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  • Crítica | Coração Iluminado

    Crítica | Coração Iluminado

    É interessante como, de Pixote (1981) a Carandiru (2003), Hector Babenco deixou de empregar sua intensidade em filmes sobre a violência urbana para aplicá-la de modo intrínseco a histórias de grandes amores (Ironweed), desamores (O Beijo da Mulher-Aranha) e na busca pela fé em algo maior (Brincando nos Campos do Senhor), uma decisão que parece ter sido correta tendo em vista a oportunidade que esses filmes mais “amenos” deram-no de trabalhar com grandes celebridades hollywoodianas, tais as lendas John Hurt, Meryl Streep, Kathy Bates e Jack Nicholson. Foi ai que Babenco deixou de ser apenas um bom diretor de cinema latino, para se provar ao mundo, com apenas uma trinca de obras de grande qualidade, um talento de enorme versatilidade a conquistar plateias por onde passasse.

    Coração Iluminado, seu sétimo longa-metragem, é mais um exemplo da universalidade que o cineasta argentino mais brasileiro de todos conseguia inserir e desenrolar os seus projetos, dramáticos e novelescos com orgulho. Sempre resgatando no presente um pretérito perfeito, ainda que assim idealizado, e glorioso que os seus personagens de alguma forma tentam ou são convidados a reviver. E aqui não é diferente, em especial na sua sublime direção de atores, extraindo mais uma vez grande força e naturalidade deles. Juan ama Ana, um oposto ao outro como o filme em detalhes nos faz perceber,ao longo de uma história de paixão e aflição por um amor semi proibido que ambos os amantes, e as circunstâncias de suas famílias, sua religião, seu sexo e a maresia, se encarregam de torná-lo inesquecível.

    Se duas almas gêmeas realmente não estão destinadas a ficar juntas, apenas a chocarem-se e aprenderem o necessário com suas diferenças sedutoras, Babenco parece não ter dúvida disso, e investiga a duração do amor, da juventude ao aparecimento das primeiras rugas, muito além do deslumbramento inicial, ao longo da implacável atuação de dois rolos compressores chamado Tempo, e Família. No fundo, Ana e Juan gostariam de se desprender dos dois fatores, alheios afinal num universo próprio, só deles, como na cena dos remédios no quarto, quando o sonho vira um delírio real entre um casal e a morte de Ana por overdose medicinal é uma certeza para Juan. Quando sua Julieta desvairada morre, as motivações de um Romeu carente vão junto com ela, e o filme dá um salto de vinte anos para constatar o que Juan conseguiu, então, fazer de sua vida.

    A fim de cuidar do pai doente, ele retorna a sua cidade natal e qual é seu espanto ao ver certos fantasmas retornando, como se o que habita os ventos de outrora tampouco esqueceram aquele que retorna, atormentado. A paixão de Ana foi aquilo que iluminava, invariavelmente, o coração do menino que cresceu sem esquecer das suas raízes – o romantismo louco que alterou para sempre o seu DNA. Babenco foi um dos mestres da nostalgia, contudo Coração Iluminado preserva o encanto da marca registrada do cineasta sem conseguir ser marcante além da sua sessão, além da sua história um tanto previsível e que, mesmo bem narrada, jamais alcança um lugar especial dentro de suas outras obras, essas sim, grandes. É lindo, porém esquecível. Emocionante e saudosista, ainda que longo demais, e certamente adorável para todos os públicos, mesmo que seja entregue a convenções bastante confortáveis a Babenco, e nada ousadas em sua filmografia revisionista a si mesmo.

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  • Crítica | O Passado

    Crítica | O Passado

    “Eu sou uma pessoa, sabia?”

    É sempre inebriantes e deparar com um diálogo num café de rua entre um homem, e uma mulher, sendo tratado como algo vulcânico e imprevisível como assim deve ser, sobretudo num filme latino-americano em que as relações humanas são tão importantes quanto a luz incidindo sobre esses personagens, todos(as) sob constante choque (i)material. Mas o que acontece antes e depois desse diálogo é o que importa: Eles se casaram cedo demais. Os jovens Rímini e Sofia estavam fadados ao fracasso, mesmo depois de doze anos juntos, criando e alimentando suas cicatrizes entre os tapas e beijos, o silêncio e a verborragia de sempre.Se separam, vida que segue, e aqui começa o filme. No lugar que restou ao passado no decorrer de uma nova casa, cheia de novas possibilidades e tinta sobre tinta chamada futuro.

    Ao Sherlock Holmes de um pretérito inesquecível, restava mesmo explorar os meandros do destino que nos fazem desviar de um grande amor que, afinal, nunca ia ser eterno.Estamos falando daquela que nunca esquecemos, vulgo alma gêmea. A pessoa que sempre volta porque tudo (ou quase tudo) é um gatilho que nos remete a ela. Não que Hector Babenco nunca tenha explorado isso, em Ironweed principalmente, seu primeiro filme inteiramente feito em Hollywood, cujo tema do amor perdido duelava com outros tão importantes quanto, na história do casal de Meryl Streep e Jack Nicholson. Em O Passado, porém, o tema não encontra paralelos dentro da trama, e reina sozinho numa história de amores loucos, como o próprio cineasta definiu, inseguro,o seu próprio filme.

    Palco de um ator só; monólogo exclusivo. Tudo gira em torno de um sentimento vivo, materializado no sexo, nas discussões, em outras mulheres que como numa música de Caetano, não fazem Ríminientre viagens e outras bocas esquecer Sofia (que sempre reaparece nos momentos de conflito), nem no mais íntimo e prazeroso dos momentos de fuga. Babenco sabia muito bem como mostrar um personagem se deteriorando, de dentro pra fora, perdido em outros espaços, outros embaraços, com Gael García Bernal dando um show de atuação – na época com apenas 29 anos de idade. Notável como suas melhores cenas são as que contém menos diálogo, apostando tudo na performance de um ator nada menos que incrível. No lançamento do filme, há uma década, Babenco afirmou para uma revista brasileira que não tinha um jovem ator brasileiro à altura de Gael, e que tampouco sabia dirigir melodramas. Felizmente, verdades absolutas parecem não existir, muito menos na era da pós-verdade.

