Mendes além modo direto como Ratton dirige seu filme fazem de Batismo de Sangue uma das melhores manifestações modernas a respeito dos anos de chumbo, mostrando tanto alguns dos defeitos dos militantes, quanto a total falta de respeito com a vida e direitos humanos empregadas pelos ditadores.

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  • Crítica | BR 716

    Crítica | BR 716

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    Registro emocional da geração boemia carioca dos anos sessenta que vivia o período pouco anterior à Ditadura Militar, BR 716 é mais um experimento de Domingos Oliveira contando o passado, como havia sido em seu filme anterior Infância, onde o mesmo se colocou como protagonista biográfico do filme. Neste, o personagem principal é Felipe, um jovem vivido por Caio Blat que acaba de terminar seu casamento e narra a história vista em tela em um conto em que os homens e mulheres fazem uso indiscriminado de bebida e drogas leves, basicamente para manifestar sua contra-cultura.

    A jornada de Felipe também inclui sermões de seus pais, que se preocupam com a falta de dinheiro e de trabalho que ele sofre, uma vez que se dedica basicamente a escrever, não aceitando empregos nem mesmo na área de engenharia onde tem diploma. Sua mentalidade é de que não conseguirá escrever seus romances contos e peças se tiver alguma ocupação empregatícia.

    A solidão o faz confrontar seus medos, inclusive as figuras que o traíram, sua ex-mulher e seu melhor amigo, vividos por Maria Ribeiro e Álamo Facó, em um momento onde não fica claro se é apenas uma ilusão fruto do sonho que teria pós bebedeira ou se realmente havia ocorrido factualmente. A cena se finda de maneira cômica, vingativa e infantil, causando no espectador uma sensação de riso

    O longa faz um trajeto de reverência aos filmes de Federico Fellini semelhante ao exercício que Um Filme Francês faz com as películas de Jean Luc Godard. Há muito de Os Boas Vidas de 1953,  especialmente na necessidade que o protagonista tem em se auto destruir e a facilidade que tem em se apaixonar por belas mulheres, além de conseguir facilmente perdoar os amigos que o magoaram regando seu cotidiano basicamente à whisky e conversa prosaica.

    Uma das musas deste é vivida por Sophie Charlotte, a cantora Gilda, uma mulher bela, voluptuosa e que chama a atenção por onde passa, um verdadeiro furacão sexual e capaz de causar em quem se aproxima dela cenas de paixão e ciúmes intensos, tornando até as pessoas mais racionais em meros joguetes, remontando a ideia da construção de personagem inalcançável, típica das musas.

    O roteiro que Felipe escreve acaba por tornar-se um argumento de metalinguagem poderoso, lamentando então a perda do apartamento da Barata Ribeiro 716, e aliado a música Shame e Scandal de Peter Tosh, insistentemente reprisada nos 88 minutos de filme fazem lembrar o motivo de execução do filme em si, que busca ser nostálgico a respeito de uma geração que tinha boas intenções políticas mas pouco traquejo para lidar com a crise em si. BR 716 é um filme que tem problemas em assumir um lado, exatamente como seu protagonista Felipe, que insiste em ser pacifista, beirando uma pseudo neutralidade que obviamente não existe em discussões de esferas políticas tampouco em temática cinematográfica.

  • Crítica | California

    Crítica | California

    California 1

    Incisivo e direto, o longa metragem de estreia de Marina Person demonstra, já em seus momentos iniciais, o caráter de descoberta a respeito da adolescência e juventude. Situado em 1984, o roteiro é focado em Estela (Carla Gallo), uma menina que intenta viajar finalmente para a Califórnia, local onde mora seu tio, vivido por Caio Blat. O repertório da moça é vasto dentro da exploração da cultura pop, com enfoque em seu amor por cinema e pelo clássico Blade Runner, e predileção pela música de David Bowie.

