Tag: Carolina Dieckmann

  • Crítica | O Silêncio do Céu

    Crítica | O Silêncio do Céu

    o-silencio-do-ceu

    Uma das verdades absolutas do mundo globalizado, especialmente nos centros urbanos, é que a violência está por todos os lados. Não a vemos, não sentimos os tiros, ou o sangue escorrendo, mas há sempre o beco escuro e há sempre o mal-encarado e há sempre o risco; tudo presente em nossas ansiosas cabeças produtoras em série de medos e fobias. Entretanto, a materialização desse pressentimento em algo é outra coisa: é o ato. Não é uma ideia. E entre essas duas há aquele que espreita e há a vítima; o que esconde e o que anseia. Um momento de silêncio em que nada se espera e nada se diz.

    O Silêncio do Céu é um filme de Marco Dutra (Quando Eu Era Vivo, Trabalhar Cansa), baseado no livro de Sergio Bizzio (também roteirista do filme), e roteirizado por Caetano Gotardo (O Que Se Move) e Lucía Puenzo (XXY). A obra trata da vida de Mario (Leonardo Sbaraglia), um roteirista, e Diana (Carolina Dieckmann), uma estilista, após a mulher sofrer um estupro e o marido o presenciar. Diana decide não falar sobre, o que causa estranhamento em Mario. O silêncio desencadeia uma espiral de dúvida e desenvolve o desejo de vingança que fundamenta o filme de suspense.

    O que eu não entendo é como uma mulher que foi estuprada pode não falar uma palavra sobre isso.

    Mario é um homem ansioso e cheio de fobias, o típico “homem moderno”. Aquele que muito pensa sobre como lidar com tudo que conhece ou pode vir a conhecer, fazer. E, sendo roteirista, carrega as questões de construções de personagem para suas próprias reflexões, tanto sobre si mesmo quanto sobre Diana. Aquela que ele se refere como a única que consegue lê-lo. Que vê através de seu “preparo”, até mesmo brincando com isso. A personagem de Dieckmann, por outro lado, não apresenta tamanho desenvolvimento, e o que se vê é muitas vezes demonstrado com pressa.

    O Silêncio do Céu logo destrói as expectativas de que iria tratar do estupro profundamente. Ao invés disso, o tema é utilizado como base para outra reflexão, que diz respeito a relação de Mario e Diana, o verdadeiro foco. As cores e a composição do filme, por exemplo, trabalham a distância e posições das personagens, e como em suas diferenças se complementam. Para Mario há o medo, a ansiedade, enquanto Diana lida com o trauma; fatores que o diretor diversas vezes nivela como uma forma de equipará-los. Conversas pelo espelho, barreiras físicas; a dicotomia entre o azul e o laranja. O isolamento se faz tanto em níveis físicos em tela quanto em níveis introspectivos. Há domínio da linguagem visual, ainda que muitas vezes nada sutil, o que garante uma boa nuance na mistura do drama com o gênero de suspense.

    No que diz respeito a trama de vingança, há o desejo por vilões que sejam mais ameaçadores do que só mal-encarados, sejam desenvolvidos. O que é diferente de como Marco Dutra trata os lugares, já que esses sim apresentam uma carga poderosa tanto no desenvolvimento do suspense quanto dos personagens. Há também o auxílio da trilha sonora industrial, urbana, dos irmãos Garbato, que trabalha exatamente a ansiedade e outros fatores ensurdecedores do bem estar das personagens.

    O Silêncio do Céu não é o grande filme sobre estupro que muitos esperavam, mas isso não é realmente um defeito. Através de um tema específico como esse, retira-se o fator universal: o medo. E entre o anseio, a ideia, e o ato há o silêncio, a omissão. A omissão que protege nossas fragilidades daqueles ao nosso redor; a omissão por uma automática apatia; a omissão por feridas que não podemos lidar; a omissão entre as tragédias e as compreensões. Uma estranha linguagem que só aqueles que passaram pelos becos escuros de suas conturbadas mentes modernas podem entender, e ao compreendê-la se unem para sempre em um momento de silêncio em que nada se espera e nada se diz, aceita-se.

