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  • Crítica | As Boas Maneiras

    Crítica | As Boas Maneiras

    Da dupla de diretores Marco Dutra (Quando Eu Era Vivo e O Silêncio do Céu) e Juliana Rojas (Sinfonia da Necrópole) As Boas Maneiras é um belo exemplar de cinema brasileiro genuinamente de gênero. A dupla, que já havia feito juntos cinco curtas, uma coletânea (Desassossego) e um longa (Trabalhar Cansa) entrega uma história dividida em dois atos distintos.

    Na primeira parte, a bela enfermeira Clara (Isabél Zuaa) procura um emprego a fim de conseguir enfim sair da casa de sua senhoria, Dona Amélia (Cida Moreira), na periferia de São Paulo. Ela atende a um anúncio na parte nobre de cidade, onde mora Ana (Marjorie Estiano), uma mulher rica, que se apresenta como uma moça tímida e recatada mas aos poucos se solta. Ana está grávida, À espera de um bebe que ela sequer sabe quem é o pai.

    Aos poucos, Ana mostra uma faceta um bocado malévola, mas seus atos cruéis tem uma estranha origem, e assim que Clara começa a entender o que ocorre com sua patroa, a empatia entre ambas se estabelece, ao ponto de ambos se verem como cúmplices em um nível que no início não era esperada. O fim desse arco ocorre com a aparição da criatura fantástica prometida desde que se ouviu no projeto deste filme, e o Lobisomem deste ato é sensacional do ponto estético, assim como é natural as escolhas de Clara dali para frente.

    A segunda parte é um capítulo a parte, e mostra a realidade de sete anos depois, com Clara voltando a morar no quartinho do subúrbio, nos fundos da casa de Amélia, com seu filho adotado, Joel (Miguel Lobo) um menino doce e delicado, que precisa de cuidados especiais, entre eles, o fato de não poder carne, como ocorreu com sua mãe pouco antes de terminar o primeiro capítulo.

    A escolha por focar numa bifurcação de tramas é curiosa e funciona quase a perfeição. Tanto o temor de Clara quanto a necessidade de Joel e seus amigos por alcançar a verdade são igualmente caros platéia. A tentativa do rapaz por tentar descobrir seu passado é repleta de simbolismos, desde a óbvia situação da orfandade, que claramente mexe com a cabeça de qualquer criança que cresce linde de seus pais, bem como o fato de não ter entendimento sobre o que exatamente ele é. Falta maturidade e conhecimento para enfim se ter ciência do que Joel é, e a colocação desse drama em um cenário atual e urbano é muito digno de louvor.

    Os efeitos em CGI são escondidos até boa parte do fim desse segundo ciclo. Há algumas enrolações que soam desnecessárias, mas assim que é mostrado o lobo digital o que se vê é uma figura bem feita, não tão sensacional quanto o boneco do primeiro momento, mas ainda assim é bem feito em especial em se tratando de um cinema nacional que normalmente tem receio de lançar mão de efeitos especiais digitais.

    Apesar de alguns leves problemas de roteiro, como a longa duração e algumas coincidências oportunas demais, os eventos próximos do fim servem bem a discussão sobre intolerância e selvageria ligada ao desconhecido, faces essas exaustivamente exploradas em materiais pop como X-Men, Jornada Nas Estrelas etc. O findar semelhante ao clássico Frankenstein de Boris Karloff e James Whale serve para mostrar que a turba e o populacho tende a sempre apelar para o barbarismo quando se defronta com algo hostil que foge a sua compreensão, foi assim em 1931 na adaptação de Mary Shalley e é assim também em 2017 e apesar dessa declaração de pouco otimismo com relação ao sujeito comum, ainda resta um resquício de crença na sobrevivência do vínculo sentimental familiar adquirido.

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  • Crítica | O Silêncio do Céu

    Crítica | O Silêncio do Céu

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    Uma das verdades absolutas do mundo globalizado, especialmente nos centros urbanos, é que a violência está por todos os lados. Não a vemos, não sentimos os tiros, ou o sangue escorrendo, mas há sempre o beco escuro e há sempre o mal-encarado e há sempre o risco; tudo presente em nossas ansiosas cabeças produtoras em série de medos e fobias. Entretanto, a materialização desse pressentimento em algo é outra coisa: é o ato. Não é uma ideia. E entre essas duas há aquele que espreita e há a vítima; o que esconde e o que anseia. Um momento de silêncio em que nada se espera e nada se diz.

    O Silêncio do Céu é um filme de Marco Dutra (Quando Eu Era Vivo, Trabalhar Cansa), baseado no livro de Sergio Bizzio (também roteirista do filme), e roteirizado por Caetano Gotardo (O Que Se Move) e Lucía Puenzo (XXY). A obra trata da vida de Mario (Leonardo Sbaraglia), um roteirista, e Diana (Carolina Dieckmann), uma estilista, após a mulher sofrer um estupro e o marido o presenciar. Diana decide não falar sobre, o que causa estranhamento em Mario. O silêncio desencadeia uma espiral de dúvida e desenvolve o desejo de vingança que fundamenta o filme de suspense.