    Person tem em sua família uma tradição cinematográfica muito prolífica, uma vez que é filha de Luis Sérgio Person, tradicional diretor de São Paulo Sociedade Anônima. Seu cinema é intimamente ligado ao do pai, a começar pelo média metragem anterior, documentário focado no pai. Apesar de tocar também nos momentos históricos políticos brasileiros, visando a Ditadura Militar como Luis Sérgio fez em O Caso dos Irmãos Navas (de forma velada, no caso do clássico), sua abordagem na fita atual é diferenciada e com uma identidade própria, com claras referências ao tom que Larry Clark dava aos seus dramas juvenis, ainda que não haja uma sexualidade tão explícita quanto em Kids e suas outras películas.

    O imaginário de Estela (ou Teca) envolve uma parcela bastante careta da sua família, em destaque para  pai vivido por Paulo Miklos (ironicamente) e por seu tio que vive como crítico musical nos EUA. Logo, a viagem de Estela é desmarcada, por que seu parente vêm ao Brasil, inesperadamente. Sua vida amorosa também é dividida entre dois meninos bem diferentes, um rapaz comum e ordinário, e do outro lado, JM (Caio Horowicz), misterioso, rebelde e repleto de nuances.

    O modo como as meninas discutem sexo é franca, repleta de devaneios, viagens e palavras típicas da imaturidade. A discussão passa a ser mais madura e menos burguesa quando JM abre diálogo com ela, falando abertamente sobre caretice, personalidade e pulsão. A abordagem cinematográfica de Person é corajosa, ao expor os corpos de seus atores sem pudor ou receio, conduzindo o descobrimento e desabrochar sexual, tratando em paralelo as consequências do sexo, levando em conta até a burrificada culpa a que se atribuía a quem era sexualmente ativo em pleno tempo de repressão.

    A jornada de Estela é ligada ainda à despedidas e trocas de cartas, de amores distantes, que apesar de não presentes fisicamente, fazem bem a jovem mulher, alimentando-a de um modo que as pessoas comuns e ordeiras. Teca não pertence ao mundo em que vive, talvez por isso ocorra a hesitação por parte dos que lhe causam furor em usar tal apelido, pois sua identidade parte do nome civil que tem, distanciando-se da menina, para desembocar em uma mulher como um grande potencial pela frente. O modo com a diretora escolheu conduzir seu Califórnia só torna tudo mais singelo e interessante, equilibrado e urgente quando necessário e didático quando se exige.

  • Crítica | Carandiru

    Crítica | Carandiru

    Carandiru 1

    A tomada aérea registra visualmente o complexo carcerário que seria explorado pelas lentes de Hector Babenco. As figuras esquálidas que habitam aquele microuniverso são a síntese visual da doença que acomete os presos, pessoas carecidas da menor possibilidade de saúde, mental e corporal, que teria resposta a partir das palavras e narrações do personagem do médico (Luiz Carlos Vasconcelos), um (possível) paralelo com Drauzio Varella, autor do livro biográfico e pró-revolução que gerou o roteiro de Carandiru.

    A chegada do doutor remete à busca por prevenção da AIDS, um advento comum da época, em tempos onde se discutia os malefícios do dito amor livre. O profissional da saúde acompanha, de perto, sem interferir na rotina do planeta-prisão em que se insere eventualmente. Mesmo ao abraçar alguns dos causos, ele não se permite sentir todas as dores das “vítimas”, ainda se importando com o que pode, tendo a difícil tarefa de abarcar alguns dramas e ter de virar os olhos para tantos outros. A seleção dos motivos importantes é um desafio ético, mas é também a principal mostra de que ele não pertence àquele ambiente inóspito, o deserto das almas aflitas, que ainda assim sussurram por atenção e misericórdia.