    Falsa modéstia do hermano mais brasileiro que já existiu, ou não, fato é que após Carandiru e uma carreira inteira de filmes aclamados, e outros nem tanto, Babenco já mostrava sinais claros de cansaço criativo, e uma melancolia incômoda que por vezes não acrescenta em nada, pelo contrário: age aqui subtraindo grandezas dramáticas, fazendo muitas vezes o filme simplesmente não chegar a lugar algum. Babenco filmou o livro do argentino Alan Pauls como se tivesse colado as páginas nas lentes de sua câmera, sem pressa, mas sem muito tesão, também. Faltou Cinema e sobraram vontades. Mesmo assim, o domínio cênico do diretor continuava impressionante nesse seu penúltimo ímpeto, e há um fator principal aqui a provar isso, em pequenas grandes cenas de um filme repletos de velhas novidades pipocando, aqui e ali, por quase duas horas: sexo. Coisa rara não só pra muita gente, mas pro Cinema, em si.

    Sabe-se que são poucos os filmes que já o tiveram de forma completamente verdadeira, orgânica, profunda e honesta com o ato, gotejando-o tão sincero na narrativa que se tornou memorável na vibração dos corpos, em cena. É raro o sexo explodir na tela, mais raro que aqueles cem reais que nunca encontramos perdido na calçada. Contudo, a cena final de O Passado emblema algo próximo a “aquele” nível de descortinamento sexual que poucos cineastas podem encher a boca e falar que alcançaram, um dia, nessa mídia chamada Cinema. Captar uma espécie de tesão inegável que escorre da pele das pessoas não é pra qualquer um, Babenco sabia disso, os melhores sabem, e filmava o tesão sussurrado entre quatro paredes de um jeito indescritível, e tão vívido, que fazia ser real – ao invés de parecer ser real. Talvez uma baita cena dessas, filtrada pela visão de um mestre na sua penúltima obra, seja então uma das recompensas principais desse belo e regular filme afinal de contas, por mais superficial que uma constatação dessas possa ser aos interessados.

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  • Crítica | Brincando nos Campos do Senhor

    Crítica | Brincando nos Campos do Senhor

    A busca e a conquista pela naturalidade das histórias cinematográficas é o mote que guiou o cineasta Hector Babenco no filme mais ambicioso de sua autoria, acerca da busca e da conquista de uma população “selvagem” por religiosos americanos infiltrados em uma comunidade indígena amazona. Através desse trabalho de catequização e imposição de um casal branco e evangélico, Babenco procura o efeito rústico e, como já mencionado, natural de filmar causas e consequências cuja forma no filme tem substancialmente a ver com toda a natureza ambiental ao redor, e com os próprios sentidos percebidos e subentendidos de Brincando nos Campos do Senhor.

    Ao longo de quase três horas de exibição, fica difícil imaginar outro cineasta tão versátil e apaixonado pela arte que usufrui no comando da adaptação do romance de Peter Matthiessen, escritor modernista do século XX. Isso porque o argentino Babenco sempre ostentou uma fascinação antagônica e explícita com o Brasil, seus signos e ritos, fazendo com que o filme encarne e explore com força muitos dos ritos característicos dos índios que recebem seus colonizadores, de olhos de turista e blusa e vestido de algodão, com flechas e tacapes apontados para cima, sem intenção de ferir ninguém. Estimulados por tal recepção que, para os nativos, é instintiva (pelo menos enquanto os forasteiros não vão longe demais), o doutrinador casal Huben, seu filho criança e outros companheiros de aventura tentam fazer a diferença na região como se realmente fossem, para isso, os enviados oficiais de um Deus cristão.

    Assim como aconteceu (de fato) no Brasil colonial, quando padres jesuítas envolvidos no drama dos escravos que eram livres antes da sua chegada não quiseram denunciar os índios mais rebeldes aos seus algozes portugueses, por já terem se apegado com seus valores, seu respeito e proteção com seu ecossistema, e a humanidade que os assassinos europeus não apresentavam, os Huben e o sociólogo Martin Quarrier empunham a missão que já se convenceram a completar, mas logo aprendem que civilizar aquela gente, seja pelo motivo que for, consiste em algo inatural, predador e custoso ao extremo – culminando na morte por doença de seu próprio filho, num desequilíbrio inevitável da aventura e na revolta que só cresce entre o casal, interpretados com maestria pelos veteranos John Lithgow e a maravilhosa Kathy Bates, cada vez mais perturbados não pelos imprevistos que ocorrem na terra que invadiram, mas pela própria petulância e magnitude do que eles foram fazer na mais plena vastidão amazônica.

    Brincando nos Campos do Senhor traz à tona questões a respeito da própria natureza humana (traição, aceitação, humanização, desumanização), e no desenrolar destas tantas na história, o filme carrega por conseguinte muitas das virtudes e das vaidades do seu diretor, como a identidade visual inconfundível de Babenco, sempre recorrendo e integrando como parte inextrincável dos seus filmes à paletas mais barrocas e com cores mais pesadas, tornando a imagem densa e profunda, escondendo segredos e deixando aforismos para serem discutidos quando o filme acabar. Por outro lado, Babenco nunca foi muito bom com ritmo e fluidez narrativa, e aqui isso demanda um preço alto, tornando o filme longo sobretudo no seu terceiro ato que, se não merece ser chamado de interminável, é porque a direção de atores de Babenco e seu domínio da mise-en-scène são infalíveis, como sempre.