    O que eu não entendo é como uma mulher que foi estuprada pode não falar uma palavra sobre isso.

    Mario é um homem ansioso e cheio de fobias, o típico “homem moderno”. Aquele que muito pensa sobre como lidar com tudo que conhece ou pode vir a conhecer, fazer. E, sendo roteirista, carrega as questões de construções de personagem para suas próprias reflexões, tanto sobre si mesmo quanto sobre Diana. Aquela que ele se refere como a única que consegue lê-lo. Que vê através de seu “preparo”, até mesmo brincando com isso. A personagem de Dieckmann, por outro lado, não apresenta tamanho desenvolvimento, e o que se vê é muitas vezes demonstrado com pressa.

    O Silêncio do Céu logo destrói as expectativas de que iria tratar do estupro profundamente. Ao invés disso, o tema é utilizado como base para outra reflexão, que diz respeito a relação de Mario e Diana, o verdadeiro foco. As cores e a composição do filme, por exemplo, trabalham a distância e posições das personagens, e como em suas diferenças se complementam. Para Mario há o medo, a ansiedade, enquanto Diana lida com o trauma; fatores que o diretor diversas vezes nivela como uma forma de equipará-los. Conversas pelo espelho, barreiras físicas; a dicotomia entre o azul e o laranja. O isolamento se faz tanto em níveis físicos em tela quanto em níveis introspectivos. Há domínio da linguagem visual, ainda que muitas vezes nada sutil, o que garante uma boa nuance na mistura do drama com o gênero de suspense.

    No que diz respeito a trama de vingança, há o desejo por vilões que sejam mais ameaçadores do que só mal-encarados, sejam desenvolvidos. O que é diferente de como Marco Dutra trata os lugares, já que esses sim apresentam uma carga poderosa tanto no desenvolvimento do suspense quanto dos personagens. Há também o auxílio da trilha sonora industrial, urbana, dos irmãos Garbato, que trabalha exatamente a ansiedade e outros fatores ensurdecedores do bem estar das personagens.

    O Silêncio do Céu não é o grande filme sobre estupro que muitos esperavam, mas isso não é realmente um defeito. Através de um tema específico como esse, retira-se o fator universal: o medo. E entre o anseio, a ideia, e o ato há o silêncio, a omissão. A omissão que protege nossas fragilidades daqueles ao nosso redor; a omissão por uma automática apatia; a omissão por feridas que não podemos lidar; a omissão entre as tragédias e as compreensões. Uma estranha linguagem que só aqueles que passaram pelos becos escuros de suas conturbadas mentes modernas podem entender, e ao compreendê-la se unem para sempre em um momento de silêncio em que nada se espera e nada se diz, aceita-se.

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

  • Crítica | Sinfonia da Necrópole

    Crítica | Sinfonia da Necrópole

    Sinfonia da Necrópole

    A história de Sinfonia da Necrópole, primeiro longa solo de Juliana Rojas, cinco anos após realizar Trabalhar Cansa com seu parceiro de longa data Marco Dutra, começa em um cemitério, acompanhando a estranha rotina de agentes funerários, especialmente do coveiro Deodato (Eduardo Gomes), que tem sérios problemas com seu ofício, uma vez que se assusta e desmaia quase sempre que vê um morto. Para surpresa do rapaz resignado, e do público, os funcionários começam a cantar, poetizando em formato musical o oficio da construção da derradeira morada do homem.

    O fato de tocar em um assunto mórbido faz com que a leveza do roteiro seja ainda mais curiosa. Os números musicais são pontuais e discretos, sem exageros exorbitantes ou arroubos repletos de afetação. As ações ocorrem da maneira bastante sóbria. O acréscimo da personagem de Luciana Paes, Jaqueline, faz elevar tanto o serviço dos agentes funerários quanto a peregrinação por outras locações na tentativa de expandir os negócios.

    As cenas externas são bem filmadas, vibrando sobre a condição da metrópole paulista, como o belo cenário da mortandade comum a um mundo moderno e apressado como o da atualidade. É engraçado notar como são diferentes as partes cantadas e atuadas das que se passam num salão de videokê, com desafinações enormes, mostrando a diferença da entrega dos personagens nos eventos comuns e nesses exercícios bobos, como em tentativas de diversão não alcançadas com sucessos.

    A realidade de Sinfonia da Necrópole mistura aspectos agridoces com pitadas leves de realismo fantástico, especialmente nos sonhos.  As canções de Rojas e Dutra fazem sentido dentro da trama, e são bem executadas, tanto vocal quanto instrumentalmente, em um exercício que não é totalmente inspirado, mas que funciona minimamente dentro da proposta de sua diretora, a de falar levemente sobre algo grave.