    O dilema prossegue em evitar julgamentos, já que não era seu papel. Ele deveria ser invisível, um observador atento, no máximo, para captar as mensagens dadas nas falas das ricas personagens. As memórias são mostradas em flashbacks na maioria das vezes, a começar pelo líder religioso Nego Preto (Ivan de Almeida), que tem o discurso moralista como fundamento principal, enredando um discurso baseado fundamentalmente nos valores familiares, apesar dos aspectos da rotina de um bicho solto.

    Os balões de Seu Chico (Milton Gonçalves) fazem o óbvio paralelo com o desejo de liberdade ao voar pelos céus. O bravejar deveria mesmo vir de um preso considerado justo, o contraponto a toda fala mal vista pela sociedade. Destacam-se contos rodriguianos, como o de Majestade (Ailton Graça) e sua poligamia, e o surpreendente destino que envolve Deusdete (Caio Blat), Zico (Vagner Moura) e sua família que passa por momentos conturbados, cujos traumas incorrem em violência sexual findando o drama em homicídio culposo, que obviamente resulta em uma pena ainda maior.

    O que deveria ser o alento do frescor da vida de fora das grades serve na maioria das vezes para resgatar fantasmas, variando entre mágoas resolvidas, não resolvidas e reaberturas de dores na alma, tanto do presente quanto do passado. A imundície vista nas paredes e corredores do complexo se reproduz nas muitas sensações contraditórias dos detentos, abarcando diversos estereótipos de figuras marginais, mas construindo bem cada uma delas, muito por mérito do texto de Babenco, Fernando Bonassi e Victor Navas.

    O canto de Se Gritar Pega Ladrão ecoa pela cozinha, trazendo más notícias para Nego Preto e momentos de redenção do assassino frio Peixeira, no momento mais inspirado de Milhem Cortaz no cinema mainstream até então. O personagem encontra na fé o seu caminho de cura espiritual, apelando, claro, para o discurso fácil mas engrandecido por toda a atmosfera criada em torno da edificação de seu personagem.

    A nacionalidade, argentina, de Babenco se nota na proclamação do hino brasileiro, tocado na íntegra, remetendo à enorme população carcerária do país, cada vez mais crescente, reunindo milhares e milhares de habitante, proliferando um sistema que não corrige e deseduca ainda mais os novos detentos.

    As explicações sobre o tumulto da rebelião são dadas em formato de falas semidocumentais, com declarações sobre o ambiente interno e o inferno vivido ali e, claro, o panorama político do lado externo, às vésperas de uma eleição para governador, o que causaria uma ação mais enérgica dos membros da Tropa de Choque. A truculência dos militares é mostrada em minúcias e exibe a crueldade do Estado coercitivo. A cena que desvela a invasão ao cárcere exibe a desconfiança dos policiais diante de seu batalhão e o terrível medo de adentrar o inferno dantesco, resultado do descaso do governo com os cidadãos que deveriam se reabilitar. O bordão do personagem de Gero Camilo cabe bem, sem chance de mudança.

    As cenas de mortes dos alvejados são repletas de agonia, resultando de modo terrível a miséria que habitou a vida dos homens, restando zero dignidade. O enfoque no grupo de detentos, todos nus no campo de futebol faz menção ao cartaz e à beleza fotográfica do esmero de Walter Carvalho enquanto responsável pela cinematografia.

    As conclusões tiradas pelo roteiro são acachapantes e exibem através de dramas comuns a vida uma realidade dura, selvagem e repleta de desesperança, denunciando, para um público muito maior, as agruras do cárcere e o quanto deseducador é o ambiente da prisão, ainda que o resultado final flerte com uma glamourização da vida do preso. Babenco consegue apontar as emoções conflitantes de medo e auxílio por parte de seu protagonista, conseguindo transicionar bem o papel de contador de histórias de um modo bem mais lúdico e fluído do que o que Alejandro Iñárritu fez em Babel ou o trabalho de Paul Haggis em Crash: No Limite, pelo óbvio fato de serem dramas “reais” retratados em Carandiru. A morada da prisão é também o lugar onde repousa o desespero e o desengano, a despeito das crenças religiosas.

