Tag: Fernando Ramos da Silva

  • Crítica | Pixote: A Lei do Mais Fraco

    Crítica | Pixote: A Lei do Mais Fraco

    Pixote: A Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco, é um marco do riquíssimo cinema brasileiro não-reconhecido pela maioria que se baseia apenas em Cidade de Deus e Central do Brasil para valorizar, por menor que seja, a produção audiovisual de uma nação que verte toneladas de exemplos culturais superiores. Arrisco dizer que o filme em questão pode rivalizar, enquanto retrato da difícil infância que uma pessoa pode levar no terceiro mundo com o soberano Os Esquecidos, de Luis Buñuel. Um doce período da vida estragado pelas agruras e mil dificuldades tempestuosas que o destino de cada um prepara ao infante, ao longo de uma trajetória repleta de desventuras.

    Pois, enquanto Alemanha, Ano Zero, um dos filmes mais tristes que já ocupou uma tela de Cinema coloca uma criança inserida no contexto de uma guerra europeia literal, entre tanques e bombas, a guerra de Babenco é o conflito diário a lá Brasil, esse que lemos e assistimos diariamente nas manchetes e no feed do Facebook: Crianças e adolescentes das nossas periferias virando alvo contínuo da polícia, do emburrecimento e da intolerância institucionalizadas, e delas mesmas. Um mundo de violência(s) cuja imprevisibilidade Babenco incorpora no ritmo da história de uma forma espetacular; realmente gloriosa. Eis, de longe, o seu melhor filme, ainda que bem menos famoso que o polêmico e ambicioso Carandiru, de 2004.

    Aos dez anos, Pixote já sabe bater, roubar, se virar; um legítimo membro dos capitães de areia, fazendo aqui referência inevitável ao livro de Jorge Amado, mas ainda guarda alma de criança órfã quando deixa-se descansar sobre um colo de mulher, ou viver a rebeldia exposta no contato com outros da sua idade, compartilhando do mesmo perigo que banha suas condições clandestinas. O menino já sabe matar, só não sabe o que é acordar pra curtir desenhos em um sábado de manhã, ou fazer birra para não ir a escola. Uma infância que vai pelo ralo, prestes a suicidar-se a qualquer momento pelos contornos que o menino adulto vai criando na inconsequência das relações que o mundo e a direção implacáveis de Babenco reservam para a itinerância do moleque meliante.

    O cineasta argentino nunca foi tão hábil em nos fazer sentir, com grande força, uma infância com gosto de morte e sem a promessa de se viver a adolescência fora de uma penitenciária. Pixote: A Lei do Mais Fraco pode ser o retrato da construção do que chamam de “perigo para a sociedade”, ainda que a unicidade do filme, sua excelência que não se encontra noutros filmes do tipo se dê pela crueldade deste conto sobre um menino que vê sua pureza escoando a cada momento, e nos reles instantes de sossego, como no seu emocionante contato com a prostituta Sueli, a câmera faz invadir seu rosto já marcado como se o mesmo lembrasse de um tempo almejado para ser criança, mas que a realidade suja dos fatos jamais o deixa tocar com seus dedinhos encardidos.

    Assim como no clássico de Buñuel, troca-se as ruas da Cidade do México pelo subdesenvolvimento similar dos bairros de São Paulo. Muda-se o ambiente mas não a lógica da sobrevivência que o estado oferece para sua população, ontem e hoje. O garoto sem nome e sem moral é oriundo e faz mover uma espiral de criminalidade, um ciclo de desistência pelo futuro ainda nos seus primeiros anos de vida, acolhendo o que “Deus” lhe deu como se o mal que o cerca fosse seu amigo, e irreversível. Pixote foi seu apelido, aterrorizando a todos como se todos fossem culpados pelo terror que lhe deu de mamar. Babenco não busca o mesmo, segue imparcial do começo ao fim agindo como grande contador de histórias, e com grande influência do saudoso neorrealismo italiano, cronicando a selvageria dramática que irrompe das civilizações e injetando sobretudo ficção às narrativas de violência que encharcam nosso costumeiro jornalismo pagão.

    https://www.youtube.com/watch?v=MLf-GG4qfwo

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  • Crítica | Eles Não Usam Black Tie

    Crítica | Eles Não Usam Black Tie

    Talvez nem fosse proposital, mas a versão restaurada do filme de Leon Hirzman tem um início onde os créditos são apresentados em uma tela negra, sem som nenhum, como se quisesse inconscientemente remeter ao luto, consequente dos anos iniciais da década de oitenta. O drama baseado na peça contestatória de Gianfrancesco Guarnieri mostra um casal de apaixonados, Tião (Carlos Alberto Riccelli) e Maria (Bete Mendes), que tencionam tornar o seu tórrido romance em um matrimônio, uma vez que a moça tem um segredo para contar ao seu amado.