  • Crítica | Quando Eu Era Vivo

    Crítica | Quando Eu Era Vivo

    A despeito de toda a discussão sobre a produção de filmes de terror no Brasil, Marco Dutra constrói seu novo filme, Quando eu era vivo, de maneira bem elaborada, a começar por um vídeo caseiro que se vale de easter eggs interessantes. O vídeo, protagonizado por uma personagem mirim que faz a gravação em uma câmera super 8, remete a lendas urbanas conhecidas, como a do malfadado boneco do Fofão, que segundo a sabedoria popular, continha em seu interior uma adaga para rituais satânicos. A sessão de créditos que inicia o filme com uma trilha de piano ao fundo, destaca um elenco incomum, ao mesmo tempo que insere o espectador em sua curiosa trama, baseada no livro A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli.

    Os passos largos e o andar vagaroso marcam o desgosto de José Marques Júnior (Marat Descartes) ao voltar a viver na casa dos pais. Em seu semblante, já se nota um humor que beira a depressão, motivado pelo casamento fracassado e por sua condição de desempregado. Ao chegar, Júnior é recebido por seu pai, Zé Marques Sênior (Antonio Fagundes), que tenta ser positivo a todo custo, evitando qualquer assunto embaraçoso. A distância entre os dois é notada nos diálogos pouco profundos, que tangenciam apenas atividades corriqueiras e banalidades a respeito das reformas no prédio e na casa.

    Na casa de seu pai, Júnior observa o tempo passar sem qualquer entusiasmo, até que conhece a inquilina Bruna, uma estudante de música vivida por Sandy Leah. Estonteado por sua beleza, ele dá vazão a algumas fantasias sexuais, intercaladas por sonhos de retorno a sua infância. Acordar na sala de seu pai o faz perceber o enorme peso da rotina em sua vida, o que o impulsiona a buscar ansiosamente qualquer coisa que ocupe sua mente. O vazio de seu pensamento e de sua alma fazem dele um hospedeiro ideal para a obsessão que se apresenta quando resolve explorar o quartinho que guarda toda a velharia de sua família.  Motivado por seu novo objetivo, Júnior ignora o pedido de seu pai para que ele não mexa no quarto, mergulhando no mar de lembranças de seu irmão e sua mãe, que não estão mais presentes em sua vida.

    Logo,  o personagem encontra uma fita de 1985-86 com cenas de recordações familiares que chamam sua atenção, como um misterioso ritual realizado por sua mãe, envolvendo Júnior e o irmão quando crianças. Remexer no passado e nas lembranças da mãe traz alguns incômodos na relação com seu pai, que se recusa a lembrar da esposa e busca dar um novo rumo a sua própria vida, sugerindo ao filho que faça o mesmo.

    Algo muito complicado parece ter acontecido no passado da família, uma situação misteriosa e traumática que dividiu os seus membros e os fez ficarem ainda mais distantes com o passar dos anos. Júnior começa, então, a  apresentar sintomas de uma doença de origem misteriosa, com febre e uma perene dor de cabeça, que remetem diretamente aos vídeos em que sua mãe fazia moldes de gesso das cabeças dos filhos, sob o pretexto de obter boas vibrações. Segundo o pai, essas eram práticas de ocultismo, que não o incomodavam propriamente, mas que teriam levado a esposa à loucura.

    Em sua busca obsessiva, o protagonista encontra uma partitura antiga que entrega a Bruna. A música, ao ser entoada, produz em Júnior uma reação estranha, uma contorção corporal epiléptica, originada no mundo espiritual. A partir desse momento, ele muda sua postura e começa a agir de modo estranho. O mistério e ambiguidade de suas ações, o fazem questionar qual seria a real origem de seu novo comportamento, uma possessão sobrenatural ou um problema de ordem mental.

    Isso aguça ainda mais a curiosidade de Júnior e Bruna, que passam a explorar o passado e a música da falecida matriarca. Ele começa, então, a agir de modo ainda mais estranho, refutando qualquer aproximação que ameaçasse a memória de sua mãe ou de seu irmão, internado em um sanatório. Até seu pai é obrigado a tratá-lo como uma criança, colocando-o de castigo após suas reações violentas.

    Quando Eu Era Vivo consegue reunir elementos comuns a filmes estrangeiros do gênero, como os sacrifícios profanos, tocando em questões profundas, sem abrir mão da brasilidade. O modo como Marco Dutra conduz a trama é interessantíssimo, conseguindo equilibrar o tédio apático da vida decadente de um divorciado, com o grotesco terror de histórias enterradas no passado.

    A atuação dos atores escalados é delicada e proporciona maior afinidade com cada figura da trama. Dessa forma, Dutra sustenta cenas díspares de modo harmonioso e consegue garantir momentos de medo e pavor sem quebrar a empatia do espectador pelos personagens. As cores que marcam o tom desbotado dos tecidos na fotografia do filme, e o enredo macabro, mostram algo muito além do costumeiramente encontrado no mercado de filmes de terror, o que faz da película,  uma obra especial dentro do gênero.