    Porventura, se o passado para nosso finado argentino verde e amarelo é um fator inseparável da observação das coisas, qualquer coisa, nesse seu legítimo épico latino-americano, assim como Aguirre e Fitzcarraldo também o são para Werner Herzog, mas por outras razões igualmente nobres de se falar, para os colonizados o tempo age como um rio cujas margens são visíveis para quem faz daquela terra bem regada palco às suas gerações, tradições, deveres e desejos enraizados em seu habitat. O tempo aqui não existe, se existe ninguém liga, e o passado, tão glorificado por Babenco, se faz como hoje (e se depender dos “selvagens”, será o amanhã também), seguindo assim o fluxo do que é natural, e resistente. Esse talvez tenha sido o maior motivo para o cineasta adaptar o livro de Matthiessen, e se de fato foi, nós, enquanto público, ganhamos com isso uma verdadeira façanha em forma de filme.

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  • Crítica | Ironweed

    Crítica | Ironweed

    Onde não estamos é que estamos bem. Já não estamos no passado, e então ele nos parece belíssimo.” – Anton Tchekhov.

    Se Hector Babenco, cineasta argentino falecido em 2016, pudesse abraçar forte o famoso escritor russo por essa citação que tão bem resume sua obra por inteira, de cabo a rabo, com certeza o faria. Babenco teve o dom, o vício e a necessidade de criar uma máquina do tempo através de seus filmes, suas alegorias ainda que atemporais só pra (re)alcançar e respirar mais uma vez idos, costumes e ideais que traduzem o DNA da sua perspectiva tanto sobre a vida, quanto a respeito de uma arte que se debruçou para fazer história dentro dela, pulsando uma visão nostálgica que jamais conseguiu deixar de sê-la exatamente como é, mesmo em seu melhor filme, Pixote, quando encena um de seus virtuosos pretéritos “fictícios” filmados sob os olhos de um detalhista, 100% desinteressado em fatores futuristas. Se o ontem já está pronto pra uso, é o ontem que Babenco fazia questão de usufruir – e lindamente, como poucos.

    Sendo assim, não é de se espantar o apreço de Babenco para com uma história igual a de Ironweed, seu primeiro filme totalmente rodado em Hollywood e contando com um elenco de peso, após os enormes e inéditos sucessos de O Beijo da Mulher Aranha e o já mencionado Pixote; ambos chegaram ao Oscar e ao Globo de Ouro, chamando bastante atenção dos mandachuvas americanos e lhe abrindo portas para trabalhar com Meryl Streep, Jack Nicholson e o grande compositor John Morris (Dirty Dancing), adaptando o famoso e homônimo livro de William Kennedy sobre um casal extremamente complicado, alcoólatra e agressivo, que não consegue não reviver todas as agruras e cicatrizes que o passado lhes reserva, ainda hoje, como se o tempo para eles nunca tivesse passado desde então, servido senão para aprofundar as marcas que um deixa deliberadamente no outro, sem dó nem piedade.

    Temos aqui um grande embate de uma consciência masculina e os mortos que carrega, e uma essência feminina que nunca soube lidar muito bem com a própria sensibilidade mais sofisticada do ser. Ambos se cortam entre palavras e olhares, gestos e intenções, encontrando na música e na bebida para reviver seus fantasmas (literalmente) a chance de sentir a nostalgia lenitiva a realidade dos fatos. É como se Babenco, novamente, citasse Anton Tchekhov na prática, entre relações traumatizantes de um casal nada saudável, e ainda assim irresistível de se ver. Quando a Helen de Streep entra num bar imundo, e com roupas tão fétidas quanto o ambiente, e se depara com o Francis de Nicholson, homem rude que cava sepulturas para ganhar míseros dólares e sobreviver, duas lendas do cinema mundial passam a mostrar a razão crítica de merecerem tal prestígio. Babenco deixa as brilhar, sim, mas não permite que esse duelo de atuações deixe a história de lado, levantando outras questões: Até que ponto um cidadão consegue viver seu passado sem deixar isso atrapalhar seu futuro?

    Tanto Helen quanto Francis e seus colegas de bebedeira nunca tiveram essa oportunidade, fadados a sarjeta, a não saber aonde dormir na noite seguinte. Fantasmas vivos esperando a hora do último drink, do último prazer, já que nada mais consegue o mesmo efeito no mundo. Nesse afogar das mágoas e na impossibilidade total de se encarar o hoje e fazer algo de produtivo com ele, Ironweed representa a mais difícil das relações nostálgicas que Babenco já filmou, com zero glamour, zero resistência e zero esperanças guiando seus atores. Contudo, mesmo com um elenco de ponta, e um design de produção caprichado, o cineasta argentino radicalizado no Brasil fez um filme reflexivo, mas nada marcante, e até redundante para toda a filmografia de Babenco já baseada inteiramente nessas forças que movem os pretéritos latentes de cada um. Esse talvez seja o grande problema, aqui: Para um filme que cria e propõe asas para o passado, ele corre o grave risco de não conseguir decolar muito bem em nossa memória.

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  • Crítica | O Beijo da Mulher-Aranha

    Crítica | O Beijo da Mulher-Aranha

    Dos filmes que não têm óbito, muitos são brasileiros e a maioria, desconhecidos pelo próprio acervo cultural do país, vulgo nômade de uma miscelânea de culturas que quase nunca conseguiu se inserir nas formalidades europeias. Como se formalidades no Brasil fossem sinônimos de redução – monocromia – ao sentido das cores e contradições da nação. A maioria dos diretores brazucas descobre essa informalidade generalizada, esse jeitinho brasileiro de dar bom dia às artes, antes ou durante a compreensão de que todo artista verde e amarelo é um complexado, em geral pela carência nacional de seriedade em certas regências e, em alguns casos, pelo complexo de não conseguir traduzir em longo prazo a essência do que e de quem estimula essa terra a ser o embalado de poucos filmes capazes (indiscutivelmente brasileiros, ainda que universais na digestão das mensagens) de condensar delírios nacionais de dimensões continentais.