  • Crítica | Metanoia

    Crítica | Metanoia

    Metanoia 1

    Evocando um sensacionalismo abissal, usando a questão do vício em crack, o filme de Miguel Nagle se inicia com narrações em off em áudios de pessoas depondo sobre a condição dos adictos no tóxico. De nome grego, a origem da palavra Metanoia se faz no sentido de “mudança de pensamento” de seu cerne, e o termo é utilizado por muitos segmentos da igreja evangélica brasileira.

    O roteiro é narrado em primeira pessoa pelo personagem Dudu, vivido na fase adulta por Caique Oliveira e na infância/adolescência por um menino bastante diferente, sem qualquer preocupação da produção com a clara mudança de etnia entre um ator e outro. O pouco compromisso com a congruência visual é assistida nas outras personificações de pessoas em passagens de tempo. A continuidade é nula, assim como a esdrúxula troca de atores em períodos longos de tempo. Desde cedo, o rapaz sofre com sonhos e alucinações bizarras, que associam a simples desobediência infantil ao contato com demônios e figuras monstruosas.

    Produzido pela Companhia Jeová Nissi, o argumento até tenta ganhar alguma sobriedade com a presença de atores famosos, como Caio Blat, Silvio Guindane e Solange Couto. No entanto, nem a presença de profissionais gabaritados consegue salvar o texto da mediocridade. A adição aos entorpecentes é completamente demonizada, filmada em condições toscas, com situações forçadas e convenientes, a fim de fazer um discurso vazio anti-drogas.

    A cena em que Jeffe – personagem de Caio Blat  é introduzido caracteriza a síntese da má construção da fita. Jeff oferece um baseado enorme, sem qualquer cerimônia, para o pobre Dudu, volúvel e suscetível à pressão exercida por seus malvados amigos. O torpor da erva faz enxergar as pessoas sem rosto, como o sonho de outrora, como se sub-consciente o alertasse do que ocorreria com ele no futuro. Sua condição de não usuário para internado em uma clínica de reabilitação é automática. Não há qualquer construção mínima até então, somente uma estrada curta, retilínea e ordinária.

    Mesmo os dramas terríveis, de agressão dos viciados aos seus familiares, são conduzidos de modo torto, estúpido e gratuitamente chocante. As reações de ataques tanto de abstinência às substâncias quanto aos excessos do uso são constrangedoras, mesmo para os astros conhecidos.

    Mesmo o bom desempenho de Silvio Guindane, especialmente quando através do contato com Solange Couto, que interpreta sua mãe, é interessante como o viciado vivido pelo ator consegue manter uma barba retilínea e muitíssimo bem aparada, mesmo morando na rua por quatro anos, vestido em trapos e com os pés sujos e maltratados pelo contato direto com o asfalto. Os elementos visuais pesam contra as sequências, banalizando os takes que deveriam ser as melhores de toda a duração da fita, excessiva aliás, beirando os cento e vinte minutos.

    As intenções do produtor, roteirista e protagonista Caique Oliveira são ótimas, mas a tentativa de valer a palavra cristã acima dos problemas de um toxicômano se perde em meio a uma história mal contada e confusa, tropeçando normalmente nas próprias pernas, corrida por uma narração tola que só faz idiotizar o argumento que já não era forte. A direção de Nagle até tenta em vão salvar algumas sequências, com ângulos panorâmicos, mostrando a desgraça em que Eduardo se metia ao afundar no consumo do crack.

    A segunda hora é dedicada ao assistencialismo e a tentativas de reabilitação. As passagens de tempo são confusas, emulando a perda de noção de hora que Eduardo tem ao fumar. Nota-se uma gama enorme de vícios de linguagem teatral na produção do filme, especialmente nos repentes que ocorrem, mudando posturas de personagens sem qualquer construção e deixando de fazer qualquer sentido na proposta fílmica.