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

  • Crítica | Entre Nós

    Crítica | Entre Nós

    Na jornada humana, a passagem temporal de uma década produz mudanças significativas, entre distanciamentos, transformações e outras eventualidades relacionadas à evolução natural do homem. Ao observar o próprio passado, muitos poderão reconhecer modificações estruturais devido ao tempo, e, não raro, adultos se colocam em um estado duro, frio, maduro e descrente em relação ao próprio presente.

    A produção brasileira Entre Nós se desenvolve em dois tempos narrativos, demonstrando a degradação natural das relações em um período de dez anos. A ação acontece em uma fazenda do interior de São Paulo, um belo paraíso artificial, distante da selva de concreto em que moram as personagens. É neste local que, em 2002, um grupo de amigos celebra com bebidas e canções, delineando os primeiros passos de uma vida futura feita de trabalho e esforço próprio. São jovens que acreditam ser capazes de agarrar este futuro com as mãos, discutindo a paixão por literatura e arte e o desejo de se tornar um artista – seja este escritor, crítico ou de outros movimentos – neste espaço vindouro. Em um ritual juvenil, escrevem cartas, para si mesmos, a serem lidas em futuro próximo. Um final de semana que seria uma reunião perfeita não fosse um acidente que tira a vida de Rafa, considerado um dos prodígios do grupo.

    Dez anos depois, as personagens se reencontram no mesmo local, que mantém as estruturas mas demonstra velhice tanto pelos materiais quanto pela fotografia levemente desbotada, retirando as cores da juventude. Cada um chega em seus próprios carros, demonstrando uma significativa diferença do passado, em que um único veículo estava à disposição do grupo. Envelhecidos e modificados pela vida e pela morte do amigo, possuem entre si somente a ilusão de um passado conjunto, forte o suficiente para que se honre a promessa das leituras das cartas escritas dez anos antes.

    A dor da perda é compartilhada por todos e recai sobremaneira em Felipe, melhor amigo do falecido. A personagem tornou-se um renomado escritor que fez uso da própria biografia – e da história destes amigos – como argumento para sua obra-prima. Nesta reunião em que os amigos tentam retornar o fio da amizade – mesmo que temporariamente para este encontro –, descobrem que não há nós suficientes que reconstruam laços desgastados e que existem mais sombras no acidente que tirou a vida do amado amigo. A morte inferida como o primeiro elemento a destruir a integridade do grupo.

    Ao observar o próprio passado, cada personagem contempla a miséria particular que surgiu em contrapartida dos sonhos anteriores. São pessoas marginalizadas pelas expectativas e ainda incrédulas com o abismo que há entre a projeção juvenil e a realidade adulta. O roteiro reflete tanto sobre a construção e compreensão desta identidade como também, através das personagens, dialoga sobre a própria arte.

    Ao escrever uma ficção sobre a própria biografia, a personagem de Felipe segue a tradição de escritores que fizeram da própria vida material para a obra, como Charles Bukowski, Ernest Hemingway entre outros manipuladores de histórias pessoais. A maneira como se impõe, como um escritor bem-sucedido, parece fazer dele uma caricatura de si mesmo, distante do outrora amigo querido pelo grupo. E sua ambição em tornar-se relevante adquire contornos mais sombrios quando a leitura das cartas guardadas é realizada.

    A cena em questão é simbólica, além de reveladora. Como símbolo, demonstra que as certezas individuais podem ser destruídas ou manchadas, o que é identificado pela parcela de cartas destruídas pelo tempo e impossível de serem lidas. Uma metáfora da própria condição transitória da vida. Ao lerem estes documentos, as personagens buscam uma redenção inexistente, um apoio deste passado iluminado. Mas encontram a revelação agressiva do caráter do escritor renomado.

    A trama se desenvolve entre silêncio e inferências não apenas pelo jogo cênico, mas pela falta de diálogo entre o grupo. Não há mais suavidade compreensiva e silêncios compartilhados. Tudo parece agudo e conflituoso, como um acertar de contas com o passado, que choca este reencontro com a ilusão de tempos anteriores. O elenco formado por Caio Blat, Carolina Dieckmann, Martha Nowill, Julio Andrade e Paulo Vilhena compõe as personagens com a leveza e a dor necessárias para o drama, vivido em uma situação destruída e amarga. Uma história de relações e de mudanças entre o futuro imaginado e o presente vivido. Nós que permanecem e nunca são fáceis de serem aceitos diante do estúpido desejo humano de apoiar-se na paz e na harmonia.

    Compre aqui: DVD | Blu Ray