    Fica irônico então mencionar um argentino chamado Hector Babenco como responsável por vários dos mais reconhecidos filmes modernos brasileiros, mundo afora. Mas eis o fato. O diretor de O Beijo da Mulher-Aranha, um dos pontos altos da sua carreira logo após a arquitetura do seu maior filme, Pixote: A Lei do Mais Fraco, assume de vez seu fetiche por celas nesse drama psicológico e todo excêntrico (de dar gosto) entre dois prisioneiros opostos e complementares, fadados ao quadrante que lhes é permitido num espaço de descobertas. Nesse palco de experiências humanas e mais do que humanas, um foi preso por ser LGBT. O outro por ser subversivo também, mas em termos políticos mais típicos dos anos oitenta, no Brasil. Nesta cela suja e imunda, onde os imorais da sociedade moral e de bons costumes são jogados, Luis e Valentim provam tanto da repressão que os une, quanto das diferenças chocantes entre ambos. Dos costumes distintos de um jornalista caribenho que falou demais, e de um americano cujo único crime foi ser homem de menos, num show de atuações de Raul Julia e William Hurt, esse último vencedor de um Oscar por sua atuação aqui mais do que impecável.

    Dentre as temáticas aqui debatidas, ais quais se destacam as diferenças entre dois prisioneiros (num calabouço que parece suspenso no tempo), e o escapismo existencial que pode se criar no encarceramento, a impressão que dá é que Babenco, o cosmopolita sem fronteiras, constrói e reforça a cada cena um filme genuinamente realista e estranho, mas irresistivelmente sedutor e emocionante – um dos melhores da década de 80, aliás. Aqui, a essência ilusória e sonhadora do Cinema entre na cela dos condenados feito a planta fresca cortando o asfalto cru, enquanto Luis alimenta seus sonhos irreais para não deixar a realidade sufocar sua identidade sensível, no contraponto a Valentim, sempre preocupado com a constante promessa de ter sua cabeça levada a guilhotina. Sob o realismo cinza, crescem as cores das oportunidades que a vida lhes (nos) reserva, mesmo em cenários de grande retidão e desolação humana.

    Uma história que dialoga tanto às ditaduras latino-americanas, e que remete (e muito) ao fantástico Acorrentados, de 1958 – filmaço americano cuja força do roteiro é maior que qualquer outra coluna da produção, com o ranço e outras questões psicológicas que a escravidão e o seu fim, ainda recente na época, trouxeram a luta de raças sendo fisicalizadas ali por uma simples e emblemática algema entre um negro, e um branco, soltos por ai. Aqui, em O Beijo da Mulher-Aranha, dada a condição de penitência, a América Latina explode em cores e sotaques, mas além disso, a liberdade está no sonho, e se desdobra no surreal, na promessa não da guilhotina ao jornalista, ou da violência ao gay, mas de uma possível liberdade além das grades para poderem ser o que quiserem. Todo o resto, evidencia o filme, merece e deve ser enfrentado. O ser humano nasceu para a liberdade afim de se manter são e salvo. E a quem não sente falta de Babenco no Cinema nacional, sente sem perceber.

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  • Crítica | O Rei da Noite

    Crítica | O Rei da Noite

    “- Do que que vocês tão brincando?” – Tezinho.

    “- De gente grande! […] Quer brincar?” – Aninha.

    Isso meio que resume o que é o Cinema de Hector Babenco:uUma brincadeira, uma grande zoeira em se infiltrar em mundos de coisas notoriamente adultas feito a penitenciária do Carandiru, adentro o mundo das sexualidades em O Beijo da Mulher Aranha, na criminalidade de um Pixote: A Lei do Mais Fraco. Contudo, nunca o cineasta argentino voltou tão longe no passado para alojar e estruturar sua trama, ou melhor, seu primeiro exercício cinematográfico. Ainda na década de setenta, Babenco fez pular para os anos vinte pregando olhos de nostalgia para um tempo e uma sociedade que não volta mais, ao mesmo tempo que se fez perder entre inúmeros personagens de uma São Paulo já cosmopolita, atulhada de corpos e consciências inquietas entre pacatas vidas caseiras, agitadas perambulações boêmias e casos de amor e desamor que a época permitia.

    O Rei da Noite é um drama de época cujo gosto remete àquelas crônicas antigamente publicadas com o devido livre correr do pensamento, em mil e um periódicos do Brasil no século dezenove e vinte, tão bem narradas e sempre escapando às rotas e aos nexos previsíveis de uma leitura medíocre. Babenco percebeu que tinha em mãos uma história boa demais para desprezar em seu primeiro tour cinematográfico, e como viajante de primeira viagem é de se impressionar a versatilidade e a serenidade virginal do cara no tato e na ‘decupagem’ com o roteiro de Orlando Senna. Na trama, o grande ator Paulo José dá vida a Tezinho, eterno apaixonado desde criança por Aninha, por quem saltam suas borboletas. Só que, dada a uma complicação de saúde dela, os pais da moça após muitos anos são cruelmente categóricos: O relacionamento tem que acabar para evitar maiores sofrimentos.

    Esse fim obrigatório dá início a majestade de um sentimento destrutivo, e ao imperialismo de pesadelos reais. Tezinho vê seus rumos na capital paulista mudarem drasticamente, longe da sua Aninha como assim deve ser e parecer – mas nunca esquecendo-a, claro. Tezinho vira um Bentinho, personagem clássico da literatura brasileira, por sua vez de bigode cada vez mais grosso. De grossura também acomete a sua galopante falta de caráter, mais e mais mergulhado nas considerações que a noite e seus tipos guardam, entre mil putas e mil (e um) assuntos de coração não-resolvidos. Ironicamente, eis aqui um filme com poucas cenas noturnas, como se a ausência de sol fosse apenas um recurso metafórico remetendo a predominância da escuridão eterna no garoto crescido e sofrido sem a sua doce e doente Aninha, ao lado.