    Talvez, as sequências sem amarras cronológicas mostradas em Metanoia, “poderiam” (muitas aspas) funcionar em uma humilde peça de igreja evangélica, onde o crivo não é grande e a exigência é nula. Mas, em meio a um circuito de cinema tão seletivo e difícil, é um verdadeiro abuso que o longa consiga ser distribuído para as salas comerciais.

    O último ato da peça/filme revela de maneira sepulcral a condição do homem, no caso, através do causo de Eduardo, um ser diminuto e ínfimo diante do Divino, sem direito sequer ao livre arbítrio, mesmo que esta condição seja um evento garantido até mesmo nas sagradas escrituras. Os sonhos que tinha quando criança denotam que toda a derrocada que sofreria quando adulto já era prevista, e mesmo próximo de muitas pessoas ligadas à religião, nem ele, nem os fiéis tiveram a clarividência do que ocorreria.

    As intenções de Caique Oliveira ao produzir tal texto são claramente positivas, mas o viés que escolheu para apresentar o drama é equivocado ao extremo, tornando uma situação grave e clamorosa em motivo de piada e propaganda religiosa barata. Um desperdício tanto em relação ao potencial da Companhia Jeová Nissi quanto em relação ao cenário cinematográfico brasileiro mainstream. A falha de Metanoia talvez faça seus produtores amadurecerem, mas possivelmente fechará outras tantas portas para o mercado de vídeo cristão.

  • Crítica | Uma Longa Viagem (2011)

    Crítica | Uma Longa Viagem (2011)

    O grito de liberdade se confunde com as fotos de família, saudosos retratos de tempos bem mais simples que aqueles em ebulição em meio aos anos 60. Foi a preocupação do clã que levou os responsáveis pelo jovem (de nome incógnito no começo da fita) a enviar o caçula para uma viagem a Londres, com a intenção de livrar o rapaz de se infiltrar nos grupos revolucionários, já que a sua irmã, Lúcia Murat, estava presa. A mulher encarcerada cresceria, se tornaria cineasta e faria do assunto de sua especialidade – a Ditadura Militar no Brasil – o pano de fundo para contar sua história.

    O jovem, vivido por Caio Blat, relembra em suas cartas o motivo de estar nesse exílio, conduzido de modo eufemístico, em que os diplomas que conseguiria em solo britânico de nada valeriam para si, nem mesmo na condução de uma nova profissão. Os depoimentos do “próprio” revelam suas amizades na Inglaterra, russos infiltrados naquela sociedade capitalista e que foram deportados para “jogar futebol com os gatos”. Ele prossegue fazendo uso contínuo de drogas, já que em solo brasileiro não tinha acesso a elas.

    A exposição da intimidade dos irmãos é corajosa e muito sensível. O irmão narra suas vivências em Cannes, no festival da Palma de Oro, que serve de pano de fundo para Murat contar sua experiência libertadora com o cinema e como sua carreira a ajudou a superar seus traumas. É somente neste momento que a narradora e realizadora pronuncia o nome de seu irmão que vivia em outra paisagem: Heitor.

    O documentário dá lugar ao drama em diversos momentos da exibição, convivendo na mesma tela as duas abordagens de modo amalgamado. Entre a busca de novas bad trips e de mais dinheiro para investir em haxixe, são feitas viagens para lugares ermos nos quais se louva especialmente o subdesenvolvimento do Afeganistão e Paquistão, onde a não chegada da civilização moderna contrasta com a realidade da Inglaterra e do Brasil. A estadia dos meninos era quase todo na rua, onde dormiam com homens santos, cercados de animais silvestres, pavões, macacos e outros animais silvestres, claro, tudo regado aos entorpecentes que eles tanto buscavam e que deixaram sequelas, fruto daquela porralouquice.