    A cabeça do metalúrgico Tião está na greve que se avizinha deles, quase ofuscando a chegada do bebê que sua amada esperava. De casamento marcado, os dois vivem em seu paraíso particular, curtindo suas histórias escapistas no cinema – tomando por exemplo a ficção científica Jornada Nas Estrelas: O Filme, de Robert Wise, igualmente fugaz em suas outras obras. O par de jovens está distante do estado de ebulição e do furacão emocional em que está a casa de Tião, com todos preocupados pelas condições da fábrica onde os homens da família trabalham, entre eles seu pai Otávio (Gianfrancesco Guarnieri) e seu irmão Bié (Fernando Ramos da Silva), além da inconformada mãe, Romana (Fernanda Montenegro) que é a principal voz de alerta para a precipitação da consumação da relação.

    A sexualidade latente nas atitudes das crianças, bem como a greve servem como signos da teimosia juvenil que ainda tomava conta das ruas. A polarização de ideais cada vez mais crescente fazia com que os homens tivessem que, mais cedo ou mais tarde, tomar posição, e isso logo ocorre com o sonhador Tião, que vê a partir de um colega de trabalho vir uma proposta, para que ele entregue algumas informações do modus operandis da categoria, que ainda discute os detalhes de como a categoria agirá.

    Enquanto os eventos dentro do sindicato estão cada vez mais ásperos e repletos de animosidade, a vida familiar de Maria começa a melhorar, com seu pai aos poucos largando a bebida. Em comum o casal de protagonistas têm no seio familiar alguns problemas, por ambos serem considerados ovelhas negras, como páreas mesmo dentro de suas casas, já que Otávio pensa muito mais no social e na sua classe do que no bem-estar dos seus

    Até o hábito do consumo alcoólico é utilizado para demonstrar a diferença de atitudes, já que Otávio não enxerga na bebida um problema e sim uma forma de socializar com aqueles que lhe são queridos, mas mesmo nos momentos de lazer, a violência que corre as ruas não deixa que pai e filho se esqueçam do velado terror que corre o asfalto, com um exemplar categórico, onde a polícia invade um boteco para assassinar um fugitivo, nos fundos do bar, enquanto na fábrica, as demissões seguem acontecendo.

    Francisco Milani vive o personagem Sartini, que dos revoltosos é o mais radical, que tenta quase sempre em vão inflamar os ânimos, sendo quase sempre tranquilizado por seus amigos Bráulio (Milton Gonçalves) e claro, por Otávio. Ao mesmo tempo em que o patriarca enxerga no extremismo um erro, mas na apatia algo até pior. A inconformidade do senhor o faz entrar em conflito com seu filho, que após guardar muita mágoa, solta seus impropérios e ofensas ao seu genitor, movido supostamente pela situação de ausência dele, nos anos de chumbo, quando Tião era ainda um menino e quanto o chefe da família estava em cárcere.

    A greve finalmente se instaura, deixando filho e pai em lados opostos. Os sindicalistas se mostram sem cabeça, com quase todos seus adeptos baseando seus movimentos na arruaça e na desmedida maneira de encarar as injustiças com o proletariado. O fantasma da prisão volta a assombrar Otávio, enquanto Tião apanha de seus colegas de trabalho, os grevistas que o culpam por furar o motim. Os ecos da repressão continuam assolando as pessoas comuns, o massacre faz até Maria se revoltar com seu futuro esposo, na prova cabal de que a repressão prossegue.

    Sebastião é condenado pelo júri familiar, com a pena de ser deserdado, por se aliar àqueles que se conformaram e que apoiam os patrões. Enquanto o primogênito se despede em viagem, os companheiros de classe sofrem as ações homicidas da polícia, tendo vidas valiosas cerceadas de modo cruel e brutalmente injusto, o que obviamente abala o emocional dos personagens, que em qualquer análise não passam de pessoas comuns, que mesmo após traumas tão fortes como os mostrados em tela, têm de voltar às suas vidas, à rotina sufocante de ter de trabalhar arduamente para produzir o seu próprio sustento sem as garantias mínimas de que poderão fazer isto sem sofrer qualquer selvageria, cujo rigor excludente é tamanho enquanto a contrapartida é ínfima. Os poderosos permanecem, o povo falece na penúria.

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