    Engravidando e dependendo dos outros, o elemento familiar é tão custoso para o garoto que virou cafajeste quanto também o foi para Pixote, Lúcio Flávio: O Passageiro da Agonia e outras personas similares que Babenco usou para arquitetar e substanciar seu universo de conflitos urbanos sem ética, sem leis, repletos de contos que os vigários sempre caem – nós. Desde o princípio, a obra de Babenco sempre se manteve fiel à sua objetividade, sua ousadia e sua visão “trezentos e sessenta” da realidade urbana de São Paulo, em especial dessa megalópole que verte suas crônicas, seus contos e suas sangrias desatadas na cruzada de seus habitantes. Nesse meio de coligações inusitadas e total instabilidade, Tezinho, sofrido e crescido, acha sentido nessa vida remoendo e devorando as cartas que sua Capitu o envia, anos a fio. Coadjuvante da própria história.

    Algo de muito especial nos filmes do argentino, as tragédias nunca são anunciadas – e muito menos as paixões, quando estas irrompem de um óbito ou de uma boate qualquer. Baseado na vida do ex-lutador de boxe Ralph Zumbano, ícone do esporte mais conhecido por sua personalidade difícil, O Rei da Noite é um estudo simples, charmoso e dos mais bacanas sobre os efeitos de um meio ambiente sobre a vida de um homem, e tudo isso em meros noventa minutos bem aproveitados enquanto assistimos Tezinho se enganando, enrolando quem mente que ama, e sobretudo os outros Tezinhos que vai encontrando por ai, por essa matança diária dos leões que a vida coloca na nossa conta.

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  • Crítica | Lúcio Flávio: O Passageiro da Agonia

    Crítica | Lúcio Flávio: O Passageiro da Agonia

    Hector Babenco não era um gênio, mas era grande. O cara sabia fazer bons e ótimos filmes sobre um Brasil que muitos brasileiros não entendem, e nada como uma visão estrangeira, por bem argentina, para desvendar certas dinâmicas nacionais que nós já banalizamos, ao longo das gerações. Ironicamente quanto a falta de tino comercial de vários cineastas do país, que ainda parecem fazer filmes extremamente autorais e que não conseguem e não desejam atingir o grande público, Babenco parecia ter a receita para extrair uma plena riqueza de interesses e uma certa mitologia latino-americana de situações e paisagens tipicamente brazucas, como de fato encena do começo ao fim no seu elogiadíssimo Lúcio Flávio: O Passageiro da Agonia, segundo (e divertido) trabalho de carreira.

    Mesmo sendo de 1977, o realismo do filme (presente na 78º posição na lista dos 100 melhores filmes brasileiros segundo a Associação Brasileira de Críticos de Cinema [Abraccine]) expressa com grande trabalho de câmera e sofisticação narrativa a década de 60, no auge da carreira criminosa de Lúcio (Reginaldo Faria) quando o bandido liderava os seus assaltantes de banco e nem por isso deixava os outros fazerem seu próprio serviço sujo. Cruel e destemido, o cara não poupava ninguém, aterrorizando a população de uma forma muito mais ampla e violenta que o bandido da luz vermelha jamais conseguiu, caseiro como só.

    No caso de Lúcio Flávio, o desejo de se tornar um bem-sucedido inimigo público é explícito, inteligente nos seus planos e nas suas fugas bem planejadas, ainda que sádico em todas as suas abordagens nos roubos bancários que tanto arquitetou em São Paulo e no Rio de Janeiro. Sendo assim, o marginal virou uma lenda na mídia sensacionalista, e uma verdadeira peste a ser exterminada pelas “autoridades”. Babenco traça esse cenário da bandidagem nacional como se fosse uma extensão, ou um retrato urbanizado (e motorizado) do cangaço profundo, onde o seu mais famoso protagonista, Lampião, mandava e desmandava por lá em meados dos saudosos anos 20 – este provavelmente o mais famoso fora-da-lei da história do Brasil.

    E nesse contexto das grandes capitais onde a polícia samba para manter a ordem, Lúcio apresentou a mesma determinação agressiva que o seu popular compatriota nordestino ostentava, com um grande amor do seu lado, e um fim nada glamoroso às suas trajetórias de prazer e danação, levando inclusive ao aprimoramento das técnicas de caça ao crime do Esquadrão da Morte, uma organização paramilitar criada na época para capturar todos os Lúcios Flávios que assombravam o sistema, cujos vários integrantes policiais foram prontamente denunciados tendo ligação direta com o próprio bandido até a sua difícil captura, em Minas Gerais. Só que até ai, ele e seus comparsas botaram fogo no sudeste brasileiro, tendo suas ações acobertadas por quem dizia-se ser acima das leis.

    Mas o que realmente torna Passageiro da Agonia uma aventura marcante afora às páginas da criminalidade brasileira, é a forma como Babenco torna onipresente a tensão que um bandido sente em ser pego a qualquer momento. Podemos sentir a homônima agonia em qualquer segundo de exibição, simbolizada e desdobrada ao longo da trama de uma forma que viria a ser superada em Pixote: A Lei do Mais Fraco, o melhor trabalho do cineasta. Uma angústia famigerada que quando vira ação, ou apenas cultiva-se como suspense ou raro recurso dramático explícito ou não, descarrilha substancialmente para momentos de grande apreço, como na longa sequência dentro do covil de criminosos descamisados, ou ainda no inesquecível clímax “fim de carreira”, quando as fugas aparentemente terminaram, mas o inferno penitenciário aguardava o bandidão.

    Entre muito papo e tiro, entre muito sexo e conversa de botequim, Reginaldo Faria incorpora o tal passageiro fatalista com uma impressionante seriedade, fiel a personalidade cínica e terrorista de Flávio, vivendo num eterno ciclo de pressão e tocaia constante, ora torturado em cativeiros com outros dos seus, ora se escondendo dos “tiras” como diziam, tendo sempre que se manter esperto e vigilante – “Se eu mijo nas calças, quem é Lúcio Flávio?!”, pergunta o mesmo para a lenda icônica Grande Otelo, uma das deliciosas participações especiais de um filme que nasceu para ser parte de uma sessão dupla com outro marco do Cinema nacional: Mineirinho – Vivo ou Morto.