    A figura de Heitor é assustadoramente carismática e aclamada, já que sua vida foi talhada pelas vivências transgressoras e das desventuras além oceano Atlântico, ao redor de um globo explorado de modo dionisíaco, metade Gonzo metade Kerouac, sem qualquer compromisso com a normalidade ou com o método apolíneo de viver.

    As distâncias longitudinais e o torpor que Heitor tinha com seu amado haxixe não o livraram de ter notícias dos seus familiares e entes queridos. Por quase não ter uma estalagem fixa, complicava-se a situação de conseguir receber as correspondências de seus pais e irmãos. As cartas que recebia dos seus queridos demonstram o quão importante é aquele meio de comunicação, tanto para a vida comum de Heitor quanto para a narrativa da fita, uma vez que é através delas que se contam e se narram as múltiplas tramas poéticas da história.

    A volúpia por estar entorpecido começou pelo ócio, pela vontade de ocupar seu tempo e pela ausência de trabalho, mas talvez seja explicado, na vida de Heitor, pela saudade que tinha dos seus. Certamente, havia em seu comportamento uma vontade de transgredir, o que faz teorizar que o viés revolucionário estivesse impresso no DNA daquela geração familiar. No entanto, a internação tornou-se inevitável.

    A magreza de Caio Blat nos últimos momentos em tela emula a fragilidade corporal de Heitor naqueles tempos. Em 1978, ele seria capturado na Índia, na embaixada brasileira, fora de controle. Heitor teve a sorte de quem iria até lá (sua mãe) para buscá-lo, ao contrário dos muitos outros que cercavam a embaixada norte-americana à espera de certa compaixão da civilização ocidental não tão pobre ou paupérrima como a que ele estava.

    O cuidado da diretora em não subestimar a sociedade indiana – ou qualquer outra das que foram mostradas em tela – é atroz, já que a injustiça com tais povos denegriria seu emocionado relato e a história de seus parentes. Uma Longa Viagem é mais uma mostra da total maturidade de Lúcia Murat enquanto cineasta e contadora de histórias e que reporta múltiplas realidades.

  • Crítica | Alemão

    Crítica | Alemão

    No início da noite de 26 de novembro de 2013, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, com o apoio da Polícia Federal, Polícia Civil e das Forças Armadas, cercou o Complexo do Alemão, localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, para iniciar uma grande operação de retomada com o intuito de pacificar o local.

    A trajetória das UPP – Unidades de Polícia Pacificadora – ainda permanece no cerne de grandes discussões políticas e nunca teve aceitação completa da população brasileira. Profissionais em segurança, policiais, políticos e até famosos expuseram seus pontos de vista entre os prós e contras destas operações realizadas em diversos morros do Rio.

    A trama de Alemão utiliza a invasão policial como pano de fundo da ação. A produção inicia-se com cenas televisivas sobre o acontecimento, e, em cena, somos apresentados a um grupo de policiais infiltrados no local para informar in loco o desenvolvimento da ação. Mudanças de táticas feitas pelo alto escalão e o bloqueio – também planejado – dos sinais de transmissões deixam estes policiais às cegas, sem saber qual procedimento seguir e acreditando ter entre eles um traidor em potencial.

    Diferentemente de uma história que explora a questão policial e a favela ou de um argumento que explora de maneira global os acontecimentos, tomando ou não partido de um lado, boa parte da ação inicial se desenvolve no interior de uma pizzaria, ponto de encontro do grupo infiltrado. Sem nenhuma informação da Inteligência, os agentes estão em campo desconhecido e de olhos vendados. Há uma sensação de um drama de guerra, com personagens sitiados no fronte inimigo tentando sobreviver e sem se revelarem. Conforme as horas em confinamento se estendem, as discussões ficam acaloradas e os ânimos começam a se acirrar.

    O policial é apresentado como uma figura frágil, independente de sua personalidade, que faz da coragem a guia para seguir em frente. O grupo aprisionado é representado por tipos característicos de outras histórias policiais: o homem esquentado sem nada a perder; aquele que focaliza sua força na família; outro que, embora não tenha talento tático, é hábil com a inteligência. Forma-se, assim, um grupo heterogêneo de investigação. Em comum, todos possuem a dúvida em relação à eficiência da operação e sabem que foram esquecidos pela corporação. Devem se virar por conta própria, sem qualquer heroísmo, se quiserem sobreviver.

    Formado por grandes atores com domínio dramático, visto em outros longas-metragens ou em novelas televisivas, o quinteto formado por Caio Blat, Milhem Cortaz, Otávio Müller, Gabriel Braga Nunes e Marcello Melo Jr é responsável por sustentar a parte inicial da trama de maneira favorável. O drama que aflige os policiais ultrapassa a barreira da profissão, e o público, mesmo contrário às políticas estabelecidas, reconhece o histórico pessoal de cada um dos envolvidos.

    Do lado de fora desta intriga, dois polos contrários também estão em cena. A polícia representada por Antonio Fagundes, um dos chefes da invasão que conduziu a operação dos infiltrados, e o bandido dono do morro, um jovem apelidado de Playboy por sua pose rica e ostensiva, interpretado por Cauã Reymond. Fora do confinamento, a história não tem a mesma intensidade. A representação da polícia feita pelo Delegado Valadares (Fagundes) é de um sistema que mal reconhece sua própria estrutura. O delegado perde qualquer comunicação com sua equipe e, não querendo que o erro caia em sua mão, omite esta problemática dos outros, tentando resolver à sua maneira o resgate de sua equipe. Uma demonstração da fragilidade da operação como um todo. É questionável como uma operação de grande porte possa suportar erros como este apresentado.

    Enquanto isso, do outro lado da lei, o bandido de Raymond passa a maior parte do tempo apenas contemplando de maneira fria a queda de seu império, talvez incrédulo de que uma operação deste estilo fosse implantada de fato. Salvo um relacionamento amoroso que lhe deixa apreensivo, o personagem não tem carisma e não produz sentimento algum no público. Ao contrário de outros personagens limítrofes entre a lei e a sobrevivência, vistos em Cidade de Deus ou Tropa de Elite.

    A semelhança do estilo narrativo deste filme em relação aos outros é visível. E, de fato, sem o sucesso de Cidade de Deus ou Tropa de Elite, um filme como Alemão talvez seria produzido de maneira diferente. A estética visual que foi consagrada imprimou verossimilhança a tais tramas e não sem razão é retomada; difícil seria uma história sobre polícia e tráfico sem esta influência. E o resultado desta aproximação é um roteiro que modifica sua estrutura em sua segunda parte ao escolher mostrar ângulos diferentes de uma mesma situação, fazendo da boa proposta inicial do confinamento obrigatório se perder em cenas de ação e em resoluções que negam os próprios argumentos desenvolvidos entre os policiais sobre a questão da humanidade e o heroísmo. Se nem mesmo a produção tem confiança no argumento inicial que se propõe, não há público que não perceba a fragilidade da história, que decide a saída mais conhecida para uma história já conhecida pelos brasileiros.

  • Crítica | Entre Nós

    Crítica | Entre Nós

    Na jornada humana, a passagem temporal de uma década produz mudanças significativas, entre distanciamentos, transformações e outras eventualidades relacionadas à evolução natural do homem. Ao observar o próprio passado, muitos poderão reconhecer modificações estruturais devido ao tempo, e, não raro, adultos se colocam em um estado duro, frio, maduro e descrente em relação ao próprio presente.