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  • Crítica | Pixote: A Lei do Mais Fraco

    Crítica | Pixote: A Lei do Mais Fraco

    Pixote: A Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco, é um marco do riquíssimo cinema brasileiro não-reconhecido pela maioria que se baseia apenas em Cidade de Deus e Central do Brasil para valorizar, por menor que seja, a produção audiovisual de uma nação que verte toneladas de exemplos culturais superiores. Arrisco dizer que o filme em questão pode rivalizar, enquanto retrato da difícil infância que uma pessoa pode levar no terceiro mundo com o soberano Os Esquecidos, de Luis Buñuel. Um doce período da vida estragado pelas agruras e mil dificuldades tempestuosas que o destino de cada um prepara ao infante, ao longo de uma trajetória repleta de desventuras.

    Pois, enquanto Alemanha, Ano Zero, um dos filmes mais tristes que já ocupou uma tela de Cinema coloca uma criança inserida no contexto de uma guerra europeia literal, entre tanques e bombas, a guerra de Babenco é o conflito diário a lá Brasil, esse que lemos e assistimos diariamente nas manchetes e no feed do Facebook: Crianças e adolescentes das nossas periferias virando alvo contínuo da polícia, do emburrecimento e da intolerância institucionalizadas, e delas mesmas. Um mundo de violência(s) cuja imprevisibilidade Babenco incorpora no ritmo da história de uma forma espetacular; realmente gloriosa. Eis, de longe, o seu melhor filme, ainda que bem menos famoso que o polêmico e ambicioso Carandiru, de 2004.

    Aos dez anos, Pixote já sabe bater, roubar, se virar; um legítimo membro dos capitães de areia, fazendo aqui referência inevitável ao livro de Jorge Amado, mas ainda guarda alma de criança órfã quando deixa-se descansar sobre um colo de mulher, ou viver a rebeldia exposta no contato com outros da sua idade, compartilhando do mesmo perigo que banha suas condições clandestinas. O menino já sabe matar, só não sabe o que é acordar pra curtir desenhos em um sábado de manhã, ou fazer birra para não ir a escola. Uma infância que vai pelo ralo, prestes a suicidar-se a qualquer momento pelos contornos que o menino adulto vai criando na inconsequência das relações que o mundo e a direção implacáveis de Babenco reservam para a itinerância do moleque meliante.

    O cineasta argentino nunca foi tão hábil em nos fazer sentir, com grande força, uma infância com gosto de morte e sem a promessa de se viver a adolescência fora de uma penitenciária. Pixote: A Lei do Mais Fraco pode ser o retrato da construção do que chamam de “perigo para a sociedade”, ainda que a unicidade do filme, sua excelência que não se encontra noutros filmes do tipo se dê pela crueldade deste conto sobre um menino que vê sua pureza escoando a cada momento, e nos reles instantes de sossego, como no seu emocionante contato com a prostituta Sueli, a câmera faz invadir seu rosto já marcado como se o mesmo lembrasse de um tempo almejado para ser criança, mas que a realidade suja dos fatos jamais o deixa tocar com seus dedinhos encardidos.

    Assim como no clássico de Buñuel, troca-se as ruas da Cidade do México pelo subdesenvolvimento similar dos bairros de São Paulo. Muda-se o ambiente mas não a lógica da sobrevivência que o estado oferece para sua população, ontem e hoje. O garoto sem nome e sem moral é oriundo e faz mover uma espiral de criminalidade, um ciclo de desistência pelo futuro ainda nos seus primeiros anos de vida, acolhendo o que “Deus” lhe deu como se o mal que o cerca fosse seu amigo, e irreversível. Pixote foi seu apelido, aterrorizando a todos como se todos fossem culpados pelo terror que lhe deu de mamar. Babenco não busca o mesmo, segue imparcial do começo ao fim agindo como grande contador de histórias, e com grande influência do saudoso neorrealismo italiano, cronicando a selvageria dramática que irrompe das civilizações e injetando sobretudo ficção às narrativas de violência que encharcam nosso costumeiro jornalismo pagão.

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  • Crítica | Meu Amigo Hindu

    Crítica | Meu Amigo Hindu

    Meu Amigo Hindu - posterApós ficar anos sem filmar, Hector Babenco retorna à condução de longas-metragens, retomando um estilo muito comum dentro da literatura e de algumas escolas de cinema, conferindo no roteiro uma história autobiográfica. Meu Amigo Hindu possui um caráter ainda mais pessoal que simples histórias de um cineasta já perto do fim da vida, uma vez que seu cunho emocional é grande.

    A rejeição da persona detestável de Diego Fairman (Willem Dafoe) é construída sem mostrar os atos de ódio que ele provocou. O método é um pouco rápido, justificado pelo fato do personagem estar doente, em uma fase moribunda, mas a falta de explicar os atos que fazem dele uma persona non grata não se justifica, e apela demais para a suspensão de descrença do público, carecendo de cuidado em introduzir os sentimentos extremos ao espectador.

    As fases distintas da vida privada de Babenco são mostradas por meio de cenas intimistas, que dependem de um apego aos personagens. O grave problema tanto no drama de câncer terminal quanto nos conflitos internos entre personagens é que não há espaço em tela para o desenvolvimento destas intrigas. Tudo gira em torno de Fairman e de seu intérprete, incluindo aí a linguagem em inglês, mesmo o filme se passando no Brasil, uma interferência para abraçar Dafoe ainda mais injustificada do que em O Beijo da Mulher Aranha.

    A brevidade dos estágios de tratamento faz todo o efeito dramático soar como eventos superficiais, fato esse que denigre demais a história. O misto de drama e humor negro também soa estranho em meio à pretensão de apresentar uma despedida da vida e do cinema, algo piorado pelo fato do filme não ser um desfecho oficial da carreira de Babenco. A tentativa de poetizar a trama através da interferência de autor/personagem soa forçada e sem significado.

    O roteiro trata com cinismo único o modo de lidar com a morte e até os improváveis dribles dados na entidade, banalizando não só a brevidade da vida como também os eventos ocorridos no filme. A segunda metade melhora ligeiramente, mostrando o processo de escrita de um novo roteiro, com a possibilidade de um recomeço que tem seu ápice na metalinguagem da obra.

    O período após a doença é menos verborrágico, sendo assim distinto da primeira parte. O entendimento da história passa a ser mais do público do que do artista, fato que ocasiona uma das poucas características longe de críticas. A gangorra emocional decorrente do estado depressivo do personagem ao menos é exemplificada em detalhes, mostrando os altos e baixos comuns desta condição, variando da melancolia até a esperança gratuita em alguns momentos, atingindo de forma interessante o desequilíbrio comum a essa doença da psiquê de Babenco/Fairman.

    Outro bom momento é o retrato de suas esposas, com Xuxa Lopes e Bárbara Paz sendo bem executadas por Maria Fernanda Cândido e pela própria Paz. Entre as outras atuações, não há qualquer destaque digno de nota, exceto pela entrega de Dafoe ao papel, fator obrigatório, evidentemente, já que todo o argumento narcista de Babenco gira em torno de seu personagem, um enfado tanto para as pessoas que o cercam quanto para o espectador que o assiste, resultando em um longa frígido e carente de inspiração.

  • Crítica | Carandiru

    Crítica | Carandiru

    Carandiru 1

    A tomada aérea registra visualmente o complexo carcerário que seria explorado pelas lentes de Hector Babenco. As figuras esquálidas que habitam aquele microuniverso são a síntese visual da doença que acomete os presos, pessoas carecidas da menor possibilidade de saúde, mental e corporal, que teria resposta a partir das palavras e narrações do personagem do médico (Luiz Carlos Vasconcelos), um (possível) paralelo com Drauzio Varella, autor do livro biográfico e pró-revolução que gerou o roteiro de Carandiru.

    A chegada do doutor remete à busca por prevenção da AIDS, um advento comum da época, em tempos onde se discutia os malefícios do dito amor livre. O profissional da saúde acompanha, de perto, sem interferir na rotina do planeta-prisão em que se insere eventualmente. Mesmo ao abraçar alguns dos causos, ele não se permite sentir todas as dores das “vítimas”, ainda se importando com o que pode, tendo a difícil tarefa de abarcar alguns dramas e ter de virar os olhos para tantos outros. A seleção dos motivos importantes é um desafio ético, mas é também a principal mostra de que ele não pertence àquele ambiente inóspito, o deserto das almas aflitas, que ainda assim sussurram por atenção e misericórdia.

    O dilema prossegue em evitar julgamentos, já que não era seu papel. Ele deveria ser invisível, um observador atento, no máximo, para captar as mensagens dadas nas falas das ricas personagens. As memórias são mostradas em flashbacks na maioria das vezes, a começar pelo líder religioso Nego Preto (Ivan de Almeida), que tem o discurso moralista como fundamento principal, enredando um discurso baseado fundamentalmente nos valores familiares, apesar dos aspectos da rotina de um bicho solto.

    Os balões de Seu Chico (Milton Gonçalves) fazem o óbvio paralelo com o desejo de liberdade ao voar pelos céus. O bravejar deveria mesmo vir de um preso considerado justo, o contraponto a toda fala mal vista pela sociedade. Destacam-se contos rodriguianos, como o de Majestade (Ailton Graça) e sua poligamia, e o surpreendente destino que envolve Deusdete (Caio Blat), Zico (Vagner Moura) e sua família que passa por momentos conturbados, cujos traumas incorrem em violência sexual findando o drama em homicídio culposo, que obviamente resulta em uma pena ainda maior.

    O que deveria ser o alento do frescor da vida de fora das grades serve na maioria das vezes para resgatar fantasmas, variando entre mágoas resolvidas, não resolvidas e reaberturas de dores na alma, tanto do presente quanto do passado. A imundície vista nas paredes e corredores do complexo se reproduz nas muitas sensações contraditórias dos detentos, abarcando diversos estereótipos de figuras marginais, mas construindo bem cada uma delas, muito por mérito do texto de Babenco, Fernando Bonassi e Victor Navas.

    O canto de Se Gritar Pega Ladrão ecoa pela cozinha, trazendo más notícias para Nego Preto e momentos de redenção do assassino frio Peixeira, no momento mais inspirado de Milhem Cortaz no cinema mainstream até então. O personagem encontra na fé o seu caminho de cura espiritual, apelando, claro, para o discurso fácil mas engrandecido por toda a atmosfera criada em torno da edificação de seu personagem.

    A nacionalidade, argentina, de Babenco se nota na proclamação do hino brasileiro, tocado na íntegra, remetendo à enorme população carcerária do país, cada vez mais crescente, reunindo milhares e milhares de habitante, proliferando um sistema que não corrige e deseduca ainda mais os novos detentos.

    As explicações sobre o tumulto da rebelião são dadas em formato de falas semidocumentais, com declarações sobre o ambiente interno e o inferno vivido ali e, claro, o panorama político do lado externo, às vésperas de uma eleição para governador, o que causaria uma ação mais enérgica dos membros da Tropa de Choque. A truculência dos militares é mostrada em minúcias e exibe a crueldade do Estado coercitivo. A cena que desvela a invasão ao cárcere exibe a desconfiança dos policiais diante de seu batalhão e o terrível medo de adentrar o inferno dantesco, resultado do descaso do governo com os cidadãos que deveriam se reabilitar. O bordão do personagem de Gero Camilo cabe bem, sem chance de mudança.

    As cenas de mortes dos alvejados são repletas de agonia, resultando de modo terrível a miséria que habitou a vida dos homens, restando zero dignidade. O enfoque no grupo de detentos, todos nus no campo de futebol faz menção ao cartaz e à beleza fotográfica do esmero de Walter Carvalho enquanto responsável pela cinematografia.