    A produção brasileira Entre Nós se desenvolve em dois tempos narrativos, demonstrando a degradação natural das relações em um período de dez anos. A ação acontece em uma fazenda do interior de São Paulo, um belo paraíso artificial, distante da selva de concreto em que moram as personagens. É neste local que, em 2002, um grupo de amigos celebra com bebidas e canções, delineando os primeiros passos de uma vida futura feita de trabalho e esforço próprio. São jovens que acreditam ser capazes de agarrar este futuro com as mãos, discutindo a paixão por literatura e arte e o desejo de se tornar um artista – seja este escritor, crítico ou de outros movimentos – neste espaço vindouro. Em um ritual juvenil, escrevem cartas, para si mesmos, a serem lidas em futuro próximo. Um final de semana que seria uma reunião perfeita não fosse um acidente que tira a vida de Rafa, considerado um dos prodígios do grupo.

    Dez anos depois, as personagens se reencontram no mesmo local, que mantém as estruturas mas demonstra velhice tanto pelos materiais quanto pela fotografia levemente desbotada, retirando as cores da juventude. Cada um chega em seus próprios carros, demonstrando uma significativa diferença do passado, em que um único veículo estava à disposição do grupo. Envelhecidos e modificados pela vida e pela morte do amigo, possuem entre si somente a ilusão de um passado conjunto, forte o suficiente para que se honre a promessa das leituras das cartas escritas dez anos antes.

    A dor da perda é compartilhada por todos e recai sobremaneira em Felipe, melhor amigo do falecido. A personagem tornou-se um renomado escritor que fez uso da própria biografia – e da história destes amigos – como argumento para sua obra-prima. Nesta reunião em que os amigos tentam retornar o fio da amizade – mesmo que temporariamente para este encontro –, descobrem que não há nós suficientes que reconstruam laços desgastados e que existem mais sombras no acidente que tirou a vida do amado amigo. A morte inferida como o primeiro elemento a destruir a integridade do grupo.

    Ao observar o próprio passado, cada personagem contempla a miséria particular que surgiu em contrapartida dos sonhos anteriores. São pessoas marginalizadas pelas expectativas e ainda incrédulas com o abismo que há entre a projeção juvenil e a realidade adulta. O roteiro reflete tanto sobre a construção e compreensão desta identidade como também, através das personagens, dialoga sobre a própria arte.

    Ao escrever uma ficção sobre a própria biografia, a personagem de Felipe segue a tradição de escritores que fizeram da própria vida material para a obra, como Charles Bukowski, Ernest Hemingway entre outros manipuladores de histórias pessoais. A maneira como se impõe, como um escritor bem-sucedido, parece fazer dele uma caricatura de si mesmo, distante do outrora amigo querido pelo grupo. E sua ambição em tornar-se relevante adquire contornos mais sombrios quando a leitura das cartas guardadas é realizada.

    A cena em questão é simbólica, além de reveladora. Como símbolo, demonstra que as certezas individuais podem ser destruídas ou manchadas, o que é identificado pela parcela de cartas destruídas pelo tempo e impossível de serem lidas. Uma metáfora da própria condição transitória da vida. Ao lerem estes documentos, as personagens buscam uma redenção inexistente, um apoio deste passado iluminado. Mas encontram a revelação agressiva do caráter do escritor renomado.

    A trama se desenvolve entre silêncio e inferências não apenas pelo jogo cênico, mas pela falta de diálogo entre o grupo. Não há mais suavidade compreensiva e silêncios compartilhados. Tudo parece agudo e conflituoso, como um acertar de contas com o passado, que choca este reencontro com a ilusão de tempos anteriores. O elenco formado por Caio Blat, Carolina Dieckmann, Martha Nowill, Julio Andrade e Paulo Vilhena compõe as personagens com a leveza e a dor necessárias para o drama, vivido em uma situação destruída e amarga. Uma história de relações e de mudanças entre o futuro imaginado e o presente vivido. Nós que permanecem e nunca são fáceis de serem aceitos diante do estúpido desejo humano de apoiar-se na paz e na harmonia.

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