    As conclusões tiradas pelo roteiro são acachapantes e exibem através de dramas comuns a vida uma realidade dura, selvagem e repleta de desesperança, denunciando, para um público muito maior, as agruras do cárcere e o quanto deseducador é o ambiente da prisão, ainda que o resultado final flerte com uma glamourização da vida do preso. Babenco consegue apontar as emoções conflitantes de medo e auxílio por parte de seu protagonista, conseguindo transicionar bem o papel de contador de histórias de um modo bem mais lúdico e fluído do que o que Alejandro Iñárritu fez em Babel ou o trabalho de Paul Haggis em Crash: No Limite, pelo óbvio fato de serem dramas “reais” retratados em Carandiru. A morada da prisão é também o lugar onde repousa o desespero e o desengano, a despeito das crenças religiosas.

  • Crítica | Crítico

    Crítica | Crítico

    Crítico 1

    Trabalhando com o equilíbrio entre a análise fílmica e a superestimação da opinião própria e alheia, Kléber Mendonça Filho – crítico e cineasta – usa argumentos metafóricos, imagens essencialmente pautadas no estudo da visão, para fomentar as falas dos depoimentos colhidos, entre estrangeiros e brasileiros. Escrutinar o apreço à arte e ao mensuramento da qualidade dos objetos analisados é uma árdua tarefa, além de ter em seu exercício a tendência de supervalorização, tanto do trabalho do realizador cinematográfico quanto da relevância que uma resenha tem, sendo associada comumente – e quase sempre erradamente – à prática de uma arte por si só.

    A busca por isolar o gosto ou expectativas da experiência em assistir a um filme é custosa: quase sempre esbarra em falas que podem ser interpretadas como azedas, amargas ou ressentidas, mas que, a priori, somente buscam elucubrar sobre algo óbvio aos olhos analíticos. Numa das entrevistas, João Moreira Salles argumenta que o papel do crítico é refém dos filmes por ele analisado, e que se o cenário artístico for completo somente por espécimes medíocres, de nada adiantaria todos os seus esforços.

    Por mais que teoricamente o papel do resenhista seja o de se eximir de seus próprios gostos pessoais, o ofício do julgamento é volátil, pois a quantidade de conhecimento que se adquire com o decorrer de seus dias muda constantemente o seu ideário e repertório. Pode-se, no ato de atribuir notas à obra analisada, cometer injustiças, já que, em pouco tempo, tudo poderia mudar, especialmente em quantas estrelas a película poderia merecer.

    Cláudio Assis, diretor de Amarelo Manga destaca que, uma vez o filme lançado, é preciso ter noção de que o produto será analisado e sofrerá ameaças à qualidade da produção, e que é preciso ter elegância para aceitar as falas ruins, pois isto faz parte do jogo. Já Bianchi não tem uma certeza sobre qual o ideal na crítica, se é somente informar as pessoas ou também reinterpretar artisticamente a obra avalizada.

    O modo como Mendonça conduz a câmera visa mostrar a dualidade, não só entre a necessidade e  a supervalorização da “crítica”, mas também a importância do diálogo entre o cineasta e o crítico. A fala de Walter Salles sobre isso é pródiga, destacando a Carrieri du Cinema, onde dois escritores teorizavam sobre o que deveria ser a Novelle Vague e dali começaram a praticar o que seria um movimento imortal do cinema, além de incitar dois dos realizadores mais marcantes da indústria e da arte – Truffaut e Godard. Os ecos disso seguem até hoje, com relatos de cineastas contemporâneos, como Bertrand Bonello e tantos outros.

    Os depoimentos dos artistas do cinema também são interessantes por exibirem uma passionalidade ímpar, desde os diretores que não conseguem ler todo o texto – como com Babenco – até os obsessivos, que não conseguem parar de ler, mesmo quando lhes dói, a exemplo de Bruno Barreto. Há também uma parcela de astros que execram alguns dos estilos, como a erudição desmedida e uma subjetividade que não é necessária.

    Outro argumento rebatido – especialmente por Daniel Burman e Fernando Meirelles – é o do “filme ideal”, onde o analisador, munido de seu conhecimento prévio e de uma expectativa preconcebida do que deveria ser a fita exibida, começa a apontar os momentos que deveriam mudar, as sequências de quadro e montagem editorial do produto, para que tornasse, dessa forma, uma obra perfeita. A frivolidade de tencionar que algo siga a escola preferida do observador somente revela uma pretensão de proporções dantescas.

    Crítico faz justiça também ao exibir os reclames dos comunicólogos, que não aceitam de bom grado algumas das demandas da indústria. Luiz Zanim destaca uma experiência que teve em Cannes, ao cobrir o evento para um jornal. Ao chegar em terras francesas, ele teria uma bateria de entrevistas com diretores e produtores e as quais jamais havia marcado. Ao retornar ao Brasil, recebeu uma correspondência pedindo que ele redigisse uma carta bilíngue com as desculpas por não ter feito todo o conteúdo programado pela representante dos filmes que não a da pauta do jornal. Zanim obviamente não o fez, fortalecendo a fala de que, para a indústria, o ideal é que o crítico se torne um assessor de seus filmes, que somente propague releases e informações, como se fizesse parte do seu jogo comercial.

    A reflexão causada pelo roteiro passa por diversos trabalhadores da indústria e pelos olhos e falas de artistas cooptados nos oito anos usados para que o filme de Mendonça fosse rodado. O estudo trata basicamente de sentimentos e sensações, conseguindo inserir muita informação num período de tempo curtíssimo  pouco mais de uma hora , e que, ao mesmo tempo que exaure seu receptor com as variações de fala e com a câmera tão próxima de seus entrevistados, exibe, a partir desse viés, uma forçada intimidade, quase desnudando os que depõem, obrigando a quem termina de assistir a Crítico a ter uma reflexão, especialmente sobre a adjetivação de obras pertencentes ao público.